Minority Report - rastreando as origens do cyberpunk

Adriana Amaral1


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Resumo: O presente artigo tem como objetivo traçar um levantamento das principais características do cyberpunk, enquanto subgênero literário que partiu da ficção-científica em fins da década de 80 do século XX. O cyberpunk é apresentado enquanto gênero tipicamente pós-moderno, híbrido, mescla tanto da literatura quanto das teorias advindas das ciências sociais, representando um imaginário no qual a tecnologia é tão ou mais importante do que a existência humana. Através da análise da short-story Minority Report do autor norte-americano Philip K. Dick, (1956), buscamos os antecedentes desse gênero, apontando para o conteúdo filosófico-científico que aparece no conto, antecipando a visão de mundo e futuro que mais tarde seria chamada pelos teóricos da cibercultura de cyberpunk.

Palavras-chave: comunicação e pós-modernidade, ficção-científica, cyberpunk.

Ficção-científica - a prosa tecnificada

As teorias pós-modernas, o contexto da sociedade contemporânea e a aceleração e propagação das tecnologias de comunicação têm gerado diversos fenômenos sociais e estéticos. As artes sempre trataram das angústias dos homens de seu tempo. A literatura, as artes plásticas, o cinema, entre outros, sempre exprimem o imaginário de sua época. A tecnologia que começou a estar presente na vida quotidiana em fins do século XIX, avança, desde o século XX, para uma quase que onipresença em nossos atos mais triviais. Embora saibamos que a técnica existe desde que o homem é homem, o pensamento acerca da técnica, no entanto, começou a florescer a partir de fins do século XVII. Pensadores como Descartes, Kant e outros já apontavam para a transformação do elemento metafísico em elemento tecnológico.

Essa passagem da cultura em uma cultura tecnológica (que ainda está em andamento) e do sujeito em sujeito tecnológico encontra-se na essência do ser humano, desde as épocas mais remotas, mas apenas começa a potencializar-se enquanto ``realidade'' no século XX. As imagens que fundamentam o imaginário tecnológico acompanham a transformação dessa sociedade desde os mitos mais distantes e perpassam a literatura desde o século XVIII. A ficção-científica nasce no contexto da Revolução Industrial e vem consolidar esse imaginário cientificista, no qual máquinas, robôs e viagens espaciais convivem com seres humanos. Tais artefatos são imaginados pelo pensamento e potencializadas gradativamente enquanto objetos tecnológicos.

Os pesquisadores da ficção-científica enquanto um gênero literário definidor do caráter técnico da sociedade contemporânea, como Roberts (2000) e Bukatman (1998) o definem como herdeiro de uma tradição literária que vem do romantismo do século XVIII e XIX (poetas como Milton e Blake), e, sobretudo dos contos góticos e de horror. O gótico porque atenta para a sublimidade, para os extremos e a violência da condição humana frente a um mundo em constante transformação, articulando um estado de ser diferente do ordinário (Roberts, 2000, p. 58). O horror porque apresenta o encontro com o ``outro'', num misto de fascínio e rejeição, atração e medo. O outro, seja ele um alienígena, uma máquina dotada de inteligência artificial ou um robô, representa a alteridade, posta diretamente em conflito com o humano, questionando assim a sua própria validade, identidade e existência.

O artigo não pretende traçar as origens históricas da Ficção-Científica (FC), mas sim, demarcar limites e características que são pertinentes para a análise das características do cyberpunk e de como eles já estão presentes na obra de Philip K. Dick, escrita nos anos 50. Para tanto, avançaremos no tempo e situaremos a década de 80, descrevendo os elementos que condicionaram o surgimento desse subgênero literário.

A literatura dos anos 80 e o pós-moderrnismo - um breve contexto

Uma vez que, pretendemos apresentar a sociedade da década de 80 sob o viés literário, descreveremos o seu imaginário, não através dos fatos históricos em si, mas de sua representação artística a partir de algumas obras literárias que estão diretamente relacionadas à cultura e ao modo de ser da época. A década de 80, descrita pelo jornalista e escritor Tom Wolfe em A Fogueira das Vaidades e A Palavra Pintada, entre outros, nos introduz à época pós-guerra fria, do capitalismo selvagem de Wall Street, dos ternos desestruturados dos yuppies em seu consumo fanático de grifes e da cocaína como a droga da moda. Tempo de badalação dos artistas plásticos em vernissages concorridas, na qual o crítico do jornal tem mais poder que o próprio artista, criando rótulos a cada semana. O poder da mídia e da sociedade de consumo explode nos anúncios de grifes famosas, nos filmes repletos de efeitos especiais e no consumo desenfreado, entre outros.

Outras duas obras seminais que se passam nos coloridos oitenta e que traçam um belo panorama são Brilho da noite, cidade grande de Jay McInerney e American Psycho de Bret Easton Ellis. A primeira obra mostra a decadência de um jornalista ambicioso circulando na noite novaiorquina com o glamour das festas e a ostentação característica da chamada geração X em sua trajetória rumo ao vazio existencial. Já a segunda2, nos introduz ao mundo de um psicopata, escondido sob a máscara de um publicitário hedonista que mata prostitutas e colegas de trabalho por motivos banais como ter achado o cartão de visitas do colega mais bonito que o seu próprio cartão. Essas obras apresentam o retrato de uma geração pós-guerra fria, na qual as utopias e ideais pacifistas presentes nas décadas anteriores encontram-se em processo de total dissolução. A extrema cientifização do modernismo contrasta com os livros de auto-ajuda e com o misticismo acolhido por uma grande parcela da classe média. Por outro lado, as grandes narrativas são substituídas pelo prazer imediato do consumo, do culto ao corpo e da idealização da tecnologia como a redentora dos problemas da sociedade viabilizada através da cultura do computador pessoal, também uma invenção daquele período. Embora não fazendo parte do gênero ficção-científica, o caráter de tais obras está muito relacionado com as teorias sociais e com os próprios questionamentos existenciais e sociais das obras cyberpunk do mesmo período.

Alguns desses tópicos constituem o cerne das teorias dos chamados autores pós-modernos como Lyotard, Maffesoli, Baudrillard, Virillio, Deleuze e Guatari. Da mesma forma, as imbricações da cultura com a economia, a política, etc e as questões em relação à suposta ahistoricidade do mundo contemporâneo, à compressão espaço-temporal e à extrema aceleração das transformações também aparecem no pensamento de autores como Harvey, Jameson, Connor, Featherstone. São várias as origens filósoficas que desembocaram nas chamadas teorias pós-modernas para alguns, teorias da contemporaneidade para outros e as controvérsias continuam no centro dos debates acadêmicos. Não cabe aqui esse debate e sim, apenas apresentar a pós-modernidade como um dos elementos que dá sustentação teórica à ficção científica e mais precisamente ao cyberpunk.

Cyberpunk - gênese, conceito e temáticas

O termo cyberpunk foi cunhado pelo escritor norte-americano Bruce Bethke3 em sua short-story4 homônima. Segundo Featherstone e Burrows (1995), o termo está diretamente ligado às teorias pós-modernas, pois tanto o cyberpunk é uma fonte para essas teorias, sendo estudado por diversos autores, quanto, na contramão, as teorias fundamentam cultural e socialmente esse tipo de ficção. Os autores apontam que o termo cyberpunk, assim como seu correlato, cyberspace5, origina-se do termo cibernética, conceito cunhado pelo teórico Norbert Wiener em 1948. Featherstone e Burrows (1995) também apresentam o trabalho de William Gibson como uma obra exemplar de poética cyberpunk. Gibson é um dos principais autores de ficção cyberpunk, tendo, no livro Neuromancer6 (1984) criado o conceito de ciberespaço e inspirado uma série de outros autores como Pat Cadigan, Bruce Sterling, Lewis Shiner e Greg Bear Ainda no mesmo artigo, os autores comentam que o cyberpunk é uma visão de mundo atual que engloba literatura, música, cinema, teorias, a cultura jovem e a cultura da MTV e a cultura do PC/Macintosh. Nesse contexto, são citados Mary Shelley, Philip K. Dick e J.G. Ballard, Gibson e outros escritores, McLuhan, Wiener, Walter Benjamin e Baudrillard como teóricos e a música de Patti Smith, Lou Reed, Ramones, Sex Pistols (a geração punk ) como fontes de sua influência.

A visão cyberpunk reconhece um espaço público em que as pessoas são tecnologizadas e reprimidas ao mesmo tempo, sendo que a tecnologia media nossas vidas sociais. É através da hiperestetização do quotidiano que viemos a nos conhecer, através da ficção, ``in an increasingly hyperaestheticized everyday life, it is through various fictions that we endavour to come to know ourselves.'' (Featherstone e Burrows, 1995, p.13). Dyens (2001) o define menos como uma criação da nova ficção-científica surgida nos 80 e mais como um campo de expressão artística contemporânea: ``many recent books, films, visual art, and musical compositions can all be described as cyberpunk. ``(Dyens, 2001, p. 73)

Já McCarron (1995) afirma que o cyberpunk apresenta questões filosóficas de ordem moderna, nos remetendo diretamente à dicotomia cartesiana mente/corpo, no qual a mente pura apresenta um desprendimento puritano do corpo, sendo este, um acidente de percurso, desconectado da substância pura da mente. Ele apresenta a interação humana e mecânica como indissociável e conflituosa, todavia central na narrativa cyberpunk. Essa mesma narrativa, segundo o autor, questiona as hierarquias humanas propondo uma diminuição e, quase um borrão, nas diferenças entre animais, humanos, andróides, etc. Ele cita como exemplo desse questionamento hierárquico, o filme Blade Runner - considerado como o primeiro filme cyberpunk, tanto nas concepções de conteúdo como de forma - originado do livro Do androids dream of eletric sheep? de Philip K. Dick.

Além do corpo enquanto entidade/ alteridade (presente em boa parte das estórias), McCarron (1995) destaca questão da identidade/existência e o fim da memória privada. Segundo ele, o computador, seja o hardware ou o software, é importante por ser uma metáfora para a memória humana. Ele também indica que nos textos há um desdém em relação ao físico, uma fascinação com as formas pelas quais a carne é irrelevante comparada com a memória. Quanto aos personagens, eles são, em sua maioria, meio humanos, meio andróides e, em geral, os cyborgues são mais humanizados que os próprios humanos. McCarron (1995) lista ainda outros pontos centrais na ficção cyberpunk:

McCarron (1995) acredita ser irônico o fato de que o capitalismo é o responsável pela literatura de fantasia moderna, mas que, ao mesmo tempo, ele seja agredido por ela. ``It is ironic to think that if capitalism is responsible for the modern fantastic, then the modern fantastic is more than happy to bite the hand that feeds it, and to bite the hand, moreover, with a prosthetic mouth'' (McCarron, 1995, p.272). Bukatman (1998) também comenta que uma das questões centrais do cyberpunk está na dificuldade de separar humanos de não-humanos, humanos da tecnologia, tanto retórica quanto fenomenologicamente. É por isso, que para ele, a ficção-científica de maneira geral e o cyberpunk criam metáforas do discurso pós-moderno, apresentando uma profunda reorganização da sociedade e da cultura e, além disso, repetidamente narram o novo sujeito, ao qual ele diz possuir uma identidade terminal. O autor afirma que a tecnologia sempre cria uma crise para a cultura e é, ao mesmo tempo, a forma de maior liberação e a mais repressiva na história, evocando terror e euforia sublime em medidas iguais. Esse misto de medo e adoração geram histórias que tanto parecem ser anti-tecnológicas quanto a favor da tecnologia, formas híbridas de representação artística que estão altamente conectadas ao tempo em que pertecem.

Conforme Roberts (2000), o gênero de ficção-científica como um todo não é futurístico, nem profético, mas sim nostálgico e principalmente diz mais a respeito da sociedade do tempo em que foi escrito (o tempo presente), do que sobre as possibilidades de visão de futuro. Para Bukatman (1998), a ficção científica ganha cada vez mais importância no momento cultural presente por ser este um momento que vê a si próprio como ficção-científica, ou, nos termos de Baudrillard, um tempo hiperreal. Esse presenteísmo encontra-se no centro de uma cultura em transformação. O autor inglês fala que a ficção-científica oferece um modo de representação alternativo, mais adequado à sua era, tentando recolocar um quadro filosófico e metafísico em torno dos eventos mais importantes dentro das nossas vidas.

Cyberpunk e Pós-modernidade

Uma outra questão extremamente ligada à pós-modernidade e que, segundo Bukatman (1998), aparece muito freqüentemente na temática cyberpunk é que a cidade modernista cede espaço ao não-lugar e o espaço sideral da ficção científica do período clássico - anos 30/40 - dá lugar ao ciberespaço. No cyberpunk, a cidade aparece tanto como um parque temático, quanto uma simulação, combinando símbolos da era espacial de alta tecnologia com a visão vitoriana do crescimento desordenado e não planejado. A cidade aparece como uma entidade negativa, um espaço escuro e superpovoado quebrado por formas de neon e estruturas corporativas, sendo claustrofóbica e monádica. Os detritos do passado reaproveitado misturam-se aos shopping-centers onde o tempo não parece passar. O espaço terminal é o domínio do cyberpunk.

Nesse cenário, o submundo e a escuridão da rua são componentes essenciais do gênero e nos remontam às origens góticas da ficção-científica. Roberts (2000) afirma que o ar sombrio, o estranhamento, o sobrenatural e o etéreo são constituintes da literatura gótica do final do século XIX tendo em Edgar Allan Poe e em Blake alguns de seus textos fundadores. Frankestein de Mary Shelley aparece como o grande paradigma do gênero gótico, porém apontando para a ficção-científica em seus pontos mais célebres. A questão da razão e da ciência, do progresso desordenado que as mesmas proporcionam ao homem, a existência humana, a morte de Deus e tantas outras idéias encontram no famoso romance um modelo que ainda é citado até os dias de hoje.

Bukatman (1998) explica que essa nova representação do espaço (seja a cidade, seja o ciberespaço) aponta para uma desorientação ou deslocamento de um mapa cognitivo para que o sujeito possa compreender os novos termos da existência na contemporaneidade. Segundo ele, a cultura dominante é definida pela acelerada mudança tecnológica, especialmente eletrônica. Segundo Bruce Sterling, que além de escritor cyberpunk também é teórico, ``o novo modo do ser é o estado tecnológico da mente - techno state of mind''. (Sterling apud Bukatman, 1998). Para ambos esse modo do ser possui uma aproximação entre a ficção e a teoria tanto estilística quanto tematicamente. Isso possibilita uma associação entre esse estilo literário/visual com a estrutura comercial da cultura de massa, através da qual o estilo é difundido.Para finalizar as relações entre ficção-científica e pós-modernidade Bukatman (1998) afirma que tanto nas teorias pós-modernas quanto na ficção-científica, através da sua linguagem - iconográfica e narrativa - o choque do novo é estetizado e examinado; além disso, ambas possuem uma ahistoricização, contudo com uma perspectiva crítica, pois a ficção-científica transforma nosso próprio presente em um passado determinado de algo que virá, o que remonta novamente à idéia de Roberts (2000) de que a ficção-científica é extremamente nostálgica e romântica.

Minority Report - resquícios arqueológicos do cyberpunk em Philip K. Dick

Se considerarmos os elementos descritos acima como definidores do subgênero literário chamado cyberpunk, veremos que antecipações de suas temáticas já se encontram na prosa de Dick na década de 50. O autor norte-americano pode ser apontado como um dos precursores do estilo que Bukatman (1993, p. 137) define não como uma forma literária fechada, mas sim como um local onde um número de práticas discursivas super-determinadas e questões culturais estão mais claramente explicadas e manifestadas, principalmente via estratégias narrativas e imagens tecno-surreais.

Minority Report conta a estória John Anderton, policial chefe de operações da Pré-crime, uma divisão da polícia que cuida dos criminosos por métodos preventivos. Isto é, as pessoas são presas antes de cometerem o crime devido a uma previsão feita por três precognitivos, seres estranhos, interligados através de uma máquina. O conflito se dá quando os precognitivos fazem uma previsão dizendo que Jonh Anderton será o próximo criminoso. A partir daí, uma trama de intrigas e paranóias começa a surgir. Anderton foge e começa a desconfiar da esposa e de Witwer, o policial designado para ser seu substituto. Nesse caminho, ele tem de lidar com constantes perseguições até descobrir as falhas do sistema Pré-crime, que envolvem um relatório e, finalmente, cumprir o destino de matar Leopold Kaplan, um general de uma divisão do exército que queria acabar com a divisão Pré-crime. Ao final, Anderton e sua esposa, Lisa, são levados para Centauro X, uma colônia interestelar.

Minority Report é de 1956 e insere-se na primeira fase do escritor Philip K. Dick. De acordo com Roberts (2000, p.31), nessa época, os Estados Unidos viviam sua chamada ``época dourada'' da Ficção-Científica. Nesse período, que compreende o final dos anos 30 até o início dos anos 60, o termo ficção-científica possuía um nível maior de coerência do que agora. Referia-se a um corpo particular de textos que eram, especificamente, baseados na ciência e na extrapolação da ciência em relação ao futuro. Entretanto, Dick foi uma exceção em vários sentidos. Enquanto Frank Herbert, Robert Heinlein e Isaac Asimov, também autores de ficção-científica ficaram ricos e tiveram grandes sucessos de venda ainda em vida, Dick morreu pobre e seu trabalho só era conhecido por um pequeno grupo de amigos. Como a maioria das pessoas na década de 60, Dick experimentou drogas e também esteve envolvido com o que considerou revelações religiosas. Tudo isso afetou seu trabalho de forma que seus livros foram ficando cada vez mais densos e menos acessíveis.

Segundo Edwards (2002, p.8),

Ele via o futuro de um jeito diferente dos outros escritores mais bem sucedidos. Enquanto eles optavam centrar suas histórias no conceito, Dick preferia as pessoas. E essas pessoas não eram heróis ou heroínas tradicionais: eram os cidadãos comuns do futuro, lutando contra versões diferentes dos problemas humanos normais: dificuldades financeiras, no trabalho e nos relacionamentos.

Dadas essas circunstâncias é possível perceber porque os textos de Dick só foram fazer sucesso na década de 80, principalmente com a adaptação para o cinema da sua novela Do androids dream of eletric sheep? que transformou-se no clássico cult-movie Blade Runner. O estilo de Dick frustrava o horizonte de expectativa do leitor modelo da época, que esperava textos extremamente baseados nas leis da ciência e em conceitos da física, da matemática, etc. Dick estava mais preocupado com um pensamento tecnológico em relação à existência humana.

A short-story trata, de uma forma hipercodificada, da busca da verdade por trás das estruturas institucionais e também de uma procura pela própria identidade do personagem principal, que não sabe se é potencialmente um assassino ou não. O texto trabalha com a dicotomia entre bem e mal sem ser maniqueísta, mostrando também que as decisões do presente influenciam o futuro. Entretanto, o estranhamento do texto reside no fato de que não há julgamento de valores morais. O policial Anderton, no fim da narrativa, precisa matar o general, a fim de que o futuro do sistema policial não seja comprometido. Embora a personagem esteja em constante questionamento existencial, nem o narrador tece comentários morais, deixando para o próprio leitor avaliar a situação.

Outro eixo ideológico que subjaz na short-story Minority Report trata-se da própria existência tecnologizada do homem. Bukatman (1993, p. 02) afirma que a ficção-científica repetidamente narra o novo sujeito, apontando para uma profunda reorganização da sociedade e da cultura. Segundo o autor norte-americano, a superação da condição humana e os triunfos da razão tecnológica são temas recorrentes no gênero (Bukatman, 1993, p.07). Nesse sentido, o policial Anderton apresenta-se não como um herói inabalável, mas sim como um cidadão comum, o sujeito do mundo contemporâneo, que procura respostas para sua própria condição através da tecnologia (representada pelo sistema de Pré-crime) e que vê sua fé no Estado ser cada vez mais abalada.

Contudo, ao fim, ele se sacrifica para salvar o sistema, mostrando que todos estão dentro dele e que não há possibilidades de escapatória. Em sua tentativa de superação, percebe-se que o pensamento tecnológico é anterior à tecnologia e por isso faz com que praticamente inexistam saídas dele. No fim, o sistema, representado pela tecnologia, sempre vence. A máquina supera o homem e este conflito é um dos leit-motivs da estória. Essa falta de perspectivas e a impossibilidade de escapar do imaginário tecnológico aparece de forma bem clara no diálogo final entre Anderton e Witwer, o policial que fica em seu lugar:

Ansiosamente, Witwer corria do lado do caminhão, sua face lisa e loura vincada de preocupação.

- Vai acontecer de novo? Devemos revisar a configuração?

- Pode acontecer em uma única circunstância - disse Anderton. - O meu caso foi exclusivo, na medida em que eu tive acesso aos dados. Poderia acontecer de novo, mas somente com o próximo comissário de polícia. Por isso, cuidado por onde pisa. - Sorriu largo por um breve momento, não dando nenhum conforto à expressão tensa de Witwer. Do seu lado, os lábios vermelhos de Lisa se contorceram e sua mão fechou-se sobre a dele.

- É melhor manter os olhos abertos - disse ao jovem Witwer. - Pode acontecer com você a qualquer momento.

(Dick, 2002, p. 61)

Esse diálogo mostra que a repetição dos padrões da máquina afeta os sujeitos do mundo contemporâneo, em uma estrutura de mundo do qual não há como fugir. Segundo Bukatman (1993, p. 04) a tecnologia sempre cria uma crise para a cultura. Nesse sentido, a tão propagada dissolução do sujeito (que aparece em filósofos como Nietzsche, Heidegger e Foucault) é representada dentro de um contexto futurista, em uma espécie de desorientação ou deslocamento de um mapa cognitivo para que o sujeito possa compreender os novos termos da existência (Bukatman, 1993, p.7). No período cultural presente, a ficção-científica é muito importante, por ser um momento que vê a si próprio como ficção-científica. A crise do sujeito que aparece representada nos personagens de Minority Report, mais especificamente na figura do comissário de polícia John Anderton, remete à tentativa da ficção-científica de colocar um quadro filosófico e metafísico em torno dos eventos mais importantes dentro das nossas vidas e consciências. (Bukatman, 1993, p. 07).

O discurso do texto concentra-se em duas temáticas básicas. A primeira delas é o tema recorrente da superação da condição humana pela personagem principal. A segunda trata da paradoxal rejeição/euforia em relação à tecnologia, representada na estória pelo sistema policial Pré-crime. A isotopia central, a questão da personagem tentando fugir de um possível complô contra ele, está presente durante todo o texto em diversas situações. Como quando ele desconfia da própria esposa na segunda parte da estória ou quando ele foge das mãos do general Leopold Kaplan na quarta parte da história. Durante todo o tempo aparecem marcas que nos lembram que o personagem não pode confiar em ninguém, que ele tem de descobrir porque foi incriminado, em uma tensão que beira a paranóia. Essa paranóia faz parte do sujeito contemporâneo em relação ao seu modo de ser no mundo.

A relação ambígua - de encantamento e decepção com a máquina - por parte do homem, também aparece com freqüência, principalmente, no momento em que Anderton começa a descobrir as falhas no sistema e as diferenças nos relatórios dos pré-cognitivos. Ela culmina com o final apocalíptico em que Anderton prefere tornar-se assassino com o intuito de defender o sistema, ou seja, a tecnologia. No embate homem/máquina, o homem se tecnifica a fim de defender a utilização da máquina na sociedade, em uma visão utópica de que ela seja uma panacéia para os males do mundo. No entanto, ao mesmo tempo em que a personagem principal desiste da humanidade em favor do sistema (sendo inclusive transferido para outro planeta) percebe-se a indeterminação do texto, abrindo um espaço para que a personagem pareça ter feito uma escolha que a levou a um auto-exílio da sociedade, representando uma espécie de escapatória do mundo tecnologizado.

Podemos apreender essa sutileza do texto no momento em que Lisa, esposa de John Anderton, está fazendo as malas de ambos para a mudança de planeta.

- Ali vai o penúltimo caixote - declarou Lisa, absorta pela tarefa. De suéter e calças compridas, entrou pelos cômodos vazios, verificando os detalhes de última hora. - Acho que não vamos usar os novos aparelhos atrônicos. Ainda usam eletricidade em Centten.

- Espero que não se importe. - disse Anderton.

- A gente acaba se acostumando - replicou Lisa, e lhe deu um sorriso fugaz. - Não é?

- Espero que sim. Tem certeza de que não vai se arrepender? Se eu achasse...

- Sem arrependimento. - Lisa garantiu. - Agora poderia me ajudar com este caixote.

(Dick, 2002, p.59)

Esse diálogo mostra que o casal está consciente de que vai deixar para trás uma sociedade extremamente avançada, em termos de tecnologia, e irá para um local onde ficará distante dessas máquinas. Fica explícito aqui o caráter nostálgico de retorno a um tempo em que as máquinas ainda não haviam dominado o homem. E o próprio exílio escolhido pela personagem demonstra que essa escolha foi consciente tanto para salvar o sistema e assim permitir que ele se perpetue quanto como possibilidade de fuga para ele próprio que parece querer levar uma vida distante da tecnologia, o que seria impossível na sociedade à qual ele pertence. Essa nostalgia constitui um dos grandes motes constitutivos da ficção-científica enquanto gênero literário. De acordo com Roberts (2000), a ficção-científica diz mais respeito do presente e do passado do que do futuro.

Although many people think of Science-Fiction (SF) as something that looks to the future, the truth is that most SF texts are more interested in the way things have been. SF uses the trappings of fantasy to explore again age-old issues; or, to put it another way, the chief mode os science fiction is not prophecy, but nostalgia. (Roberts, 2000, p. 33)

A estrutura narrativa que aparece com mais força é a do herói que precisa se sacrificar para que a humanidade sobreviva. Bassa e Freixas (1993) afirmam que o herói na ficção-científica é um dos arquétipos que constitui o que os autores chamam de suporte narrativo. Os autores apresentam a transformação do arquétipo de herói da década de 30 até o fim dos 80, mostrando que houve uma transformação dos heróis positivos (definidos como os heróis que defendem a moral de seu tempo) em direção a alguns heróis filosóficos (questionadores de seu próprio tempo, inclusive dos valores da sociedade da época).

Solo ante el peligro, luchando denodadamente, a brazo partido, contra degradaciones sociales, podredumbre, corruptelas administrativas, policías sobornados, multinacionales, CIA, mafia, políticos vendidos, alienígenas y un largo etcétera, nuestro hombre se hallará totalmente aislado en su lucha, sin ninguna apoyatura, despreciado, ante la indiferencia acompañada de sorna de sus conciudadanos, ajenos y obstinadamente al margen o mejor marginando. Sufrirá solo, impotente, las amenazas, ataques y desmanes, en su persona o en la de sus pocos amigos.

(Bassa e Freixas, 1993, p. 94)

John Anderton enquadra-se nesse perfil de herói solitário e angustiado por questões existenciais que precisa travar duas lutas: uma externa, contra os que querem lhe incriminar e destruir o sistema Pré-crime e uma interna que é uma batalha contra o envelhecimento e a sua substituição por um policial mais jovem, que está presente já na primeira frase da short-story. ``O primeiro pensamento que ocorreu a Anderton quando viu o rapaz foi: estou ficando careca. Careca, gordo e velho. Mas não disse isso em voz alta.'' (Dick, 2002, p.11).

No que diz respeito às estruturas ideológicas Minority Report parece estar em um nível de grande ambigüidade. Ao mesmo tempo em que é uma estória linear sobre um policial em busca da verdade, ela também apresenta aspectos de indeterminação que entram em conflito. Principalmente porque ao mesmo tempo em que a personagem principal defende o sistema policial, ou seja, a tecnologia, ele também encontra diversas falhas que aparecem na figura dos relatórios da maioria e da minoria. Essas falhas, bem como, a perseguição à John Anderton fazem com que a personagem perca sua fé na sociedade, indo rumo a um exílio num outro planeta menos avançado em termos de tecnologia. Mesmo assim, ele faz seu sacrifício e salva o sistema, deixando a questão em aberto.

Não seria incorreto dizer que essa expressão artística do contexto da sociedade contemporânea não insere-se nem uma tradição prometéica (de exaltação da tecnologia) tampouco fáustica (de oposição à tecnologia) e sim, a uma corrente humanista, na qual o sujeito - na forma de John Anderton - toma uma decisão que afetará a humanidade, garantindo o lado bom da tecnologia de prevenção de crimes para todos, mas, ao mesmo tempo ele escolhe uma fuga, um abandono dos valores tecnológicos em direção a um tipo de vida mais ``simples''.

Um outro aspecto a ser levantado trata da questão da identidade e da existência. Há um questionamento filosófico por trás da short-story que diz respeito à dissolução do sujeito, questionando o conceito de humanidade a partir de uma oposição com o inumano, aqui representado pelos três pré-cognitivos. Esse questionamento das hierarquias (humanos/inumanos) é um dos pontos centrais do que se convenciona chamar de cyberpunk, tendo sido Dick o seu precursor.

De acordo com Scott Bukatman (1993, p. 11), a ficção-científica transforma nosso próprio presente em um passado determinado de algo que virá, ou seja, ela mostra o passado do devir. Segundo ele, a linguagem do espetáculo e da simulação é mais do que mimética, fazendo com que o leitor seja forçado a habitar temporariamente aquele mundo possível.

Minority Report é uma obra que questiona filosoficamente as categorias da relação homem/máquina. O homem é representado pela personagem de John Anderton e a máquina é representada pelo sistema policial pré-crime. O conflito entre os dois é estabelecido quando o sistema, do qual ele era o ``dominador'' o acusa de possível assassino. A oposição e, conseqüente, mistura entre humanos e máquinas constitui o ponto central da visão de mundo cyberpunk (Featherstone e Burrows, 1995).

Mas, se o termo só foi cunhado na década de 80, como poderia Minority Report ser um representante do cyberpunk? Os elementos que constituem a visão de mundo cyberpunk já estavam presentes nas expressões artísticas antes mesmo do termo ter sido elaborado. A relação conflituosa entre seres humanos e tecnologia vêm sendo descrita literariamente desde o final do século XVII. Em fins do século XIX temos obras seminais para a formação do conceito como Frankenstein de Mary Shelley, entre outras. Nesse sentido, podemos encontrar as raízes do que se convencionou chamar de cyberpunk desde os primeiros textos de literatura fantástica.

Portanto, é possível observarmos formas que mais tarde virão a ser chamadas de cyberpunk na obra de Philip K. Dick como um todo e, especificamente, em Minority Report. Dick foi um dos que abriu as portas da literatura contemporânea para as questões da ordem do pensamento tecnológico, como o conflito homem/máquina e uma visão de futuro sombria onde seres humanos disputam seus últimos resquícios de humanidade com os elementos de ordem mecânica.

Da maneira que o futuro se revelou nas últimas duas décadas - quando mesmo as previsões mais loucas começaram a tomar forma -, a visão que Philip K. Dick tinha de pessoas comuns em circunstâncias incomuns tornou-se a que melhor descreve a forma como ele é percebido por nós.

(Edwards, 2002, p.9)

Sendo assim, podemos considerar Minority Report não como literatura cyberpunk, mas sim como um texto que remete a uma visão de mundo que, posteriormente seria chamada de cyberpunk.

Referências Bibliográficas:



Notas de rodapé

... Amaral1
Mestre em Comunicação Social pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil e Doutoranda pelo mesmo programa.
... segunda2
American Psycho foi transformado em um filme com o mesmo nome no ano 2000.
... Bethke3
``Bruce Bethke was apparently the first person to use the word ``cyberpunk''. It appeared in a short-story published in November 1984 in the magazine Amazing Stories. It was later popularized by Washignton Post journalist Gardner Dozois in his December 30, 1984, article titled SF in the Eighties''. (Shiner ,1992, p. 18)
... short-story4
Short-story é um gênero literário que difere do conto e da novela, tipicamente na língua inglesa.
... cyberspace5
Em português ciberespaço.
...Neuromancer6
Neuromancer é o principal livro no qual foi baseado o filme Matrix (1999). Entre suas outras obras estão Mona Lisa Overdrive e Johnny Mnemonic - também transformado em filme.