CAMPOS EM CONFRONTO: JORNALISMO E MOVIMENTOS SOCIAIS

AS RELAÇÕES ENTRE O MOVIMENTO SEM TERRA E A ZERO HORA


Tese de Doutorado na ECA, USP - Maio de 1996


Christa Liselote Berger Kuschick, Universidade Federal do Rio Grande do Sul


(Introdução; Capítulo I; Capítulo II; Capítulo IV; Conclusão)




Terceiro Capítulo


Do Popular: Toda transgressão que couber e o povo aprovar, a gente reivindica



Como é terrível ler o poema de Shelley (para não falar dos cantos camponeses egípcios de 3 mil anos atrás), denunciando opressão e exploração. Serão eles lidos num futuro ainda repleto de opressão e exploração, e dirão as pessoas: Até naquele tempo...?
Bertold Brecht

O que é a nossa ciência frente aos grandes acontecimentos, como as guerras e as revoluções? O que é o nosso refinamento à luz das vidas que nunca fizeram notícia, que nunca tiveram obituários?
Robert Darnton


É tempo de fazer uma pausa no problema do jornalismo e enfocar a outra questão que nos ocupa neste trabalho: o popular, subalterno, contra-hegemônico e os movimentos sociais que lhe são inerentes.

Quando estranhamos as dificuldades em compreender o popular na contemporaneidade é bom lembrar que a Cultura Popular (CP) na Idade Média e na Idade Moderna só foi estudada e compreendida, de fato, há bem pouco tempo. Não que não houvesse interesse pelo assunto, mas sua transformação em objeto de estudo só aconteceu na confluência entre diversas disciplinas que, andando pelas suas margens, chegaram a uma História das idéias e do cotidiano, aí incluindo a redefinição de cultura e de popular. Com esta nova referência, foi possível interpretar e analisar o cotidiano dos homens e das mulheres enredados em sua sobrevivência, num tempo em que as manifestações simbólicas eram orais. O acesso a elas, para fins de estudo, só se deu posteriormente, através de relatos escritos em livros de história, romances, processos eclesiásticos e jurídicos.

É interessante observar que dois autores representativos desta matriz de pensamento - Jacques Revel (1989) e Carlo Ginzburg (1987) - afirmam que a Cultura Popular se converte em tema de interesse quando começa a desaparecer ou quando é censurada. “A cultura popular só se apreende no modo do desaparecimento porque o nosso saber nos impõe, seja como for que deixemos de a ouvir e de saber falar dela.” (Revel, 1989, p.67) Isto quer dizer que foi preciso ter sido censurada ou ameaçada de desaparecer para merecer a atenção de estudiosos. “Tornou-se então objeto de interesse porque o seu perigo tinha sido eliminado”, continua Revel, para quem os estudos sobre literatura de colportage (de venda ambulante e de cordel) esteve ligado à censura social do seu objeto (idem, p.49). A repressão política esteve, aqui, na origem da curiosidade científica: a eliminação dos livros julgados subversivos ou imorais os transformou em objetos de estudo. É a isto que Revel chama de “beleza do morto: o conceito de cultura popular”, pois o início do objeto de estudo (cultura popular) corresponde ao anúncio de sua morte - ainda que não concretizada.

Outros autores buscam nas origens da Cultura Popular a natureza do povo: ingênuo, espontâneo, inocente, puro. É o caso do Menocchio, de Ginzburg1 (1987), e de Pierre Riviére, de Foucault2(1984). Ou ainda do Casper Heuser, do filme de Werner Herzog. Todos andando sobre o fio tênue que (in)distingue a inocência da sanidade. Ao ser estudada, a Cultura Popular na Idade Média encontra-se no interior da religião, do carnaval, dos ritos e das festas.

Bakhtin (1987), de certa forma, inaugura este novo olhar sobre o popular, delineando através da leitura de Rabelais um caminho fértil para observá-lo em funcionamento. Sua definição de carnaval e de carnavalesco, em oposição à cultura oficial, destaca a importância da transgressão e quase redefine o popular a partir da categoria de rebeldia. Ele é o primeiro a formular a hipótese de uma influência recíproca entre a cultura das classes subalternas e a cultura dominante. A noção de circularidade com que denomina esta relação será útil posteriormente, na interpretação de outras situações.

Gramsci (1976) também observa a cultura popular pela relação com as culturas que a ela se opõem, buscando a conexão do popular com o hegemônico. Para ele, o que constitui o caráter popular de uma expressão cultural é a relação histórica, de diferença ou de contraste, diante de outras expressões culturais.

A interpretação dominante sempre separou a produção e o consumo cultural, deixando a Cultura Erudita com a elite e a Cultura Subalterna com o povo, incluindo, apenas, com o desenvolvimento da Indústria Cultural uma terceira via: a Cultura de Massa. Reconhecer intersecções entre as três instâncias foi, pois, um avanço.

Bakhtin e Gramsci consideraram os “intercâmbios”, os “empréstimos” e os “condicionamentos recíprocos” entre as culturas, nos anos 30 e 40. No entanto, suas idéias só foram divulgadas e desenvolvidas através de abordagens empíricas muitos anos mais tarde.

De alguma forma, as questões propostas na Europa em torno da Cultura Popular para outros períodos históricos ressoaram na América Latina. A idéia da Cultura Popular como festa que se opõe ao caráter dogmático e sério da cultura das classes dominantes, regenerando o povo, encontra-se em estudos sobre o carnaval, o samba, o futebol e o folclore. Por outro lado, a idéia da Cultura Popular como “beleza do morto” é observada através da Comunicação Alternativa que, censurada, mereceu atenção. Foi no seu processo de inexistência legal (a imprensa alternativa), em sua atuação clandestina (o teatro popular) que a Comunicação/Cultura - Popular/Alternativa - afirmou-se como questão pertinente a ser estudada. O caráter conscientizador, de resistência e potencial revolucionário destas expressões culturais/comunicacionais estimulou e organizou um tipo de pesquisa que marcou os estudos na América Latina.

Para Canclini (1989), os estudos latino-americanos sobre o popular apontam para três direções: a antropologia, que o reduz às comunidades tradicionais; o folclore, que o limita à reprodução de objetos e tradições; e a ação política, que o entende como processo de conscientização.

Esta fragmentação inicial permeada de uma frágil teorização se deve, em parte, porque as grandes teorias sociais subestimaram o tema. Mas, tal qual na Europa de Revel, quando se dá a ascensão temática do popular, ela converte-se quase em moda, pois diferentes campos - políticos e acadêmicos - percebem que os processos simbólicos são um fator fundamental na reprodução, transformação e organização do povo e passam a querer compreendê-los.

Para a intenção deste trabalho, é a direção “politizada” do popular que importa conhecer. Nos anos 60 e 70, o popular na comunicação é estudado de forma marginal. A orientação vem da Escola de Frankfurt e da Teoria da Dependência que esclarecem a relação entre economia, política e comunicação, sustentada nos conceitos de ideologia e manipulação. A cultura faz parte das estratégias de dominação transnacionais e nacionais e a preocupação é por esclarecer as relações entre o monopólio econômico e comunicacional.

Na América Latina cabe a Armand Mattelart inaugurar esta perspectiva. Na década de 80 Gramsci é (re)descoberto pela atenção que dá à capacidade de réplica das classes subalternas. Mas as leituras apressadas deste autor, na América Latina, situam na classe hegemônica a função de dominar e nas classes subalternas a de resistir, contrapondo-as de tal forma que não há espaço para observar o que não se enquadra no modelo. E o receptor (popular), ainda que agora ativo (ele resiste), permanece no lugar indicado pela dominação, ou seja, no espaço da resistência.

A chegada aos anos 90 caracteriza-se pelo reconhecimento do impasse criado por estas perspectivas e pela busca de novos recursos teórico-metodológicos para sua superação. No contexto em que se destacam a derrota de movimentos revolucionários, a crise de paradigmas políticos (liberais e populistas) e o interesse acadêmico por compreender os modos diversificados de recepção popular do massivo, há necessarimente a busca por uma nova proposta de analisar o par dominação/dependência. O ponto de partida é rever o mesmo par na relação negociação/apropriação. E este passa, privilegiadamente, por repensar a relação Cultura de Massa/Cultura Popular. A dominação tem a ver com imperialismo cultural e Indústria Cultural, logo, estes em oposição à Cultura Popular. Esta lógica é incapaz de perguntar sobre outros modos possíveis de relações entre ambas. Como a de contrato, ao invés de dominação, reconhecendo a “utilidade” que o povo encontra na Comunicação de Massa e na capacidade desta de absorver as demandas populares. Esta pespectiva tenta observar os mecanismos de dominação, sim, mas em seu movimento dialógico e contratual com o popular e não apenas de imposição. A noção de circularidade (Bakhtin, 1987) bem como a de consumo (Canclini, 1995) são muito úteis nesta perspectiva.

Canclini propõe, evocando Gramsci e Bourdieu, que o popular seja pesquisado desde uma Teoria da Reprodução, que significa: existem culturas populares porque a reprodução desigual da sociedade gera: a) uma apropriação desigual dos bens econômicos e culturais por parte de diferentes classes e grupos na produção e no consumo; b) uma elaboração própria de suas condições de vida e uma satisfação específica de suas necessidades; c) uma interação conflitiva das classes populares com as hegemônicas pela apropriação dos bens. A apropriação é desigual na produção e no consumo e marginaliza setores que se encontram desintegrados. A desigualdade na apropriação dos bens é um fator-chave para que as culturas populares sejam subalternas. “A cultura popular, [diz Canclini] está menos na consciência, no sentido intelectual que no modo de vida, nas práticas de produção e de consumo.” (1985, p.42)

Problematizando esta concepção, em Culturas Híbridas, o autor busca:

[...] corrigir a onipotência do reprodutivismo com a teoria gramsciana da hegemonia. As culturas populares não são um efeito passivo ou mecânico da reprodução controlada pelos dominadores; também se constituem retomando suas tradições e experiências próprias no conflito com quem exerce, mais que a dominação, a hegemonia. Quer dizer, com a classe que, se bem dirige política e ideologicamente a reprodução, deve consentir espaços onde os grupos subalternos desenvolvem práticas independentes e não sempre funcionais para o sistema. (1989, p.254)

Jesus Martin Barbero, pesquisador latino-americano, também insiste na necessidade de construção de outro modelo de análise, capaz de observar a cultura como mediação social da comunicação com o popular. O que implicaria abandonar a concepção de transnacionalização, enquanto estratégia de imposição cultural, para compreender a relação nacional/internacional como formadora de novas identidades, de reordenadora do nacional e, nesta perspectiva, poder perguntar-se “sobre a capacidade das comunidades para transformar o que vêem em outra coisa e para vivê-la de outra maneira.” (1990, p.24)

Canclini e Barbero concordam que esta perspectiva só se efetivará no esforço de teorização sobre pesquisas empíricas. Pois só o trabalho de campo que se deixa desafiar pelos fatos pode perceber aquilo que escapa às matrizes conceituais e seus métodos.

Por um lado, a questão popular desemboca no campo da cultura; por outro, no campo político. Sem dúvida, ambas cruzam-se logo a seguir, tornando-se indistintas. A Cultura Popular circula por entre o massivo, o tradicional, o moderno, o local, o nacional e o transnacional, expressando o próprio e reconstituindo o alheio num incessante jogo de interações entre as classes hegemônicas e subalternas.

Já o último resquício do popular engajado no tecido social para transformá lo, encontra-se nos movimentos sociais. Nestes, através da organização para a sobrevivência e da busca por um sentido para a vida, expressa se a Cultura Popular. Os movimentos sociais existem em razão da distribuição desigual dos bens produzidos socialmente, que demanda um tipo de organização cujo objetivo é reivindicar. No seu interior configura-se a expressão cultural da desigualdade social. A cultura dos movimentos sociais é do conflito e da solidariedade; da carência, da escassez e da falta, e é ela quem subsidia a possibilidade da reunião e a capacidade da rebelião.

As interações entre hegemônicos e subalternos são cenários de luta, mas também onde uns e outros dramatizam as experiências de alteridade e de reconhecimento. O confronto é um modo de encenar a desigualdade (enfrentamento para defender o próprio) e a diferença (pensar-se através do que desafia). (Canclini, 1989, p.259)

A mediação da cultura e da política é parte do processo de comunicação que dá identidade aos movimentos e permite a interregulagem dos diversos interesses e, então, destes com a sociedade. É pela comunicação pública que outros campos sociais conhecem, formam opinião, elaboram argumentos e dialogam com os movimentos sociais.

3.1 Como estudar um Movimento Popular

Os movimentos sociais passam a ser objeto de estudo das Ciências Sociais a partir dos anos 70, caracterizados como “novos” e situados privilegiadamente na problemática urbana. Uma definição, que pode ser considerada consensual, descreve os movimentos sociais como formas de organização e mobilização, inscritos como elos ativos entre os processos de reprodução social e a esfera política. Desta maneira, os movimentos sociais articulam-se tanto aos processos de construção da sociabilidade quanto ao campo político em seus conflitos. Esta dupla face é reconhecida nas lutas cotidianas de organizações de diversas feições, como a luta das mulheres por creches que, inseridas na problemática econômica, propõem alternativas concretas de reorganização da estrutura familiar e, simultaneamente, expõem as mulheres a uma prática política.

Este é o “novo” dos movimentos sociais que os diferenciam das experiências de mobilizações anteriores e, também, dos partidos políticos.3

Há diferentes chaves de interpretação dos movimentos sociais; a abordagem funcionalista contemporânea (Blumer e Smelser), a estruturalista (Touraine, Melucci e Alberoni), a neo idealista, com ênfase na corrente autonomista (Guattari, Ewers) e a marxista que pode ser subdividida em estruturalista (Castells, Borja), histórico-estrutural (Lojkine, Lung) e dos historiadores (Hobsbawm, Thompson, Rudé).4

Em comum, todas partem das relações estabelecidas pela formação social capitalista, portanto, industrial, e isto explica de certa forma a ênfase na realidade urbana. Todas, também, diferenciam lutas de movimento, concluindo que as lutas sociais não constituem por si só um movimento social. É preciso que lutas específicas se articulem às questões mais gerais e dêem respostas a elas. Para a maioria dos estudiosos, os movimentos sociais inserem-se na perspectiva da luta de classes. Uma diferença entre estas abordagens está no reconhecimento da presença do Estado que vai do agente de transformação histórica, representante da classe dominante, à agenciador de contradições.

Abordar o Movimento Sem Terra como movimento social não é consenso entre os estudiosos, pois estes são identificados como um fenômeno social próprio dos anos 70 em diante, portanto, novos, vinculados às contradições capitalistas, logo, industriais e urbanas, e onde os aspectos comportamentais e culturais sobrepõem-se às questões econômicas.

Consideramos, no entanto, a possibilidade de argumentar o MST como movimento social a partir de sua inserção como tema da sociologia rural (anos 80), quando a ênfase não é a agricultura e sua economia, mas as relações sociais no campo, que, desiguais e acompanhando o desenvolvimento da agricultura capitalista, demandaram um novo tipo de organização, incorporando às antigas lutas sociais do campo reivindicações dos movimentos sociais urbanos. José Vicente Tavares reconhece no Campo da Sociologia uma “sociologia dos processos sociais agrários, cujos eixos temáticos são: a estruturação do rural através de políticas públicas; as classes e os grupos sociais agrários; a violência, os conflitos e as lutas sociais no campo; e o papel dos mediadores políticos.” (1994, p.138)

Ele afirma, ainda, que existe em processo de construção uma abordagem “sócio-antropológica dos processos sociais agrários que se orienta pela historicidade, complexidade, multidimensionalidade, e, pela atenção dada à especificidade dos processos sociais, dos grupos e classes, e das lutas sociais.” (ibidem)

Buscando inserir nossa reflexão sobre o MST nesta perspectiva, elegemos a abordagem dos historiadores como ponto de partida para nos acompanhar. Thompson (1981), na seqüência dos estudos de Hobsbawm (1978), ao tratar a história dos trabalhadores ingleses, ensina observar as classes sociais em processo de formação. Para ele, as condições que configuram o processo de luta são, fundamentalmente, políticas e culturais. É a experiência da desigualdade que conforma os valores e as ações dos grupos e dos movimentos populares.

Nos três tomos de A Formação da Classe Operária Inglesa (1989) a preocupação analítica de Thompson é com a experiência coletiva que unifica as lutas e projeta o conflito a um cenário mais amplo, construindo, assim, uma cultura política, que conjuga a luta pela manutenção dos costumes ao mesmo tempo que a construção dos protestos. Com esta referência teórica, podemos aproximar-nos do MST e perguntar:

como interagem, na construção do Movimento, a condição de classe, as experiências de injustiça e exclusão e a memória de lutas passadas?

como é o cotidiano dos colonos sem-terra, como vivenciam suas carências, suas formas de organização e suas esperanças? Como convivem com os conflitos e as contradições?

como estabelecem sua relação com o Estado, a Igreja e os meios de comunicação de massa?

O ponto de partida é conjugar a história das lutas pela terra com os contextos econômicos de exclusão atuais, mais os modos contemporâneos de protestar e, então, localizar o MST no interior do Campo Político. Este inclui o Estado, os partidos e os movimentos sociais em um quadro de luta de classes, permeada de conflitos e contradições, em que sobressai a luta pelo poder simbólico de fazer crer que o ponto de vista de cada um corresponde à verdade. Na tradição brasileira, os partidos estão ao lado das classes dominantes na busca por chegar a governar. São os movimentos sociais que, de fato, desestabilizam o Campo Político ao trazerem vozes dissonantes e desestruturarem a relação situação x oposição. A luta do Campo Político está na desproporção entre o capital econômico e político dos dirigentes do campo à falta destes capitais pelos agentes dos movimentos sociais. É a ausência de terra, trabalho, educação e saúde que proporciona o capital simbólico do MST que é fazer crer que, efetivamente, necessita. E é esta falta que o autoriza a disputar espaços na mídia, pressionar o poder político e ameaçar o poder econômico.

Vamos elencar as mediações que transitam entre os deserdados da terra e os sem-terra organizados, buscando entender como os colonos, ao perderem terra e trabalho, ganharam consciência e disposição de luta e organizaram o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - o MST.

3.2 Movimento Sem Terra: Cenário dos Acontecimentos

Os antecedentes organizativos para a formação do Movimento Sem Terra encontram-se na década de 60, quando o Movimento dos Agricultores Sem Terra (MASTER), controlado pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) e pela esquerda do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), integrando as lutas dos camponeses no país, protagonizou algumas ações emblemáticas no Rio Grande do Sul. Ficaram como exemplo a invasão e posterior desapropriação da Fazenda Sarandi em 1962; acampamento e invasão da Fazenda Santo Antônio, em Tapes; pressão e loteamento do Banhado do Colégio, em Camaquã e ocupações de reservas indígenas. (Gehlen, 1985, p.149)

Com o golpe militar de 1964, os movimentos camponeses, assim como o conjunto das manifestações de oposição, foram reprimidos. Ao mesmo tempo, as tensões sociais do campo foram desviadas através da política de canalização da força de trabalho excedente para as cidades; pela criação de sindicatos favoráveis à política econômica oficial; pela expansão do cooperativismo de produtores rurais e por uma nova política de crédito agrícola. Também, qualquer proposta de alteração na estrutura fundiária era divulgada como uma ameaça de comunismo para o Brasil. Mas, principalmente, os programas de colonização na Amazônia deviam responder aos excedentes do campo: o programa Altamira, no Pará, em 1971; o programa de colonização Canarana, em 1972; e o programa Terranova, em 1978. (Tavares, 1994, p.151)

O retorno destes colonos, que participaram de várias lutas sociais no Brasil Meridional, bem como a recusa de outros em partir para terras fora do Estado (os acampados de Nonoai não aceitaram a oferta para se instalarem no Mato Grosso, em 1978), foram os primeiros sinais para a reorganização dos colonos sem-terra.

Isso significa que os colonos retornados mobilizam-se, agora, contra a transferência para as novas terras, recusando as políticas de colonização, passadas ou virtuais, e reafirmando a luta pela terra como um direito de cidadania. Por isso, a organização da luta pela terra compõe-se, em seu nascedouro, pela recusa da política de colonização. (ibidem, p.153)

De 1964 a 1979 não aconteceu nenhum assentamento e, depois de quase vinte anos, a mesma estratégia - acampamentos organizados e invasões de grandes propriedades - ressurgiu para fazer renascer o movimento rural, agora denominado Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

As lutas sociais no campo (assim como as lutas urbanas que surgiram em todo o território nacional a partir de 1978) apresentavam como causa imediata a situação de empobrecimento dos trabalhadores. Na cidade, além dos movimentos sociais históricos ligados à produção, surgiram, nesta conjuntura, movimentos de categorias específicas - feministas, negros, homossexuais - e movimentos a partir de lutas gerais - ecológico, pela anistia, contra a carestia, por creche, etc.5 A organização dos agricultores se deu em torno de quatro tipos de lutas, agrupadas por Grzybowski, assim: (1990, p.18)

1 Lutas contra a expropriação: movimentos dos camponeses pela terra
a) Movimentos dos Posseiros
b) Movimentos dos Sem-Terra
c) Movimentos das Barragens
d) Lutas Indígenas

2 Lutas contra as formas de exploração e assalariamento: movimentos dos operários do campo

3 Lutas contra a subordinação do trabalho ao capital: movimentos dos camponeses integrados

4 Alternativas de produção, mulheres, previdência social: novas frentes de luta no campo.

O autor contextualiza cada um destes movimentos situando-os geograficamente e apresenta suas características internas na perspectiva da construção da democracia no Brasil. “A democracia [diz Grzybowski] é vista, portanto, como um produto social, como um processo inscrito na condição conflitiva do social, e os movimentos sociais como possíveis práticas constitutivas da democracia.” (p.13)

Esta diversidade de movimentos representa, na verdade, a complexidade das contradições que emergiram das políticas de modernização da agricultura. Diferentes segmentos de trabalhadores, a partir de sua inserção na estrutura agrária, organizaram-se em torno de reivindicações específicas. Para Grzybowski, na origem dos movimentos:

[...] é necessário ver a variedade de formas assumidas pelas contradições do capital. Mas as estruturas precisam ser fecundadas pela vontade para gerarem movimentos. A percepção de interesses comuns no cotidiano, nas condições mais imediatas de trabalho e vida, percepção produzida a partir de e na oposição com outros interesses comuns, as ações coletivas de resistência, etc. são um conjunto de condições necessárias dos movimentos. Só assim a tensão intrínseca às relações vira Movimento. (1990, p.17)

Entre estes movimentos é o dos sem-terra que se sobressai, recolocando a questão da função social da propriedade fundiária e da implementação da reforma agrária. Mas, sobressai, também, pela crítica contundente à ordem vigente e pelo grau de organização interna.

O acontecimento que marca o reinício da luta pela terra no Rio Grande do Sul, após os anos de silêncio, é a expulsão de 1.100 famílias de posseiros da reserva indígena de Nonoai, em maio de 1978, ficando muitos destes camponeses em acampamentos à beira da estrada durante meses.

O ambiente era de tensão, de expectativa e até de desânimo. Para muitos significou o retorno a uma vida de insegurança que julgavam superada. Passado o primeiro impacto e a surpresa, começaram a aparecer as primeiras alternativas. Muitos já haviam se espalhado pelos três municípios circunvizinhos. Nonoai, Planalto e Ronda Alta. As alternativas possíveis e viáveis eram basicamente três: a) proletarizar-se como operários urbanos ou em empresas rurais; b) transferir-se para projetos de colonização na frente de expansão da Amazônia; c) permanecer como camponês, em uma de suas várias formas, no Rio Grande do Sul. A aspiração maior, neste caso, era a de assentamento na condição de pequeno proprietário. (Gehlen, 1985, p.159)

Um grupo deles ocupa, no dia 7 de setembro de 1979, terras em litígio - a Fazenda Sarandi (no município de Sarandi), então explorada irregularmente pela madeireira Carazinhense Ltda. - Macali (Ronda Alta), de 1.600 hectares e, quinze dias depois, a Fazenda Brilhante, fronteira à Macali, com 1.500 hectares. Em outubro de 1980 ocupam outra fazenda próxima, pertencente à família Annoni (em Sarandi), em litígio na justiça com o Incra. Esta fazenda também se situa na área da Fazenda Sarandi. Em 1972 seus mais de 9.000 hectares foram desapropriados pelo Ministério da Agricultura e colocados à disposição do Incra para reassentamento de 300 famílias que tiveram suas terras cobertas pelas águas da barragem do Passo Real. Annoni recorreu e muitos anos se passaram até que a situação se regularizasse.

Na seqüência, ocorreram dois novos acampamentos: o de Encruzilhada Natalino (Sarandi), nos anos de 1981 e 1982, e o de Santo Isidoro (Erval Seco), em 1983.

É a partir do acampamento de Encruzilhada Natalino (1981) que o Movimento Sem Terra, reunindo filhos de colonos, parceiros e arrendatários, agregados e assalariados temporários, expropriados de barragens e um significativo contingente do lumpesinato do campo, começa a estruturar-se com o objetivo de lutar por uma reforma agrária radical.

Por um lado, eles apostam no MST porque vêem nele o prolongamento do que sempre, bem ou mal, fizeram na vida: defender suas minguadas posses, livrar-se de apuros, perambular em busca de oportunidades. Por outro lado, enquanto movimento organizado o MST permanece estranho a esses sem-terra, como tarefa de lideranças de quem lhes parece justo esperar iniciativas e resultados, no sentido de restaurar o quanto antes a ordem perdida na vida do campo. (Gaiger, 1994, p.183)

Ainda que mais organizado no Sul (Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina e, posteriormente, São Paulo) o MST está representado em todos os estados brasileiros. E sua luta é sintetizada assim, pelo Movimento:

Trajetória histórica do Movimento Sem Terra

Período

Conjuntura Nacional

Processo Organizativo

Concepção das lutas

1979
a
1984

Crise econômica, abertura políti-ca, greves do ABC, trabalho das Pastorais Sociais (CTP, PO, CIMI e PPL), Anistia, etc.

O governo procura resolver os conflitos agrários como proble-mas sociais. Campanha pelas Elei-ções Diretas.

Principal inimigo: a pistolagem

Lutas isoladas.

1.° Encontro Nacional de Funda-ção do Movimento (jan./84)

Resolução de problemas con-cretos e mobilização contra o regime militar e ocupações locais.

1979/83: “Terra para quem nela Trabalha”

1984: “Terra não se ganha, se conquista”

1985
a
1988

“Nova República” e o PNRA

Articulação dos setores da agricul-tura contrários à Reforma Agrária na União Democrática Ruralista (UDR).

Principal inimigo: UDR

Ocupações articuladas e massivas, de terras e órgãos públicos, greves de fome (jejuns).

1.° Congresso Nacional (jan./85)

1985: “Sem Reforma Agrária não há demo-cracia”

1986: “Ocupação é a única solução”

1988
a
1990

Assembléia Nacional Constituinte e Eleição Presidencial

Expansão do MST. Surge no Nor-desdeste com pequenas ocupa-ções. Desenvolve-se a resistência de massas.

II.° Congresso Nacional (maio/90)

1989: “Ocupar, Resis-tir, Produzir”

1990
a
1992

Governo Collor.

Repressão contra os movimentos populares e sindicais.

Luta pelo “Empeachment”. [sic]

O principal inimigo: O Estado, através da repressão policial e ações do Poder Judiciário.

Levar a luta pela terra para a cida-de, através de jornadas nacionais conjuntas e da continuidade das ocupações de terras e órgãos públicos. As caminhadas são as principais formas de luta.


1993
a
1994

Governo Itamar.

Articulação da sociedade civil na “Campanha contra a fome e a miséria, pela vida”.

Instabilidade das políticas gover-namentais

Jornadas massivas e construção “Fórum dos Rurais” com ações nas capitais e principais centros urbanos.

Grito da Terra Brasil I


1995

FHC, Plano Real e agudização da crise na agricultura.

Reforço à consolidação do Plano Neoliberal.

Reforma Constitucional

Construção de metodologias para o desenvolvimento de lutas espe-cíficas: sem terras assalariados (as) e semi-árido.

Grito da Terra Brasil II

III.° Congresso Nacional (jul./95)

1995: “Reforma Agrá-ria: Uma luta de todos”.


No I Congresso Nacional, em 1985, em Curitiba (PR), com a presença de 1.500 delegados, a Coordenação Nacional do Movimento estimou que havia no Brasil 14 milhões de agricultores sem-terra e que, em 1984, 77 mil hectares de terras não cultivadas foram ocupadas por trabalhadores rurais. Avaliaram, na época, que a maioria destas ações foram vitoriosas, obrigando o Governo Federal a fazer desapropriações ou reassentamentos nas regiões de origem, instalando cerca de cinco mil famílias.

O Congresso constituiu-se, também, em um espaço de protesto contra a violência, quando um dossiê intitulado Assassinatos no Campo: Crimes e Impunidades 1982/83/84 foi distribuído. Este é o primeiro documento apro-vado em congresso pelo Movimento Nacional dos Trabalhadores Sem Terra.6

O MST definiu suas formas de luta através da ocupação de terras e acampamentos em locais estratégicos; tomadas de prédios, como a sede do Incra e praças públicas; caminhadas com interrupção de rodovias; visitas aos gabinetes de autoridades estaduais e federais, além de greves de fome e fechamento de trevos. Mais recentemente optaram, também, pela candidatura de líderes para cargos políticos. Em 1986 foram eleitos um deputado estadual - Adão Pretto e, outro, federal - Antonio Marangon, ambos pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Em 1988 foram 97 vereadores e três prefeitos no Rio Grande do Sul, igualmente pelo PT.

[...] a participação dos sem terra no poder em regiões onde a questão da terra representa um problema central a ser resolvido, sugere alguns aspectos para reflexão. Por um lado, coloca-se a questão da continuidade do apoio, por uma autoridade constituída, a ações consideradas como ilegais; por outro, coloca-se a questão da relação entre um governo municipal potencialmente controlado pelos sem-terra e os poderes estadual e federal. Trata-se, em resumo, de examinar a eficácia política dos sem-terra através dos canais legais de poder. (Brumer, 1990, p.129)

Abre-se, desta forma, outra instância de enfrentamento. Da ação ilegal, o MST alça-se à tomada de decisões políticas municipais e à interferência na elaboração da Constituição. Este rumo do MST demanda também novas articulações dos ruralistas. Pois os proprietários de terra que, inicialmente, contavam para sua defesa apenas com seus “homens” para ameaçar os sem-terra de expulsão, em seguida passaram a necessitar da Brigada Militar para os expulsar e da Justiça para lhes negar o direito de posse, agora necessitam outra expressão de força. E a União Democrática Ruralista (UDR) virá para sustentar também a luta política no Congresso, além de realizar com mais eficiência as demais ações já realizadas.

A UDR é criada em 1985, quando o Governo Sarney elaborava um plano de reforma agrária, como uma organização paralela ao movimento sindical, para, através da contratação de assessores jurídicos, sustar desapropriações de terras, financiar campanhas para cargos eletivos, além de sustentar milícias armadas para defender terras dos membros da organização. Não que elas não fossem defendidas com armas antes, a diferença é que agora elas são assumidas por uma organização e não praticadas individualmente. 7

De acordo com Plínio de Arruda Sampaio, citado por Anita Brumer (ibidem, p.131) o sucesso dos latifundiários na sua pressão contra a Reforma Agrária deve se a cinco fatores: a) contam com o apoio da grande imprensa; b) dispõem de recursos financeiros elevados para gastar no lobby anti-reforma; c) estão umbilicalmente ligados a setores dinâmicos do capitalismo, de modo que conseguem neutralizar pressões reformistas de setores industriais e comerciais que só se beneficiariam com uma repartição mais equitativa da terra e da renda rural; d) continuam a manter estreitos laços com a cúpula política do país; e) apesar de sua divisão e disputas, eles souberam compor suas diferenças, para fazer frente, à ameaça comum a todos.

Ao mesmo tempo, [diz Sampaio] enfrentando a má vontade dos meios de divulgação, os trabalhadores rurais não conseguiram obter um apoio efetivo do operariado e das classes médias urbanas para sua causa, não obstante a adesão formal das cúpulas sindicais e de algumas entidades da sociedade civil. Pior do que isso: não conseguiram sequer forjar uma sólida unidade na luta pela reforma. (apud Brumer, 1985, p.3)

O surgimento da UDR e a oposição que ela passou a fazer ao MST, juntamente com as ações legais e ilegais que desenvolve na defesa da propriedade da terra, evidenciam que a luta pela terra se dá no contexto de luta de classes.

Em 1989, quando cerca de 3.000 trabalhadores sem-terra invadiram a fazenda Santa Elmira (entre o Salto do Jacuí e Tupanciretã), ficou evidente o confronto direto entre o MST e a UDR. Esta introduziu 200 homens armados na fazenda enquanto esperava pelos soldados da Brigada Militar que expulsaram os invasores sob a proteção da Justiça, partindo para a luta armada, na qual vários colonos (identificados como líderes) ficaram feridos e 22 foram presos. Por outro lado, nesta luta ficou claro como o Estado estava pronto para defender a lei ao lado dos grandes proprietários de terra.

Sem avançar no projeto de reforma agrária e tendo as áreas desapropriadas pelo Incra questionadas pelos proprietários na Justiça, que adia a decisão final, o MST segue nos anos 90 o lema - ocupar e resistir - acrescentando para esta conjuntura o verbo produzir, pois nos 1.123 assentamentos brasileiros o desafio agora é a produção, inclusive para contribuir com o Movimento. O lema é cantado assim:

Ocupar, resistir e produzir

Zé Pinto

Ocupar, Resistir e Produzir
É proposta definida
no Encontro Nacional
# Acabar com o latifúndio
pra não ter um pra remédio
pois com a terra na mão
Ninguém mais vai passar mal #

REFORMA AGRÁRIA VEM COM CERTEZA
COM ALIANÇA OPERÁRIA-CAMPONESA (bis)

Ocupar pois terra só pertence
para quem nela trabalha
É a lei do movimento
# A gente leva muita garra e esperança
Vai as lonas e as crianças
E os cacaios de mantimentos #

Resistir para não sair da terra
Se preciso se faz a guerra
Mas dela ninguém nos tira
# Empresários, politiqueiros e banqueiros
Todos eles fazendeiros
E não nos deixam outra saída #

Produzir pra provar pra burguesia
Que esta terra só dá fruto
Nas mãos do trabalhador
# Esta é a nossa lei
Reforma Agrária na marra
Pelo pão dos nossos filhos
E pelo fim dos opressores #

Os assentamentos revertem 1% da produção ao MST, constituindo-se em principal fonte de renda do Movimento que inclui, também, doações em dinheiro e alimento, vindas de sindicatos, igrejas e pequenos comerciantes. Estes recursos custeiam os acampamentos, ou seja, a compra de lonas, transporte e comida. Até a emancipação econômica de um assentamento, que ocorre em média 10 anos depois de sua implantação, eles sobrevivem com dinheiro emprestado do Governo Federal e com a ajuda de entidades internacionais como Pão para o Mundo (luterana), Misereor (católica) e Vastenktie-Cebeno, também ligada a instituições religiosas, da Holanda.

Nas cidades, as sedes são emprestadas em geral pela Igreja. No Rio Grande do Sul há, inclusive, duas escolas - em Veranópolis, doada pelos freis capuchinhos, foi inaugurado em março de 1995 o Instituto Técnico de Capacitação em Pesquisa da Reforma Agrária e em Braga, no Alto Uruguai, há um curso de magistério para formação de professores destinados aos acampamentos e assentamentos. A sede em Porto Alegre já é de propriedade do Movimento e no mesmo prédio funciona um minimercado que comercializa produtos coloniais produzidos nos assentamentos.

Esta é a estrutura do MST: 8


A ESTRUTURA DO MST

Coordenação Nacional

Coletivo sem presidente composto de 65 membros oriundos de 21 Estados e do Distrito Federal. Traça as linhas gerais do movimento e tem poder deliberativo

Direção Nacional

Coletivo sem presidente com 15 integrantes. Executa as metas da Coordenação Nacional

Coordenações Estaduais

Vinte e duas coordenações com até 30 integrantes definem as metas e ocupações de terra

Direções Estaduais

Coletivos que reúnem de 7 a 16 membros. Desempenham nos Estados o papel que a Direção Nacional exerce no país

Regionais

Com 10 membros, é uma divisão administrativa e operacional. Cada Estado define o número de Regionais. Em São Paulo, há cinco, no Rio Grande do Sul há oito regiões e dois acampamentos

Coordenações de Acampamento

Formadas por até sete pessoas, que organizam as ocupações. Dividem-se em setores: educação, alimentação, saúde, segurança, produção e negociação em conflitos

Fonte: Comissão Pastoral da Terra (CTP) e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)


Em 1995, a administração do MST no Estado estava a cargo de quarenta pessoas. O salário dos militantes empregados é pago pelo assentamento a que pertencem e é proporcional aos ganhos que os assentados tiveram na venda da produção. Uma ocupação envolvendo cerca de 900 famílias custa, aproximadamente, R$ 15 mil. O maior custo é com a locação de caminhões, pois os caminhoneiros cobram acima do preço de mercado pelo risco da operação. O segundo maior custo é administrativo:

envolve o uso de telefone, passagens e gasolina para os carros dos líderes encarregados da negociação. O custo da alimentação é praticamente zero, pois os agricultores levam os alimentos dos acampamentos.

Conforme o Movimento, há no país 4.8 milhões de famílias sem-terra (12 milhões de pessoas), sendo que 130 mil famílias estão localizadas no Rio Grande do Sul. Destas, 1.024 estão acampadas em cinco áreas (Júlio de Castilhos, Encruzilhada do Sul, Jóia, Hulha Negra e Capão do Leão).

Até dezembro de 1994 tinham sido efetuados 95 assentamentos no Estado, abrigando 4.537 famílias. Elas estão assentadas em 95.080 hectares, uma área correspondente a dois municípios do mesmo tamanho de Porto Alegre. No Rio Grande do Sul, o MST tem mobilizadas 30 mil famílias em condições de participar de uma ocupação.

O primeiro passo na formação de um novo acampamento é uma ocupação de terra. Todas as famílias acampadas já participaram de pelo menos uma invasão de fazenda.

“Todos os dias tem gente nova batendo nas nossas portas,” conta Enio Bonenberg, da direção estadual do MST. Mas o recrutamento é feito por militantes que percorrem a zona rural fazendo reuniões com os agricultores. Nestes encontros são explicados os motivos que levaram o MST a se organizar, as vitórias da luta pela terra assim como os fracassos e os riscos que envolvem a vida em um acampamento.

“Atualmente, no desespero que os agricultores estão, não precisam conversar muito para se convencer de que a única maneira de resolver o problema da terra é através da pressão”, explica Fábio Lopes, um dos militantes recrutadores. (Geral, 24 set. 1995, p.46)

Participar de uma ocupação é a forma de um agricultor sem-terra ser cadastrado pelo Incra e o cadastro passa a ser um argumento e um documento muito importante para o MST, pois é o reconhecimento oficial dos envolvidos. E quando o MST é acusado de abrigar “marginais”, a direção pode esclarecer que o Incra sabe quem são os acampados.

Um dos maiores obstáculos à reforma agrária é a lentidão da justiça, ou a lentidão da justiça é cúmplice dos interesses de quem não quer que ela aconteça. Hoje, no Rio Grande do Sul poderiam estar assentadas pelo menos 600 famílias nos 13.408 hectares que aguardam a desobstrução oficial, ou da Justiça ou do Governo Federal. E a demora incentiva as invasões. Que, por sua vez, servem para apressar a Justiça. E é neste círculo vicioso que se move a luta dos sem-terra. As áreas desapropriadas que ainda não foram ocupadas, porque os proprietários recorreram à Justiça, são:

Fazenda Alvorada - Julio de Castilhos - 1.569 he - 1994

Fazenda da Quinta - Encruzilhada do Sul - 1.075 he -1994

Fazenda Santa Edith - Erval - 967 he -1994

Estância da Glória - Erval - 3.058 he -1994

Estância Madrugada - Hulha Negra - 1.143 he - 1995

Estância do Fundo - Hulha Negra - 2.135 he - 1995

Além destas, a Estância Jaguarão, em Hulha Negra, com 2.918 he, está com o processo de desapropriação já concluído pelo Incra, esperando apenas a assinatura do Presidente da República para o início do assentamento. E a área da Embrapa, em Capão do Leão, com 600 he, também aguarda a assinatura do Presidente para ser liberada aos colonos.

O acampamento de 2.300 sem-terra na fazenda Boqueirão, em Cruz Alta (setembro de 1995), introduziu o MST na sociedade global. Esta ocupação entra para a história dos conflitos agrários como a primeira a usufruir de um telefone celular e ter seu dia-a-dia relatado na Internet. A dificuldade das ocupações anteriores, em que os acampados não se comunicavam com o lado de fora e, portanto, não sabiam das negociações a não ser pelos noticiários das rádios, fica, então, resolvido.

Mas, se as dificuldades de comunicação externa vêm sendo enfrentadas com a apropriação das novas tecnologias, acentuam-se os problemas internos. Os jornais têm enfatizado o conflito entre duas posições que buscam a hegemonia do MST. Nem mesmo todas as ações realizadas por colonos sem-terra no Brasil, no segundo semestre de 1995, são assumidas pelo Movimento.9

Ou seja, os conflitos moldam internamente o Movimento e sustentam sua ação externa. O MST justifica sua existência na posição antagônica com os grandes proprietários de terra, com o Estado e com os colonizadores. Com os primeiros, através da disputa pela posse da terra; com o segundo, pela oposição à política agrícola e fundiária e pela pressão à reforma agrária e, com os terceiros, pela recusa em se submeter a seus projetos de colonização.

Mas a disputa pela terra inicia entre as vítimas do processo de modernização do campo: entre índios e colonos, entre caboclos e colonos, entre pequenos proprietários e sem-terra. Na seqüência, com o processo de politização e mobilização destes setores, entre os engajados e os não engajados. E, logo, os militantes do MST novamente entram em conflito por filiações e simpatias partidárias e na luta pelo poder de liderança.

O Movimento dos Sem Terra surge na cena política nacional no contexto de contestação ao governo militar, associado às experiências de resistência, às tentativas de expropriação para concentrar o capital no campo, bem como da política do Estado de incentivar a construção de usinas hidrelétricas. Expulsão e resistência (aproximadamente 16 milhões de trabalhadores rurais foram expulsos do campo na década de 70) conjugadas a outras condições, objetivas e subjetivas, foram moldando o rosto do MST. Ao mesmo tempo, há uma memória coletiva (religiosa, de contestação e arcaica) informando sub-repticiamente a organização dos sem-terra.

3.2.1 Ecos das Lutas Passadas

Os primeiros acampamentos, ainda ao final da década de 70 e início da de 80, tiveram, de certa forma, êxito e apontaram uma perspectiva aos colonos empobrecidos. A fazenda Annoni, por exemplo, foi desapropriada e 350 famílias assentadas. A experiência bem sucedida, no contexto das dificuldades crescentes no campo, contribuiu para a adesão de outros sem terra ao Movimento, ficando como modelo os “colonos de Nonoai” (acampados e assentados).

Os trabalhadores rurais tinham, até então, um sentimento profundamente arraigado de respeito à propriedade e a Igreja contribuiu para desmistificá-lo. À “terra de propriedade” a Igreja contrapôs a “terra de trabalho”, relacionando-a ao direito à vida e à sobrevivência. Na XVIII Assembléia Geral da CNBB (Itaici, 1980) os setores progressistas da Igreja Católica condenaram a terra de exploração e valorizaram a terra de trabalho que é aquela “possuída por quem nela trabalha.”

Ao reconstruir a trajetória dos colonos até sua inserção no Movimento Sem Terra e observar sua estruturação, fica evidente a inspiração na Bíblia e nos rituais da Igreja.

Bem antes do primeiro acampamento, é em Três Passos, Cruz Alta, Sarandi, Soledade e Frederico Westphalen, cidades, enfim, onde depois brotarão conflitos pela terra, que encontramos padres e pastores relendo a Bíblia pela Teologia da Libertação. Propõem cerimônias religiosas dialogadas que rompem com a história da “Igreja dos Poderosos”, servindo inclusive de meio de comunicação entre as comunidades.

Num trabalho sobre a relação Igreja X MST em Erval Seco, Leonídio Gäede10 pergunta se é o texto bíblico que provoca o primeiro sinal de consciência crítica nos agricultores ou se são as dificuldades de sua existência material que os torna sensíveis a entender a mensagem de solidariedade, de unidade e organização. Sem dúvida elas se mesclam, pois a aproximação da igreja progressista com os colonos marginalizados vai se fortalecendo pela possibilidade de os primeiros darem sentido à sua prática e dos segundos de compreenderem sua pobreza.

Esta compreensão, por sua vez, vai encontrando direção política num terceiro agente do processo - o líder sindical, militante petista, aglutinador dos insatisfeitos. A Bíblia aberta que ilumina a vida da comunidade e a faz ascender a sujeito da história, fechada é arma de defesa, quando os soldados chegam para reprimir os acampados.

Os entrevistados de Gäede identificam claramente as duas funções que a Bíblia desempenha, a que protege e a que motiva. Cecília conta que quando a polícia veio executar o despejo na fazenda ocupada, em Santo Augusto, as mulheres formaram uma corrente humana e uma delas ergueu um exemplar da Bíblia na direção do comandante. Nelson lembra que a Bíblia esteve presente no momento da elaboração dos argumentos para a organização do MST, bem como na preparação das audiências com as autoridades governamentais. (Gäede, 1991, p.61)

Assim como a Bíblia, também as Romarias da Terra cumprem uma função interna e outra externa. Internamente, a preparação de uma romaria bem como a participação nela dão sentido de unidade e promovem a reflexão entre os agricultores sobre seus direitos como cidadãos. Já o objetivo externo é dar ressonância pública às suas denúncias e reivindi-cações. Para Inesita Soares de Araújo,11 em um interessante trabalho sobre as Romarias da Terra surgidas a partir dos acampamentos, “elas baseiam-se na tradição popular de fazer caminhadas em direção a um lugar santo, com fins penitenciais, de invocação ou de agradecimento por graças alcançadas, mas incorporam elementos políticos e técnicos de organização popular que visam a formação de uma consciência política de classes.” (1993, p.4) As romarias são um claro exemplo de celebração religiosa e ato político.

As caminhadas não são exclusivas das romarias, mas surgem como estratégia para chamar a atenção da opinião pública e, assim, do poder, entre uma ocupação e outra ou quando de uma reivindicação específica. E, novamente, remetem a uma memória cristã. De perseguição que se converte em peregrinação e busca por novos espaços. Diz Gäede:

[...] colonos e hebreus representam grupos, que, em momentos e situações distintas, foram protagonistas de rupturas com sistemas sociais adversos. Tanto no caso dos hebreus, como no dos colonos, está presente de forma marcante a questão da ocupação de novos espaços. Os colonos saíram dos espaços periféricos para ocupar um lugar central no Movimento. O povo hebreu abandonou os espaços de exploração egípcia e, vencendo extraordinariamente a barreira do mar, irrompeu no novo espaço do deserto, onde pôde traçar seus próprios caminhos. (1991, p.71)

O autor lembra que o deserto (Mt 3.3; 4.1) é a exterioridade, o âmbito sobre o qual a dominação já não tem mais domínio.

As caminhadas têm, ainda, um caráter de ruptura com o esperado - no asfalto, com roupas impróprias, carregando filhos e instrumentos de trabalho, atrapalham o trânsito e destoam da paisagem. São homens fora de lugar.

Da mesma forma as instalações na beira da estrada rompem com o desejado. Elas não são estradas nem fazendas, estão entre a propriedade pública e a propriedade privada. São terras de ninguém, mas são de todos e não disputam a categoria de terra de trabalho ou terra de propriedade. Ao contrário, são espaços indisputáveis, logo marginais. Por isso, apropriadas para os marginalizados que só aceitam estar ali porque não têm outro lugar e não têm para onde voltar. Este intervalo físico entre propriedades, que recebe os fugitivos da miséria é, no entanto, também o intervalo entre o sem-terra e o sem-terra em luta e, de lugar nenhum transforma-se no lugar central da condução do movimento, tornando-o visível ao passante e ameaçador ao proprietário. Instalando suas lonas, cozinhando e parindo filhos, são famílias fora de lugar.

Quando estas rupturas esgotam-se e se naturalizam, os colonos vêm para a cidade, andam em procissão pelas ruas, ocupam prédios públicos, tomam conta dos saguões, instalam-se em praças públicas. Tentam falar com políticos. Suas queixas estão fora de lugar.

A todas estas manifestações eles levam a cruz, a Bíblia e a bandeira do MST que se mistura com a bandeira do Rio Grande do Sul e dos partidos cúmplices. E rezam e cantam. São hinos de fraternidade (“a realidade se constrói sonhando junto”), de denúncia (“como é que esse povo vive nessa situação, o rico fica com tudo e o pobre sem nem um tostão”), de martírio (“há tanta dor tanto pranto, há cruzes beirando a estrada, pedras manchadas de sangue”), de conclamação (“pegue os cereais e a lona, junte a criançada, pois sem-terra organizados é terra ocupada”) e de redenção (“graças damos terra mãe”). Em anexo o Hino do MST. (Anexo 1)

Aliada a esta inspiração cristã há uma memória de contestação atravessando o tempo e o espaço. O eco de outras lutas está presente na organização atual dos sem-terra. São recorrentes os conflitos pela propriedade e posse da terra ao longo de todo o processo de povoamento do sul do país. Muckers (Ferrabraz, 1873), Monges de Pinheirinho (1902), Monges Barbudos (Soledade,1937) e Contestado (Santa Catarina/Paraná, 1912) são conflitos que mesclam a luta pela terra com o messianismo.12

Com suas especificidades, todos tiveram em comum o final trágico, de aniquilamento, pelas forças governamentais. Mas, fugitivos, os sobreviventes foram divulgando e adequando suas crenças e reivindicações. Assim, encontramos o monge João Maria, de Pinheirinhos, com as mesmas características, (do qual ficou a mesma fotografia) 35 anos depois, com o mesmo nome, na luta dos Monges Barbudos. (Anexo 2) E ele seria um discípulo de Jacobina Maurer, cujos descendentes teriam se localizado no município de Estrela.

Carlos Wagner mostra no mapa do Rio Grande do Sul a região dos três acontecimentos, unindo um caminho provável que teriam percorrido os Muckers sobreviventes para influir nos acontecimentos do interior de Sobradinho e Soledade.


No Contestado também há a figura de um monge, de nome João Maria, que “induzia o povo a ter muito carinho no cultivo correto da terra-mãe, o zelo pela pureza das águas e a preservação dos bons costumes.” (Fellipe, 1995, p.18) A questão que mobiliza para a luta é a expulsão de posseiros das terras concedidas pelo governo e ocupadas pela Brazil Railway e pela Southern Brazil Lumber & Colonization. Esta, alia-se a outras:

Foram várias as causas do conflito que chegou a abalar as estruturas republicanas, pois na mesma época e no mesmo lugar, o território contestado foi envolvido por um movimento messiânico de grandes proporções, por uma violenta disputa pela propriedade das terras, por uma questão de limites interestaduais, por uma luta pelos direitos humanos, por uma acirrada competição pela exploração das riquezas naturais e por uma aterrorizante fase de banditismo. (Thomé, 1983, p.153)

A autonomia dos estados permitia que os fugitivos se refugiassem no Rio Grande do Sul, onde não eram importunados pela polícia. Além do mais, muitos eram gaúchos, mantinham algumas tradições - como tomar chimarrão - e tinham raízes no estado.

O transporte terrestre se fazia pela estrada de tropas que unia São Paulo ao Rio Grande do Sul, com uma parada obrigatória na região de Encruzilhada Natalino, por onde devem ter passado ou desembarcado os sobreviventes dos quatro conflitos. Foi lá também que, em 1961, o então governador do Rio Grande do Sul pelo Partido Trabalhista Brasileiro, Leonel Brizola, iniciou o projeto de reforma agrária. Encruzilhada Natalino transformou-se em lugar simbólico do MST, e a fonte de água que identifica o lugar é considerada abençoada, encontrando-se, ainda hoje, fotos de pessoas que procuram a cura para algum mal, ali.

Aqueles seiscentos barracos à beira da estrada que liga Ronda Alta a Passo Fundo marcou a história do Brasil. Foi este acampamento que trouxe a questão da Reforma Agrária de novo ao cenário político, em 1981.

O acampamento de Encruzilhada Natalino foi cercado pelo Exército, Polícia Federal e Brigada Militar no mês de agosto de 1981, em operação comandada pelo então famoso Coronel Curió. Este começou com a tática do convencimento e, quando viu que esta não dava efeito, passou à repressão suspendendo, inclusive, o direito de ir e vir. (Görgen, 1991, p.19)

A articulação do tempo e do espaço faz desembocar os conflitos do passado (quando terra e religião se confundiam) na região onde aconteceu o primeiro assentamento e onde se travaram as lutas mais intensas do MST.

Mas se procuramos com atenção, encontramos uma memória ainda mais arcaica compondo o pano de fundo da luta dos sem-terra. O psicanalista Contardo Calligaris imaginou duas figuras para pensar o Brasil: o colonizador e o colono. O primeiro veio impor sua língua e, longe do pai, portanto sem sua interdição, possuir a nova terra para gozá-la. Por isso, o colonizador tem com o país, enquanto corpo, uma cobrança que lhe permite dizer “este país não presta”, quer seja porque deveria ser o outro (aquele que ele deixou), quer seja porque não goza como deveria. Na seqüência, o psicanalista afirma que:

[...]talvez a figura do colonizador nos explique alguma dificuldade específica de qualquer reforma agrária neste país. Expropriar, mesmo que não implique nem de longe “privar” é‚ de qualquer forma um gesto político inaceitável para o colonizador, pois contradiz o essencial de sua empresa... Pois foi para “possuir” a terra, só por isso, que o colonizador veio. (1991, p.19)

O que diferencia o colono é que este não vem fazer gozar o país, mas fazer seu nome, nele. Procura aqui, em outra língua, um novo pai que o interdite, reconhecendo-o. O que ele pedia ao país, ao contrário do colonizador, não era um corpo de gozo mas, um interdito paterno, que, impondo limites ao gozo, fizesse dele um sujeito. O colono também pode dizer: este país não presta. Pois o país não soube ser pai, o um nacional não conseguiu assujeitar o colono, não lhe outorgou uma cidadania, afirma o psicanalista.

O que funda, portanto, o discurso do colono é a busca e a posse da terra. É fugindo da miséria (européia) e buscando um lugar/pai que lhe dignifique o nome, através do trabalho, que ele chega ao sul do Brasil. Na  chegada, uma segunda decepção: a promessa do intermediário que lhe levara o contrato é uma mentira. O seu país de origem o expulsa, o  intermediário mente, o colonizador quer trabalho escravo. É esta a história escondida/esquecida pelas famílias de imigrantes. Alguns a superaram com muito trabalho, são os vencedores das ricas regiões que   festejam seus antepassados italianos, alemães, poloneses. Estes conseguiram aprender a nova língua, adquirir terras ou indústrias e se fazer um nome.

A maioria, no entanto, foi vencida: não conquistou a terra, não conquistou o nome do pai/pátria. E, apesar de estar na terceira ou quarta geração, ainda busca a terra prometida (lugar de reconhecimento e de consagração no contrato assinado cheio de esperança por um seu antepassado, numa terra que também já não é sua.

Esta é uma porta de ingresso à história antiga do Movimento Sem Terra, principalmente no Rio Grande do Sul, onde muitos componentes são filhos de pequenos agricultores que não têm propriedade para partilhar. O cartaz do MST (na próxima página) sintetiza, pela foto, a origem européia destes colonos que é confirmada pelos sobrenomes dos participantes: Giagamelli, Joceli, Bittencourt, Pinheiro Machado, Olkoski, Camargo, Bonnenberg, Maschio, Matte, Tonin, Gowoski.13

Este filho de pequeno agricultor só é colono pela posse da terra e sua identidade se constrói por esta relação. Logo, se este sujeito não detém aquilo que o qualifica como tal, ele não existe. É um sujeito desabitado de si, se permanecer isolado. Ao ingressar no Movimento, conscientizando-se de sua falta, ele reencontra sua identidade de sujeito que luta por aquilo que reconhece ser seu. No duplo sentido: terra que é sua e lhe sustenta, e terra que lhe permite construir sua história e dignificar seu nome. Ou seja, é a perda da identidade juntamente com a perda da terra que moldam o movimento que se auto-define pela falta: eles são sem-terra.

Na verdade, o MST explicita a derrota de colonos e de caboclos14, contando a história dos vencidos. Quando os sem-terra invadem as cidades frustram a imagem de uma vida no campo mais tranqüila e feliz. E quando acampam nas margens das estradas destroem a imagem do colono, passivo e respeitoso, com a enxada na roça, parando para acenar aos motoristas com a mão direita. Ao perder a terra, o colono e o caboclo perdem também a ingenuidade e a mansidão e fazem, também, os urbanos perderem a ilusão de que ainda há algum lugar (o campo) para viver em paz.

O MST sabe com mais ou menos certeza que a luta pela terra e a questão da reforma agrária não são em si notícia no Brasil. Por um lado, porque ela é a mesma há muitos anos e, assim, não corresponde ao critério de novidade para ser notícia; por outro, porque não vai ao encontro dos interesses dos que detêm o poder político e de seus representantes na mídia.

Por isso, o MST precisa “reinventar” sua luta. Se a questão da terra não é notícia, os modos de reivindicá-la podem vir a ser. O inusitado de 300 famílias morando na beira da estrada ou a Praça da Matriz de Porto Alegre ocupada por barracas, assim como a inesperada ocupação de uma fazenda, poderão até constar da primeira página do jornal ou abrir o noticiário da televisão.

Se na sociedade contemporânea importa menos o acontecimento do que sua projeção, é compreensível que um movimento social necessite projetar-se para existir, justificando-se, assim, que tenha uma Política de Comunicação e busque estratégias para constar na pauta da mídia.

3.2.2 Políticas de Comunicação

A título de introdução, convém recordar que a primeira referência à Política de Comunicação surge no contexto da discussão por uma Nova Ordem Mundial de Informação e Cultura (NOMIC), proposta pela Unesco, na década de 70, a partir da constatação do desequilíbrio na distribuição da informação internacional e do esforço por democratizar os fluxos informativos. Os países membros passaram a discutir a implantação de Políticas Nacionais de Comunicação que se referiam, portanto, a políticas estatais.

A Unesco entendia por Política Nacional de Comunicação, um programa de princípios com o objetivo de “estimular comportamentos desejáveis e inibir os inconvenientes” e, para tanto, elaborou um conjunto de recomendações, conforme consta no Relatório McBride.15

Esta proposta, que era progressista para a época, devia ser implantada, inclusive, no Brasil em pleno regime militar. Assim como em outros países ditatoriais, a relação com a Unesco e o projeto da NOMIC foi tensa e marcada por contradições, pois, o assinado no acordo internacional não tinha substrato para ser implantado no país.

No plano internacional havia uma retórica comprometida com teses progressistas, acompanhada, no entanto, no plano nacional, de uma submissão ao poder concessionário que contradizia as pretensões de que as políticas fossem democráticas. No Brasil reinava a harmonia entre interesse privado e política governamental, o que não significava a falta de atenção ao tema por parte de outros setores interessados: universidades, igrejas, sindicatos.

Em 1982 houve uma iniciativa fundamental para a unificação da luta por Políticas de Comunicação desde a sociedade civil, com a apresentação de propostas para a criação da Frente Nacional de Luta por Políticas Democráticas de Comunicação. Conforme o professor José Salomão Amorim:

[...] dois anos mais tarde, em Brasília, a criação da Frente foi formalizada, em reunião realizada na Comissão de Comunicação da Câmara de Deputados, que contou com a participação de dezenas de entidades e parlamentares. A Frente viria, depois, a ter um papel importante no esforço de mobilização popular para apresentação de propostas sobre políticas de comunicação à Constituição. (1988, p.26)

Assim, o tema que era anteriormente monopolizado pelo governo e pelos empresários começou a preocupar outros setores que, discutindo a política nacional e sua premissa democrática, foram adquirindo uma perspectiva de também elaborar micropolíticas de comunicação para si. Ou seja, a Igreja, os sindicatos, os movimentos sociais, passaram a considerar a possibilidade de planejar suas estratégias de comunicação, rotuladas de Políticas.

A Igreja Católica foi a primeira destas instituições a documentar uma “doutrina comunicacional” que, internacional e latino-americana, referendava-se nos documentos da NOMIC e do relatório McBride, apontando uma orientação teórica e passos práticos para a ação.

Quando se fala em Políticas de Comunicação é, pois, inevitável a associação com as formas de o Estado controlar os grandes meios de comunicação. É o que o Ministério das Comunicações (após aprovação no Congresso e integrando a Constituição) passa a fazer cumprir em relação ao rádio, à tevê, à aquisição de papel e ao anúncio publicitário. É, enfim, a intervenção do Estado no modo de produção (pública e privada) da informação. Por outro lado, os diferentes poderes passam a produzir suas políticas estaduais, regionais, municipais e diferentes áreas as políticas de comunicação para a educação, a saúde, a cultura. E, ainda, os sindicatos, as associações de classe e os movimentos sociais a sua política, composta de estratégias para se fazer ouvir. Todas estas instâncias, consideram que: a) Política de Comunicação é a posição oficial fixada em documentos; b) deve estar em sintonia com a política global da instituição; c) deve prever a passagem do discurso para a ação; d) depende de um suporte tecnológico, um suporte organizacional e um suporte administrativo.

O Movimento Sem Terra é um dos movimentos sociais que, durante muitos anos, tratou a comunicação como tema secundário, mas vem buscando, atualmente, refletí-la desde a sua perspectiva política e produzir sua Política de Comunicação.

3.2.2.1 O Documento Propõe

O acesso ao documento Por Uma Política de Comunicação do MST (março, 1995) permite conhecer a posição oficial do Movimento em relação ao tema. Há a definição de que “uma política de comunicação acaba sendo um conjunto de normas, regras e procedimentos que, harmonizados e coerentes, contribuem para a consolidação da identidade de uma organização junto à sua base social e com a sociedade”. (p.9) Esclarece, a seguir, que ela deve cumprir um objetivo interno - motivar a militância - e um externo - divulgar as conquistas, principalmente em relação à educação e à produção.

É necessário que um consumidor da cidade ao comprar um pacote de erva mate no supermercado perceba que esse produto é resultado da luta pela reforma agrária; nossos produtos não podem se restringir em viabilizar economicamente nossa propriedade ou conquistar um espaço nas prateleiras dos supermercados. Eles devem contribuir politicamente com nossa luta. (p.9)

É muito claro, no documento, a subordinação da comunicação às diretrizes políticas, tanto no plano da concepção programática, como na implementação dela. Por exemplo, o texto afirma que a produção da política de comunicação “exige, prioritariamente, formação política sobre o assunto”, e que iniciar esta discussão significa propor-se a “dominar um processo que até hoje a burguesia, intencionalmente, nos manteve bloqueado ou nos dificultou ao máximo seu acesso. Significa, acima de tudo, disposição política em querer lutar pelo direito de receber comunicação e fazer comunicação”. E, ainda: “Em outras palavras, é impensável o estabelecimento de uma política de comunicação separada da decisão política do Movimento.” (p.1)

A subordinação aparece também, na relação da direção com os responsáveis pelo setor. “[...] Em contrapartida, isso implicará também, em afirmar que obrigatoriamente, a direção política do Movimento terá o desafio de qualificar-se sobre o assunto.” Ou, “isso, porém, não deve induzir a uma avaliação de que a política de comunicação deva ser feita por jornalistas ou outros especialistas na área. Tal definição é essencialmente política.” E, de forma ainda mais radical: “Assim, através do Movimento, com toda sua infra-estrutura já existente, com sua história e referência política, nossa política de comunicação deve ter a preocupação primeira de formar quadros políticos também na área de comunicação.” (p.2)

Demonstrando clareza de que uma Política de Comunicação não deve restringir-se a organizar a informação (confecção de cartilha, é o exemplo), o documento aponta ítens que devem orientar a reflexão para “uma visão ampla sobre o papel que a comunicação desempenha numa sociedade de classe,” baseando-se em teóricos cujo mérito é conferir “uma visão abrangente e global sobre o assunto.” Mas, “sua adequação, restringindo ou ampliando os elementos, dependerá exclusivamente de nossas discussões, decisões políticas e condições de implementação.” (ibidem)

A primeira questão (de princípio) é um conceito de Comunicação. Reproduzindo um texto do professor Marques de Melo - Comunicação: Teoria e Política - vai-se acompanhando o transcorrer da História para situar o momento (a sociedade de classes) em que a comunicação assume a feição de privilégio da classe dominante.

Na seqüência, a questão é a imprensa, refletida através das mudanças tecnólogicas atuais, (com Osvaldo Leon), e do contexto neo-liberal, citando José Martinez Terrero. Ou seja, descreve a tendência à centralização e os vínculos com as redes internacionais e aponta o núcleo da contradição.

Esse desenvolvimento tem levado alguns estudiosos a afirmar que os meios de comunicação poderão ser responsáveis tanto por um possível fascismo informático quanto pela democratização da comunicação.

E, pergunta: Qual dos dois cenários irá prevalecer?

[...] não cabe dúvidas de que a sorte dependerá da correlação de forças existentes nas sociedades concretas onde se incorpora a informatização. Ou seja, este espaço está  em disputa tanto entre os próprios capitalistas e o estado burguês, quanto com os trabalhadores que timidamente procuram fazer frente ao domínio burguês. (p.6)

Evidentemente, o Movimento inclui-se entre os que devem fazer frente ao estado burguês também no Campo da Comunicação e, com sua Política, tornar eficiente a ação para a democracia.

O terceiro item diz respeito aos “elementos teóricos” para a Política de Comunicação e se pauta pelo livro Planejamento de Relações Públicas na Comunicação Integrada, de Margarida Maria Kunsch. Aqui, o objetivo é introduzir noções de planejamento, que didaticamente é apresentado e dividido entre organizacional, estratégico e operacional.

Por fim, o documento encerra com os “encaminhamentos”, ou seja, (a) “buscarmos responder ou perguntar o que vamos fazer daqui para adiante para levarmos em frente nossa proposta de construirmos uma política de comunicação para o MST;” e (b) ”os acontecimentos que teremos somente nesse primeiro semestre de 1995, nos dão bem o exemplo daquilo que poderíamos fazer com uma política de comunicação eficiente.” A campanha do Betinho, o Congresso da Contag, o Grito da Terra Brasil e o Congresso Nacional do MST são citados como exemplos que, “embora sejam atividades distintas e organicamente separadas, poderiam ser harmonizadas por iniciativas, planejadas, de comunicação.” (p.8)

Como sugestão final, o documento prevê a criação de um coletivo para levar adiante o trabalho. “Além de proporcionar uma divisão de tarefas, esse coletivo seria a garantia de que um núcleo de dirigentes estará se capacitando, desde já, na área da comunicação.” (p.9)

Desde a perspectiva metodológica da reflexão para uma Política de Comunicação, avaliamos que esse documento, de fato, (a) fixa a posição oficial do MST (o sujeito do enunciado, o sujeito da enunciação e o destinatário são a direção do Movimento); (b) está em sintonia com a política geral, referendando a comunicação como instrumento estratégico do Movimento; (c) dá a entender que prevê para a Política de Comunicação suportes tecnológico, organizacional e administrativo.

Por outro lado, o documento insere extratos de livros sobre a origem da comunicação, a imprensa atual e os passos para o planejamento, demonstrando que o MST percebe as questões inerentes à uma Política de Comunicação, mas não se apropria destas noções para adequar às suas necessidades. Entre a introdução que afirma a sujeição da comunicação à política e que assegura a autonomia da direção para produzí-la, (dispensando, de certa forma, a orientação profissional - pois supõe a direção dominando o tema) e a conclusão, que reconhece o desafio de mobilizar a militância e consolidar seu espaço junto à sociedade como tarefa da comunicação, estão as citações. Se não deslocadas, tampouco, de todo assimiladas, pois não integram, de fato, a reflexão.

Como documento oficial, que parte da experiência de dez anos do Movimento e de diversas discussões, expressa coerência política na proposta, ainda que deixe a desejar quanto aos elementos que orientam sua instrumentalização. A Política de Comunicação de um movimento social, se deve demonstrar uma macrorreflexão e posição sobre o tema, deve, também, apontar os caminhos para a sua realização. Neste documento estes caminhos ainda não têm margens definidas e o ponto de chegada se confunde com o ponto de partida - a política - , sem considerar que a comunicação tem especificidades que a luta de classes não dá conta.

Aqui, como na redação do jornal, é difícil perceber a natureza produtiva da linguagem que não se restringe à subserviência dos interesses políticos, mas, no processo de enunciar a linha política do Movimento e as ações políticas dos colonos, vai produzindo com palavras a História que conjuga a cumplicidade do não-dito com a comunicação verbal, praticadas ambas por sujeitos sociais que se interpelam na prática da produção simbólica. Que as Políticas de Comunicação têm dificuldade de aprender a considerar. Enquanto na grande imprensa as palavras são chamadas à neutralidade, nos movimentos sociais o são ao comprometimento. E, assim, as palavras são percebidas como instrumento, ou seja, em pólos opostos mas ambas na perspectiva da linguagem, a serviço de, e não na sua dimensão de produtora de sentidos, com a ingerência do enunciador e do destinatário. A desmistificação da “informação objetiva” é tão necessária para quem produz no jornal, como para quem trabalha nos Movimentos Sociais.

3.2.2.2 O Setor Executa

Na estrutura organizacional do MST está previsto o Setor de Comunicação, vinculado à direção nacional compõe um coletivo, cuja função é: a) produzir o jornal mensal Sem-Terra; b) fazer a assessoria de imprensa do Movimento; c) planejar a aquisição de rádios comunitárias.

Este setor desdobra-se nos Estados, onde assume feições locais. No Rio Grande do Sul, a estrutura ainda é precária. Há um coordenador que faz a relação com a direção, uma jornalista militante e uma jornalista catalã, estagiária enviada por um convênio entre Organizações Não-Governamentais. Eles produzem um mural impresso - Jornal do MST, fazem assessoria de imprensa, reportagens para o jornal Sem Terra e o planejamento para integrar, pela comunicação, as oito regionais e os dois acampamentos que, pelo organograma, deveriam atuar combinados.

Algumas regionais têm programas de rádio nas emissoras locais e o Movimento aposta nesta via (dos programas e das rádios comunitárias) pois sabe que o rádio é o meio privilegiado de contato entre a população rural. Por isso, um dos objetivos para 1996 é oferecer cursos, para os militantes, com ênfase na produção radiofônica e na produção de notícias, numa espécie de repórter popular. Mas a discussão sobre o perfil destes cursos ainda é incipiente.

Nesta estrutura, que conta com a militância para realizar as tarefas de comunicação, acontece uma grande mobilidade entre as pessoas envolvidas: ou porque o acampado vira assentado, ou porque ao se destacar na comunicação (que é um setor menor) ele é chamado para uma posição mais elevada.

Enquanto a comunicação interna flui pelo jornal mural, boletins eventuais e programas de rádio, a comunicação com a mídia que torna público o Movimento não tem tido a ressonância desejada.

No documento para discutir a Política de Comunicação, no item “relacionamento com os meios de comunicação”, a orientação é de “capacitar os dirigentes para lidar com a imprensa, manter bons contatos com os jornalistas e elaborar materiais de boa qualidade.” (set.95, p.4)

Neste ano em que o lema é “Reforma Agrária uma luta de todos”, a proposta é de ampliar os simpatizantes urbanizando a questão da terra e, então, o desafio da relação com os meios se acentua, pois é deles uma mediação importante com a opinião pública.

Releases enviados aos jornais não têm sido aproveitados, confirmando que a imprensa pauta os movimentos sociais pela sua ótica e, assim, a formatura de técnicos em administração de cooperativas (formados pela escola do MST), ou o prêmio Unicef a ações complementares pelo direito à escola, não justificam o espaço. Dois exemplos de releases enviados ao jornal Zero Hora que não mereceram consideração estão no Anexo 3.

Por outro lado, no 13.° Encontro Estadual do MST, ocorrido em março de 1996, em São Leopoldo (RS), o setor chamou a uma coletiva de imprensa para expor as conclusões mas, não compareceu nenhum meio de comunicação e um jornalista da Zero Hora, mesmo tendo entrevistado as lideranças e fotografado o Encontro, nada publicou.

A Política de Comunicação do MST, portanto, ainda tem um longo caminho para “sair do papel”, como diz a militância. E o primeiro passo é profissionalizar (em comunicação) o setor e politizar (o comunicador) do setor. Dilema que os movimentos sociais enfrentam quando discutem a produção de mensagens: quem deve realizar a comunicação popular ou qual é o ponto de equilíbrio entre o dirigente e o profissional nas tarefas que exigem conhecimento técnico e comprometimento com a linha política?

Talvez a Política de Comunicação do MST ainda não tenha a resposta final, nem o setor administre no dia a dia esta relação mas, ao iniciar a discussão internamente, o Movimento está contribuindo com o conjunto dos Movimentos Sociais que devem estar pautando a problemática para si. Intuitivamente, no entanto, o MST acerta quando produz ações reivindicadoras e simbólicas, eficientes na política e na comunicação, como a que passamos a descrever.

3.2.2.3 Os Ocupantes Fazem

No dia 16 de janeiro de 1996, presenciei uma ação do MST em Porto Alegre que confirma a hipótese segundo a qual os movimentos sociais devem teatralizar suas reivindicações para garantir espaço na mídia.

A primeira ocupação do ano de 1996 estreou no dia 11 de janeiro, na Fazenda do Salso em Palmeira das Missões. Ao mesmo tempo, colonos armaram suas barracas em frente à delegacia regional do Ministério da Fazenda em Porto Alegre e ocuparam o saguão do prédio. Uma cena já familiar aos funcionários do Incra e aos transeuntes das cercanias.

No dia 16, à tarde, haveria uma audiência em Brasília para responder às reivindicações do Movimento e era previsível que a movimentação seria especial, nesta data. Se compreendo a ação do MST espetacularizada para repercutir nos meios, posso assistí-la como um espetáculo teatral. A peça se chama O Conflito Previsto.

A estrutura é do teatro de rua, pois há apenas um roteiro que prevê a participação dos espectadores, ainda que três grupos de personagens permaneçam fixos: os colonos, os brigadianos e os jornalistas.

O cenário é composto de um prédio de treze andares, com portas de vidro que dão acesso a um grande saguão. A escadaria tem mais de vinte degraus e acompanha toda a largura do prédio, onde estão afixadas faixas: “Britto, parceria só com Reforma Agrária”; “FHC só faz Reforma Agrária na TV”; “O Banco Econômico roubou, FHC salvou”. Em frente, um estacionamento para carros em diagonal é separado por um canteiro de grama. E, antes de chegar à avenida, outro canteiro com  árvores e arbustos.

Alguns funcionários que chegaram cedo espiam pelas janelas. Depois das 8h ninguém mais entra no prédio e os colonos guardam todas as entradas, concentrando-se na escadaria. Vestem “roupa de colono”, estão sujos, mas não são maltrapilhos. Muitos usam camisetas do PT ou do MST. E trazem foices, enxadas e paus. Usam chapéus ou bonés. Há bandeiras do MST, algumas muito surradas.

Dois camburões da Brigada Militar trazem policiais. Eles ficam em grupo, conversam. Esperam ordens superiores. Comunicam-se através do rádio e usam telefone celular. Estão uniformizados, são jovens, têm revólveres e cassetetes.

Inicia o Primeiro Ato. São 9 horas da manhã. Os policiais formam uma parede de cincoenta homens em frente ao canteiro, quase na avenida. Os colonos respondem, aglomeram-se na escada e gritam sua palavra de ordem: “Com luta, com garra, Reforma Agrária sai na marra.” Começam a chegar carros com jornalistas. Microfones, câmeras ou bloco de papel identificam os veículos para os quais trabalham. Andam próximos uns dos outros e estão bem vestidos.

Grupos de funcionários que não puderam ingressar no prédio, pessoas que pretendiam algum documento da Receita Federal e curiosos formam pequenos grupos que se mantêm mais próximo dos brigadianos do que dos colonos. Eles comentam entre si a situação. “Estes caras todos são vagabundos, se quisessem de fato trabalhar, faziam como a gente.” “Aqui têm muitos infiltrados.” “Alguns, se vê de longe que não são colonos.” “A polícia devia quebrar o pau neles.” “Por que não usam aquele gás que faz as pessoas chorar e daí empurram eles prá fora?!”

Ou: “A gente tem pena deles, não deve ser fácil viver assim, mas eles nunca vão conseguir nada.” “Só não concordo que botem as crianças nisso.” “Não precisava ser bem hoje que eu vim aqui.”

Um grupo de funcionárias brinca: “Até que têm uns colonos bem ‘gatos’. Tomara que fiquem por aqui mais alguns dias. Vou até a farmácia comprar camisinhas, vai que eles ficam por uns tempos.”

Às 10h chega uma pequena tropa de policiais a cavalo. É mais ameaçador e todos abrem lugar quando eles se aproximam. A parede de policiais passa para a frente do primeiro canteiro. Os colonos respondem: afiam as foices, trazem sacos com pedras e descem para a frente da escada. Percebe-se que há algo acontecendo no interior do prédio. Jornalistas correm. Chega uma autoridade. Supõe-se: usa terno e os jornalistas o cercam.

Um helicóptero sobrevoa o local e o seu ruído compõe o clima de ameaça. Um colono se distingue, parece um mensageiro - usa uma bermuda verde com uma jaqueta simulada do exército (aquelas camufladas) e com sua foice faz sinais que, por onde passa, altera a disposição dos grupos. Todos ficam atentos a ele.

Uma moça da assistência diz que vai para casa, já deve estar “dando na tevê”, e um rapaz consegue um radinho de pilhas e todos se aproximam dele para ouvir a cobertura.

Agora um colono dá entrevista, deve ser um líder. Nada ouvimos, nem sabemos do que falam, mas reconhecemos os personagens e imaginamos que a situação está tensa. Quebrando a “imagem de guerra”, uma menina sobe e desce os degraus pulando num pé só, usando a bandeira vermelha ora como saia, ora como xale.

Às 11h chegam mais soldados a cavalo e os homens que cuidavam das barracas se juntam aos demais. Já há cem brigadianos formando a parede. O sol está muito forte e os “curiosos” buscam a sombra.

Às 11h30 sai do prédio, uma mulher - Nina - desce alguns degraus e é rodeada pelos colonos. O silêncio é total, fotógrafos se movimentam, repórteres de tevê fazem chamadas aproveitando a imagem como pano de fundo. Ela os chama de “companheiros” e diz que vai explicar o que aconteceu lá dentro. Repete as reivindicações, faz ironia com o delegado do Incra que disse não saber passar um fax (todos riem), é interrompida para dar vivas aos companheiros que invadiram mais uma fazenda e aos que estão também mobilizados, nas outras cidades, esperando o resultado da reunião da tarde. Apoiados nas foices e nas enxadas, rostos apreensivos e atentos, braços erguidos acompanhando palavras de ordem, ouvem uma mulher valente, altiva, comendo o “s’ final das palavras, jogando o cabelo num gesto feminino que seduz. Uma cena conhecida pelos livros de história das revoluções, uma imagem saída de um filme que provoca emoção.

No fim, ela pergunta se há perguntas. Ninguém fala, parece um acordo. Ela diz que há muitas e que todos devem ficar conversando, enquanto tomam chimarrão e aguardam o churrasco.

Termina o primeiro ato. Os transeuntes se dispersam e os soldados relaxam.

O segundo ato reinicia com um incidente entre a polícia e os colonos na porta de entrada do prédio. Os primeiros consideram que o prédio está liberado, os segundos ainda não. Os fotógrafos trabalham. Depois, eles e os jornalistas se retiram. Vão produzir a notícia. Nina gostaria que não se fossem todos. Ela sabe (como a refugiada bósnia) que a presença deles inibe a ação dos soldados.

A tarde é longa, os colonos se desarmam, sentam na grama, descansam e esperam. Os soldados são revezados. E os políticos em Brasília tomam decisões. Já não há espectadores.

O terceiro ato é multimídia. De agora em diante é mais oportuno vê lo pela tevê ou ouvir no rádio. No jornal local da RBS TV, às 19h, o repórter entra ao vivo, para informar: “tudo está tranqüilo no prédio do Ministério da Fazenda e Reforma Agrária”. A imagem é a dos colonos limpando o prédio, varrendo a escada, recolhendo coisas. Despedindo-se, mais uma vez. Eles sabem que voltarão. Apenas terminou a sessão de hoje e, sem aplausos.

A interpretação do “espetáculo” do dia 16 esclarece a ação política - ocupação - como um gesto de comunicação do Movimento que repercutiu na imprensa e corresponde às estratégias previstas na Política de Comunicação do MST.

Em primeiro lugar, a ocupação do prédio vem associada à ocupação de uma fazenda, ambas no dia 11. Desde então é anunciado o dia 16 como prazo final para a espera de uma resposta do Governo Federal. A tentativa de marcar uma reunião em Brasília já está bem encaminhada quando é divulgada como último prazo. Ela fica acertada para a tarde do dia 16 e os Meios de Comunicação recebem a informação no dia 15 de que no dia seguinte, bem cedo, ocorrerão manifestações de apoio em todo o país.

Com esta tática, o Movimento pressiona o governo e, também, garante sua inclusão na pauta da mídia. É a seleção de primeiro grau: entrar no circuito da informação do dia 16. E todos os passos foram cuidadosamente planejados com este fim.

A programação do dia deve garantir o espaço nos veículos e o MST conhece aquilo que o faz notícia e, com competência, “teatraliza” no prédio do Ministério da Fazenda, falas e imagens apropriadas para serem reproduzidas em texto e foto.

O Movimento consta para o jornal no item “conflitos” e deve, portanto, corresponder ao princípio de que ele protagoniza “conflitos a qualquer custo”, garantindo seu lugar na hierarquia interna dos assuntos. A seleção aqui é a de segundo grau.

O MST propõe o conflito político e, neste campo é radical: não há  conciliação com o poder. As posições saem de lugares opostos, pois a luta de classes marca o confronto. As palavras de ordem, o teor das reivindicações, a postura frente ao governo comprovam a posição em campos antagônicos.

O MST faz também um conflito institucional, quando dirige suas reivindicações a órgãos do governo que se destinam a cuidar dos problemas ligados à terra, como é o caso do Incra. Aqui a posição é de negociação. O saber político, que os sem-terra detêm, ensina que não há vitória total, os ganhos são parciais e vão sendo conquistados no confronto.

E o MST “encena” um conflito armado, confirmando assim, sua radicalidade. Ele é um movimento que se arma, em uma atitude defensiva-provocativa, com foices e enxadas. Transfigurando seus instrumentos de trabalho, ameaça e chama à guerra. Aqui o confronto armado é estratégico, pois quando o conflito político desemboca na propriedade privada, a conseqüência é o enfrentamento armado.

Por outro lado, o conflito armado responde a uma tática de comunicação: ele é o conflito mais facilmente espetacularizado pelos meios audio-visuais.

O conflito político não dá manchete e rende poucas notícias; o conflito institucional é notícia e, eventualmente, manchete, mas dá poucas imagens; o conflito armado é, com garantia, notícia, manchete, capa e merece fotografia.

Durante as 10 horas de enfrentamento do dia 16, houve 15 minutos da “tática de provocação” em que colonos e brigadianos mostraram seu potencial de guerreiros. Esta foi a cena que mereceu a foto do dia 16, na capa de Zero Hora:

Ou seja, a seleção de terceiro grau tematizou o conflito na lógica dos confrontos, correspondendo, assim, às expectativas do jornal e do seu leitor, ao confirmar a natureza violenta dos sem-terra. Mas um dos objetivos do MST também foi alcançado: ser notícia (mesmo sem aprovar seu teor). E, por ser notícia, inserir-se na pauta do poder, fechando o ciclo da relação Movimento Social x Imprensa X Governo.

3.2.2.4 Você (cidadão) é quem luta

Nos regimes de comunicação que estamos estudando - Zero Hora e Movimento Sem Terra - resta confrontar as propostas de relações possíveis com seus públicos-alvo.

Enquanto o outro para o jornal é o leitor, a quem os diretores e especialistas em marketing buscam conquistar, ajustando suas demandas com ofertas adequadas, o outro para os movimentos sociais é um excluído, a quem as lideranças buscam despertar e comprometer para a condição de cidadão.

O leitor de ZH é, pelas campanhas publicitárias e os contratos de leitura, convocado a leitor/consumidor. A campanha Seja Dono de Seu Jornal, como vimos no capítulo dois, faz o seguinte apelo: leia individualmente, privadamente, com exclusividade seu jornal e isto só será possível se você for o dono de seu exemplar. Esta posse é conseqüência da compra do jornal diário.

Já o outro do MST encontra-se (1) entre os deserdados da terra que são convocados a aderir ao Movimento pela conscientização dos seus direitos e (2) entre os simpatizantes potenciais que são conclamados à solidariedade e, ambos, a compreenderem o lugar da luta na conquista da cidadania.

Revendo a história dos trabalhadores rurais empobrecidos, apreende-se que do longo e difícil processo de lutas eles atingiram uma consciência dos seus direitos. Tavares dos Santos enumera as principais exigências que foram historicamente produzidas:

[...] direito à terra, direito ao trabalho e direito ao valor do produto do trabalho. Tais direitos, centrais nas lutas sociais no campo das últimas três décadas, são acrescidas das demandas por outros direitos: direito à previdência social, direitos da mulher camponesa e trabalhadora do campo, direito de circulação, e direito de participar nas decisões das políticas públicas.

E, continua:

Em seu conjunto, a construção social de uma identidade, o desencadeamento de uma nova força social, a organização de lutas sociais específicas, e a própria constituição de um movimento social, expressam a exigência, por parte dos camponeses e trabalhadores rurais de uma cidadania que lhes é, ainda, distante. (1989 -B, p.86)

No mesmo texto é oferecido um ponto de partida para a conceituação de cidadania. Ela supõe a participação dos sujeitos em todos os âmbitos da sociedade, ou seja, implica em direito à liberdade individual, aos direitos políticos e aos direitos sociais, que dizem respeito à participação no exercício do poder político e a uma vida digna segundo o padrão societário.

Nestes tempos em que os deserdados da terra se ampliam, o MST também amplia o seu público-alvo, que são, em primeiro lugar, os deserdados propensos à luta e, depois, todos aqueles que, excluídos de outros lugares, solidarizam-se com os sem-terra.

O documento Política de Comunicação (em que são apresentados ítens para discussão na reunião da Coordenação Nacional, em outubro de 1995) distingue claramente os interlocutores do MST. Por um lado, o conjunto da sociedade, que deve ser informada sobre as razões da luta, aumentando o número de simpatizantes pela reforma agrária. Por outro, a base social do Movimento - os trabalhadores rurais - que, informados das possibilidades de luta, aumentariam o número de militantes pela reforma agrária.

Simpatizantes e militantes, na busca por seus direitos, sensibilizariam o conjunto da sociedade, já que o lema do MST, hoje, é: Reforma Agrária - Luta de Todos. E, pela luta, o indivíduo alcançaria a condição de cidadão.

A matéria-prima do jornal para conquistar o leitor é a informação e a matéria-prima do movimento social para conquistar adeptos, também é a informação. É ela, portanto, que está em disputa para que o leitor compre seu exemplar e o indivíduo se comprometa com os problemas sociais.

As passagens das relações de comunicação propostas pela Zero Hora e pelo Movimento Sem Terra, podem ser representadas pela Figura 3:

FIGURA 3 - RELAÇÕES DE COMUNICAÇÃO

Zero Hora

Leitor

Consumidor

Movimento Sem-Terra

Deserdados
Excluídos

Cidadão


Temos, assim, as duas perspectivas que nos condicionam a sujeitos da História, ambos moldados pela informação, cujos meandros passamos a estudar no próximo capítulo.





1 Carlo Ginzburg conta a história de Domenico Scandella, conhecido por Menocchio, acusado e queimado por ordem do Santo Ofício. Através dos registros do processo de acusação (que inclui textos escritos por ele), o autor reconstrói um fragmento da cultura das classes subalternas ou da cultura popular do século XVI.
Uma referência teórica importante de Ginzburg é Bakhtin que “pela riqueza das perspectivas indicadas” permite observar as relações existentes entre este moleiro e suas leituras e, assim, o que leu, como interpretou e que usos fez das leituras que o levaram à morte. A sede de conhecimento deste camponês se defrontou com a Igreja e os poderes que o reprimiram, mas também encontrou possibilidades de ser saciada pela conjunção de dois eventos históricos - a invenção da imprensa e a Reforma. Com esta história, o conceito de circularidade ganha dimensões históricas. (1976)

2 Pierre Riviére é um camponês de 20 anos que assassinou a mãe, a irmã e um irmão, em 1836. Michel Foucault e sua equipe do College de France trabalharam sobre o memorial redigido pelo acusado, repleto de detalhes sobre seu crime, para estudar a história das relações entre psiquiatria e justiça. No livro, o personagem e seu texto são inseridos em seu tempo, esclarecendo o universo cultural que produziu a “mentalidade” de Riviére. (1984)

3 A bibliografia sobre os movimentos sociais é ampla. A nossa compreensão parte de Laclau, que afirma: “desvendar os fundamentos de classe de todo movimento social é a chave para desvendar sua natureza.” (1978) Como referência teórico-analítica e de identificação dos diferentes tipos de movimentos, nos baseamos em dois textos de Maria da Glória Marcondes Gohn: A força da periferia (1985), e Os Paradigmas Teórico-Metodológicos Básicos na Produção sobre os Movimentos Sociais Urbanos. (1988)

4 Estes paradigmas teórico-metodológicos vêm embasando a produção contemporânea sobre os Movimentos Sociais. A abordagem funcionalista analisa os movimentos como disfunções sociais ou desestabilizadores do sistema. Ligado à sociologia norte-americana tem influência menor no Brasil.

A estruturalista se divide entre as correntes com ênfase na teoria da ação social; nos processos de institucionalização e na questão da autonomia. Nesta abordagem, o movimento social é uma ação do ator coletivo, em oposição a um adversário não se constituindo, necessariamente, num conflito de classes. Alain Touraine tem uma influência forte no Brasil para estudar os “novos” movimentos sociais urbanos.
A marxista compreende as correntes com ênfase nas estruturas e nas práticas sociais; na luta de classes e no processo histórico da experiência. Ênfase, no entanto, não significa abandono da outra perspectiva, pois elas se complementam. É a que tem maior influência no Brasil, principalmente, nos estudos sobre os Movimentos Rurais.
Estes resumos são realizados por Maria da Glória Gohn, no texto citado na nota anterior e por Ivaldo Gehlen - A Questão dos Paradigmas no Estudo dos Movimentos Sociais, em texto “para uso exclusivo em sala de aula” (UFRGS,1992).

5 Para contar a história do MST nos baseamos em: Ivaldo Gehlen (A luta pela Terra no Sul, a partir do caso dos colonos de Nonoai, e em Estrutura, Dinâmica Social e Concepção Sobre Terra no Meio Rural do Sul); José Vicente Tavares dos Santos (Conflitos Sociais Agrários: Formação e Lutas dos Camponeses Meridionais) e Luiz Inácio Gaiger (A Práxis Coletiva dos Sem-Terra: Rumos à Unidade ou à Heterogeneidade Cultural.

6 O texto, I Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - Informe, é assinado por Angela Duarte D. Ferreira e João Carlos Torrens (sociólogos do departamento de economia rural da SEAG).

7 No Rio Grande do Sul há tradição de união de empresários rurais para defender a terra. A Farsul, criada em 1927, enfrentou em 1960 sua primeira grande luta por questões agrárias contra o Master. No governo Sarney, em 1985, houve uma proposta de um Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) e, para contrapor-se a ele, foi criado o Pacto de Unidade Rural (PUR) que mobilizou fazendeiros e grupos armados, mas teve curta duração. Quase contemporâneo ao PUR, o Desperta Gaúcho foi lançado pelo Sindicato Rural de Cruz Alta, alertado por anúncios de ocupações de terra na região. A União Democrática Ruralista (UDR) surgiu preocupada com o avanço das propostas de Reforma Agrária e com o risco de uma Constituição demasiadamente progressista em 1988. A candidatura fracassada do presidente nacional da UDR, Ronaldo Caiado, à presidência da República, extinguiu a entidade. Em outubro de 1995 foi criado o Grupo de Trabalho pela Defesa da Propriedade, vinculado a Confederação Nacional da Agricultura (CNA). Eles pretendem resistir às ocupações e não descartam o uso de armas para isto. Estas informações foram recolhidas em conversas no MST e no jornal Zero Hora.

8 A estrutura do MST foi publicada no jornal Folha de São Paulo (ALONSO, 24 set.1995, p12). Perguntando no MST gaúcho se ela estava correta, recebemos a confirmação e, assim, a reproduzimos.

9 Se até 1994 o MST representava e orientava as ocupações e lutas pela terra nos 21 estados em que está organizado, nos últimos dois anos têm aparecido em público algumas divergências, inclusive com o reconhecimento pela imprensa de dois outros grupos. O Movimento de Luta pela Terra (MLT), na Bahia, é ligado ao PCdoB e defende a resistência armada, e o Movimento Democrático dos Sem Terra (MDST) está presente em três assentamentos e quatro acampamentos em Minas Gerais e afirma: “A reforma agrária não vai se realizar por completo nos marcos de capitalismo.” (Apud ALONSO, 24 set. 1995, p.12) Eles estão redefinindo suas formas de luta e pensam em se chamar Movimento de Luta pela Terra do Triângulo (MLTT).

10 O trabalho por Gäede realizado como dissertação de mestrado em Teologia na Escola Superior de Teologia em São Leopoldo, além de relacionar as práticas do MST com a perspectiva cristã, descreve o surgimento e a dinâmica do Movimento em uma pequena localidade - Erval Seco. A hipótese de trabalho é muito interessante, pois pergunta se existe uma “maneira de relacionar a luta pela propriedade da terra com a formação de um discurso próprio e de uma leitura bíblica própria. Se assim é, então podemos compreender o MST como um movimento de reapropriação que ultrapassa a questão da posse da terra.” (1991, p.97) (grifo nosso).

11 Os Estranhos Caminhos da Terra (ou: Deus Escreve Certo por Linhas Tortas), trabalho realizado para a disciplina do prof. Milton Pinto na UFRJ, em1993.

12 Há uma bibliografia razoável sobre estes quatro conflitos, principalmente sobre os Muckers e o Contestado, - quando os movimentos messiânicos são enfatizados. Para esta descrição, foram consultados: Janaina Amado (Conflito Social no Brasil: A Revolta dos “Mucker”); André Pereira e Carlos Wagner (Monges Barbudos & O Massacre do Fundão); Duglas Teixeira Monteiro (Juazeiro,Canudos,Contestado). As informações foram complementadas com uma entrevista com o prof. Ivaldo Gehlen, da UFRGS, profundo conhecedor das lutas do passado e das lutas dos novos atores sociais do campo.

13 Os sobrenomes foram retirados do noticiário de Zero Hora, o que sugere que os sem terra nomeados são as lideranças e estes encontram-se mais entre os colonos do que entre os caboclos.

14 Colonos e caboclos formam o MST, mas têm uma concepção distinta em relação à terra. Para o caboclo, cuja composição étnica resulta da misciginação do português, do índio e do negro, a terra é um espaço para se deslocar, produzir e caçar (uma concepção mais próxima daquela dos índios); já o colono (de origem européia) vê a terra como lugar não só para a subsistência mas, também, para a produção de capital. Sobre os caboclos ver Ivaldo Terres Gehlen - De Lutte e Luttes Pour la Terre: Étude Sur le Mouvement Social Pour la Terre e la Réforme Agraire au Sud du Brésil.

15 O que se convencionou chamar de Relatório MacBride (1983) é o relatório da Comissão Internacional para o Estudo dos Problemas da Comunicação, publicado no Brasil sob o título Um Mundo, Muitas Vozes - Comunicação e Informação na Nossa Época.