João Carlos Correia1
A intervenção do jornalismo na configuração da sociabilidade quotidiana permanece objecto de um interesse recorrente perfeitamente justificado. As condições de possibilidade do dizer, a geração de interditos e a relação entre a comunicação e a sociabilidade continuam e continuarão, certamente, a fazer parte do corpo de preocupações relativas ao modelo de pensamento que é próprio das Ciências da Comunicação. A questão à qual vale a pena regressar é esta: será que há uma dimensão censurante implícita ao próprio campo dos media? Será que além da censura que interdita o dizer e que se traduz na Censura Prévia, não há uma censura relacionada com o próprio processo de comunicação? Uma censura, enfim, que diz respeito ao facto de que a comunicação não pode dizer tudo mas antes diz apenas de acordo com determinadas condições de possibilidade que restringem o que é dizível ? Esta abordagem da censura implica imputá-la como uma ``máquina intrínseca de todos os sistemas de poder'' (Rodrigues, 1985:10) e admite que ``a plena transparência da palavra e do agir é um discurso mítico na medida em que a totalidade ou a plenitude do dizer e do fazer equivaleria à própria negação da linguagem, à morte da palavra ou ao silêncio total'' (Rodrigues, 1985: 11). Palavras como ``censura'' e ``manipulação'' são analisadas por um prisma que diz respeito à selecção que é implícita ao próprio processo de constituição de sentido no campo dos media.
Um dos registos em que é possível descrever as relações entre o saber e o poder - entre o modo de conhecer próprio dos jornalistas e a ``manipulação'' e a ``censura'' intrínsecas ao campo dos media - é aquela que, de acordo com uma forte influência da Fenomenologia Social, enfatiza o jornalismo como construção social da realidade. Descortina-se, na linguagem jornalística, a conformidade com o senso comum, com o saber partilhado por todos, tido por adquirido e socialmente aceite, fazendo-se um paralelo entre as atitudes imanentes à discursividade praticada pela profissão jornalística e a ``atitude natural'', descrita por autores como Schutz ou Gurwitsch (Gurwitsch, 1975- b: x-xi; Schutz, 1975- b: 116-132 ). É neste plano que o mundo da vida - entendido apenas como lugar da evidência - é, também, um lugar onde se multiplicam as formas de dominação adivinhadas por Schutz (Schutz, 1975 - b: 16-132), expostas por Goffman (1963), Foucault (Foucault, 1971: 11-21; Foucault, 1977: 21 e seguintes) ou Bourdieu (1982: 14; 1989). O senso comum, do qual a linguagem jornalística ambiciona aproximar-se, toma a forma de conhecimento adequado à transmissão das normas e dos estereótipos socialmente aceites. Em face destas abordagens justifica-se que nos interroguemos: será que, afinal, a manipulação é intrínseca à realidade dos mass media? Ou será que a palavra ``manipulação'' se não torna ela própria impossível de usar, na medida em que implica uma realidade em si mesma e independente de toda a construção?
Segundo uma análise que pode ser feita com base na Fenomenologia Social ainda que com desenvolvimentos posteriores a Schutz, os agentes sociais reproduzem rotineiramente, no interior da atitude natural, as condições dessa realidade, a qual é apreendida a partir do conhecimento de ``receitas'' e comportamentos típicos, entendidos de um modo que permite assegurar a continuidade à ordem social (Schutz, 1975 b: 5). Na análise a que se procede do mundo da vida, ``o mundo e os seus objectos individualmente considerados são sempre pré-organizados por actos de experimentação prévia dos mais diversos tipos'' (Schutz, 1975 b: 94). Na relação com o mundo da vida social usa-se a tipificação entendida como classificação em que são tidas em conta certas características básicas para a solução das tarefas práticas que se apresentam aos actores. Os objectos do mundo social são constituídos dentro de um marco de familiaridade e de reconhecimento proporcionando um reportório [um stock] de conhecimentos disponíveis cuja origem é fundamentalmente social. Aproxima-nos do mundo com uma certa familiaridade, recorrendo a esquemas interpretativos organizados de acordo com as experiências do nosso passado que se apresentam em configurações de sentido do tipo ``o que já se sabe'' (cfr. Schutz, 1967: 84). Recorre-se a antecipações e planeamentos que implicam um estilo que Schutz classifica de ``pensar como sempre.'' Ou seja, em face de cada nova situação, o actor agirá do mesmo modo partindo do princípio de que as coisas se apresentarão idênticas àquelas que se apresentaram da última vez.
As possíveis aplicações ao universo dos mass media deste modo de abordar a sociabilidade implicam sempre uma suspeita recorrente de que a linguagem jornalística tende a reproduzir o que é socialmente aceitável e previsível na atitude natural do mundo da vida: a força da evidência traduz-se na geração de consensos no interior dos mass media sendo que o contrário será também verdadeiro. A percepção do que é tido por noticiável e a produção da notícia implicam o recurso a quadros de experiência, assentes em modos de tipificar rotineiramente reproduzidos. A construção da notícia implica a utilização de enquadramentos, frames, como quadros de experiência que desempenham uma função estruturante dos fluxos comunicacionais e auxiliam o seu utilizador a localizar, perceber, identificar e classificar um número infinito de ocorrências. Segundo esta lógica, a linguagem dos media, em muitos casos, tem o seu ponto de partida no senso comum. É conformada pela medida padrão da estabilidade social, consagrada nos livros de estilo que recomendam, muitas vezes, a sintonia com a atitude natural, comum aos cidadãos médios Esta ordem, porém, não é construída de fora das pessoas, numa estrutura dominadora que desconhece o papel das interacções sociais. Ela surge, por um lado, condicionada por normas, convenções estilísticas e rotinas organizacionais quotidianamente apreendidas que implicam uma adesão a um corpo de prescrições estabelecido e quotidianamente reactualizado pela prática profissional. Surge, por outro, determinada pela comunidade social onde estão imersos os produtores de mensagens e os pressupostos que permitem proceder à selecção de acordo com a ideia de norma e de desvio se tornam constitutivos dos chamados valores-notícia e da própria ideia de actualidade. Assim, ``a experiência continuamente vivida por qualquer profissional da informação que, observado um acontecimento complexo e ouvidas fontes de informação subsidiárias, selecciona as suas notas e se prepara para produzir um texto disciplinado e coerente do ponto de vista dos objectivo da comunicação, significa para ele a adesão voluntária a uma determinada ordem discursiva institucionalmente imposta. É por isso que se torna legítimo falar, a respeito deste movimento, de um desejo de censura: (...) (Mendes, 1985: 81). Nesta orientação da pesquisa, a atenção recai sobre a importância das rotinas dos jornalistas para a interiorização de um saber baseado na experiência. As experiências colhidas no mundo da vida dos próprios jornalistas - as rotinas organizacionais instaladas na redacção e as interacções sociais levadas a efeito no interior da comunidade jornalística - desempenhariam um papel relevante na constituição de quadros de referência essenciais para a leitura que estes profissionais fazem da realidade social. As definições da realidade são suportadas e produzidas por um conjunto de práticas por meio das quais determinadas definições seleccionadas da realidade são representadas. Falar sobre a notícia e sobre a actualidade é, de certo modo, falar dos recursos que a sociedade dispõe para falar de si própria. Assim, o relato jornalístico, como qualquer outra forma de enunciado, só diz de acordo com a evidência, isto é de acordo com as tipificações produzidas pela comunidade jornalística em sintonia com o grupo social em que está inserida. Tais tipificações tornam-se condições de possibilidade das enunciações produzidas nessa comunidade. O interesse do público e a conformidade discursiva com as regras que se supõem adequadas à manutenção desse interesse funcionam circularmente como os pólos que balizam as possibilidades de escolha daquilo que é considerado como digno de ser transformado em notícia.
Devemos a Niklas Luhmann uma das mais lúcida e inteligentes observações sobre o que diz respeito à relação entre a censura e o sistema dos mass media. Luhmann deve muito a Durkheim. Quando se utilizam as conhecidas expressões ``tratar os factos sociais como coisas'' ou ``explicar o social pelo social'', onde é costume ver, antes de mais, uma tentativa de generalização do método das ciências naturais deve, antes, ler-se um conceito de social que estabelece a sua lógica própria independentemente das consciências individuais. Nesse sentido, mas também unicamente nesse sentido, poderá concordar-se com o tradutor de Luhmann para castelhano quando afirma que aquele é o primeiro pensador que conseguiu vislumbrar a sociedade como um universo capaz de conter tudo o que diz respeito à dotação social de sentido, pelo que será o sociólogo por excelência (Torres Nafarrate, 2000: viii).
No ponto de vista luhmaniano ''os conceitos com que a comunicação é descrita devem na sua totalidade desprender-se de qualquer relação com o sistema psíquico e referirem-se somente ao processo de comunicação pela comunicação'' (Luhmann apud Torres Nafarrate, 2000: xi). Logo a comunicação na sua forma constitutiva primária definida como código ou como sistema de diferenças não possui consciência, não valoriza nem discrimina; não é nem boa nem má para o ser humano; é somente um acontecimento cego (cfr. Torres Nafarrate, 2000: XIII). Na teoria de Luhmann, a sociedade é pura comunicação e toda a comunicação é sociedade. Estando completamente auto-contida, a comunicação não pode ser afectada por nada que exista fora dela. A sociedade é o universo de todas as comunicações possíveis.
Luhmann conferiu um papel especial aos conceitos de autopoiesis e de encerramento operacional ao fundar uma teoria da sociedade moderna fundada na diferenciação funcional entre sistemas sociais autónomos, procedendo deste modo a uma ruptura em relação às tradicionais formas de diferenciação baseadas na relação entre sistema e meio ambiente: ``A teoria dos sistemas auto-referenciais afirma que os sistemas só podem diferenciar-se por referência a si mesmos (... )ao constituir os seus elementos e operações elementares. Para tornar isso possível os sistemas têm que criar uma descrição de si próprios; eles têm pelo menos que ser capazes de usar a diferença entre sistema e meio ambiente dentro delas próprias para orientação e como princípio de informação'' (Luhmann, 1995: 9). A diferenciação do sistema social implica a produção de significado no sentido em que é entendido como a produção de informação via estabelecimento de diferenças'' (cfr. Luhmann 1995: 26). Neste sentido, há uma diferença introduzida por Luhmann entre diferença e distinção. É necessário que o sistema processe a observação sistema/ambiente para depois a empregar como distinção, isto é como o esquema orientador da sua própria observação ( Luhmann, 2000: 14).
A teoria dos sistemas auto-referenciais radicalizou a tese da complexidade, segundo a qual as sociedades modernas são caracterizadas por uma multiplicidade de sistemas e de subsistemas diferenciados não de modo vertical segundo uma visão estratificada mas horizontalmente em função das suas actividades e domínios próprios. ``Pode-se descrever uma sociedade como funcionalmente diferenciada a partir do momento onde ela forma os seus subsistemas principais na perspectiva de problemas específicos que devem ser resolvidos no quadro de cada sistema funcional correspondente. (...)convém instituir a regra segundo a qual cada sistema dá a primazia à sua função e que portanto considera todos os subsistemas funcionais - e consequentemente toda a sociedade - como o seu ambiente'' (Luhmann, 1999: 44).
De acordo com esta teoria da diferenciação funcional, os mass media, são como todos outros, um sistema que atende a uma função da sociedade moderna (cfr. Luhmann, 2000: 12). Luhmann entende por meios de comunicação de massa todos os dispositivos sociais que servem para propagar comunicação. Esta definição aplica-se aos livros, revistas e jornais no que diz respeito aos media impressos e também aos meios de reprodução fotográfica e electrónica de todo o género, desde que originem uma produção em série dirigida a receptores desconhecidos. Ficam fora desta conceptualização a produção de manuscritos por ditado, as conferências, as representações teatrais, os concertos ou qualquer outra forma de espaço público. Esta precisão é importante porque permite aceder à própria origem do sistema: foi o produto obtido maquinicamente (se quisermos dizer em termos benjaminianos, foi a reprodutibilidade) que conduziu à formação de um sistema especial chamado meios de comunicação de massa (cfr. Luhmann, 2000: 2-3).
Cada sistema social tem um código próprio com que filtra, processa e constrói comunicação. Tal como o sistema legal funciona de acordo com um código binário centrado no justo ou no injusto, ou como o sistema político funciona de acordo com uma oposição entre o que diz respeito ao poder e o que não diz respeito ao poder, o sistema dos mass media é uma galáxia de comunicação semelhante aos restantes sistemas dotada de um código próprio: o que se pode considerar ou não digno de ser trabalhado como informação pelos media de massa. Esta binariedade do código impõe aos mass media uma selectividade que os obriga a ir conformando critérios que lhe permitam seleccionar entre o que é publicável e o que não é publicável. A necessidade de ter em conta estes elementos de selecção implica standartizar e restringir as possibilidades de realização dos mass media.
O problema da informação noticiosa assenta na selectividade do sistema dos mass media e não contém, pois, qualquer referência à verdade, pois o código binário verdade/falsidade nem sequer lhe é inerente: é antes próprio de um outro sistema social designado por ciência. Mais uma vez podemos concluir que a informação proveniente dos media é uma construção da realidade. Neste sistema , não é possível utilizar o conceito de manipulação nem tentar descortinar a verdade que eles ocultam. Como diz Luhmann''o conhecimento que provém dos media de massa parece estar elaborado por um tecido auto-reforçado que se tece a si mesmo'' ( Luhmann, 2000; 2). Não há ocultação nem uma verdade oculta, nem nenhum criador de intrigas oculto por detrás do cenário, como acreditam os sociólogos (cfr. Luhmann, 2000: 2). Torna-se inútil interrogarmo-nos sobre a concordância da comunicação com a realidade, pois esta pode ser constatável para um observador, mas nunca para a massa de comunicação que circula diariamente. A pergunta sobre essa concordância com a realidade tem de ser colocada entre parênteses: Luhmann limita-se a afirmar que o sistema se vê obrigado a distinguir sobre a referência a si próprio e a referência ao exterior. Mas é tudo quanto pode saber. Como toda a distinção entre auto-referência e hetero-referência só pode existir no interior do sistema , então todo o conhecimento é uma construção processada com a ajuda dessa distinção. Não é possível pois outra possibilidade que não seja a de construir a realidade e observar como os observadores constroem a realidade (Luhmann, 2000: 10). Assim, na Primeira Guerra do Golfo (e provavelmente, na segunda), a chamada censura consistiu apenas em fornecer aos jornalistas o que eles distinguiam como publicável. Dito de outro modo, a censura viu-se obrigada a produzir efeitos que se ajustassem à construção desejada pelos mass media.
Estas são o exemplo de duas abordagens construtivistas que ressaltam a existência de uma certa dimensão oculta da censura que não é explicável pelo humanismo clássico, designadamente pela pura defesa da liberdade de expressão. O problema é que a sua pertinência não resolve o problema da presença de mecanismos disciplinares que se configuram como motivos provavelmente mais imperativos do que a impossibilidade de dizer de outro modo resultante das tipificações rotineiras ou dos limites do sistema. Se o mundo da vida fosse marcado apenas pela evidência amplificada pelos media ou se estes só pudessem escolher em função do código binário do sistema, a manipulação já não seria uma categoria relevante. Prolongando a liberdade ensaística, julgo continuar a justificar-se a adopção de uma atitude crítica que não se coadune com o humanismo clássico ou, se quisermos, com o velho humanismo devedor da metafísica.
Esta atitude crítica prende-se com a ideia de estranheza que, por sua vez, se relaciona com a fragmentação do mundo da vida analisada por Alfred Schutz. O mundo da vida é o mundo das evidências, mas as evidências supõem sempre uma estranheza. Graças a esta intuição, o entendimento do mundo da vida quotidiano conheceu, no seio da obra de Schutz, uma abordagem que contribuíram para demonstrar o modo como esta instância é menos estável do que aquilo que se afigura.
Um primeiro nível de análise da estranheza diz logo respeito à nossa percepção imediata do mundo. Como é seu uso mesmo nos momentos de maior refinamento conceptual, Schutz utiliza exemplos muito simples: ``a nossa questão começa quando a sucessão rotineira de experiências não problemáticas é interrompida e um problema emerge contrastando com um pano de fundo de auto-evidência. (...) por exemplo, quando passamos por um objecto que eu tenho por garantido na minha percepção como um cogumelo, a sua parte de trás entra como uma evidência imediata no meu campo de visão. Vamos supor que a parte detrás do cogumelo se revela como incapaz de ser inserida em qualquer experiência típica prévia. A classificação rotineira da minha experiência que já ocorreu num esquema auto-referencial encontra-se com oposição. O fluxo ``tido-por-garantido'' da minha experiência é interrompido (...)Ora, se os aspectos presentes de um objecto (isto é, fases antecipadas da minha consciência) quando chegam à sua própria auto-apresentação, são incongruentes com a minha experiência prévia, podemos dizer que a natureza tida por garantida explode (... ) a realidade do mundo da vida exige de mim, por assim, dizer, a re-explicação da minha experiência e interrompe o curso da cadeia da auto-evidência'' (Schutz &Luckmann, 1973: 11).
Um segundo nível de entendimento da problemática da estranheza no mundo da vida diz respeito ao trabalho seminal desenvolvido por Schutz em 1945 no ensaio ``On Multiple realities'', onde se adivinham algumas das questões relacionadas com o pluralismo e com o perspectivismo. Baseando-se sobre a discussão de William James acerca do sentido da realidade, desenvolvida na obra Principles of Psychology Schutz sustenta que há várias províncias de significado finitas no mundo da vida. Para ampliar a transição dicotómica entre um espaço da razão transcendental, caracterizado pela dúvida radical, e a atitude natural, reino da certeza acrítica, Schutz propõe que os agentes percebem o mundo, não como uma ou duas, mas como uma multiplicidade de realidades. Recuperando intuições que já provinham de Bergson, Husserl e James, Schutz desenvolve a noção de ``províncias de significado finitas''. A ideia predominante em Schutz constitui uma amplificação deste ponto central da possibilidade de transferência de um horizonte para outro Assim,''haverá várias, provavelmente infinitas ordens de realidade que a qualquer dado momento têm um especial estilo de ser que é característico apenas de si própria. James chamava-lhe universos. Como exemplo cita o mundo dos objectos físicos, o mundo da ciência, o mundo das relações ideais, os vários mundos sobrenaturais da mitologia e da religião, os vários sub-universos de significado ideal, o mundo dos visionários e do louco. Enquanto se lhe presta atenção, cada um destes mundos é, à sua própria maneira, real. Mas logo que lhe retiramos a nossa atenção, o mundo desaparece como realidade. Segundo James, todas as proposições, sejam elas atributivas ou existenciais são aceites pelo mero facto de que são pensadas, na medida em que não conflituem com outras proposições pensadas ao mesmo tempo(...)'' (Schutz &Luckmann, 1973:22).
A cada uma destas províncias ou âmbitos de significado finito correspondem determinados modos de relação entre a consciência e o mundo. A passagem entre estes diversos âmbitos de significado finito opera-se através de um choque graças ao qual transcendem os limites do que é considerado real. É o que acontece com a experiência religiosa, com a experiência estética, com um ruído que interrompe certas cogitações internas e nos desperta para a quotidianeidade (cfr. Schutz, 1975 a: 231). A consciência de um agente lê o universo de uma forma que implica transitar entre estados particulares da realidade, por meio de diferentes atitudes e estados de consciência, partindo e regressando desde e para o mundo da vida, o tranquilo mundo das evidências quotidianas, que se torna a âncora dessas transições. Os projectos de acção são, por conseguinte, distanciações, desenraizamentos sucessivos que levam o agente a perceber, num universo possível, os processos que implementará em outra realidade. ``Uma província finita de significado consiste em experiências de significado compatíveis. Dito de outra forma, todas as experiências que pertencem a uma província de significado finito apontam para um estilo particular de experiência vivida - um estilo cognitivo. No que diz respeito a este estilo 2, tais experiências estão todas em harmonia mútua e estão compatíveis umas com outras. (...) Harmonia e compatibilidade quanto a este estilo estão consequentemente restringidas a uma província de significado finito. Em caso algum, o que é compatível dentro da província finita de significado P é também compatível com a província de significado Q. Pelo contrário, visto desde aquilo que P estabeleceu como real , Q aparece , conjuntamente com as experiências particulares que pertencem a Q, como puramente fictícias e inconsistentes. É por essa razão que estamos justificados em falar de províncias finitas de significado. Não há possibilidade de reduzir uma província de significado finito noutra com o auxílio de uma fórmula conversacional''. (Schutz &Luckmann, 1973: 23-24). Esta estranheza é compatível com uma certa intradutibilidade relativa que percorre a Filosofia schutziana da linguagem. Finalmente, o estilo cognitivo que acompanha cada província de significado finito é sempre fundado numa tensão específica da consciência. Por exemplo, a actividade exterior está relacionada com o mais alto nível de tensão da consciência, enquanto o sonho apresenta o grau mais baixo de tensão da consciência. Ao lado desta tensão específica surgem outras características como as formas dominantes de espontaneidade (menor no caso do sono e maior na atitude quotidiana e na atitude científica), époqués específicas, formas específicas de sociabilidade, formas específicas de se experimentar a si próprio (que podem variar, nomeadamente, consoante os papéis desempenhados) e perspectivas do tempo específicas (cfr. Schutz &Luckmann, 1973: 27-28).
Finalmente, uma terceira dimensão da estranheza visível em Schutz tem uma dimensão mais sociológica e diz respeito ao facto de cada comunidade assentar numa visão relativamente natural que é sempre marcada pelo seu carácter etnocêntrico. Como se demonstra no ensaio ``The Stranger'', o mundo da vida inerente ao grupo interno pressupõe um modo de conhecimento incoerente, só parcialmente claro e não completamente livre de contradições. O facto de o grupo partilhar esta ``concepção relativamente natural'' assumindo, com razoável evidência, que ``o que até agora assim foi, assim continuará a ser'' apenas revela que a estruturação do mundo social assenta num consenso. Ou seja, a evidência da auto-tipificação assenta numa estranheza que é a hetero-tipificação do grupo externo. Numa primeira fase, a relação entre o grupo desenvolve-se numa completa ignorância do outro de acordo com um par ``proximidade''/''anonimato''. Porém, esta evidência implica o seu contrário. A afirmação do indivíduo faz-se no interior de comunidades, formas de vida e jogos de linguagem que nunca são definitivos nem absolutos. Schutz insiste nas raízes sociais mostrando, ao mesmo tempo, a sua fragilidade relativa o que permite ao mundo da vida uma ``porosidade'' que nunca aceita qualquer pronunciamento que autoriza a sua absolutização, ou para utilizar um termo marxista a sua reificação. Assim a nossa presença na realidade tida por evidente é simultaneamente marcada pela possibilidade de um questionamento eminente. Como afirma Schutz, ``o que é tido por garantido não forma uma província fechada, articulada inequivocamente e claramente arranjada. O que é tido por garantido dentro da situação predominante no mundo da vida está rodeado de incerteza'' (Schutz &Luckmann, 1973: 9).
A transposição deste raciocínio para o universo da sociedade contemporânea é uma tentação difícil de resistir. Para usar a linguagem de Vattimo (1992), a sociedade contemporânea é a sociedade dos dialectos e das comunidades diferenciadas. Os media são os responsáveis por esta transformação estrutural da sociedade em que as perspectivas diferenciadas são mais importantes do que os pontos de vista centrais. O mundo da vida pressupõe a instabilidade e a sua porosidade. Porém, também implica a atitude natural e a aceitação de uma ``visão relativamente natural do mundo'' inerente a cada comunidade para usar uma expressão de Max Scheler lembrada por Schutz. É arriscado supor, como faz Vattimo, que a multiplicação de dialectos e de visões do mundo e o enfraquecimento do princípio da verdade e da objectividade se traduz ou se traduz apenas na emancipação. Cada comunidade implica uma certa dose de ``reificação'' e de aceitação dos consensos para que a integração social seja bem sucedida.
Na abordagem que aqui se ensaia, a grande vantagem do pensamento de Schutz é a de olharmos a identidade e a diferença de um modo descritivo, que impede qualquer idealização normativa seja do mundo da vida ou das realidades múltiplas em que este se fragmenta. A armadilha em que caem pelo menos alguns dos teóricos pós modernos é a de fundarem uma nova grande narrativa centrada na ``Diferença'' e nas suas virtualidades. Para Schutz, o mundo da vida - as comunidades efectivamente existentes - e as diferentes realidades em que cada mundo da vida se fragmenta limitam-se a ``estar lá'' com os seus códigos próprios. Parece-me bastante sensato e promissor quanto às possibilidades de uma atitude crítica É na manutenção das estranhezas mútuas e das desconfianças recíprocas que pode assentar uma reciprocidade de expectativas que não se confunda com a idealização do entendimento. Por isso, o melhor espírito público talvez não se baseia na idealização do futuro mas na desconfiança perante o presente. É evidente que qualquer um familiarizado com o pensamento apocalíptico poderá pensar que a idealização do futuro começa na desconsideração do presente. Por isso, a adopção deste princípio de estranheza tem que se dirigir para o presente não para o desconsiderar mas para o olhar com cuidado, um cuidado que ganha um duplo sentido: cuidado com o mundo e cuidado pelo mundo. Esta estranheza que divide as diferentes formas de relação com o mundo tem por isso uma tradição funda que se pode articular com a recusa das nomeações e das identificações definitivas. Será talvez desta ordem - é um ainda uma hipótese ensaística que poderei vir a ponderar - a força que mobilizava por exemplo Adorno na sua recusa da totalidade e da transparência absoluta. Será talvez esta estranheza - senão esta, uma estranheza pelo menos semelhante - que leva Watzlawick a afirmar que ``de todas as ilusões a mais perigosa consiste em pensar que só existe uma realidade'' e que o leva a acreditar que no domínio da realidade de segunda ordem (em que estão em causa os valores e as significações e que é representada pelo ouro desde os inícios da história humana ) é ilusório pensar que existe uma realidade real (Watzlawick, 1991: 7; Mendes. 2001:66). É talvez esta estranheza que já levara muitos outros a desconfiar de uma comunicação segura e fiável com o ser e a realidade das coisas e que por isso pode fundar um certo receio contra uma tradição filosófica ou teórica que se traduza na decisão, na escolha ou na nomeação e explicação de tudo a qualquer preço (Mendes. 2001:63).
Ora esta estranheza pode ganhar um sentido positivo que nos permite relativizar os nossos próprios preconceitos e tipificações permitindo a emergência de um ``espírito público'', i.e. uma consciência da cidadania que não se restrinja a homogeneizar todos os diferentes como iguais. Neste sentido, caminham as análises que acreditam que será possível encontrar em Schutz uma possibilidade de explicação da origem da política: esta passaria por ultrapassar o pólo ``proximidade/familiaridade'' em que assentam a relação entre grupo externo e grupo externo no mundo da vida introduzindo uma reflexividade que implicaria a evolução para uma oposição amigo/adversário.. Num sentido semelhante, com conclusões quiçá diferentes, evoluem as interpretações que aceitam a inclusão de uma dialéctica de reconhecimento mútuo, que não se traduza numa vitória de qualquer uma das partes mas, pelo contrário, na manutenção de um campo de tensão. Aqui, torna-se mais evidente falar de um certo perspectivismo susceptível de ser articulada com o político na medida em que se considere que ``o poder, os múltiplos centros de onde irradia, é sempre por definição um equilíbrio instável, ou melhor uma definição de equilíbrios instáveis'' (Marques, 1993: 41).
Outro caminho que implica também o reconhecimento mútuo - que não é incompatível com o anterior - é explicitamente percorrido por Schutz noutro contexto e implica a tese geral da idealização das expectativas, segundo as quais a manutenção da sociabilidade implica que cada agente social aja e fale partindo do princípio de que se o Outro estivesse no seu lugar falaria e agiria do mesmo modo. Esta perspectiva não implica, de modo algum, qualquer ambição imperial de compreensão integral de outrem (que Schutz nega veementemente) mas antes uma certa convencionalidade sem a qual a própria sociabilidade, já de si ameaçada, ruiria. Esta hipótese aproxima-nos da convencionalidade das condições pragmáticas de entendimento. A questão da justiça política implica, assim, um certo cepticismo em relação às nossas capacidades de compreensão. importando desistir de qualquer ousada tentativa de compreender absolutamente o Outro. Neste percurso, a responsabilidade recíproca já não é imputada como uma categoria ontológica nem qualquer referência a um transcendental exterior às relações humanas. É reconhecida como uma convenção semelhante à presunção de inocência que acompanha os arguidos até prova em contrário. (cfr. Ferry, 2002: 39-45). As pressuposições pragmáticas de comunicação no seio do mundo da vida deixam de assumir a carga metafísica de ideias reguladoras como sejam o conhecimento absoluto, a perfeição moral ou a absoluta transparência comunicacional.
A única dificuldade teórica comum a qualquer destes caminhos é que para que estranheza se torne efectiva na emergência de um ``espírito público'', cada um dos agentes ou cada uma das comunidades precisa de reconhecer o outro por referência a si e vice-versa. Será impossível recorrer a termos luhmanianos, e afirmar que cada um interioriza a diferença a partir da qual pode observar aplicando uma distinção? Em qualquer dos casos, a estranheza teria de adoptar uma reflexividade que interiorizasse uma distinção entre eu e outro ou entre o grupo interno e o grupo externo que pode ser a base desse espírito público. Senão continuaria imerso na auto-evidência das suas auto-tipificações.
Ora , a própria prática jornalística pode ser tão mais eficaz quando se traduz na busca dessa mesma estranheza. A proximidade com o quotidiano, ao contrário do que pensam algumas formas de comunitarismo romântico, não significa necessariamente uma alternativa emancipatória quando pensada comparativamente aos media de massa. Os que lêem em Schutz uma defesa do regresso ao mundo da vida como se fosse uma espécie de saudosismo comunitarista marcado por relações autênticas estão enganados. A possibilidade de desenraizamento é o que gera a fuga à reificação e a busca de novos enraizamentos traduz-se muitas vezes na negação do próprio espírito público a que nos referimos neste texto. Nesse sentido, podemos talvez suscitar o espanto, a estranheza o desenraizamento como o ponto de fuga onde se pode fundar o espírito público. Poder-se-ia contrapor que esta é a estratégia do sensacionalismo, já anteriormente denunciada como uma estratégia alarmista de reafirmar a norma, neste caso através de um choque. Não partilho desta opinião e atrevo-me a entender de outro modo. Nas consequências que retiro desta concepção de estranheza para o campo dos media, o exemplo que escolhi prefere pensar o jornalismo desde um ponto de vista de quebra e de ruptura
Esta quebra e esta ruptura não têm nada a ver com o sensacionalismo mas antes com a interiorização de técnicas de distanciação que são passíveis de serem desenvolvidas pelo jornalismo, designadamente através da de uma rotação da retórica clássica do discurso da imprensa. Estas técnicas passariam pelo aprofundamento do pluralismo e pela multiplicação das vozes susceptíveis de acederem à visibilidade pública através dos media, graças a formas de trabalho muito prático que implicam mais investigação e insistência escrupulosa não apenas em ouvir as partes que têm pertinência para o caso em apreço mas, paradoxalmente, até as que parecem ausentes de pertinência, as que são olhadas como impertinentes, apenas porque falam num registo que invoca um outro sistema de relevâncias que por vezes não é socialmente aceite ou sequer evidente. Alguns exemplos deixaram as suas marcas embora não tenham desenvolvido completamente a plenitude das suas possibilidades. Nesse sentido, a estratégia do Novo Jornalismo na América dos anos 70 - completamente oposta à do Jornalismo de proximidade, uma das formas de Jornalismo cívico--traduziu-se em formas de ``metajornalismo'' que incluíam as descrições das próprias condições em que o jornalista tinha desenvolvido a reportagem e, consequentemente, dos valores que se empenham nesse processo de construção da realidade. Para quem eventualmente estiver interessado, os exemplos encontram-se em Gay Talese e Tom Wicker, este último, aliás, cuja fabulosa reportagem sobre os motins verificados na prisão nova-iorquina de Attica (que lhe valeram o Pulitzer) incluía uma tentativa de reflectir sobre os sentimentos e valores que ele transportava para o trabalho jornalístico. (cfr. Neelson 1978 apud Richard Laningan, 1988: 106; Wicker, 1980). Parece-me redutor ler nestas formas de ultrapassar os velhos conceitos de objectividade uma pura vontade de obter uma transparência acrescida. Tais tentativas podem ser lidas antes como a admissão de uma complexidade que não pode ser reduzida, de uma pluralidade que não pode ser negada. O contrário é imputar aos mass media uma capacidade de ler a realidade que quase tornaria dispensável a defesa do pluralismo jornalístico: com efeito, se existisse uma realidade independente de toda a construção, que apenas carecesse de um aprofundamento no sentido de vencer a opacidade e alcançar maior transparência, a liberdade de expressão seria apenas uma autorização para induzir o erro nas massas as quais seriam deste modo perturbadas pela sua possibilidade de aceder à luz.
Consciente dos riscos implícitos a esta estratégia, defendo que ela
é compatível com um compromisso deontológico e com a
manutenção de formas de mediação. Se é possível
mais uma conclusão provisória onde ecoa ainda o trabalho de A.
Schutz ela passa pela ideia de que consciência criticamente assumida do
ponto de vista subjectivo é menos compatível com o conformismo
mediático do que uma objectividade reduzida ao papel de ritual
estratégico. Pode-se olhar o jornalismo como um género em que há
uma garantia da verdade dos factos dada por um jornalista que ocupa um ponto
de vista oculto pelos recursos linguísticos que decorrem da omissão
dos deícticos e pelo recurso à terceira pessoa. Nesse sentido,
talvez valha a pena fazer valer a consciência de que no jornalismo
há uma suspensão da dúvida (curiosamente, os termos exactos
usados por Schutz para falar de uma époqué típica da atitude
natural) que é baseada numa crença ingénua que tem a idade dos
media informativo de massa : ``é verdade, vem no jornal''.
Referências bibliográficas