A ética e o off the record
(artigo publicado na revista Brotéria, Janeiro de 1998)

António Fidalgo, Universidade da Beira Interior

O jornalista não deve publicar aquilo que lhe é comunicado off the record. Trata-se de um princípio deontológico bastante consensual e que, tal como outros princípios do mesmo tipo, geralmente só é questionado quando infringido. As infracções mostram todavia que o consenso sobre esse princípio é tão frágil quanto a situação de off the record é complexa. Uma reflexão ética sobre o princípio em causa exige uma análise rigorosa, mesmo que breve, desta situação.

1- A análise
Off the record descreve uma situação em que o jornalista, devidamente identificado, recebe, de qualquer maneira, uma indicação clara, explícita ou implícita, de que não deve divulgar as informações que lhe são prestadas. A análise distingue à partida três elementos: a fonte, a informação (a matéria) e o jornalista.
i) Não é quem quer que dá uma informação off the record. Para falar off the record é preciso que quem preste a informação tenha o estatuto de fonte e, como tal, possa falar on the record. Quer isto dizer que não é qualquer confidência ou segredo comunicados por quem quer que seja a um jornalista que tem o estatuto de off the record. O segredo do off the record caracteriza-se justamente pela existência, real ou possível, de informações on the record. Essa a sua peculiaridade; é um segredo dentro de um contexto de divulgação. Dizer que não há off sem record é trivial, mas nem por isso de somenos importância numa análise deste tipo. A credibilidade de quem fala off the record advém-lhe das informações que presta on the record, isto é, do seu estatuto de fonte.
Cabe à fonte decidir o que é ou não off the record, o que pode e o que não pode ser divulgado. Se a fonte o quiser, todas as informações prestadas num determinado momento podem ser para divulgação, como nenhuma o pode ser, ou então, como geralmente sucede, umas sê-lo-ão e outras não, segundo o seu critério. Isto supõe obviamente que é por livre iniciativa, voluntariamente, que a fonte presta as informações. Aliás, estes elementos estão intimamente ligados: a decisão sobre o que é off the record é tanto mais livre quanto mais voluntária for a iniciativa de prestar a informação.
Sendo livre a decisão da fonte sobre o off the record, não quer dizer que seja irracional ou arbitrária; não se trata propriamente de um capricho. Isto quer dizer que a fonte tem as suas razões para decidir sobre o off the record. Essas razões podem ser comunicadas ou não ao jornalista, mas este terá de admitir que existem razões válidas para o off da informação. Veremos que é neste ponto que se situa o cerne da questão ética do off the record.
ii) As informações prestadas off the record são, por natureza, informações passíveis de ser publicadas. Normalmente até são aquelas que o jornalista mais gostaria de publicar, não só porque o fruto proibido é o mais apetecido, mas, sobretudo, porque são sempre informações em primeira mão. Em termos puramente materiais, de conteúdo, nada distingue uma informação em off de uma informação destinada a publicitação. De tal maneira é assim que qualquer informação em off se pode transformar em notícia, seja pela anuência da fonte a retirar a restrição de publicitação, seja pela infracção do jornalista ao off. As fronteiras materiais do off são, deste modo, as mesmas que as do on, a saber as do interesse público. Não havendo qualquer distinção de conteúdo entre as informações prestadas off the record e as dadas para o gravador, a diferença é apenas da ordem intencional; a fonte pretende que o jornalista guarde para si as informações que lhe dá em off. Também aqui, só que agora do ponto de vista do conteúdo da informação, não é um qualquer segredo comunicado ao jornalista, mesmo que vindo de uma fonte, que faz dele uma informação off the record. Essa informação tem de ter valor jornalístico, ser de interesse público.
iii) Por fim, o off the record pressupõe que o jornalista, ao receber essa informação, se encontra perfeitamente identificado como tal. Esta identificação significa aqui duas coisas: primeira, que a fonte sabe que a pessoa a quem pede o sigilo off the record é jornalista; segunda, que o jornalista está ali nas funções de jornalista e não noutras funções. As conversas mais ou menos sigilosas entre uma fonte e um jornalista em contextos de tipo familiar, associativo, mesmo sobre assuntos de eventual interesse jornalístico, não são informações off the record. Por conseguinte, não se devem considerar como infracções ao off the record todas as indiscrições cometidas por um jornalista.

2- A reflexão ética
Feita a análise da situação do off the record várias questões se levantam do ponto de vista ético. A primeira delas, e a mais importante para o jornalista, é a seguinte: sendo o primeiro dever do jornalista informar o público, como pode ele manter em segredo informações de interesse público, por vezes de claro interesse público? Aqui a resposta é a de que a obtenção dessas informações foi feita sob o compromisso de que as não publicaria e de que só as obteria sob esse compromisso. A justificação ética da retenção de informação reside, portanto, no compromisso assumido com a fonte. A questão ética transfere-se então para o compromisso assumido. Faz sentido um jornalista obter informações se as não puder publicar? É esse compromisso eticamente correcto?
À partida, o compromisso em que assenta o off the record é perfeitamente correcto. É preferível um jornalista dispor de certas informações, mesmo que as não possa divulgar, do que pura e simplesmente as ignorar. Vale mais um jornalista comprometidamente informado do que descomprometidamente ignorante.
Antes de informar o público o jornalista tem de se informar. São duas coisas distintas e dois deveres diferentes, ainda que intimamente associados. O jornalista informa-se para informar. Mas o dever de se informar é diferente do dever de informar. De tal modo é assim que muitas vezes um jornalista tem de proceder a investigações que acabam por não produzir uma informação de interesse público. Um exemplo: uma investigação sobre um alegado caso de corrupção pode muito bem apurar que não houve corrupção alguma. O dever de se informar distingue-se pois claramente do dever de informar. Ora é justamente com base no dever de se informar que o jornalista assume o compromisso do off the record. Ninguém duvidará que um jornalista poderá, graças a informações obtidas off the record, ficar melhor esclarecido sobre outras informações dadas on the record e assim informar melhor o público.
Da perspectiva do jornalista, a figura do off the record justifica-se pelo dever de se informar. E da perspectiva da fonte? Pode uma fonte condicionar as informações que presta a um jornalista? Não significa esse condicionamento, nomeadamente ao estabelecer a fronteira entre o que é on e off the record, uma manipulação do jornalista? Em princípio ¾ e a ética trata de princípios e não de casos! ¾ uma fonte pode perfeitamente, de um ponto de vista ético, condicionar uma informação dada a um jornalista. Aliás, pela mesma razão que um jornalista aceita o off the record. A fonte considera que a informação dada off the record poderá esclarecer melhor o jornalista sobre as informações dadas on the record, poderá situar estas numa perspectiva mais correcta. O que justifica o off the record por parte da fonte é o interesse em que o jornalista esteja informado de factos sob sigilo a fim de melhor compreender as informações dadas on the record. Isso permitirá ao jornalista dar ao público uma informação ainda que não cabal, pelo menos não distorcida.
As razões do off the record prendem-se, de um ponto de vista ético, com as informações dadas on the record. O sentido ético do off é o de esclarecer melhor o jornalista sobre as informações que lhe são dadas on the record. Este é o cerne da questão. É em função do on the record, isto é, da informação pública praticada pelo jornalista, que se justifica eticamente o off the record.
Onde as informações prestadas em off nada têm a ver com as informações dadas para o gravador, então há que efectivamente desconfiar. O que sucede em tais situações é um condicionamento pessoal do jornalista, torná-lo participante de um segredo e criar cumplicidades. Uma situação generalizada de informações off avulsas e arbitrárias conduz inevitavelmente a uma promiscuidade entre fontes e jornalistas em que se perde completa-mente de vista a informação do público como razão última da informação do jornalista.
Que o off the record é bastas vezes utilizado como instrumento de manipulação é um facto. Mas os abusos, por mais abundantes e graves que sejam, são sempre abusos e não significam que o off the record seja um simples mecanismo de poder e, como tal, não faça sentido. Aliás, o jornalista tem o dever de questionar as razões do off, tem de entender o porquê de lhe ser fornecida uma informação sob condição de a não divulgar. E aqui só há uma maneira de entender essas razões: servem ou não as informações em off para esclarecer as informações dadas para o gravador? Este é o grande critério de o jornalista saber se está a ser ou não manipulado.
Por fim, quanto à matéria das informações prestadas em off, a questão ética mais pertinente é sobre a manutenção do sigilo relativamente a assuntos de natureza grave ou mesmo criminosa. Deverá, por exemplo, o jornalista manter em sigilo uma informação sobre um crime dada em off the record? Temos aqui dois deveres em disputa: por um lado, o dever profissional de manter o sigilo, por outro lado, o dever de denunciar um crime. Trata-se sem dúvida de um dilema ético, mas a regra geral é a de manter o sigilo profissional. O jornalista não deve, em princípio, denunciar um crime de que foi informado off the record. É que essa informação foi prestada sob condição de o jornalista guardar segredo.
Claro que aqui haverá que fazer alguns reparos. O jornalista não pode deixar-se manipular ou manietar através do off. Se ele estiver à beira de descobrir por si uma ilegalidade, ou um crime, de manifesto interesse público, não pode deixar que uma informação em off, dada à última da hora, o impeça de revelar a verdade. Da prudência do jornalista também depende evitar os conflitos éticos. Mas não são de excluir casos de força maior em que o jornalista entenda como dever a denúncia de factos e situações, de que teve informação off the record. Se estiver em jogo a vida de uma pessoa, a paz entre os povos, e outros valores básicos, o jornalista poderá muito bem optar por romper o sigilo profissional. Trata-se de ponderar os deveres. De qualquer modo, nunca uma simples razão publicitária ¾ sensacionalismo, aumento de tiragem dos jornais, etc. ¾ poderá justificar a quebra do sigilo off the record.
Resumindo e concluindo. O off the record justifica-se pelo dever de o jornalista se informar o mais cabalmente possível, mas esse dever está subordinado ao dever de informar o público. Onde essa subordinação desaparece, o off the record transforma o jornalista em comparsa.