O Jornalismo é uma Forma de Conhecimento?

(conferência feita nos Cursos da Arrábida – Universidade de Verão)

 

Eduardo Meditsch, Universidade Federal de Santa Catarina

 

 

Setembro de 1997


Introdução

 

Convidaram-me a vir até aqui falar sobre uma pergunta, o que é uma perspectiva bastante interessante. Dizia o educador Paulo Freire, que faleceu no Brasil há pouco tempo, que todo o conhecimento autêntico nasce de uma pergunta. Dizia mais:  que não há conhecimento sem pergunta. O ato de conhecer seria necessariamente o ato de perguntar e de responder à pergunta. Neste aspecto, a interrogação colocada no título pelo professor Mário Mesquita é extremamente apropriada.

Não posso garantir se, ao final da minha exposição e do debate que faremos sobre ela, alguém no auditório estará suficientemente esclarecido para responder a pergunta do título. A pergunta é demasiado complexa e admite interpretações diferenciadas. Vou apresentar aqui a minha visão, que aponta para esta mesma frase como resposta à pergunta, no sentido afirmativo, sem o ponto de interrogação, embora com algumas ressalvas.

         No entanto, há uma segunda pergunta subjacente a este debate, que é a que está expressa no tema geral do curso, e que pode representar uma armadilha: “Jornalismo: Transmissão de Conhecimentos ou Degradação do Saber? Aparentemente, se respondermos à primeira pergunta de uma determinada maneira – por exemplo, suprimindo o ponto de interrogação – estaremos automaticamente respondendo à segunda, posicionando-nos entre as duas alternativas que estão dadas na sua formulação.

         Os jornalistas gostam de montar este tipo de armadilha, e os incautos costumam cair nelas com facilidade. Aí, é necessário ter cuidado para evitar um tropeço. Então, saliento que ao longo da exposição procurarei responder à primeira pergunta suprimindo o ponto de interrogação, mas que esta resposta não implica necessariamente num posicionamento entre os termos que aparecem como mutuamente excludentes na segunda pergunta. A hipótese que vou defender é de que o Jornalismo é uma forma produção de conhecimento. No entanto, na prática, esta forma de conhecimento tanto pode servir para reproduzir outros saberes quanto para degradá-los, e é provável que muitas vezes faça essas duas coisas simultaneamente.

 

Abordagens do Jornalismo como Conhecimento

 

A questão do Jornalismo enquanto conhecimento, por sua complexidade, admite muitas interpretações, como já foi dito. Para simplificar a exposição, vou classificar estas interpretações, que compreendem diferentes nuances, em três abordagens principais:

A primeira delas nasce da definição de conhecimento não como um dado concreto, mas como um ideal abstrato a alcançar. Uma vez estabelecido este ideal, passa a ser o parâmetro para julgar toda a espécie de conhecimento produzido no mundo humano. A era moderna, com as fantásticas realizações da técnica na transformação da vida humana e no domínio da natureza, acabou por realizar o sonho dos filósofos positivistas de entronizar “a Ciência” como única fonte de conhecimento digna de crédito. O “método científico” foi escolhido como o parâmetro adequado para se conhecer e dominar o mundo, e toda a tentativa de conhecimento estabelecida à margem deste padrão foi desmoralizada, considerada imperfeita e pouco legítima.

Esta visão que entronizava “a Ciência” como “o método de conhecimento” estabelece a primeira das abordagens do problema do Jornalismo em relação ao conhecimento: para ela, o Jornalismo não produz conhecimento válido, e contribui apenas para a degradação do saber. São notáveis as observações do intelectual austríaco Karl KRAUS a este respeito, escritas no início do século:

 

“O que a sífilis poupou será devastado pela imprensa. Com o amolecimento cerebral do futuro, a causa não poderá mais ser determinada com segurança.(...) A imagem de que um jornalista escreve tão bem sobre uma nova ópera como sobre um novo regulamento parlamentar tem algo de acabrunhante. Seguramente, ele também poderia ensinar um bacteriologista, um astrônomo e até mesmo um padre. E se viesse a encontrar um especialista em matemática superior, lhe provaria que se sente em casa numa matemática ainda mais superior.”

 

Kraus não representa um crítico isolado. Seu pensamento influenciou profundamente muitos outros intelectuais de respeito, como Walter BENJAMIN e os fundadores da  Escola de Frankfurt. Apesar das críticas que este ponto de vista vêm recebendo nos últimos anos, sua influência ainda pode ser constatada em grande parte da produção acadêmica contemporânea sobre o Jornalismo, que de uma forma ou de outra o situa no campo do conhecimento como uma ciência mal feita, quando não como uma atividade perversa e degradante.

Uma segunda forma de abordagem do Jornalismo enquanto conhecimento o situa ainda como uma ciência menor, mas admite já que não é de todo inútil. Pode-se utilizar como exemplo desta abordagem o ex-jornalista e sociólogo do conhecimento Robert PARK, que publicou um artigo sobre o tema em 1940. A partir da perspectiva filosófica do pragmatismo de William JAMES, que abandona o conhecimento como um ideal para observá-lo como um dado da vida humana, concluindo que as pessoas e as coletividades lidam simultaneamente em suas vidas com várias espécies de conhecimento, PARK começa a definir o Jornalismo a partir do que tem de diferente, do que lhe é específico como forma de conhecimento da realidade.

Embora admita a distinção entre tipos de conhecimento, o sociólogo norte-americano não avança neste aspecto muito além do que JAMES já havia realizado ao distinguir entre um “conhecimento de” utilizado no cotidiano e um “conhecimento sobre”, sistemático e analítico, como o produzido pelas ciências. Para situar o Jornalismo,  PARK vai propor a existência de uma gradação entre as duas espécies de conhecimento e colocar a notícia num nível intermediário entre elas.

Este tipo de  diferenciação do Jornalismo a partir do grau de profundidade que alcança comparativamente à Ciência ou à História é admitida pelos próprios jornalistas. Ao fazerem comparações entre o seu trabalho e o dos cientistas, os jornalistas costumam sugerir esta forma de gradação. Quando não se refere à profundidade de análise, a gradação pode referir-se também à velocidade da produção, e o Jornalismo já foi definido como a História escrita à queima-roupa.

A comparação quantitativa dos atributos do Jornalismo em  relação à Ciência ou à História pode ser útil para elucidar algumas das suas diferenças, mas parece insuficiente para definir o que ele tem de específico. Daí que tenha surgido uma terceira abordagem, que dá mais ênfase não ao que o Jornalismo tem de semelhante, mas justamente ao que ele tem de único e original. Para esta terceira abordagem, o Jornalismo não revela mal nem revela menos a realidade do que a ciência: ele simplesmente revela diferente. E ao revelar diferente, pode mesmo revelar aspectos da realidade que os outros modos de conhecimento não são capazes de revelar.

Além desta maneira distinta de produzir conhecimento, o jornalismo também tem uma maneira diferenciada de o reproduzir, vinculada à função de comunicação que lhe é inerente. O Jornalismo não apenas reproduz o conhecimento que ele próprio produz, reproduz também o conhecimento produzido por outras instituições sociais. A hipótese de que ocorra uma reprodução do conhecimento, mais complexa do que a sua simples transmissão, ajuda a entender melhor o papel do Jornalismo no processo de cognição social. Mas, para tornar aceitável esta terceira abordagem, é necessário compartilhar alguns dos seus pressupostos.

 

Pressupostos do Jornalismo como Conhecimento

 

         Além do pragmatismo que orientou Robert PARK, diversas outras correntes teóricas oferecem bases de apoio não só para se aceitar como também para se definir a especificidade do Jornalismo enquanto conhecimento.

As epistemologias críticas, que nas últimas décadas têm se dedicado a desmistificar o preceito positivista da infalibilidade da Ciência, e a demonstrar o caráter cultural e histórico de toda a forma de conhecimento, contribuíram para destruir o ideal de uma verdade única e obrigatória, e principalmente para estabelecer os limites lógicos de qualquer reivindicação de objetividade. Ao relativizarem as verdades científicas, estas correntes críticas permitiram também a aceitação de outras verdades como eventualmente válidas e relativas, de acordo com os seus pressupostos e objetivos.

         Contribuíram para esta nova visão o extraordinário desenvolvimento da compreensão das linguagens, também elas, enquanto produtos históricos e culturais. O estudo do discurso, que se interessa pela utilização concreta das linguagens, demonstrou que todo o enunciado que se refere à realidade, ao refletí-la de certa maneira, também necessariamente a refrata de certa maneira (BAKHTIN, 1929).

Por este caminho, procura-se distinguir a verdade que um enunciado pode conter da realidade mesma, a realidade referente que se encontra fora do enunciado. Falar de “a verdade”, enquanto substantivo, atributo coisificado, assim vai perdendo o sentido.  Mais apropriado será se falar no adjetivo,  no enunciado “verdadeiro”. E poderão existir muitos enunciados verdadeiros, eventualmente até contraditórios entre si, ainda que cada um coerente com seus pressupostos, porque nenhum enunciado é capaz de esgotar a realidade inteira.

Os diferentes gêneros de discurso vão abordar a realidade de diferentes maneiras, definindo verdades diversas, cada uma pertinente a um objetivo ou a uma situação. Os argumentos validados num campo do saber poderão ser considerados absurdos em outro. Ao mesmo tempo, grande parte do que costuma ser considerado descoberto e sabido hoje, por nossa civilização, provavelmente é ignorado por nove entre dez seres humanos civilizados.

Os auditórios a que se dirigem os diferentes discursos também tornam mais complexa a questão do saber em nossa sociedade. A sociologia e a antropologia do conhecimento, ao se debruçarem sobre o cotidiano das pessoas comuns, e não apenas sobre os relatos dos sábios, reforçaram a idéia de que a metodologia científica não é o único modo de conhecer e provavelmente sequer o mais importante para a nossa sobrevivência individual e de nossa existência gregária. Diversos tipos de conhecimentos circulam em diversas redes sociais (BERGER & LUCKMANN, 1966). Essa descoberta não significa uma vitória do irracionalismo, que apontaria para o retorno a um mundo assombrado pelos demônios, como na Idade Média descrita por Carl Sagan. Pelo contrário, aponta para a necessidade de uma Razão mais refinada, que dê conta da extrema complexidade do mundo, que cada vez mais se expõe a nós e com isso desafia todos os nossos parâmetros.

         Entre os fenômenos mais complexos com que nos deparamos hoje está o funcionamento do cérebro humano. O conhecimento sobre o cérebro tem avançado em progressão geométrica nas últimas décadas, e a noção da sua complexidade tem aumentado na mesma proporção. Já há algum tempo, pensadores como o pedagogo Paulo Freire vinham alertando para a evidência de que a abertura permanente é o que distingue o cérebro humano do cérebro dos animais. É essa abertura o que determina a nossa capacidade infinita de aprendizagem e o que nos faz superar continuamente qualquer obstáculo a esta aprendizagem, inclusive os estabelecidos por nós mesmos, como indivíduos ou como coletividade. As concepções fixas e os paradigmas estanques são alguns destes obstáculos que temos superado.

         Paulo Freire também advertia para o fato de que o saber não pode ser transmitido. Observava que quando qualquer tipo de informação é comunicada de uma pessoa a outra com sucesso, isto implica que ela não foi apenas transferida, como seria de uma disquete para outra num computador, mas que foi re-conhecida pela pessoa que a recebeu. O cérebro humano não é um recipiente onde se possa depositar conhecimentos: a aprendizagem implica numa operação cognitiva, onde quem aprende tem um papel tão ativo quanto quem ensina. Assim, tanto quem ensina quanto quem aprende não se limitam a reproduzir um saber que existia anteriormente a seus atos, mas re-criam este conhecimento nos próprios atos de aprender e de ensinar. Desta forma, pode-se afirmar que o conhecimento não se transmite, antes se re-produz.

         A moderna ciência cognitiva, que já conta com um conhecimento mais aproximado do funcionamento do cérebro, confirma esta intuição dos pedagogos: a comunicação está indissoluvelmente ligada à cognição (SPERBER & WILSON, 1986). Nosso equipamento cognitivo não registra nem arquiva informações tal qual as recebe, antes as processa, classifica e contextualiza, reconstruindo a informação recebida a partir de esquemas de interpretação e informações prévias sobre o tema, o emissor e a situação comunicativa. O esquema clássico da comunicação como a transferência mecânica de uma mensagem do emissor ao receptor,  por meio de um processo singelo de codificação e descodificação, está completamente superado pelo conhecimento atual do cérebro humano. Para dar um só exemplo, a emoção, antes tão desprezada pelo ideal de objetividade científica, e classificada como “ruído” no ideal mecânico da comunicação de mensagens, vai aparecer agora como um combustível imprescindível à maquinaria da razão humana (DAMÁSIO, 1994).

         A intensa pesquisa que vem sendo realizada no campo da inteligência artificial, no caminho de criar máquinas que pensem, tem contribuído também para elucidar de certa forma a maneira como nós pensamos, e mexe em nossos juízos de valor sobre o que seja a maneira mais correta de pensar.  Cada obstáculo encontrado pelo computador para fazer o que fazemos chama a atenção dos cientistas para um recurso a mais das nossas próprias mentes, e contribui para a elucidação de maneira cada vez mais sofisticada de seu funcionamento. Os técnicos do M.I.T., que desenvolvem máquinas inteligentes, surpreendem o mundo ao revelarem que são capazes de substituir especialistas em áreas tecnológicas de ponta para muitos procedimentos, mas não conseguem criar nada aproximado ao bom senso de uma criança de cinco anos.

O processo incessante de produção e re-produção do conhecimento depende não só do equipamento cognitivo dos indivíduos, mas também das possibilidades de socialização de suas experiências.  Por isso, cada vez mais se presta atenção no papel desempenhado pelas instituições e pelas tecnologias intelectuais disponíveis em cada sociedade e em cada cultura. Diversos autores têm demonstrado as mudanças ocorridas nas formas de pensar e de conhecer em conseqüência do surgimento da escrita, de sua reprodutibilidade através da imprensa e, mas recentemente, num processo que ainda estamos vivendo, da revolução eletrônica (GOODY, 1977; ONG, 1986; LÉVY, 1990).

Com tantas surpresas, com a descoberta de tantas limitações e ao mesmo tempo de tantas possibilidades novas no que já conseguimos saber, não é aconselhável descartar a priori qualquer das formas disponíveis de conhecer e re-conhecer o mundo, por mais limitada e singela que possa parecer. Daí a necessidade de se compreender melhor como funciona o Jornalismo como modo de conhecimento, e de investigar até que ponto ele não será capaz de nos revelar aspectos da realidade que não são alcançados por outros modos de conhecer mais prestigiados em nossa cultura.

        

Características do Jornalismo como Conhecimento

 

         Ao utilizar a distinção entre “conhecimento de” e “conhecimento sobre”, o primeiro sintético e intuitivo, o segundo sistemático e analítico, dentro da tradição do pragmatismo, Robert PARK observa que o Jornalismo realiza para o público as mesmas funções que a percepção realiza para os indivíduos. Conforme Nilson LAGE (1992:14-5), o Jornalismo descende da mais antiga e singela forma de conhecimento – só que, agora, projetada em escala industrial, organizada em sistema, utilizando fantástico aparato tecnológico”.

Adelmo GENRO FILHO (1987:58), outro pesquisador brasileiro que se debruçou sobre esta questão, também ressalva que o Jornalismo como gênero de conhecimento difere da percepção individual pela sua forma de produção: nele, a imediaticidade do real é um ponto de chegada, e não de partida. Esta ressalva é importante para se discutir os problemas do Jornalismo como forma de conhecimento e de seus efeitos. No entanto, ao se fixar na imediaticidade do real, o Jornalismo opera no campo lógico do senso comum, e esta característica definidora é fundamental.

         A partir dela, pode-se questionar até que ponto o Jornalismo como modo de conhecimento pode ser rigoroso. O conhecimento do senso comum foi até bem pouco tempo desprezado pela teoria, uma vez que toda a ciência moderna se constituiu com base na sua negação. Mas,  na medida em que as ciências humanas passaram a valorizar a observação do cotidiano para o desvendamento das relações sociais, o que era visto como "irrelevante, ilusório e falso" começou a aparecer não só como um objeto digno de consideração pela teoria do conhecimento mas, em última análise, como o seu objeto principal (SANTOS, 1988:8).

         Conforme BERGER & LUCKMANN (1966:40), o senso comum corresponde a uma atitude cognitiva percebida como natural. "A atitude natural é a atitude da consciência do senso comum precisamente porque se refere a um mundo que é comum a muitos homens. O conhecimento do senso comum é o conhecimento que eu partilho com os outros nas rotinas normais, evidentes da vida cotidiana". Além disso, a atitude cognitiva natural estabelece uma certa percepção da realidade como dominante:

"Comparadas à realidade da vida cotidiana, as outras realidades aparecem como campos finitos de significação, enclaves dentro da realidade dominante marcada por significados e modos de experiência delimitados. A realidade dominante envolve-as por todos os lados, por assim dizer, e a consciência sempre retorna à realidade dominante como se voltasse de uma excursão”. "Todos os campos finitos de significação caracterizam-se por desviar a atenção da realidade da vida cotidiana. (...) É importante, porém, acentuar que a realidade da vida cotidiana conserva a sua situação dominante mesmo quando estes 'transes' ocorrem. Se nada mais houvesse, a linguagem seria suficiente para nos assegurar sobre este ponto. A linguagem comum de que disponho para a objetivação de minhas experiências funda-se na vida cotidiana e conserva-se sempre apontando para ela mesma quando a emprego para interpretar experiências em campos delimitados de significação" (BERGER & LUCKMANN, 1966:43-4).

                É o fato de operar no campo lógico da realidade dominante que assegura ao modo de conhecimento do Jornalismo tanto a sua fragilidade quanto a sua força enquanto argumentação. É frágil, enquanto método analítico e demonstrativo, uma vez que não pode se descolar de noções pré-teóricas para representar a realidade. É forte na medida em que essas mesmas noções pré-teóricas orientam o princípio de realidade de seu público, nele incluídos cientistas e filósofos quando retornam à vida cotidiana vindos de seus campos finitos de significação. Em conseqüência, o conhecimento do jornalismo será forçosamente menos rigoroso do que o de qualquer ciência formal mas, em compensação, será também menos artificial e esotérico.

Evidentemente, como todo conhecimento, o senso comum não é tão democrático como sugere o termo. O conhecimento é repartido socialmente, devido ao simples fato do indivíduo não conhecer tudo o que é conhecido por seus semelhantes, e vice-versa, processo que culmina em sistemas de perícia extraordinariamente complexos. A distribuição social de conhecimentos, desta forma, não se dá apenas em termos quantitativos (uns conhecem mais do que outros), mas também qualitativos (conhecem coisas diferentes). Cada campo de conhecimento é compartilhado por um auditório específico. A questão dos auditórios, assim como a dos campos lógicos, estabelece diferenças entre o modo de conhecimento das ciências e do Jornalismo.

                A linguagem formal dos cientistas justifica-se por sua universalidade, a universalidade ideal de seu auditório. Porém, esta universalidade será igualmente formal, uma universalidade de direito mas não de fato, uma vez que esta linguagem só circula por determinadas redes e cria uma incomunicação crescente entre os dialetos das diversas especialidades. Neste sentido, quanto mais as ciências produzem conhecimento, mais tornam opaco este conhecimento (VIEIRA PINTO, 1969:165-6). Para penetrar nesta opacidade, é necessário também penetrar na rede institucional que a mantém, através dos processos pedagógicos específicos.

         Já o ideal de universalidade do Jornalismo caminha em outra direção. O auditório universal que idealmente persegue refere-se a uma outra rede de circulação de conhecimento, constituída pela comunicação para devolver à realidade a sua transparência coletiva. É uma universalidade de fato, embora precária, porque só estabelecida institucionalmente de forma indireta e imperfeita, tal e qual o espaço público pressuposto pelo ideal democrático que a precede e a requer. Sua amplitude é também limitada em outra direção, a intenção do emissor na delimitação do universo do público alvo. Mas é na preservação deste auditório ideal que o Jornalismo encontra uma de suas principais justificações sociais: a de manter a comunicabilidade entre o físico, o advogado, o operário e o filósofo. Enquanto a ciência evolui reescrevendo o conhecimento do senso comum em linguagens formais e esotéricas, o Jornalismo trabalha em sentido oposto.

         Além da questão do rigor, outra crítica que comumente se faz ao Jornalismo é a de que ele não seria tão capaz de revelar o novo como a ciência. Partindo de premissas retiradas necessariamente do senso comum, a argumentação da notícia parte do que o auditório já sabia, ou era suposto saber. "Se o avião caiu, é claro que existia o avião e que o avião pertence à categoria das coisas capazes de cair" (LAGE, 1979:41). Em virtude disto, a novidade contida numa notícia é limitada. Como propõe VAN DIJK (1980:176), esta novidade "é a ponta de um iceberg de pressuposições e, em consequência, da informação previamente adquirida”.

         Esta constatação sugere que o conhecimento proporcionado pelo Jornalismo tem um duplo papel na construção do senso comum, em que a revelação da novidade refere-se a apenas um aspecto. A compreensão da notícia envolve o processamento "de grandes quantidades de informação estruturadora, repetida e coerente, que sirva como base para ampliações mínimas e outras mudanças em nossos modelos do mundo" (VAN DIJK, 1980:248).  O Jornalismo serve ao mesmo tempo para conhecer e reconhecer.

         Por outro lado, a revelação da novidade é um dado estrutural da retórica do Jornalismo - a conclusão a que conduz a sua argumentação. A forma com que chega a esta novidade também é diferente daquela utilizada pela ciência. Enquanto a ciência, abstraindo um aspecto de diferentes fatos, procura estabelecer as leis que regem as relações entre eles, o Jornalismo, como modo de conhecimento, tem a sua força na revelação do fato mesmo, em sua singularidade, incluindo os aspectos forçosamente desprezados pelo modo de conhecimento das diversas ciências.

Como propusemos em trabalho anterior, no método científico a hipótese pressupõe uma experimentação controlada, isto é, um corte abstrato na realidade através do isolamento de variáveis que permita a obtenção de respostas a um questionamento baseado em sistema teórico anterior. O Jornalismo, por sua vez, não parte de uma hipótese nem de sistema teórico anterior, mas da observação não controlada (do ponto de vista da metodologia científica) da realidade por parte de quem o produz. Também se diferencia das ciências pelo tipo de corte abstrato que propõe. O isolamento de variáveis é substituído pelo ideal de apreender o fato de todos os pontos de vista relevantes, ou seja, em sua especificidade (MEDITSCH, 1990:72).

GENRO FILHO (1987:163) apóia-se nas categorias hegelianas do universal, particular  e singular   para definir o modo de conhecimento produzido socialmente pelo Jornalismo:

"...o critério jornalístico de uma informação está indissoluvelmente ligado à reprodução de um evento pelo ângulo de sua singularidade. Mas o conteúdo da informação vai estar associado (contraditoriamente) à particularidade e universalidade que nele se propõem, ou melhor, que são delineados ou insinuados pela subjetividade do jornalista. O singular, então, é a forma do Jornalismo, a estrutura interna através da qual se cristaliza a significação trazida pelo particular e o universal que foram superados. O particular e o universal são negados em sua preponderância ou autonomia e mantidos como o horizonte do conteúdo”.

         A cristalização no singular explica também como o Jornalismo consegue produzir informação nova com uma grande economia de meios em relação aos outros modos de conhecimento: "Como o novo aparece sempre como singularidade, e esta sempre como o aspecto novo do fenômeno, a tensão para captar o singular abre sempre uma perspetiva crítica em relação ao processo. A singularidade tende a ser crítica porque ela é a realidade transbordando do conceito, a realidade se recriando e se diferenciando de si mesma" (GENRO FILHO, 1987:212).       

Pode-se assim chegar mais perto do que seria uma fisiologia normal  do Jornalismo como forma de produção e reprodução de conhecimento. É possível, como propõe LAGE (1979:37), isolar teoricamente "uma organização relativamente estável", dissociando esse "componente lógico" das ideologias que inevitavelmente o contaminam na realidade concreta - o "componente ideológico" que caracteriza a patologia diagnosticada pelos seus críticos, para encontrar a sua especificidade, uma vez que a ideologia é um fenômeno social mais geral.

          Ao mesmo tempo, este esboço de sua fisiologia permite constatar que o Jornalismo não é uma "ciência mal feita", simplesmente porque não é uma ciência e nem pode aspirar a ser tal. Por um lado, o Jornalismo como forma de conhecimento é capaz de revelar aspectos da realidade que escapam à metodologia das ciências (a ciência exclui o singular, cf. ATLAN in PESSIS-PASTERNAK, 1991:72); por outro, é incapaz de explicar por si mesmo a realidade que se propõe a revelar. "O universo das notícias é o das aparências do mundo; o noticiário não permite o conhecimento essencial das coisas, objeto do estudo científico, da prática teórica, a não ser por eventuais aplicações a fatos concretos. Por trás das notícias corre uma trama infinita de relações dialéticas e percursos subjetivos que elas, por definição, não abarcam" (LAGE, 1985b:23).

         Por fim, é preciso ressaltar que o conteúdo do jornalismo, ao estar preso ao senso comum, está também necessariamente vinculado a um contexto. O texto só adquire sentido dentro de um contexto. Isto dificulta tanto a sistematização quanto a acumulação destes conteúdos, contrariamente ao que ocorre com a ciência que isola o texto do contexto. Mas, neste sentido, o conhecimento produzido pelo jornalismo é mais sintético e mais holístico do que aquele produzido pela ciência.

 

Problemas do Jornalismo enquanto Conhecimento

 

         Embora nesta perspectiva se considere que o Jornalismo produz e reproduz conhecimento, não apenas de forma válida mas também útil para as sociedades e seus indivíduos, não se pode deixar de considerar que esse conhecimento por ele produzido tem os seus próprios limites lógicos e, quando observado na prática, apresenta também uma série de problemas estruturais. Como toda outra forma de conhecimento, aquela que é produzida pelo Jornalismo será sempre condicionada histórica e  culturalmente por seu contexto e subjetivamente por aqueles que participam desta produção. Estará também condicionada pela maneira particular como é produzida.

          Nas últimas décadas se multiplicaram os trabalhos científicos que salientam o fato do Jornalismo não ser uma imagem da realidade extraída unicamente desta realidade, mas sim uma construção onde os projetos, as técnicas e seu manejo, as ferramentas e as matérias primas também interferem no produto final (TRAQUINA, 1993). Inúmeras mediações condicionam o modo como o Jornalismo cria e processa a informação sobre a realidade, desde o schemata profissional  (MÉRÓ, 1990) - o modo particular como os jornalistas vêem o mundo, passando pelos objetivos, a estrutura e a rotina das organizações onde trabalham, as condições técnicas e econômicas para a realização de suas tarefas e, finalmente, o jogo de poder e os conflitos de interesses que estão inextricavelmente implicados na circulação social desta informação (MESQUITA, 1995).

         Um dos principais problemas do Jornalismo como modo de conhecimento é a falta de transparência destes condicionantes. A notícia é apresentada ao público como sendo a realidade e, mesmo que o público perceba que se trata apenas de uma versão da realidade, dificilmente terá acesso aos critérios de decisão que orientaram a equipe de jornalistas para construí-la, e muito menos ao que foi relegado e omitido por estes critérios, profissionais ou não. Neste ponto, a proliferação recente da instituição do provedor de leitores – o ombudsman – é certamente um progresso, não apenas pelo que possa discutir diretamente da produção dos media, mas também por contribuir para levantar o véu que encobre os procedimentos habituais de construção da informação jornalística.

         Outro aspecto problemático do jornalismo enquanto conhecimento é  a velocidade de sua produção. No entanto, ao mesmo tempo em que a velocidade representa um limite, representa também uma vantagem em relação a outros modos de conhecimento. A velocidade não é uma característica exclusiva do jornalismo, mas sim da civilização em que vivemos que, por funcionar assim, necessita de informações produzidas rapidamente.

E, por fim, não poderíamos deixar de citar a espetacularização como uma aspecto problemático do jornalismo como conhecimento. O que distingue uma matéria jornalística de um relato científico, de um texto didático ou de um relatório policial é o fato de que se dirige a pessoas que não tem obrigação de ler aquilo. Em consequência, procura de alguma forma aliciar as pessoas para que se interessem por aquela informação, através de técnicas narrativas e dramáticas. Isto não é um mal em si, o uso destas técnicas se justifica amplamente pela eficácia comunicativa e cognitiva que proporcionam. O problema é quando passam a ser utilizadas em função de objetivos que não os cognitivos, como a luta comercial por audiência e o esforço político de persuasão. No cotidiano do jornalismo praticado em nossas sociedades, é muito difícil distinguir entre estes três tipos de objetivo.

 

Efeitos do Jornalismo enquanto Conhecimento

 

Concretamente, muito pouco se sabe sobre os efeitos do Jornalismo sobre os indivíduos ou as sociedades. Existem várias hipóteses a este respeito, mas é muito difícil isolar as variáveis de forma a testá-las para fins de comprovação (SAPERAS, 1987). É inegável que os meios de comunicação tem um poder muito grande no meio social, mas é difícil determinar até que ponto este poder é exercido de forma autônoma e até que ponto funciona apenas como instrumento de outros poderes instituídos. Muitos dos pecados atribuídos ao Jornalismo, inclusive pelas teorias e hipóteses que tentam explicar as suas consequências, na verdade têm causas enraizadas em solos mais profundos. A manipulação do sistema democrático, a disparidade crescente entre o topo e a base das sociedades, a disseminação dos preconceitos, estereótipos e ideologias dos poderosos não são criações do Jornalismo, embora ele eventualmente participe de tudo isso. Como produto social, o Jornalismo reproduz a sociedade em que está inserido, suas desigualdades e suas contradições. Nenhum modo de conhecimento disponível está completamente imune a isto.

 Também é bastante difícil isolar os efeitos do Jornalismo sobre o ambiente cognitivo dos indivíduos. Quando tiram os olhos do jornal ou da TV, ou desligam o rádio, as pessoas encontram inúmeros outros pontos de contato com a realidade, ligam-se em incontáveis outras redes de informação que funcionam à margem dos media e, com isso, amadurecem seus critérios de discernimento (SOUSA,1995). O Jornalismo eventualmente pode desinformar as pessoas, mas certamente também lhes ensina muita coisa útil. Sabe-se que uma pessoa com formação superior tira mais proveito das notícias do que uma pessoa privada da escola básica. Mais uma vez, não se pode culpar o Jornalismo por isso.

 

 

Conclusão: a Pertinência do Jornalismo enquanto Conhecimento

 

         Considerados estes prós e contras, pode-se enfim discutir se há alguma pertinência em se considerar o Jornalismo como forma de conhecimento de direito próprio, ao invés de um simples instrumento para transmitir conhecimentos produzidos por outrem e eventualmente, com isso, degradar estes saberes. Com todo o respeito pelas opiniões divergentes, procurei responder a pergunta que me apresentaram de maneira afirmativa, suprimindo o seu ponto de interrogação.

Teoricamente, procurei demonstrar que o que pode sustentar esta pertinência não são os argumentos dos jornalistas, mas sim os desenvolvimentos recentes nas áreas da epistemologia, teoria do discurso, sociologia do conhecimento e psicologia da cognição, disciplinas que possuem um respeitável embasamento científico e filosófico.

Creio que na prática pode-se apontar mais algumas razões para se levar mais a sério esta questão. Ao se deixar de considerar o jornalismo apenas como um meio de comunicação para considerá-lo como um meio de conhecimento, estará se dando um passo no sentido de aumentar a exigência sobre os seus conteúdos. Conhecimento implica em aperfeiçoamento pela crítica e requer rigor.

Considerar o jornalismo como modo de conhecimento implica também em aumentar a exigência sobre a formação profissional dos jornalistas, que deixam de ser meros comunicadores para se transformarem em  produtores e reprodutores de conhecimento.

Por fim, o conhecimento da realidade é uma questão tão vital para os indivíduos e para as sociedades que, se o jornalista não é apenas quem o comunica, mas também quem o produz e o reproduz , deve estar submetido a um controle social e a uma avaliação técnica mais próxima e mais permanente. A questão do conhecimento que o jornalismo produz e reproduz e de seus efeitos pode ser demasiado estratégica para a vida de uma sociedade para ser controlada exclusivamente pelos jornalistas como grupo profissional ou pelas organizações onde trabalham.

 


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