A velocidade como fetiche – o discurso jornalístico na era do "tempo real"

Sylvia Moretzsohn, Universidade Federal Fluminense

(tese de mestrado, 2000)

(Introdução, Capítulo I, Capítulo II, Capítulo III, Conclusão & Bibliografia)

 

Capítulo III

Vivemos num tempo maluco em que a informação
 é tão rápida que exige explicação instantânea
e tão superficial que qualquer explicação serve.

Luiz Fernando Veríssimo

A velocidade como fetiche

O conceito de fetichismo da mercadoria é suficientemente conhecido: Marx o definiu como o processo através do qual os bens produzidos pelo homem, uma vez postos no mercado, parecem existir por si, como se ganhassem vida própria, escondendo a relação social que lhes deu origem [212] . Na base desse processo está a reificação operada pelo capital, e que se condensa na definição do valor de troca da mercadoria, no qual a relação entre o trabalho necessário para a produção de um bem e esse mesmo bem se torna qualidade objetiva do produto. Assim, uma relação social estabelecida entre seres humanos aparece como uma fantasmagórica relação entre coisas. Daí o fetiche, que leva a perceber como naturais, objetificadas, as relações sociais.

Definida como mercadoria, tanto por teóricos como Habermas quanto por grandes empresas jornalísticas como a Folha de S. Paulo, a notícia não fugiria à regra: esconde o processo pelo qual foi produzida e vende mais do que a informação ali apresentada. Vende também, e principalmente, a ideologia da velocidade.

Este capítulo reúne as duas pontas do lema-síntese do jornalismo (“a verdade em primeira mão”), até aqui analisado em cada uma de suas partes. A junção pretende provocar o choque dos dois termos desse postulado e comprovar a hipótese principal deste trabalho - a de que a velocidade é consumida como fetiche, pois “chegar na frente” torna-se mais importante do que “dizer a verdade”: a estrutura industrial da empresa jornalística está montada para atender a essa lógica.

Assim, em primeiro lugar analisaremos o processo de fetichização operado no jornalismo, para demonstrar como esse conceito se aplica ao primado da velocidade no mundo contemporâneo, e como a imprensa é parte integrante e ativa desse processo. A seguir, veremos como o jornalismo em tempo real se justifica a partir das necessidades do capital financeiro mas estende a sua lógica ao trabalho jornalístico em geral, reiterando o fetiche. A análise abrangerá o modelo segundo o qual o público tem agora a possibilidade de montar seu próprio jornal, a partir das informações que ele mesmo seleciona. Vamos contextualizar esse modelo do “tempo real” verificando como ele “vende” a idéia de liberdade de escolha encobrindo a fabricação da opinião a partir da suposta valorização do público como consumidor, a quem o jornal apenas “serve”, excluindo-se aí o papel político do jornalista como mediador, que dá ao público aquilo que ele não sabe que precisa [213] .


Notícia e fetiche

A definição da notícia como mercadoria permite a aplicação do conceito marxista de fetiche em dois sentidos principais. Primeiro, no aspecto mais visível, relacionado à idéia de que “os fatos falam por si”, tais como aparecem no jornal, ocultando o processo de produção de sentido. Depois, na relação que a imprensa estabelece com o público, conferindo à notícia aquilo que Marcondes Filho chamou de “aparência de valor de uso”.

O que caracteriza o jornalismo não é somente vender fatos e acontecimentos (que seriam puramente o valor de uso da informação), mas, ao transformá-los em mercadoria, explorar e vender sua aparência, o seu impacto, o caráter explosivo associado ao fato. Isso constrói a sua “aparência de valor de uso” [214] .

Marcondes Filho parte, assim, dos conceitos de valor de uso e valor de troca, clássicos no marxismo, observando que, com razão, Marx privilegiou em sua teoria o valor de troca, em torno do qual se manifestavam as determinações econômicas fundamentais, representativas do modo de organização da sociedade burguesa. Com isso, porém, foi relegada a segundo plano a análise da importância e do sentido do valor de uso das criações e produções humanas transformadas em mercadoria. Marcondes Filho recorre a um famoso estudo de Baudrillard para mostrar a lacuna que se cria em relação ao conceito de valor de uso, tratado como se a relação entre a necessidade própria do homem e a função própria do objeto fosse concreta, objetiva, natural, o que, afinal, contribuiria para a mitificação em torno do “verdadeiro” valor de uso de um produto [215] . A seguir, argumenta que, “da perspectiva do valor de uso, contudo, existe também toda uma mística na utilização da mercadoria, e é exatamente disso que se aproveita toda a indústria moderna de publicidade”. Pois, como se sabe, jamais se consome o produto apenas, mas todos os valores extras que lhe são atribuídos: status, bom gosto, poder, beleza, juventude, etc. É no mesmo sentido que também se consome o jornal:

A nova apresentação periódica da aparência do valor de uso, a agilidade formal, o colorido, a diversidade (“compaginação moderna”, mais fatos, papel espelhado, novas cores, novos tipos gráficos, suplementos coloridos, “comunicados de todo o mundo” e “informes exclusivos”, mais páginas, “o mais novo”, “o mais sensacional”, etc.) servem somente ao objetivo de realizar o valor de troca em forma de dinheiro sem melhorar o valor de uso para o leitor. [216]

Embora reconheça contradições no processo de produção de notícias - próprias, aliás, do processo de produção de bens simbólicos -, de modo que “o jornal, a revista podem deixar passar os conflitos internos de sua produção” (grifo do autor), Marcondes Filho não parece dar suficiente atenção a esse aspecto. Ao contrário, preocupa-se com o caráter fragmentário e desconexo da apresentação cotidiana de notícias, que teria a função ideológica de domesticar conflitos e alienar consciências, a pretexto de informar. No limite, o valor de uso do jornal, como meio de informação numa perspectiva de transformação social, seria igual a zero.

Certamente a questão não é simples assim: não se trata de opor esclarecimento (informação) a alienação, mesmo porque é impossível desconsiderar o campo de ambiguidades no qual o discurso se realiza. Além do mais, essa análise parte do pressuposto do público como “massa”, manipulada pela indústria cultural, no sentido empregado pela Escola de Frankfurt, e portanto não inclui o público como parte integrante do processo de produção de sentido. Tampouco é de espantar que, ao associar imprensa e capitalismo, Marcondes Filho vincule (e restrinja) a própria prática do jornalismo às rotinas da grande empresa, de modo que o jornalismo não faria sentido numa sociedade não-capitalista.

Adelmo Genro Filho realizou uma boa crítica desses pressupostos recorrendo à perspectiva dialética que está no cerne da teoria crítica marxista, segundo a qual “o velho traz em si o germe do novo” e, portanto, as necessidades criadas pelo sistema capitalista provocam contradições que permitem formular hipóteses de transformação. No caso do jornalismo, Genro Filho aponta o papel da imprensa diária na satisfação de necessidades reais de informação e alerta para o risco (e o mecanicismo) das teorias conspiratórias que em tudo vêem a manipulação ideológica da classe dominante.  

É claro que todas essas reflexões se dão num contexto datado, no qual ainda se vislumbrava, embora a duras penas, a perspectiva da via socialista como superação do capitalismo. A queda do muro de Berlim, o fim da URSS, a guerra nos Bálcãs e tantos outros acontecimentos da virada dos anos 80 para os 90 ajudaram a sedimentar o “pensamento único” neoliberal de tal forma que esse tipo de elaboração teórica parece anacrônico e sem sentido. Certamente não é, porque toca em questões centrais do modo de produção e da fabricação de bens simbólicos postos no mercado, embora deva-se ressalvar que as alternativas propostas precisam ser reconsideradas em função das transformações pelas quais o mundo passou na última década.

É por isso que faz sentido retomar a crítica marxista e, com ela, o conceito de fetiche. No percurso trilhado até aqui, salientamos que os questionamentos ao “beco sem saída” para o qual aponta a análise de Marcondes Filho não devem desmerecer a precisão de seus argumentos sobre o processo de fetichização na informação jornalística.

A propósito, Genro Filho objeta que,

quando se pretende afirmar que o jornalismo, através da “fragmentação noticiosa”, produz necessariamente informações reificadas e que isso corresponde ao fetichismo geral da mercadoria, deve-se antes perguntar se realmente a fragmentação formal corresponde a um conteúdo reificado das notícias [217] .

Pois, diz ele, a idéia de fragmentação e reificação diz respeito ao conteúdo e não apenas à forma. Inexplicavelmente, o autor parece esquecer por um momento a concepção dialética na qual baseia toda a sua formulação teórica, pois forma e conteúdo não existem separadamente. Além disso, parece conferir uma excessiva ênfase nas potencialidades das novas técnicas do jornalismo e na força esclarecedora dos fatos que são dados à luz.

A idéia de fluxo, de um movimento no qual os atores aparecem diretamente em ação, muitas vezes instantaneamente, as infinitas possibilidades de combinação das informações jornalísticas que saturam o meio social, tudo isso oferece enormes possibilidades para a negação da reificação ao invés de reforçá-la inexoravelmente [218] .

Certamente as “infinitas possibilidades de combinação das informações jornalísticas” permitem pensar em igualmente infinitas interpretações dos fatos noticiados, mas valorizar por si a irrupção dos atores sociais na cena jornalística é esquecer todo o processo de construção da notícia; particularmente, valorizar a instantaneidade colabora para reforçar um outro fetiche, exatamente o que criticamos aqui: o fetiche da velocidade.


A velocidade auto-valorizada

Como disse Mattelart, a comunicação serve, antes de mais nada, para fazer a guerra. E é fundamentalmente a guerra o tema de estudo de Paul Virilio: a guerra e sua lógica, suas relações com a política e a velocidade. O tom de seus textos é claramente apocalíptico, o que justifica críticas como a de Antonio Negri, condenando, embora sem citar nomes, o que chama de “concepção terrorista da mídia”:

Nunca, como agora, a relação mídia-espectador foi tão satanizada, e isso só faz piorar. Não só isso, pretendeu-se dar da mensagem da mídia a imagem de uma rajada de metralhadora que se abate sobre o espectador - alvo miserável de um poder onipresente - e o aniquila. Esse moralismo obtuso e deprimente ganhou ares de ritual, mais particularmente para uma esquerda já agora incapaz de análises e propostas e que continua a se refugiar em lamentações inúteis. Mostram-nos uma vida cotidiana dominada pelo monstro da mídia como um cenário povoado de fantasmas, de zumbis prisioneiros de um destino de passividade, frustrações e impotências [219] .

A consequência seria o imobilismo diante de uma situação sem saída, “uma visão reificada e intransitiva da vida política que se traduz por: não se pode fazer nada! Impossível escapar a essa escravidão!”, confirmando-se assim a sacralidade do poder “nessa novíssima modernidade” [220] .

A justeza da crítica não deve, porém, retirar a importância de aspectos essenciais dos estudos em questão, mesmo porque é a partir deles que será possível contrastar o triunfalismo dos postulados do “pensamento único”. Assim, é fundamental ressaltar a abordagem que Virilio faz sobre o tempo real, encarado como um componente essencial do complexo militar-informacional contemporâneo que impõe à sociedade uma noção de informação como algo puramente estatístico. O autor apresenta a questão a partir de considerações sobre o campo da cibernética e o conceito de informação daí decorrente:

Durante a Segunda Guerra Mundial, os engenheiros da Bell Corporation descobrem uma grandeza física observável cuja utilização assegura uma melhor transmissão. Esta é batizada de informação. Logo, Norbert Wiener, o pai da cibernética, a definiu pelo que ela não é: “A informação não é nem a massa, nem a energia, a informação é a informação” [221] .

O problema é a conclusão que Virilio extrai daí: segundo ele, uma vez que o advento limitado da revolução dos transportes dá lugar ao advento generalizado da revolução das transmissões instantâneas, a teoria da informação (a informática) suplantaria a física. Assim,

[a] fusão está feita e a confusão é total. A informação é o único “relevo” da realidade, seu único “volume”. Na era da numerização da imagem e do som, deve-se até mesmo dizer sua “alta definição”. Com a energia em potência e a energia no ato, dispomos agora de uma terceira forma energética: a energia em informação. Em seguida às três fases do deslocamento - a partida, a viagem, a chegada - e depois do declínio da “viagem”, é iminente a perda da “partida”. A partir daí tudo chega sem que seja necessário partir, mas o que “chega” não é mais a etapa ou o objetivo da viagem, é somente informação. (...) O reino da chegada generalizada se confunde então com a generalização da informação em tempo real, tudo se precipita sobre o homem, um homem-alvo atacado de todos os lados e cuja salvação só pode estar na ilusão, a fuga diante das realidades do momento, perda do livre arbítrio cuja ocorrência Pascal evocava quando escreveu: “Nossos sentidos não percebem nada de extremo. Barulho demais nos ensurdece. Luz demais nos ofusca. As quantidades extremas nos são inimigas. Não sentimos mais, sofremos” [222] .

Estaríamos então realmente no beco sem saída a que se referiu Negri. Mas pode-se ver essa abordagem por outro lado e perceber aí a conformação do fetiche, ponto de partida para um questionamento mais profundo do atual estado de coisas: a informação não quer dizer nada, existe por si. Virilio praticamente explicita essa idéia páginas adiante, associando-a exatamente à atividade jornalística:

O ciberespaço, ou, mais exatamente, o “espaço-tempo cibernético”, surgirá dessa constatação, cara aos homens de imprensa: a informação só tem valor pela rapidez de sua difusão, ou melhor, a velocidade é a própria informação! [223]

Não por outro motivo o autor criou o neologismo “dromologia” (variante do grego dromos, relativo à idéia de corrida, curso, marcha) para apontar a lógica das sociedades pós-modernas. Laymert Garcia dos Santos diz que essa lógica “toma como referência absoluta, como equivalente geral, não mais a riqueza, mas a velocidade”, que “vai se afirmando como idéia pura e sem conteúdo, como puro valor, que ameaça ultrapassar até mesmo o valor do capital” [224] . A metáfora permite reafirmar a idéia de fetiche - pois, afinal, esta é a própria lógica do capital nos tempos atuais, embora apareça descolada dele: é através da velocidade que o capital se realiza no “espaço de fluxos” do mercado financeiro global.

Generalizar as observações sobre informação e velocidade para a vida social só é possível num contexto em que se pretende identificar o cérebro humano com os componentes do computador, ou, como diz John von Neumann, “compreender o sistema nervoso do ponto de vista de um matemático”.

Esse ponto de vista privilegia de forma inabitual os aspectos lógico e estatístico que serão destacados ao lado das técnicas matemáticas gerais. Além do mais, a lógica e as estatísticas serão consideradas principalmente (mas não exclusivamente) como instrumentos de base da teoria da informação e o essencial desta teoria será desenvolvido em torno da massa de experiências adquirida na construção, avaliação e codificação de autômatos lógicos e matemáticas complexas [225] .

Nesse contexto, tudo se transforma em informação, inclusive o corpo humano, que passa a ser visto como informação genética. A contrapartida ao acúmulo de próteses e à sedentarização progressiva nas grandes metrópoles é o apelo a uma também progressiva excitação, “não somente através das práticas esportivas abertamente desnaturalizadas, mas também no caso de atividades cotidianas em que a emancipação corporal devida às técnicas de teleação em tempo real liquida as necessidades tanto de vigor físico quanto de esforço muscular” [226] . Lembrando Marinetti e seu projeto futurista que, já na primeira década do século XX, pretendia inaugurar “o reino do homem com as raízes cortadas”, identificado com o motor, e recorrendo a conceitos da biologia segundo os quais “a excitabilidade é a propriedade fundamental dos tecidos vivos”, Virilio faz um paralelo com a vida social e afirma:

Se ser é estar excitado, ser vivo é ser velocidade, uma velocidade metabólica que a tecnologia se dedica a aumentar e aperfeiçoar, como soube fazer para as espécies animais [227] .

Ao tratar da informação jornalística no contexto de aceleração do tempo, Virilio reitera a idéia de fetiche, pois, mais do que a notícia, consome-se velocidade:

A velha fórmula segundo a qual a informação é praticamente a única mercadoria que não vale mais nada ao fim de vinte e quatro horas merece portanto reflexão. No século XIX e no início do XX, em pleno auge da imprensa, trata-se (...) menos de “produzir informação” do que de antecipá-la, de alcançá-la em movimento, para finalmente vendê-la antes que seja literalmente ultrapassada. Os assinantes passam a comprar menos notícias cotidianas do que adquirir instantaneidade, ubiquidade ou, em outras palavras, compram sua participação na contemporaneidade universal, no movimento da futura cidade planetária [228] .

Nesse processo de aceleração, “o imaginário substituía a realidade dos fatos, os jornalistas e publicitários se entregavam ao perigoso jogo dos prognósticos”.

Em 1927, a imprensa francesa apostou desta forma no sucesso da travessia do Atlântico Norte de Leste a Oeste por Nungesser e Coli a bordo do L’Oiseau Blanc. Unânime, ela relatará com riqueza de detalhes a chegada triunfal a Nova Iorque, a alegria dos vencedores e a multidão em delírio, os discursos históricos proferidos na ocasião... No exato momento em que o anúncio da expedição fazia subir a venda dos jornais, os heróis do dia já haviam desaparecido de corpo e alma ao largo da costa americana à qual eles jamais chegaram. Entretanto, os redatores e jornalistas souberam se livrar desse equívoco acusando o governo e os ministérios envolvidos no caso de lhes terem induzido a erro ao divulgar informações falsas. O notável é que o público questionou os ministros da República, mas não usou do mesmo rigor com a imprensa [229] .

Precipitações como essa são ainda mais antigas, e algumas delas entraram para o anedotário do jornalismo: a reação de Mark Twain ao ler seu próprio obituário no jornal, em 2 de junho de 1897. Com a ironia que o caracterizava, ele reclamou à Associated Press: “A notícia sobre a minha morte foi muito exagerada”.

Mas o “perigoso jogo dos prognósticos” a que se refere Virilio tem alcance mais amplo:

Há muito tempo os assinantes efetivamente fizeram o amálgama entre a ilusão da informação à distância, a virtualidade do romance-folhetim e a excitação dos jogos de azar organizados pelos grandes jornais, rifas, loterias, concursos... sem contar com os índices da bolsa e os grandes acontecimentos dromológicos, ralis, corridas e recordes equestres, pedestres, automobilísticos, aéreos, marítimos, ciclistas” [230] .


A imposição do “tempo real”

Essas considerações indicam que as contradições entre, de um lado, uma estrutura que favorece a precipitação e a aposta em “prognósticos” como valor de atualidade e, de outro, o respeito a regras que exigem um distanciamento (e, portanto, alguma desaceleração) para a apuração rigorosa da notícia, é tão antiga quanto a própria constituição da imprensa como atividade industrial. Agora, na era do “tempo real”, essas contradições tendem a se agravar, e a se “resolver” pela eliminação de um dos termos do problema - a necessidade de veicular informações corretas e contextualizadas -, pois “qualquer explicação serve” para sustentar a notícia transmitida instantaneamente.

O tempo do mercado financeiro dita a regra que pode ser sintetizada na expressão rush or perish - a rapidez é a condição da sobrevivência, sem que, entretanto, se saiba em que sentido é preciso ser rápido. O abalo provocado pelo jogo especulativo de um operador do banco Barings, em 95, e a chamada “crise asiática” de 97, são dois exemplos recentes das consequências a que pode chegar um sistema em que num segundo fortunas são feitas ou perdidas.

A “nova utopia tecnológica”, no dizer de Ignacio Ramonet, é a internet e sua possibilidade de interligar o mundo com informações em tempo real e fluxo contínuo, exatamente como opera o mercado financeiro. Como a maioria dos grandes jornais, no mundo todo, já pertence a megagrupos de comunicação, não há como analisar a prática do jornalismo fora desse contexto [231] .

No tempo do jornalismo on line, o ritmo de trabalho se acelera.

Rio de Janeiro, inverno de 1997.
Os nove metros quadrados da saleta do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) eram suficientes para abrigar uma mesa retangular e oito cadeiras de madeira compensada - mobiliário espartano, mais corretamente classificado como ‘velho’ do que ‘antigo’. Nas paredes brancas, nenhum quadro ou prateleira, apenas trilhas de tinta descascada, que convergiam para uma esquadria de alumínio, por onde uma réstia de luz atenuava a sóbria padronização do ambiente, comum a boa parcela das repartições públicas.
Foi neste cenário pouco atraente que presenciei pela primeira vez o espetáculo do tempo real. Em volta da mesa, meia dúzia de jornalistas acompanhava, atentamente, o que um técnico já experiente em conceder entrevistas coletivas dizia a respeito da última safra agrícola e do indicador mais recente, também saído do forno, elaborado pelo IBGE sobre o desempenho da indústria e do comércio. Sem demorar-se, revelou logo aquilo que sabia aguardado sedentamente pelos repórteres de economia que o ouviam, caneta e bloco em posição de largada: os números.
Informados os devidos percentuais e feitas as primeiras análises e projeções (o que levou não mais do que dez minutos), repentinamente, metade dos jornalistas presentes se levantou. Num maneio ligeiro e sincronizado, cada repórter sacou seu telefone celular e começou a dedilhar freneticamente as teclas do aparelhinho, nunca tão indispensável quanto naquele momento.
A repórter da Agência Globo foi a primeira a conseguir falar com a redação, para desespero dos jornalistas de outras agências de notícias em tempo real, que, naquele momento decisivo da disputa pelo troféu da agilidade, deparavam-se com problemas aparentemente banais. Ali, ganhavam proporções gigantescas um telefone ocupado e uma bateria fraca - detalhes que poderiam fazer deles perdedores, profissionais fracassados em sua missão de levar para o assinante dos respectivos serviços eletrônicos a informação ‘em primeira mão’, mesmo que por uma diferença de segundos sobre a agência concorrente. No auge do desespero, buscavam alguma alternativa, como pedir ‘socorro’ a uma calma e serena assessora de imprensa que, alheia às angústias gerais, acompanhava-os lentamente ao telefone fixo mais próximo. E, com sorte, o aparelho não estaria sendo usado pela secretária, ocupada pela tarefa não menos inglória de, mesmo à distância, arbitrar a disputa dos filhos pelo controle-remoto da TV de casa. Vencida esta etapa, cumpria-se a missão dos repórteres, que poderiam então se deslocar para uma nova entrevista coletiva e, no caminho, passar do carro mais um flash com informações remanescentes. Para mim, àquela altura, começava a ficar claro que a produção de um repórter de agência é avaliada conforme o número de flashes ou ‘notas’ que ele é capaz de passar para a redação, o que se usa chamar, no jargão do meio eletrônico, de capacidade de ‘alimentar o sistema’ [232] .

O depoimento não considera que, de alguma forma, os jornalistas da “era industrial” sempre trabalharam assim: perdem-se a conta das cenas em que o cinema reproduziu o ambiente clássico das salas de imprensa dos anos 20 e 30, os repórteres reunidos jogando cartas e fumando displicentemente até que uma informação nova os sacudia e todos corriam aos telefones para passá-la aos jornais, cada qual com uma versão mais sensacional que o concorrente. A informação não chegava “em tempo real” para o leitor, mas garantia as edições extras da época.

Evidentemente, há diferenças de ritmo, conforme o tipo de veículo para o qual se trabalha. Mas o importante será perceber como a lógica do “tempo real” afeta a prática do jornalismo como um todo, radicalizando a “corrida contra o tempo” que sempre marcou a profissão. Mais ainda: que as exigências do mercado financeiro, e de quem nele atua, passam a ser o relógio do noticiário em geral. A chave para a defesa de nossa hipótese principal - a velocidade como fetiche - encontra-se nas palavras finais do trecho reproduzido acima: trabalhar cada vez mais rápido para “alimentar o sistema”. Pois, bem antes do início da era do “tempo real”, um experiente editor carioca definia cinicamente: “jornalismo é pintar de preto papel branco”. O que é mais ou menos a mesma coisa que reiterar uma das máximas incluídas no folclore da profissão: notícia é o que se publica entre anúncios.


A informação instantânea

Comecemos pelo fim: a “engrenagem do tempo real” segundo a qual funcionam os serviços noticiosos on line, vista por Mariana Mainenti Gomes, então estagiando como repórter do Investnews, da Gazeta Mercantil. A descrição do ambiente de trabalho dá a base sobre a qual se desenvolvem as rotinas de produção:

Quem conhece uma redação de jornal, revista ou TV e passa por uma agência de notícias nos horários de maior movimento - entre dez da manhã e cinco da tarde - é capaz de apostar que ali não se encontram jornalistas mas, sim, operadores de telemarketing ou de algum moderno call center (unidade telefônica de atendimento aos clientes de determinada empresa). Com fones no ouvido - utilizados para receber as notas passadas pelos colegas que estão em coletivas na rua - e com aparatos de proteção nas mãos, para proteger-se da tendinite (inflamação dos tendões muito comum àqueles que fazem esforço repetitivo, como o uso intensivo do mouse), esses jornalistas encarnam o estereótipo do operário-padrão da era pós-industrial. O clima geral é de extrema concentração. São raras as conversas “paralelas”, mesmo envolvendo discussões a respeito de matérias. As reuniões de pauta, quase inexistentes. Para todos que ali estão, qualquer uma dessas práticas pode levá-los a adiar um ponto final na notícia, o que não combina com a essência atribuída ao veículo: a rapidez. (...) [E]sses jornalistas têm de estar empenhados em tornar 100% de seu expediente na agência produtivos, pois sobre eles recai de modo subliminar mas recorrente uma espécie de índice de produtividade. Do mesmo modo que um operador de telemarketing é avaliado pelo número de vendas realizadas e o atendente de call center pelo de atendimentos, a produção de um jornalista on line é medida pelo número de notas que ele é capaz de lançar no sistema - algo fácil de ser checado pelos chefes ou dirigentes da empresa: basta digitar o nome do avaliado no espaço reservado para pesquisa de texto por palavra-chave e, em seguida, lá estarão listadas todas as notícias produzidas por ele.

De tais rotinas resulta um material noticioso bem específico: para cumprir a meta de cinco notas por saída - e assim compensar com volume de notícias a perda de tempo no trânsito - o repórter on line aprende a desmembrar uma mesma informação. Isso

torna mais ágil também todo o processo de produção da agência, pela filosofia da divisão do trabalho: o repórter envia a primeira nota por celular e algum outro repórter que está na redação, simultaneamente, a digita na tela ‘interna’. Enquanto o repórter está passando a segunda nota, a primeira já está sendo lida e liberada pelo editor para a tela do usuário do serviço. Quando o editor terminar de ler a primeira nota, provavelmente, a segunda já terá sido passada pelo repórter, estando pendente no sistema para a sua liberação. E assim sucessivamente.

É um ritmo comparável ao das antigas agências que, pelo telex, enviavam notas “do mundo todo” aos jornais, com a considerável diferença de que, então, o jornal reuniria aquele material para depois processar a informação, e agora a relação é diretamente com o público.

Esse automatismo traz consequências importantes para a qualidade da informação veiculada:

A orientação para o repórter é nunca ficar com informação ‘parada’: ao receber uma notícia, deve automaticamente repassá-la. O repórter pode ir atrás dos detalhes depois mas, antes, deve divulgar o material que acabou de receber. É muito frequente, no entanto, que isto [a busca de detalhes, e mesmo a checagem] não aconteça. Para se apurar uma notícia é preciso um mínimo de tempo - e muitas vezes o volume de releases, balanços de empresas e documentos que chegam à mesa do repórter, e cuja divulgação tem de ser feita o mais rapidamente possível, não permite a apuração de mais detalhes sobre a notícia divulgada inicialmente.

Não é preciso dizer que esse processo facilita o controle das fontes sobre o noticiário e as possibilidades de utilizá-lo para lançar, com mais frequência e eficácia do que já ocorre nos veículos impressos, os chamados “balões de ensaio” - informações fabricadas especialmente para testar a reação do público diante da hipótese de ocorrência daquele fato, apresentado, entretanto, como verdadeiro ou já consumado.

Especialmente quando se considera o despreparo dos repórteres para uma tarefa que, pelo menos declaradamente, destina-se a atender a empresários atarefados, que precisam tomar rapidamente decisões importantes para seus negócios, e portanto requer uma especialização difícil de encontrar entre jovens recém-saídos da universidade, ou mesmo ainda estudantes - mão-de-obra preferida por essas empresas de internet, pois supostamente não apresenta os “vícios” de “escrever muito” e “querer contextualizar a matéria” que caracterizariam os jornalistas de veículos impressos. A própria repórter revela seu espanto ao estrear no serviço on line:

Lembro-me do meu primeiro dia de trabalho, quando a editora me deu o telefone de um executivo de seguradora, que acabou se tornando minha primeira fonte na área econômica. Olhei para ela e questionei: “mas o que eu pergunto para ele”? Imagine-se a reação dessa então foca recém-saída da incubadora ao obter como resposta: “Pergunte qual o grau de sinistralidade da carteira de ramos elementares dele”. 

Não é difícil perceber que, num caso desses, não há a menor possibilidade de questionamento: o que a fonte disser será publicado.

Outro aspecto fundamental da veiculação instantânea de notícias são os riscos crescentes de imprecisão ou falsidade:

Erros (...) são mais passíveis de acontecer no veículo on line porque a pressão imediata sobre o repórter é maior do que no impresso: pensa-se duas vezes antes de dar um telefonema para checar uma informação (...) porque sabe-se que a consequência desse cuidado será instantaneamente refletida na tela do assinante, em forma de um “vazio” de notícias.

Isso gera uma situação curiosa, considerando-se o “controle de qualidade” estabelecido pela quantidade de inserções no sistema, pois desmentidos e retificações representam um volume de novas notas. Estas, porém, obviamente não podem ser tomadas como “produtivas”, pois são a evidência de um erro. Sem falar em outro tipo de transtorno, como o que ocorreu no Investnews com a veiculação indevida de informação sobre a morte do ex-presidente Figueiredo. Mariana conta que a nota havia sido redigida com antecedência, como costuma ocorrer em qualquer veículo jornalístico quando uma personalidade está com a saúde muito abalada, e, no caso, por descuido, a matéria “ficou cerca de uma hora no sistema, até que alguém se desse conta de que ela fora liberada para a tela do usuário”.

Em jornal impresso esses descuidos também acontecem, e representam, para o leitor, uma rara oportunidade de saber algo sobre o processo de produção da notícia. No dia 2 de julho de 2000, um domingo, o Informe JB abria com uma nota “velha” sobre a possível soltura do ex-senador Luiz Estevão, que já havia obtido habeas corpus na véspera. No dia seguinte, o jornal se desculpou, publicando um esclarecimento que levou o título de “lapso”:

A nota ‘uma violência’, publicada ontem na coluna a propósito da prisão do ex-senador Luiz Estevão, e prevendo que ele obteria habeas corpus, deveria ter saído na edição de sábado. Por um lapso, a de domingo foi publicada no sábado, e vice-versa.

  

“Tudo igual ponto com”

A imagem de velocidade que o jornalismo on line carrega consigo sugere a possibilidade de oferta de informações novas a cada instante. A ilusão dessa promessa foi comprovada pela atual ombudsman da Folha de S. Paulo, Renata lo Prete, ao comentar o noticiário sobre a contusão do jogador Ronaldinho em seu retorno ao futebol, em Roma.

No artigo, que recebeu o título “Tudo igual ponto com” e saiu no dia 16 de abril de 2000, Renata diz que quem procurou novidades sobre o caso na internet “encontrou menos conteúdo do que a propaganda do novo meio permitia esperar”:

A cena dramática no estádio em Roma, características e possíveis consequências da contusão, retrospectiva da carreira: em qualquer um desses aspectos, a cobertura online pouco acrescentou ao que se viu na TV e, na manhã seguinte, nos jornais.

Pelo contrário. No saldo, ficou aquém. Também não antecipou desdobramento relevante, qualidade presumida do tempo real. Houve as enquetes de sempre, mas estas costumam servir mais para entreter do que para informar.

Renata afirma que os sites veiculavam textos praticamente idênticos, oriundos de basicamente dois tipos de fontes: “as agências internacionais de notícias, ao lado da única do país especializada em esporte, e a rapinagem pura e simples entre sites e das reportagens de rádio e TV”. A crítica, esclarece a articulista, não pretendia desmerecer a internet em benefício da chamada mídia tradicional, mas apontar a má qualidade do serviço oferecido, em comparação com as propostas e possibilidades do novo meio.

No mesmo artigo, Renata apresenta os resultados de pesquisa sobre a cobertura on line da eleição presidencial americana de 2000, feita pelo Committee of Concerned Journalists, organização que tem por objetivo discutir a qualidade da imprensa nos EUA. A ombudsman não diz o que a entidade entende por qualidade, mas esta informação não é relevante para o que nos importa aqui: as fontes utilizadas pelos serviços on line. Foram examinados 12 dos sites mais populares do país (portais como AOL, Microsoft e Yahoo!, veículos originalmente eletrônicos como a revista Salon e versões on line de jornais como The New York Times e The Washington Post), num total de 72 páginas e 286 reportagens.

Entre outras coisas, a pesquisa constatou que 25% das páginas analisadas não traziam material próprio, limitando-se a reproduzir despachos de agências e conteúdo de outros meios, e também 25% não ofereciam nenhum elemento interativo - resultado mais supreendente ainda porque a totalidade desse percentual era de sites exclusivos do novo meio, e não de serviços vinculados a jornais impressos.

A pesquisa não confirmou a idéia, bastante disseminada, de que a internet seria um instrumento propício à divulgação de boatos e informações pouco fundamentadas. Mas o mais interessante é a conclusão do relatório, que indica a ironia da promessa de “informação instantânea”: “Um exame atento revela o segredo de boa parte da Internet: despachos da Reuters, um serviço noticioso de 149 anos de idade”, o que, segundo Renata, “mostra a distância entre o prometido oceano de diversidade informativa e o atual estágio do jornalismo pontocom”.

A propósito, justamente o objeto de análise da pesquisa do Comitee of Concerned Journalists daria a evidência mais flagrante dessa ironia. Como se sabe, o noticiário sobre o resultado das eleições presidenciais dos Estados Unidos em 2000 se transformou numa comédia de erros: as principais redes americanas de TV anunciaram apressadamente a vitória de George Bush, no que foram acompanhadas por boa parte dos jornais impressos, que, em sucessivas edições extras, ora afirmavam o nome do vencedor, ora duvidavam da informação. Na origem de tantos equívocos estava o recurso a uma única fonte, a Voter News Service, à qual se conferia credibilidade automática. Assim, é falso o título do Jornal do Brasil que, em 9 de novembro, afirmava: “Corrida pela notícia gera confusão nos EUA”. Pois, se a fonte era a mesma para todas as redes, não se tratava de uma corrida pela notícia, mas de uma corrida pela corrida, uma corrida pela velocidade.

O episódio também revelou o conflito entre a luta pelo respeito ao conceito clássico de cidadania e o caráter lúdico que a política assume na sociedade do espetáculo - e que o “tempo real” ajuda a exacerbar. Uma foto da Reuters publicada em 10 de novembro é exemplar: em manifestação a favor da recontagem dos votos, uma mulher exibe cartaz em que se lê: “This is not a game! This is our nation’s future! Let us be responsible!”. De fato, uma decisão tão importante não deveria ser um jogo. No entanto, para a mídia, não era outra coisa: a enxurrada de matérias só via vantagens na informação instantânea, vibrando com o recorde de público acompanhando o resultado pela internet (por exemplo, a cnn.com, que tem em média 30 milhões de visitas por dia, registrou 10 milhões de acessos por hora) e louvando a agilidade dos meios. Em 8 de novembro, o Los Angeles Times anunciava: “Eleitores americanos terão todas as notícias todo o tempo”. O texto terminava assim:

Para os que encaram a eleição como uma contenda, a ABC News está oferecendo em seu site [abcnews.com] o “desafio da eleição americana”, incorporando um de seus mais populares programas de esporte online. O ‘acerte o jogo do analista’ permite aos espectadores fazer suas próprias previsões. Os integrantes da família e amigos por todo o país podem acessar o jogo para testar seu conhecimento político.


A rotina da velocidade

A disparidade entre o que se promete e o que se cumpre também frustra quem trabalha na área. Mariana Mainenti diz que, depois de um estafante dia de trabalho, costumava reler o que havia sido produzido por ela e pelos colegas do Investnews e ficava sistematicamente frustrada com o resultado, pensando no que julgava ser uma vantagem do jornalismo impresso:

Não raro o resultado era um material incompleto, fragmentado, baseado em um jornalismo declaratório e oficialesco, pela falta de tempo para se checar e aprofundar informações. Parecia-me, então, um tanto histérica e desprovida de sentido a correria das horas anteriores.

A “correria” é certamente maior no jornalismo on line, como sempre foi intensa no rádio e na televisão. Os slogans, aliás, são significativos: a respeitada Rádio JB prometia “o fato no ato”; a pequena Bandeirantes extrapolava, dizendo-se “a rádio que antecipa o fato”. Mas a imagem do jornal impresso como o lugar da informação segura, confiável porque checada, contextualizada e resultante da reflexão de repórteres e editores, é no entanto um mito - coerente, porém, com a imagem do jornalista como um militante incansável a serviço da informação (da verdade), capaz de, a qualquer momento, chegar à redação aos brados de “parem as máquinas!”, grito-síntese da idéia de subordinação da rotina industrial à força da notícia, tomada como valor supremo e única justificativa para a existência da imprensa. 

O mito não surgiu à toa.

Era a terceira noite de Caco Barcellos no Jornal da Tarde como redator. No intervalo, ele saiu para tomar um café quando viu uma multidão aglomerada na frente de um hotel. Não resistiu e foi ver o que era. Um homicídio tinha acabado de acontecer. De frente para a notícia, Barcellos se esqueceu da redação, para onde voltou à 1h30, e ouviu a reclamação de todos: ‘você está louco, seu irresponsável’!  A edição do jornal estava quase fechada. Imediatamente, Barcellos sentou-se em frente à máquina e bateu uma matéria de página inteira sobre o homicídio. Daquele dia em diante, ele ficou um mês no JT atrás de notícias [233] .

Relatos emocionados de outros grandes repórteres, como Ricardo Kotscho e Clóvis Rossi [234] , também valorizam a insubordinação do jornalista - e do jornalismo - a rotinas industriais, num tempo em que os colegas gostavam de debochar uns dos outros chamando-se mutuamente de “velho atrasador de jornal”. Ainda no início dos anos 80, não era raro assistir a cenas como as que frequentemente ocorriam na sucursal Rio do Estadão, num velho prédio da rua da Quitanda: tarde da noite, o repórter Domingos Meirelles, um dos perfeccionistas do texto, ainda retocando detalhes em sua reportagem, para desespero das duas últimas pessoas ali: o chefe da sucursal e o operador de telex, que no andar de cima aguardava o texto para enviá-lo a São Paulo.  

As novas tecnologias alteraram as rotinas de trabalho na redação. A reação negativa era previsível e compreensível: à parte as resistências de profissionais mais antigos ao computador, logo simplificadas pela associação a uma postura retrógrada de “rejeição ao novo”, os jornalistas temiam pelo seu emprego. Com razão: a máquina permitiria o progressivo “enxugamento” do quadro de pessoal, a começar pelo setor de revisão, e quem ficou não teve a correspondente compensação salarial pelo acúmulo de tarefas [235] . O então subeditor de arte do Jornal do Brasil, Luis Carlos Moreira da Rocha, definiu com ironia o que chamou de “terceirização”: “aqui o significado é outro: um trabalha por três”.

Com a incorporação dos serviços on line pelos grandes jornais, a sobrecarga é ainda maior. Assim, a vantagem que o repórter de jornal impresso poderia ter em relação ao que trabalha em meios eletrônicos desaparece: se antes havia condições de retornar à redação para redigir a matéria até o horário de fechamento, hoje é preciso fornecer flashes para o serviço “em tempo real” do jornal e, quando for o caso, também para boletins radiofônicos, como ocorre no jornal carioca O Globo.

Eric Klinenberg deu conta do alcance desse processo ao estudar a Tribune Company, conglomerado midiático de ponta que opera com as tecnologias de informação mais avançadas e que, além do Chicago Tribune, publica três jornais regionais, possui uma rede de televisão, quatro estações de rádio, uma editora, investe em jornais on line, guias, patrocínio de eventos esportivos, etc [236] . Segundo o pesquisador, na sede da Tribune “a equipe local produz oito versões e três edições do jornal, sete telejornais e um número incalculável de produtos diversos para a internet”. Assim, “a polivalência midiática autoriza um modo de produção no qual cada mídia procura utilizar os produtos das outras para melhorar sua oferta”, e melhorar também a produtividade: com a contração do mercado de jornais e a intensificação da concorrência na televisão e na internet, a Tribune redefiniu o papel dos repórteres a fim de que eles pudessem trabalhar em várias mídias ao mesmo tempo.

Opera-se aí uma alteração significativa: “jornalismo” passa a se chamar “conteúdo”, palavra que define agora o que os repórteres devem produzir para se adaptar a todos os veículos da empresa. Klinenberg anota a influência dessa mudança para os rumos da atividade jornalística:

O antigo diretor de redação do Chicago Tribune lamentou recentemente: “o jornalismo sempre teve por função educar as pessoas. Hoje, os donos de jornal consideram, ao contrário, que esta é uma empresa como qualquer outra, deve antes de mais nada gerar lucro”. O atual responsável pela direção do jornal não diz outra coisa: “Eu não sou o redator-chefe de um jornal; sou o gerente de uma empresa de conteúdo” [237] .

Outras mudanças dizem respeito à qualidade do material produzido:

os jornalistas trabalham mais; dispõem de menos tempo para realizar suas entrevistas e para escrever; produzem informações mais superficiais. Quando, nos anos 70 e 80, sociólogos americanos estudaram as condições de trabalho dos jornalistas, mostraram que a pressão do tempo pesava sobre a produção da informação e, consequentemente, diminuíam a qualidade, particularmente na televisão. Essas observações datam de uma época em que os jornalistas trabalhavam com um objeto determinado e para uma única mídia [238] .

Altera-se, assim, o próprio sentido de qualidade no jornalismo. Bem antes dessa interação multimídia, ainda quando as novas tecnologias estavam sendo consolidadas na imprensa brasileira, Sérgio Augusto apontou a irracionalidade desse processo em relação ao que seriam os objetivos clássicos do jornalismo.

Ao saber que a Folha havia comprado novos equipamentos que aumentariam a capacidade e a velocidade de impressão do jornal, um repórter perguntou se a redação ganharia mais tempo para fechar a edição. A resposta foi não. Moral da história: o último benefício que a moderna tecnologia trouxe à redação foi o computador. Cada vez mais o jornal é um produto que, antes de ser bom, precisa ser rápido para chegar mais cedo que os concorrentes às mãos do leitor [239] .

Portanto, importa sobretudo cumprir prazos. Uma consulta ao manual Folha é esclarecedora a esse respeito. O verbete rapidez comprova:

é essencial combinar qualidade com rapidez. O jornal deve parte de sua grande circulação a uma política agressiva de distribuição, que tem no horário antecipado de chegada às bancas um de seus princípios básicos. Assim, o jornal deve fechar mais cedo que os concorrentes, sem perder em quantidade ou qualidade das informações [240] .

Adiante, em fechamento, repete-se a preocupação em combinar qualidade com cumprimento de prazos: “De nada adianta uma excelente edição se poucas pessoas a lêem” [241] . É interessante notar que não há ressalva em sentido oposto (algo como “de nada adianta chegar na frente com informações imprecisas, incompletas, incorretas, etc., etc.”).

Tem-se aí, portanto, a consumação do fetiche, que, no caso do jornal impresso, se revela com mais clareza: também ele está submetido à “lógica da velocidade”, mas é obviamente incapaz de segui-la, uma vez que o “tempo real” será inevitavelmente o tempo de ontem. O que não deixa de ser curioso, pois o jornalismo impresso seria, por definição, mais reflexivo, até para se distinguir dos outros meios. No entanto, como precisam afirmar a imagem de agilidade, as grandes empresas reforçam o fetiche ao distribuírem o “jornal de domingo” às duas da tarde de sábado; outras, como a que edita o Povo do Rio, chegam a anunciar o jornal de todo dia às sete da noite da véspera... Reconhecer que esta pode ser uma retomada da experiência dos velhos vespertinos soaria insuportavelmente anacrônico. Assim, muda-se a data no cabeçalho e, magicamente, o presente passa a ser também o futuro. Hoje já é amanhã.

O relato do jornalista Robert Fisk, famoso correspondente internacional do britânico The Independent, expõe com clareza o despropósito dessa competição entre meios diferentes:

Por volta das 3h30 do dia 17 de janeiro de 1991, fui acordado por telefone, no hotel em que estava hospedado em Dahran, aquela monótona e moderna cidade saudita que continha a maior base aérea norte-americana no golfo pérsico. Era o The Independent, ligando de Londres para me informar que a CNN acabava de informar de Bagdá que bombas estavam caindo sobre a cidade e que a guerra do Golfo havia começado.
Eu me vi confrontado com um vácuo. O que eu poderia informar da Arábia Saudita, nos primeiros minutos da guerra, quando o irromper das hostilidades já estava sendo transmitido ao vivo de Bagdá pela CNN? Eu me recordo que naqueles instantes sofri uma sensação quase física de choque, quando compreendi que os velhos dias do jornalismo impresso haviam desaparecido para sempre.
Quanto tempo eu passei durante a década e meia anterior no Oriente Médio, perpetuando a escola de jornalismo tipo “segura a primeira página que tá chegando coisa nova”? Em Beirute e Cabul, nas frentes de batalha entre Irã e Iraque, no Egito e na Síria, eu consertei telefones, persuadindo telefonistas e, algumas vezes, devo confessar, até mesmo perpetrando ataques físicos contra aparelhos de telex, para me ligar com Londres, para derramar de um bloco de anotações, à luz de lâmpadas movidas a geradores, minha prosa dramática sobre revoltas ou invasões. Eu estava reportando notícias.
Tudo isso ficou no passado. Aquele telefonema simbolizou para mim o que os jornalistas da imprensa escrita já compreenderam há muito tempo, mas em muitos casos se recusam a aceitar: a necessidade urgente, imperativa, de redefinir nosso papel, de nos libertarmos da tarefa quase exclusiva de registrar acontecimentos, herdada dos jornais das décadas de 20 e 30, e embarcarmos numa nova tradição de jornalismo. Pois a cobertura televisiva ao vivo não apenas suplantou nossa antiga tarefa: ela tornou a reportagem de notícias ainda mais suscetível à manipulação. Os governos podem controlar as câmeras e equipes de TV mais facilmente do que podem controlar repórteres de jornais. Assim, eles conseguem “controlar” os acontecimentos que viram notícia, da mesma forma que quase conseguiram “controlar” a guerra do Golfo [242] .

A tradição de que fala o jornalista não é propriamente nova (aliás, da forma pela qual é mencionada, nem poderia ser: tratar-se-ia de algo a ser inaugurado, o que, por definição, invalidaria a possibilidade de já ser “tradição”). Na verdade, Fisk se refere a uma velha tradição de jornalismo analítico, que, segundo ele, deveria tornar-se a razão de ser do jornalismo impresso, dada a existência dos outros meios mais habilitados a divulgar a informação urgente.

É uma posição semelhante à manifestada pelo diretor-presidente da Folha da Manhã (que edita a Folha de S. Paulo), Luís Frias, na abertura do I Forum Folha de Jornalismo, que discutiu a polêmica então na ordem do dia: o futuro do jornalismo impresso diante da internet:

É verdade que a velocidade na distribuição da notícia na forma eletrônica é imbatível. Foi graças a essa velocidade que o mercado de informações financeiras em tempo real se estabeleceu nos últimos anos em praticamente todo o globo e mudou o perfil empresarial de grandes empresas como a Dow Jones. No caso dessa empresa, a participação das receitas de mídia impressa - apesar de editar o maior jornal em circulação paga dos EUA [The Wall Street Journal] - declinou durante toda a década de 80, cedendo espaço para a ascensão das receitas de serviços eletrônicos em tempo real.
Mas será que esse desejo de velocidade corresponde necessariamente àquele que o consumidor espera hoje, não do seu jornal econômico, mas de seu jornal de informação geral? Não terá o jornal aprendido a conviver com a velocidade de difusão da informação em tempo real durante os mais de 40 anos de coexistência com as redes nacionais de TV? (...)
O jornal descobriu com a TV, muito antes do aparecimento do jornal eletrônico, que deveria destacar e priorizar sua vocação política, analítica e investigativa. Percebeu que nesse terreno as vantagens tecnológicas da velocidade na difusão da informação eletrônica perdem importância ou até atrapalham. (...)
Vale ressaltar também o caráter de entretenimento da mídia eletrônica, no qual a velocidade e a pirotecnia predominam. O ambiente do intelecto humano, lugar onde o jornal parece ter sido forçado a procurar abrigo, será sempre menos vulnerável aos apelos dessas novas possibilidades tecnológicas [243] .

O problema é a insinuação, presente tanto nos argumentos de Fisk como nos de Frias, de que o único jornalismo digno desse nome seria o impresso, ficando os demais - e especialmente o telejornalismo, dada a possibilidade de controle acusada pelo correspondente inglês - desqualificados de saída, subordinados ao imediatismo que conduz ao erro ou à mistificação.


A corrida contra o tempo

Rádio e TV sempre trabalharam orientados pela busca da instantaneidade, ditada pela competição entre os veículos. A propósito, o jornalista Edwin Neuman fornece exemplos baseados na própria experiência como correspondente da rede NBC. Um deles, a cobertura da escolha do novo papa, em 1958:

...estávamos nas colunatas da Praça São Pedro, no Vaticano, esperando pela fumaça branca que anunciaria a escolha de um papa. Ela apareceu, e o correspondente da NBC com quem eu estava trabalhando divulgou que era branca. Todo mundo fez isso, menos uma pessoa, o repórter Winston Burdett, da CBS. Para Winston, com grande experiência em Roma, a fumaça pareceu cinzenta. Ele estava certo. Meu colega e eu estávamos nos alternando, e coube a mim dizer que o papa não tinha sido eleito. Lembro-me das palavras que usei: “Não há papa. Não há papa”. Não estou criticando o meu colega. No seu lugar, eu teria feito a mesma coisa. Nós tínhamos um sacerdote trabalhando conosco. Para ele a fumaça também pareceu branca.

Essas coisas acontecem. Você tem pressa. Você tem que competir. E às vezes você simplesmente comete um erro [244] .

Mais importante que perceber como o erro pode ser facilitado pela competição é ver como essa disputa favorece o alarme em vez do esclarecimento, como no exemplo a seguir: 

Ela [a competição] às vezes nos obriga a divulgar as coisas apressadamente, obrigando-nos a desmenti-las posteriormente. Ela pode encorajar o erro em um lead, não justificado pelo resto da matéria, resultando em puro sensacionalismo. Lembro-me das manchetes que ocuparam toda a primeira página do New York Post durante o alarme nuclear de Three Mile Island em 1979. A primeira dizia: “Nuvem nuclear se espalha”. A segunda, no dia seguinte, era: “Vazamento escapa ao controle”. No terceiro dia, a manchete foi: “Corrida contra o desastre nuclear”. E no quarto: “Situação melhora” [245] .

Neuman, porém, não enxerga aí uma consequência lógica da rotina de competição: considera o caso um desvio, um “abuso”, um exemplo flagrante “de jornalismo barato, que explora o medo” - afinal, tratava-se de um jornal sensacionalista. O próprio Neuman, no mesmo caso, comportou-se de modo diverso:

Durante o episódio de Three Mile Island veio um boletim da UPI citando um porta-voz da Nuclear Regulatory Agency que teria dito: “existe o risco final de um derretimento”. Eu deveria ir ao ar, interrompendo a programação normal - fazendo o que se chama de interrupção da cadeia - e dar a notícia. Eu olhei para o boletim, decidi que não sabia qual era o seu significado e sugeri ao diretor de jornalismo da NBC que esperássemos. Ele concordou. (...) Depois de muitas dificuldades, conseguimos algumas informações sobre o significado de um risco final de derretimento. Significava muito menos do que se poderia ter pensado. Quando fui ao ar, estávamos em condições de dar a notícia em perspectiva. Era muito menos atemorizadora do que parecera a princípio. Mas, naturalmente, fomos a terceira emissora a divulgá-la [246] .

A prudência talvez tenha sido resultado da fonte originária da informação imprecisa e alarmista: um boletim da UPI, embora citando fonte oficial. Quando o contato com esse mesmo tipo de fonte é direto, a história muda:

Nós fomos criticados pela cobertura que fizemos do atentado contra Reagan porque divulgamos alguns dados incorretos e porque continuamos a transmitir apesar das informações serem relativamente escassas.

Dois pontos: nós tínhamos que continuar transmitindo. Alguém havia atirado no presidente. Algumas das pessoas que o cercavam tinham sido atingidas. Em tais circunstâncias, não se pode deixar de transmitir.

Mas então nós dissemos que o presidente não havia sido ferido. Isto provou-se ser um erro. O que fazer? A resposta é que esta informação veio da Casa Branca. Nós não a inventamos. Depois veio o anúncio de que James Brady, o secretário de imprensa da Casa Branca, havia morrido. Novamente, a primeira notícia veio de alguém da Casa Branca. Nós não tínhamos outra escolha a não ser divulgá-la [247] .

Vários estudos já demonstraram o quanto as fontes oficiais mentem [248] . No entanto, o mais significativo aqui não é verificar que, apesar disso, e apesar do número de vezes que a história se repete, as fontes oficiais continuem a ser acreditadas sem mais questionamentos. O principal é entender que, sob pressão, a fonte é instada a dizer alguma coisa, qualquer coisa, para “alimentar o sistema”. Em consequência, tanto podem ocorrer erros (como aparentemente foi o caso no exemplo citado acima) como, o mais grave, a divulgação proposital de informações incorretas ou francamente falsas, exatamente porque as fontes conhecem as rotinas de produção e sabem que, nessas circunstâncias, o que for dito será veiculado.

A propósito, Schudson observa que, “quanto mais a mídia enfatiza o imediatismo das notícias, mais os jornalistas estão sujeitos à manipulação das fontes” [249] . Considerando que o imediatismo está incorporado às rotinas de produção, a sempre condenada subserviência dos jornalistas à palavra da autoridade não é simples de superar. Por isso, questionado a respeito, o repórter Caco Barcellos preferiu apontar o problema na própria estrutura competitiva dos meios de comunicação, mostrando como é difícil adotar coletivamente uma atitude crítica no cotidiano da profissão:

...eu não sei se isso [a subserviência] é consequência da pressão a que o repórter é submetido, a pressão industrial até, porque é complicado você duvidar sempre da polícia. Eu me sinto um privilegiado, eu posso duvidar, não que o outro não possa, mas porque eu tenho mais tempo para apurar. E nem todo repórter tem esse privilégio que eu tenho. O camarada pode sair da redação precisando fechar duas matérias. Ele vai duvidar de tudo que é delegado que cruzar na vida dele? Isso só vai derrubar a matéria. Pra mim é relativamente confortável falar: “Não, tem de duvidar sempre”. Mas eu tenho tempo pra duvidar, eu posso apurar. Se o teu chefe está lá cobrando, e você está começando na profissão - e hoje as redações estão cheias de profissionais inexperientes -, como “bancar” um chefe, dizer que não tem a matéria, se no dia seguinte o concorrente pode dar com todo o destaque aquilo que o delegado passou pra ele? Haja peito pra segurar essa barra. É complicado [250] .

Como e por que alguns repórteres conseguem prestígio a ponto de obter esse “privilégio” de poder trabalhar corretamente enquanto a maioria se desdobra em várias pautas por dia é um assunto que merece pesquisa específica e foge aos objetivos deste trabalho. Importa aqui o depoimento, que dá conta de uma realidade dura. Mas importa igualmente perceber que a subordinação à palavra da autoridade raramente é inocente: em geral a urgência surge como justificativa para isentar a imprensa de responsabilidade ou mesmo conivência na divulgação de notícias sem fundamento, atribuindo-se toda a responsabilidade à fonte, especialmente se oficial. Ao tratar da fabricação das ondas de violência no Rio de Janeiro, Janio de Freitas resume num artigo de um quarto de página de jornal essa coincidência de interesses num momento político determinado:

Você soube pelos jornais que bandidos atacaram uma delegacia. Cujos policiais, em represália, foram à favela dos invasores e mataram 13. Quem viu o ataque à delegacia? Ninguém.
Mas bandidos sequestraram uma policial e a levaram para uma favela, não foi? E os colegas de delegacia partiram para uma operação de resgate na favela, com as consequências de praxe. Admirável exemplo, afinal os bandidos não podem chegar a tamanha audácia, sequestrar uma policial. Por azar, não chegou a haver o resgate. Mas só porque não tinha havido sequestro, a moça estava costurando em casa.
O que não chegou a merecer maior atenção do noticiário, quando descoberto. A informação do sequestro, segundo os policiais, foi de um telefonema anônimo. Você, leitor, tem toda a liberdade de admitir, ou não, que policiais experimentados façam uma operação daquele porte a partir só de um telefonema anônimo. E sem dar sequer um telefonema para a casa da suposta sequestrada.
Também vimos nas televisões e nos jornais que um experiente delegado, esperando o ataque que lhe fora anunciado, mandou erguer um muro especial diante da sua delegacia. No dia seguinte, vimos as imagens de um policial com uma metralhadora pesada, de guerra, plantada no parapeito da janela da delegacia, à espera do ataque. Isto rendeu vários dias de noticiário bem realçado. Até delegacias sob ataque dos marginais, a que ponto chegou o Rio. Ainda bem que a polícia sabe das coisas. Prova disso é que, nesse caso, o muro, as armas pesadas, as entrevistas, os vídeos, as fotos de primeira página, as manchetes, tudo nasceu de um telefonema anônimo que, mais tarde, o experiente delegado disse ter alguém recebido na delegacia.
É verdade que mais de uma escola pública suspendeu as aulas, aconselhadas todas a fazê-lo porque ameaçadas de invasão por traficantes. Seriam, é de presumir, traficantes de crianças. Não se sabe. O que se sabe, agora, é que foram aconselhadas por autoridades a suspender as aulas porque cada uma recebeu um telefonema anônimo avisando do ataque iminente. Se não houve os ataques, não faz mal. O que importa é que cada escola alcançou a oportunidade de aparecer na televisão e nas primeiras páginas, como provas do cerco e do pânico do Rio [251] .

Estes, diz Janio, foram “os fatos, ou as notícias, que levaram às televisões e às manchetes a iminência da intervenção federal no Rio, do estado de sítio, do estado de defesa”. O articulista informa que durante três dias procurou localizar, entre as autoridades, a origem daquela proposta. E concluiu: “Não se localiza a proposta senão nas televisões e nas manchetes”.

Há dias, lembrei aqui, graças a uma entrevista da deputada Cidinha Campos, que antes da eleição para prefeito irromperam os arrastões nas praias. Logo que se caracterizou a derrota de Benedita da Silva, os arrastões cessaram e o verão correu tranquilo. Antes do recente primeiro turno, surgiu o escândalo dos seguidos assaltos em túneis que, além da falta de assaltados e de assaltantes, desaparecerem com a eleição. Agora, a caminho do segundo turno, a nova onda.

Fatos programados (os arrastões com hora certa de começar, encenados para câmeras providencialmente a postos) ou simplesmente inventados (os assaltos em túneis), além de boatos que rendem consequências práticas de inegável impacto visual: “informada” por uma fonte oficial (a polícia), a imprensa dissemina o pânico e cria a situação propícia para a proposta da intervenção. E pode mascarar seus interesses (no caso, a campanha contra um determinado governador de estado) apelando para argumentos técnicos: as rotinas de produção e a idéia, sacralizada no meio profissional, que toma a urgência como definidora da atividade jornalística.

Em seu projeto editorial, a Folha de S. Paulo resume: “subordinado a um regime de pressa que faz parte de sua utilidade pública, o jornalismo está sujeito a erros e distorções, raramente premeditados” [252] . Nem vamos discutir se algo que é por definição involuntário (o erro) pode ser premeditado. Menos ainda vamos sugerir que o erro faz parte da atividade humana em geral, submetida ou não ao “regime de pressa”. Mas seria muito saudável perguntar por que esse “regime de pressa” faz parte da utilidade pública do jornalismo.

Schudson diria falaciosa uma afirmação desse tipo. Ao perguntar-se “por que essa ênfase em obter a matéria minutos ou segundos mais rápido que o concorrente deveria ser tão engrandecedor do jornalismo”, ele indica que os jornais, antes de se preocuparem com o seu público, preocupam-se com os concorrentes [253] . Daí o “fetichismo do presente” em que vivem os jornalistas. No entanto, o autor considera esta uma situação típica do jornalismo americano, que não se reproduziria obrigatoriamente, nem com a mesma intensidade, em outros modelos de jornalismo.

A ressalva desconsidera, portanto, que a busca do instantâneo é a regra da atividade jornalística empresarial, pela própria lógica do sistema. E não apenas um “valor cultural” construído no contexto de uma determinada sociedade, um cânone estabelecido por uma categoria profissional inserida nessa determinada sociedade e regida por “um relógio cultural, um sutil e não declarado acordo (...) a respeito do que é oportuno e sobre o que é genuinamente novo [254] .

Especialmente nesses tempos globalizados, em que a velocidade parece adquirir um valor em si, seria mais apropriado dizer que essa noção de urgência é o grande fetiche da vida (pós) moderna. Salete Maccalóz analisa esse conflito entre o tempo da justiça e a pressão (especialmente da mídia) por uma rapidez confundida com eficiência, que traduz necessariamente o tempo lento como morosidade relacionada à incompetência ou à má fé.

A boa justiça é concebida em tempo lento, onde se pensa, medita-se até encontrar a melhor solução ou os melhores argumentos para a conclusão, porque o processo é a pesquisa da verdade. (...) O tempo para a conclusão de um processo de conhecimento depende da complexidade do problema deduzido, da argumentação das partes e do tipo de prova que a verdade exige. (...)
Essa demora necessária à solução dos conflitos passou a ser o alvo preferencial das críticas em tempo de “velocidade máxima”. (..) O que não é hoje, é passado; o que não é novo, é antiquado; quem não aderir pertence ao império do mal. Premissas colocadas para entender melhor por que a morosidade do judiciário virou o seu pior inimigo, apontada como tal por todas as gentes, inclusive as mais simples que nada entendem de justiça, nas quais essa certeza foi bem inculcada.
A pressa ou velocidade na justiça só produz o acordo, cada vez menos satisfatório, levando a pessoa ao ponto de desistir da justiça institucional. Com isso, os novos tempos e seus mentores estão estimulando o renascimento da justiça pelas próprias mãos, principalmente no plano das ofensas pessoais, no exercício do “poder de destruição recíproco do material humano amansado pelo capitalismo, numa história de declínio e decadência”.
A velocidade não é apenas um pseudo-valor, utilizado para qualificar de antiquado e ruim tudo o que não estiver no seu compasso. A valorização que se lhe atribui produz na mesma escala a desvalorização do papel da justiça, onde os argumentos essenciais não são utilizados, bastando repetir à exaustão que ela é morosa para cair na rejeição popular e ficar pacífica a sua inutilidade. Assim, o enaltecimento da velocidade não é apenas mais uma campanha de venda de um produto, mas uma tarefa política, através da qual condenam-se instituições, modelos, pessoas e coisas, sem qualquer reflexão prévia, debate ou conscientização. A velocidade passou a ser a “sentença” de sobrevivência não apenas da justiça, mas nesta é o elemento principal de seu desmonte e esgotamento [255] .

A situação pode ser ilustrada por uma tira humorística de Wiley na série Non sequitur, republicada pelo Globo, que mostra o réu perplexo no tribunal, paralisado diante de uma roleta na qual se alternam as sentenças “culpado” ou “inocente”. Observando a cena, o juiz comenta: “Qual é o problema? Não foi você mesmo quem fez questão de um julgamento rápido?” (anexo 16).

Bem a propósito, novamente Janio de Freitas consegue levantar o véu da dúvida e apontar o descalabro ali onde outros só viam obviedades ou positividades, mostrando o quanto de absurdo havia na rapidez com que, num dado momento da política brasileira, os parlamentares estavam votando os projetos no Congresso. A imprensa era quase unânime em saudar aquele ritmo de trabalho, aparentemente revelador do grande esforço dos deputados, mas que significava algo profundamente negativo: que projetos decisivos para a vida do país estavam sendo apreciados com total ligeireza.

Mas não é só por sugerir ou afirmar que a velocidade é sinônimo de eficiência, na justiça e em qualquer outro setor, que a imprensa ajuda a manter esse fetiche: é a sua própria imagem associada àquelas rotativas trabalhando freneticamente nos filmes americanos de gângster dos anos 30. Notícias sobre a ampliação do parque gráfico dos jornais também investem em números astronômicos sobre a velocidade de impressão e o aumento da tiragem, mas silenciam quanto a esse outro aspecto fundamental da atividade: a tecnologia como suporte para um jornalismo com outra qualidade para a informação.


O “mimetismo midiático”

Embora cite a internet como a nova utopia tecnológica da comunicação, Ramonet aponta na constituição dos conglomerados de informação formados pelas grandes redes de televisão o início de um processo em que as temporalidades (e, consequentemente, linguagens) próprias de cada meio de comunicação se misturam. O resultado imediato pode ser verificado todos os dias nas redações: editores colados no vídeo, sobressaltados a cada chamada do telejornal, perguntando aos repórteres: “temos isso?” - e conferindo credibilidade automática ao que é veiculado ali, a ponto de alterar o texto produzido originalmente pelo profissional de sua própria equipe.

Este é um dos aspectos do que Ramonet chama de “mimetismo midiático”:

O mimetismo é aquela febre que se apodera repentinamente da mídia (confundindo todos os suportes), impelindo-a na mais absoluta urgência, a precipitar-se para cobrir um acontecimento (seja ele qual for) sob o pretexto de que os outros meios de comunicação - e especialmente a mídia de referência [a TV] - lhe atribuem uma grande importância. Essa imitação delirante, levada ao extremo, provoca um efeito bola-de-neve e funciona como uma espécie de auto-intoxicação: quanto mais os meios de comunicação falam de um assunto, mais se persuadem, coletivamente, de que este assunto é indispensável, central, capital, e que é preciso dar-lhe ainda mais cobertura, consagrando-lhe mais tempo, mais recursos, mais jornalistas. Assim, os diferentes meios de comunicação se auto-estimulam, superexcitam uns aos outros, multiplicam cada vez mais as ofertas e se deixam arrastar para a superinformação numa espécie de espiral vertiginosa, inebriante, até a náusea [256] .

Uma superinformação que leva à cegueira pelo excesso de luz, como na epidemia que Saramago imaginou, na qual, aos poucos, todos passavam a ver “tudo branco”; é o “mito da transparência” que orienta o trabalho jornalístico, no dizer de Marcondes Filho:

Tudo deve ser exposto até se queimar. Como nas antigas películas de cinema ou nos projetores de slides sem sistema de refrigeração, a exposição excessiva de um diagrama queima o filme, fazendo-o desaparecer. No jornalismo, a exposição, depois a superexposição de pessoas, fatos, acontecimentos, provoca um processo social de “queima” do fato, na medida em que as notícias excessivamente veiculadas tornam-se inócuas, não provocam mais nenhum efeito, conduzem ao seu total esquecimento. O excesso é a forma mais eficiente de extermínio da coisa e de seu total apagamento da memória [257] .

O autor compara essa “desinformação pelo excesso” ao sentido que os gregos davam à palavra pharmakon, que tanto significa o preparo de remédios como a produção de venenos. Em doses pequenas, salva; em doses grandes, mata. O bombardeio informativo narcotiza o receptor, para torná-lo indiferente à própria notícia [258] .

A exploração de escândalos e denúncias dá bem a medida da situação: o trabalho é orientado no sentido de obter impacto, entrando num círculo vicioso em que um escândalo abafa o precedente, embora raramente os fatos ali narrados sejam confirmados ou tenham outro desdobramento além de prejudicar os envolvidos. Luís Nassif expõe a fórmula com clareza:

Pode-se liquidar uma reputação sem correr riscos, simplesmente escrevendo: “Suspeito de ser desonesto, fulano negou a acusação a esta reportagem”. Pronto: não é o jornalista quem afirma, são rumores, que voam pelo ar sem dono, como pardais vadios. E se deu a oportunidade à vítima de negar que seja desonesta [259] .

Essa rotina, caracterizada pelo que se convencionou chamar de “denuncismo”, leva Nassif a dizer que os anos 90 “ainda serão conhecidos como os anos da avacalhação e do sensacionalismo barato”.

Toda denúncia começa com uma acusação e com indícios - que devem servir como ponto de partida para o trabalho sério, de apuração dos fatos e recolhimento de provas.

Nos últimos dez anos, as principais denúncias da mídia - em praticamente todos os órgãos de imprensa - limitaram-se a trabalhar apenas com o ponto de partida - as suspeitas ou acusações não comprovadas. Documentos apócrifos, fitas gravadas com suspeitos periféricos, tudo isso se transformava em matéria jornalística final, sem que houvesse a complementação - essa sim, caracterizando o verdadeiro jornalismo investigativo [260] .

Nassif considera tais práticas um desvio na conduta profissional, e não uma regra que se consolida pela própria lógica do sistema de produção. A repetição do número de casos “desviantes” (alguns dos quais, inclusive, recompensados com prêmios de reportagem, como ele reconhece) deveria indicar que o problema apontado é estrutural. O mais importante, porém, é a conclusão a que o jornalista chega, após destacar a série de matérias de Mônica Bergamo, da Folha, como um exemplo de investigação jornalística: a partir das denúncias que recebeu sobre corrupção no DNER, a repórter reuniu um conjunto de indícios suficiente para derrubar o próprio ministro dos Transportes. Segundo Nassif, o caso só não teve mais desdobramentos - como a demissão do ministro - “pela absoluta insensibilidade do governo e porque, dentro de um conjunto de denúncias inconsistentes, as denúncias bem apuradas acabam se diluindo [261] . Pois o aluvião de denúncias tem esse efeito narcotizante: banaliza-se o escândalo, de modo que já não se distingue o que é importante e pode ter graves consequências do que é periférico ou simplesmente exagerado.

Ramonet mostra que, nesse contexto, entra em xeque a noção de informação com a qual o jornalismo trabalhava tradicionalmente - aquela de dar “a verdade sobre os fatos”:

Ainda recentemente, informar era, de alguma forma, fornecer não só a descrição precisa - e comprovada - de um fato, de um acontecimento, mas também um conjunto de parâmetros contextuais que permitiam ao leitor compreender seu significado profundo. Era responder a questões básicas como estas: quem fez o que? Quando? Onde? Como? Por que? Com que meios? Em que circunstâncias? E quais são as consequências?
Sob a influência da televisão, que ocupa atualmente, na hierarquia da mídia, um lugar dominante e expande seu modelo, isso mudou. (...) Hoje em dia, informar é “mostrar a história em curso, a história acontecendo”. (...) O objetivo prioritário, para o telespectador, para sua satisfação, não é mais compreender o alcance de um evento, mas simplesmente vê-lo acontecer sob seus olhos [262] .

 Ryszard Kapuscinski mostra o sentido da mudança de prioridades na pauta dos jornais:

Outrora, a veracidade de uma notícia representava o seu maior valor. Nos dias de hoje, o redator-chefe ou o diretor de um jornal não perguntam mais se uma informação é verdadeira, mas se ela é interessante. Se for constatado que ela não é interessante, não é publicada. Do ponto de vista ético, é uma mudança considerável [263] .

Régis Debray certa vez referiu-se ironicamente a essa mudança:

Antigamente, quando você chegava com uma novidade a um diretor do jornal, ele piscava os olhinhos, esfregava as mãos e dizia entusiasmado: “Ótimo, ótimo, vamos publicar já! Ninguém está falando nisso!” Mas hoje, quando se chega a um diretor de jornal com uma novidade, ele faz um muxoxo de desprezo e diz: “Isso não vamos dar. Não interessa. Ninguém está falando nisso” [264] .

Kapuscinski relaciona essa situação a uma alteração significativa no perfil profissional, de modo que o jornalista vem gradativamente se transformando num genérico “trabalhador de mídia”:

Nossa profissão mudou profundamente. Antigamente, o jornalista era um especialista. A profissão contava com algumas grandes figuras e os efetivos eram limitados. Esse tipo de jornalista vem desaparecendo progressivamente há vinte anos. O que era um pequeno grupo transformou-se numa classe. Dando cursos na Universidade de Madri, descobri que entre as redações e as escolas podíamos contar, só naquela cidade, 35.000 jornalistas! Nos Estados Unidos, utiliza-se agora o termo media workers para designar as pessoas que trabalham nos jornais [265] .

Nesse lamento, salta aos olhos a nostalgia dos “bons velhos tempos” em que a profissão (em todo caso, a parte digna da profissão, pois jamais se considera aí o repórter sensacionalista) era privilégio de poucos. Associação perversa e francamente elitista, cuja contrapartida evidente é condenar a democratização do acesso como vulgarização degenerada. Aliás, em toda a sua argumentação, o próprio Ramonet deixa transparecer essa nostalgia de uma “idade do ouro” do jornalismo, de duvidosa existência mas, de todo modo, naturalmente identificada com o jornal impresso, e um tipo de jornal impresso muito bem definido - não fosse ele o editor do respeitado Le Monde Diplomatique. Talvez por isso incorra no equívoco típico de considerar a possibilidade da existência de um jornalismo ideal - associado à noção de “quarto poder” - fora de suas condições concretas de produção. Assim, acusa o “grande esquema industrial concebido pelos donos das empresas de lazer” no qual “a informação é antes de tudo considerada como uma mercadoria, e que este caráter prevalece, de longe, sobre a missão fundamental da mídia: esclarecer e enriquecer o debate democrático” [266] .

Vimos que a informação nunca deixou de ser mercadoria, especialmente a partir da consolidação do jornalismo como atividade industrial produtora de um artigo para consumo de massa. É claro que, como bem simbólico, esta mercadoria está investida de outros significados, e em torno de sua produção - portanto, da produção do discurso - se dá uma disputa ideológica mais ou menos intensa, conforme o momento político e as forças em jogo. Sem considerar esses aspectos, o autor cai na armadilha de demonizar as grandes empresas jornalísticas e, especialmente, as grandes redes de TV. Talvez também por isso seja subjacente em sua análise a idéia de que ou se tem o fato real ou o fato fabricado (no sentido de “montado” e “falsificado”), portanto não há qualquer referência à interação entre a mídia e os fatos que ela reporta, abordada no capítulo anterior. Tudo isso certamente contribui para simplificar (e fragilizar) os termos da defesa do ideal iluminista do jornalismo, pois tal defesa não pode ser feita sem que se considere a enorme complexidade do contexto em que o jornalismo se insere hoje.

Essas observações, porém, não comprometem a agudeza da crítica de Ramonet ao acusar o retrocesso, com a ideologia do “ao vivo” e do “tempo real”, a uma época pré-iluminista (diria melhor, pré-renascentista), quando se acreditava que “ver” era “compreender”. O uso que Orson Welles fez do rádio, com sua aterrorizante “Guerra dos mundos”, em 1938, já alertava para os riscos de se conferir credibilidade automática à informação instantânea. No entanto, se a lógica é simplesmente “alimentar o sistema”, não faz sentido “perder tempo” confirmando informações.

Um dos mais famosos exemplos do quanto as imagens enganam é o do episódio do cemitério de Timisoara:

Aquelas imagens tiveram um formidável impacto nos telespectadores que acompanhavam há vários dias, com paixão e fervor, os acontecimentos da “revolução romena”. Naquele momento, a “guerra das ruas” prosseguia para Bucareste, e o país parecia correr o risco de cair nas mãos dos homens da Securitate, a terrível polícia secreta de Nicolae Ceaucescu, quando essa “fraude” veio repentinamente confirmar o horror da brutalidade da repressão.
Aqueles corpos deformados se ajuntavam, no nosso espírito, àqueles que já tínhamos visto jazendo amontoados nos necrotérios dos hospitais, e corroboravam o número de “quatro mil” vítimas dos massacres de Timisoara. Aliás, “4.630”, precisava um enviado especial do Libération; e alguns artigos da imprensa escrita intensificavam o dramatismo da situação: “Falou-se de caminhões de lixo transportando inúmeros cadáveres para locais secretos onde seriam enterrados ou queimados”, dizia um jornalista do Nouvel Observateur (28 de dezembro de 1989). “Como saber qual o número de mortos? Os motoristas dos caminhões que transportavam metros cúbicos de corpos eram mortos com uma bala na nuca pela polícia secreta para eliminar qualquer testemunha”, escrevia o enviado especial da AFP (Libération, 23 de dezembro de 1989).
Ao ver os cadáveres de Timisoara na telinha da TV, não se podia colocar em dúvida os “60.000 mortos” - alguns falavam até de 70.000 - que a insurreição romena havia provocado em alguns dias. As imagens destes cadáveres só podiam confirmar plenamente as afirmações mais delirantes [267] .

As cenas exerceram tal impacto que

os responsáveis pelos jornais (por exemplo, Dominique Pouchin, do Libération), admitiram publicamente que, impressionados com as imagens ao vivo na televisão, eles haviam reescrito o texto de seu correspondente no local, que mostrava reservas sobre esse “ossário” [268] .

Sabe-se hoje que o número de mortos na revolução romena, incluindo partidários de Ceaucescu, não passou de mil, e que em Timisoara foi inferior a 100. Não que isso retire o drama do conflito, mas seguramente o exagero das cifras ajudou a ampliar exponencialmente o impacto daquelas imagens. O principal, entretanto, é que todo aquele espetáculo mostrado pelas câmeras e reproduzido nos jornais não passou de encenação:

Os cadáveres alinhados sobre lençóis brancos não eram vítimas dos massacres de 17 de dezembro de 1989, mas mortos desenterrados do cemitério dos pobres, oferecidos condescendentemente à necrofilia da TV [269]

 No entanto, o mito em torno de situações como aquela (um regime fechado, a terrível polícia política agindo em subterrâneos labirínticos, a analogia do comunismo stalinista com o nazismo, a conspiração) atiça a imaginação e facilita a montagem da fraude, com inevitáveis consequências políticas. Ramonet diz que,

a partir de imagens cuja autenticidade ninguém sequer sonhou averiguar, chegou-se a pensar, em nome do “direito de ingerência”, numa ação guerreira, e alguns até chegaram a exigir uma “intervenção militar soviética” (!) para derrotar os partidários de Ceaucescu... [270] .

O autor cita o programa No comment, da Euronews, como o mais emblemático dessa nova situação em que as imagens parecem dizer tudo: ali não há, de fato, lugar para nenhum comentário. E lembra o slogan da CNN, “slow news, no news”, para demonstrar que o que importa é a velocidade.

A propósito, Franciscato observa que

[s]ob a perspectiva das rotinas de produção, o tempo pode mesmo ser compreendido como um fator negativo, como uma consumação que desqualifica a atualidade dos eventos. Por isso, o jornalismo possui um ritmo regulado pela velocidade da produção, pela rapidez com que um conteúdo é transformado em produto noticioso. Há uma tensão entre a velocidade do movimento do mundo e a velocidade da produção do discurso jornalístico sobre este movimento, pois o jornalismo vive um permanente risco de que o sentido de tempo que traz no seu discurso se descole do tempo do mundo [271] .

Essa análise não percebe um aspecto essencial na maneira de reportar fatos, “reapresentar o real”, que, segundo Genro Filho, encerra uma ambiguidade fundamental para a informação jornalística: ao mostrar algo já acontecido como se ainda estivesse acontecendo, o jornalismo “reconstitui um fenômeno que não está sendo diretamente vivenciado como se o estivesse, transmite acontecimentos através de mediações técnicas e humanas como se produzisse o fato original” [272] .

Essa tensão percorre todos os produtos comunicacionais, não apenas os jornalísticos, e é capaz de gerar a sensação de estar-se em dois tempos no mesmo lugar, como foi exemplarmente exposto por Julio Cortázar num trecho do documentário biográfico que leva o mesmo nome do protagonista: diante de um muro com cartazes variados, um deles de uma peça sobre John Dillinger, o escritor começa a lembrar da infância, das fantasias que aquele nome lhe provocava,

e na próxima meia hora sigo caminhando pela rua vivendo esses dois tempos, o momento presente e meu tempo de criança, as lembranças dos jornais da época e da lenda em torno do inimigo público número um...

Não bastasse essa ambiguidade própria do discurso específico, a verificação empírica do trabalho da imprensa permite perceber que o ritmo alucinante de trabalho da redação não se justifica como tentativa de apreender o “tempo do mundo”, “naturalmente” veloz. Contardo Calligaris dá um bom exemplo para mostrar que não é assim:

A CNN inventou a cobertura 24 horas. E, em uma série de circunstâncias, já ficou aparente o quanto ela é precária. Me lembro, por exemplo, de Christiane Amanpour em Belgrado, na noite dos primeiros bombardeios na Sérvia. De onde ela estava não dava para ver ou ouvir quase nada. Mas, a cada 20 ou 30 minutos, ela aparecia para repetir o mesmo nada.
A cobertura 24 horas idealmente exige que as notícias possam ser colocadas em dia de maneira significativa a cada hora. Às vezes, o mundo vai mais devagar do que isso [273] .

O mesmo se poderia dizer dos plantões montados na cobertura de sequestros, em que desamparados repórteres ficam na porta da casa do sequestrado, obrigados a entrar no ar regularmente (para justificar sua presença ali) e informar que “a vítima é aguardada a qualquer momento”. Nessas horas, a histeria toma conta das redações. Muito ilustrativo é o relato de Alfredo Boneff sobre o que aconteceu no plantão diante da casa dos pais do cantor e compositor Renato Russo, falecido no dia 11 de outubro de 1996:

Quando Renato faleceu, eu tinha recém-iniciado um estágio no Jornal do Brasil. Mais precisamente no Caderno B, suplemento dedicado às artes e cultura. Nos dias seguintes à morte, me revezei com outra estagiária na aprazível tarefa de ficar plantado em frente ao prédio do líder do grupo Legião Urbana.
O fato de admirar a obra de Renato Russo possivelmente reforçou a sensação estranha de estar devassando e expondo uma dor que encontra poucos similares: a da perda de um filho. Explico: durante o tempo que durou aquele plantão, Maria do Carmo Manfredini, mãe de Renato, estabeleceu com a imprensa uma relação mais do que cordial. Diariamente, a uma determinada hora, falava com os repórteres, fornecia um roteiro de suas atividades e fazia questão de tranquilizar os coleguinhas: todos saberiam onde e quando seriam lançadas as cinzas [o cantor pedira para ser cremado].
Só que isso não foi o suficiente para aplacar a ânsia dos jornalistas em busca da notícia. Numa tarde em que se pensava que nada mais aconteceria e depois de dona Maria do Carmo já ter afirmado que ainda não encontrara o local adequado para a cerimônia, repórteres mais ou menos experientes se alvoroçaram quando os pais de Renato saíram do edifício em direção a dois carros. Acompanhados de outras pessoas, ela e o marido entraram em veículos diferentes. Foi a senha para que alguém dissesse: “eles estão querendo nos despistar para jogar as cinzas!”
Seria cômico se não fosse trágico. O alerta brilhante do companheiro desencadeou uma inacreditável perseguição automobilística. JB, Globo e as revistas Manchete e Caras disputaram um inusitado pega que começou pelas ruas da Zona Sul e continuou até a Tijuca. Se vale de consolo ao velho JB de glórias passadas, o jornal da avenida Brasil 500, graças à perícia de seu motorista, acabou vencendo aquela espécie de GP funerário.
Os carros nos quais viajavam os pais do cantor tomaram rumos diferentes em ruelas da Tijuca e apenas o do JB conseguiu ficar o encalço daquele onde estava dona Maria do Carmo - que, de acordo com a ótica surrealista dos perseguidores, era quem deveria estar levando a urna com as cinzas. Mas, toda a habilidade do nosso motorista não adiantou muito. Perdemos a pista dentro de um estacionamento de supermercado. Ao ser informado do nosso insucesso, o chefe de reportagem do Caderno B não teve dúvidas e, intrépido, bradou pelo rádio do carro: “toca pro aeroporto!” Motorista, fotógrafo e estagiário se entreolharam perplexos, mas não tiveram outra saída senão a de seguir para o Galeão. Cioso de sua função de informar a qualquer preço, o chefe de reportagem talvez imaginasse que dona Maria do Carmo jogaria as cinzas do filho a quatro mil metros de altitude, num hipotético vôo para Brasília, cidade onde Renato morou boa parte da vida. Desnecessário dizer que não encontramos ninguém no aeroporto [274] .

O mal-entendido envolvendo uma declaração do ministro Pedro Malan num debate sobre o Mercosul, em maio de 2000, no Rio, é outro bom exemplo dessa rotina que mistura o cumprimento da meta de urgência à sedução de uma informação bombástica. Ao responder a uma pergunta sobre a paridade do peso argentino com o dólar norte-americano, Malan declarou: “Se a Argentina deve mudar a conversibilidade? Acho que minha resposta é simples: cabe aos argentinos decidir”. Alguns jornalistas na platéia ouviram “sim” em vez de “simples”. Poderiam ter pedido esclarecimentos ao ministro ou checado a declaração em seus gravadores. Mas, não: “com uma sílaba a menos a frase anódina virou notícia”, notou Renata lo Prete, ao analisar o episódio em sua coluna dominical na Folha de S. Paulo [275] .

No final da manhã, serviços em tempo real do Estado e do Globo informavam que o ministro havia defendido o fim do câmbio fixo em um para um na Argentina. Não demorou até que a coisa chegasse ao rádio.

Renata pôde constatar também o mimetismo a que se refere Ramonet: ela viu que, na Folha de S. Paulo, a repórter que cobriu o evento para o serviço eletrônico do jornal (destinado a assinantes) informava corretamente sobre as declarações do ministro, nada bombásticas. Mas, no início da tarde, o jornal on line da Folha, um serviço aberto, optou pela “recortagem”, decidindo bancar o que leu e ouviu em outros veículos. “Apesar de ressaltar que não queria se intrometer em questões internas do país vizinho, (o ministro) acabou defendendo o fim da paridade”.

O caso logo foi esclarecido por iniciativa da assessoria do ministro, embora houvesse produzido reações das autoridades argentinas que por pouco não resultaram num incidente diplomático. Mas, além de confirmar um antigo problema do jornalismo (a má vontade em reconhecer erros, pois apenas um site, o do Estadão, se retratou), o episódio revelou que

a competição entre os sites e o impacto destes sobre os meios tradicionais contribuem para acirrar o espírito “atire primeiro e pergunte depois”. Nesse ambiente, é raro alguém decidir segurar o que todos estão dando, mesmo quando o bom senso recomenda. O tempo real parece desculpar a rapinagem e a fragilidade da apuração, porque tudo, em tese, pode desaparecer ou ser melhorado no próximo despacho. A verdade não-assumida é que, em muitos casos, os outros veículos não são apenas monitorados, e sim tratados como fonte.

Do episódio, Renata conclui que “informar com rapidez não pode ser igual a desinformar”. De fato - e mais uma vez, aí, fica evidente a contradição entre os princípios norteadores da profissão e a estrutura de um sistema em que tudo acontece muito rápido. A concorrência, a necessidade de ser o primeiro e o mais espetacular - com o consequente aumento de receita publicitária - leva ao paradoxo apontado por Bernard Langlois: “quanto mais se comunica, menos se informa, portanto mais se desinforma” [276] .

É o mesmo paradoxo que está no cerne da preocupação com a instantaneidade, auto-justificada porque a transmissão direta cria a “ilusão de verdade”. Daí, diz Langlois, o importante para o sistema (de radiodifusão) não é tanto o que vão dizer seus enviados especiais; é que estejam lá.

Que estejam presentes, que se possa mostrá-los na tela, no local do episódio e, se possível, antes da concorrência: “nosso enviado especial era o primeiro no local”. Que mal desembarque do avião e não mantenha contato a não ser com o chofer de táxi que o leva do aeroporto ao lugar onde vai fazer seu primeiro contato direto, isto não tem nenhuma importância. Ele está lá, portanto ele sabe [277]

Luiz Fernando Veríssimo sintetizou essa imagem num desenho de uma série publicitária para a Rede Globo: um alpinista chegando exausto ao monte Everest, uma conquista supostamente inédita, salvo pela presença, já no cume da montanha, de um cinegrafista e um repórter da emissora, apontando para ele o microfone e a câmera. O verdadeiro protagonista, portanto, é a mídia. Tem-se aí novamente o fetiche: “trata-se de demonstrar que a máquina ‘comunica’, e não que ela informa” [278] .

É por isso que Ramonet pode dizer que “a verdade que conta é a verdade midiática”. Não no sentido de que, afinal de contas, sempre foi assim - dada a mediação própria do trabalho jornalístico, a transformação de fatos em notícias, sua inserção num contexto determinado no espaço do jornal -, mas no sentido do mimetismo ao qual o autor se refere.

Se, a propósito de um acontecimento, a imprensa, o rádio e a televisão dizem que alguma coisa é verdadeira, será estabelecido que aquilo é verdadeiro. Mesmo que seja falso. Porque a partir de agora é verdadeiro o que o conjunto da mídia acredita como tal [279] .

A busca do inusitado sempre favoreceu a fraude. Ramonet recorda o que Randolph Hearst, o inspirador de Cidadão Kane, dizia a seus jornalistas: “Não aceitem jamais que a verdade os prive de uma boa história”. Procuramos demonstrar que este não pode ser visto como um problema circunscrito à prática dos jornais populares, mas diz respeito à própria lógica da sociedade do espetáculo. Na era do tempo real, as fraudes se reproduzem com enorme facilidade entre os veículos que sempre apresentaram como princípio o zelo pela veracidade das informações divulgadas. Timisoara foi apenas um exemplo.

Ninguém esqueceu os apaixonantes relatos da guerra do Camboja, entre vietnamitas e khmers vermelhos, publicados em 1981 pelo New York Times, contados da maneira mais palpitante e mais excitante por um repórter de campo, o jovem Christopher Jones, 24 anos, e que se revelaram totalmente falsos. Sem ter estado no local, o brilhante jornalista escreveu esses relatos forjando-os exclusivamente a partir de sua imaginação, confortavelmente sentado à beira de sua piscina de Marbella (Espanha). “Fiz uma aposta”, declarou ele à guisa de explicação.
(...) aos 7 de junho de 1998, a CNN não hesitou em apresentar, de maneira espetacular, uma reportagem feita por seu jornalista mais célebre, Peter Arnett, na qual se afirmava que durante uma operação contra desertores americanos no Laos, no começo dos anos 70, o exército dos Estados Unidos havia utilizado sarin, um gás mortal. Uma semana depois, o semanário Time (pertencente ao mesmo grupo midiático, Time-Warner) retomava e desenvolvia a informação que, não obstante, se revelaria falsa.
(...) [O caso] estourou justamente depois da descoberta de dezenas de falsas reportagens publicadas por veículos de prestígio (The New Republic, Rolling Stone, George, Harper’s, The New York Times...) e escritas por um brilhante jornalista de 25 anos, Stephen Glass, que era considerado um gênio pelos melhores profissionais do meio. Stephen Glass foi bem sucedido ao entrar onde nenhum outro repórter havia chegado, entrevistava personalidades inacessíveis, obtinha testemunhos, anedotas, detalhes tão inéditos, tão apaixonantes que a maioria de seus artigos, escritos num estilo arrebatador, esplêndido, iam diretamente para a primeira página. (...) Tudo não passava de mentira [280] .

O famoso caso da repórter Janet Cooke, que teve de devolver o prêmio Pulitzer depois de se comprovar falsa a sua “reportagem” inventando um menino de 8 anos viciado em heroína, demonstra a capacidade do sistema para transformar tudo em positividade espetacular. Renato Pompeu conta que o repórter Mike Sager recebeu 760 mil dólares de uma produtora de cinema para publicar matéria sobre a jornalista.

Engraçado é que Mike Sager teve de pagar metade do que ganhou à própria Janet Cooke, para que esta lhe desse uma entrevista - de forma que a jornalista se tornou uma quase milionária por revelar como inventou a falsidade que publicou [281] .

No Brasil, o caso Escola Base assombra a imprensa como um dos mais graves erros jornalísticos já cometidos, mas nem por isso serviu para mudar a rotina: as denúncias infundadas daquelas duas mães de alunos foram ao ar em março de 94, provocando a prisão do casal proprietário da escola e de outros supostos envolvidos no também suposto crime. A inocência dos acusados foi provada e o caso passou a ser referido como uma lição para o jornalismo. Isso não impediu que, em outubro de 95, os jornais repetissem a fórmula, alardeando na capa as fotos e denúncias contra um ex-funcionário do Itamarati acusado de enviar uma carta-bomba ao ministério das Relações Exteriores. Em agosto do ano seguinte, também ficou famoso o caso do bar Bodega, onde, após um assalto, dois clientes foram assassinados. A imprensa destacou a versão oficial: a prisão e confissão de um grupo de jovens negros e pobres (dos quais apenas um com passagem pela polícia). Pouco depois, comprovou-se que as confissões foram obtidas sob tortura. Em julho de 97, a mesma rotina em outro caso exemplar: a explosão num avião da TAM, resultando na queda e morte de um passageiro, levou à exposição do professor Leonardo Castro como suspeito pelo que já se considerava um atentado. E assim prosseguiríamos indefinidamente.


Sem tempo para pensar

Se as justificativas para tantos erros sucessivos são as rotinas de trabalho (o sempre aludido “regime de pressa”), e se a cada erro sucede um outro igual, é bem provável que haja algo errado com as próprias rotinas. Mas dificilmente o tema é abordado dessa forma, talvez porque essa abordagem traga implícita a pergunta: “que fazer?”. O vazio de alternativas imediatamente realizáveis - pois qualquer uma implicaria uma mudança estrutural de longo prazo - é convenientemente tomado como indicativo de que não há saída, bem ao estilo do “pensamento único”: ou este mundo ou nenhum outro. E os erros continuam se sucedendo e, pior, seguem sendo tomados como tais - erros, portanto eventualidades corrigíveis, lapsos momentâneos, descuidos involuntários, desvios de uma rota segura, e não como parte constitutiva do processo geral.

Assim, torna-se natural a afirmação, recorrente no meio profissional, de que o jornalista “não tem tempo para pensar”. A frase é particularmente significativa quando pronunciada em palestras para estudantes: “Vocês aproveitem para pensar enquanto estão na universidade, porque, quando forem trabalhar em jornal, não vão ter mais tempo para isso”. O jornalista diz a frase displicentemente, em meio a conselhos e relatos de causos interessantes e aventuras apaixonantes. Previsivelmente, ri de si mesmo e provoca risos na platéia de alunos, sem que ninguém pergunte, afinal de contas, de que adiantaria “pensar” na universidade, se de todo modo não haverá tempo para isso quando se estiver exercendo a profissão. Nem, muito menos, como é possível admitir que o jornalista possa desempenhar suas funções se não tem tempo para pensar.

A frase pode significar simplesmente uma justificativa prévia, uma espécie de pedido de desculpas antecipado para os erros publicados todos os dias nos jornais, devido à “corrida contra o tempo” que marca a profissão. Mas também pode ser entendida como algo bem mais relevante: como um indicativo de uma demarcação bastante clara dos campos universitário e profissional, vistos pela ótica do jornalista. Assim, aquilo que num primeiro momento se insinuaria como a valorização da atividade acadêmica e como uma autocrítica depreciativa, indicadora das limitações (e mesmo das impossibilidades) do jornalismo nas condições de trabalho atuais, pode ser compreendido em sentido precisamente oposto: a desqualificação da universidade, isolada em sua função de só pensar, incapaz de fazer, porque fazer é com os jornalistas, detentores autorizados daquele saber específico.

Evidentemente, não é o caso de estudar aqui as relações e contradições entre o mercado de trabalho e a universidade, neste campo de saber específico. Mas cabe ressaltar essa associação automática entre o fazer (a prática jornalística) e o modo de fazer (correndo contra o relógio): se considerarmos o argumento, contido no projeto editorial da Folha, de que o “regime de pressa” faz parte da “utilidade pública” do jornalismo, temos realmente um paradoxo, pois essa utilidade pública é sistematicamente desatendida pelo “regime de pressa”.

Aliás, uma propaganda de O Globo veiculada pela TV em meados dos anos 80 exibe exemplarmente esse sentido de utilidade pública, apresentada por um ator que vai se transformando em vários personagens (executivo, jovem hippie, piloto de automóveis, cantor, atleta, etc.) conforme a alteração computadorizada das roupas e do cabelo que usa, indicando a diversidade do público do jornal: 

Um jornal não pode se limitar à publicação das principais notícias. Tem que ver, mostrar tudo. Mais do que isso, tem que analisar as causas e consequências de cada notícia. Pensando bem, um jornal não se faz só de notícia. Se faz de pensamento. Registra diariamente a evolução das idéias, hábitos e costumes. Um jornal é a história de seu tempo.

Um jornal se faz de pensamento, é a história de seu tempo, mas os jornalistas não têm tempo para pensar.

E então se completa aqui o conceito de habitus neste caso específico: entre as práticas incorporadas pelos jornalistas para tomar o seu mundo familiar como evidente, está a de que o ritmo de produção precisa ser cada vez mais veloz.

Na verdade, esse “não pensar” revela uma forma muito particular de pensar por estereótipos, que se traduz em inúmeros exemplos observáveis sem qualquer esforço todos os dias, em todas as editorias de todos os grandes jornais. Podem ser percebidos na orientação da cobertura das questões da educação voltada para sua sintonia com o mercado (a “educação para o trabalho”), levando-nos a achar muito natural que seja esta a função principal da educação, ou que um jovem de classe média possa dedicar-se exclusivamente aos estudos, enquanto o pobre deva acumular o estudo com o trabalho. Ou, ainda, que sejam viáveis os projetos de “ressocialização” de jovens delinquentes através de sua “reintegração” à escola, sem que se imagine que o problema não está no jovem, mas na escola que não o absorveu nem conseguiu mantê-lo.

É também assim que, ao defender a reforma no ensino de 2º grau, o ministro da Educação pode dizer tranquilamente que “agora o estudante não vai mais ter que perder tempo com matéria chata” (O Globo, 6 de setembro de 1997) sem causar surpresa nem, muito menos, suscitar a discussão sobre essa concepção utilitarista e lúdica do ensino (e das atividades humanas em geral), ao contrário, por exemplo, da “inutilidade” da filosofia, de que fala Marilena Chauí [282] .

Da mesma forma, poderemos identificar páginas inteiras sobre falcatruas variadas, que envolvem desde ofertas de estágio nos Estados Unidos a serviço de disque-sexo, e que trazem sempre um quadrinho de alerta para que o “consumidor” saiba se proteger, sem que se questione em momento algum por que essas “empresas” conseguem se constituir e sobreviver, nem a ausência do Estado no controle desses abusos - pois parte-se do princípio de que o problema é do cidadão-consumidor. Igualmente, pautas aparentemente inocentes como as que dão conselhos para a boa alimentação e para os cuidados com a saúde, vistas como uma importante prestação de serviço, desconsideram as possibilidades reais de a maioria da população seguir aquelas indicações - de modo que as pessoas, individualmente, é que são descuidadas ou incompetentes para se manterem saudáveis. O mesmo se aplica às matérias que mostram as consequências do ímpeto consumista da população, ou da “irresponsabilidade” dos motoristas que andam em excesso de velocidade: a inadimplência é culpa do consumidor imprevidente, “que gasta mais do que pode”, da mesma forma que o desastre de trânsito é culpa do próprio motorista imprudente (especialmente se jovem). Nenhuma relação com a propaganda, que estimula o cidadão a comprar tudo em suaves prestações e convida-o a lançar-se na aventura prometida por um bólide que vai de zero a 100 km/h em oito segundos...

Esse “pensar automatizado”, perfeitamente coerente com o objetivo de “alimentar o sistema”, está associado à própria lógica das tecnologias digitais, que reduzem a informação a sequências de zero e um. Schudson descreve:

Isto é o que a imprensa realiza melhor: matérias adequadas, que têm antecipadamente seus pontos finais, e cujos pontos finais  resultam de possibilidades simples, binárias - a eleição ou o jogo será ganho ou perdido, o índice Dow-Jones vai subir ou descer, o acusado será julgado culpado ou inocente, o criminoso foi preso ou está à solta, o paciente sobrevive ou morre, a criança está desaparecida ou foi encontrada. Temas mais complexos do que estes - o orçamento, por exemplo -, se devem ser cobertos com eficiência, são traduzidos em oposições binárias do tipo: o presidente vai sair vitorioso ou será derrotado pelo Congresso [283] .

O que significa uma outra alternância binária em termos de valor: se é veloz, é bom; se é lento, é mau.

Caberia, porém, uma ressalva: não são os temas que são simples ou não; a rigor - e como demonstramos nos exemplos acima -, todas as notícias poderiam ser exploradas em sua complexidade. Fatos criminais, jornalísticos por excelência - pois representam o desvio mais ou menos violento à norma - poderiam ser abordados no seu potencial crítico a essa mesma norma, pois “o desviante não é aquele que lê a norma diferentemente, mas é o que lê na norma aquilo que ela quer ocultar” [284] . No entanto, os conflitos são simplificados a partir dos estereótipos (“bandidos” versus “cidadãos de bem”), reproduzindo o senso comum a respeito e deixando ilesa a estrutura radicalmente segregadora e violenta da própria sociedade que produz o crime.

Mas o que vale sublinhar na análise de Schudson é exatamente o processo de simplificação do mundo operado todos os dias pela imprensa. Assim, a pretexto de trazer o novo, o jornalismo acaba reproduzindo o mesmo. Embora sem abordar especificamente essa atividade - sua preocupação básica é “a ideologia da estética” -, Terry Eagleton resume exemplarmente esse processo:

Se o mito é construído como eterna recorrência, a recorrência que mais importa na esfera do capitalismo monopolista é o eterno retorno da mercadoria. O capitalismo tem uma história, certamente, mas a dinâmica de seu desenvolvimento, como Marx observou com ironia, é a recriação perpétua de sua própria estrutura “eterna”. Cada ato de troca mercantil é ao mesmo tempo singularmente diferenciado e a repetição monótona da mesma velha história. O clímax da mercadoria é assim o culto da moda, na qual o conhecido retorna com ligeiras variações, o muito velho e o muito novo são capturados juntos numa lógica paradoxal de identidade-na-diferença [285] .

As implicações políticas e ideológicas são muito claras.

Durante meus quase 20 anos de trabalho na chamada imprensa popular - jornal Notícias Populares, de São Paulo - vi muitos colegas, imbuídos dos mais nobres propósitos, tentarem explicar ao trabalhador como seria possível sustentar uma família ganhando salário mínimo. Certamente os papéis estavam trocados nessa relação. Eles aprenderiam muito mais abrindo seus ouvidos aos trabalhadores do que dando voz a qualquer alquimista de plantão em algum órgão econômico do governo [286] .

Evidentemente, a situação não se resolveria com uma simples mudança de atitude, que certamente confrontaria os interesses do jornal, solidário a um sistema que impõe tais níveis de salário. Mas o importante é perceber como os jornalistas incorporam esses valores hegemônicos. A busca da informação instantânea ajuda a mantê-los, pela falta de questionamento. Por isso é raro levantar uma dúvida como a que João Sayad expôs certa vez, ao comentar os métodos usuais na cobertura econômica:

Andam dizendo que tal instituição vai quebrar. Sim, é verdade, andam dizendo aquilo. Mas será verdade o que andam dizendo? Ou é verdade que andam dizendo mentiras? [287]

Nem, tampouco, seria imaginável uma pergunta como a do então prefeito Negrão de Lima, relatada com humor por Carlos Heitor Cony:

Quando Negrão de Lima tomou posse na prefeitura do antigo Distrito Federal, despachou com um apavorado auxiliar da área da saúde: “Senhor prefeito, o Rio tem atualmente 2,5 milhões de ratos, um para cada habitante!”
Negrão solidarizou-se com o pavor do secretário. “É muito rato!” Tirou os óculos e, mais espantado do que antes: “Como é que vocês conseguem contar os ratos?” [288]


O “fim” do jornalista e a mediação revalorizada

A valorização da informação instantânea põe em xeque o próprio sentido de mediação exercido pelo jornalista. A questão, que surgiu junto com a internet e sua promessa - semelhante à do rádio nos anos 20 - de fazer de cada indivíduo um comunicador, vinha sendo discutida principalmente em revistas especializadas nesse novo meio. A Internet World, por exemplo, publicou trechos de debates on line que abordavam a questão. “Vou ficar feliz quando a informação for tão fácil de conseguir que os jornalistas ficarão obsoletos”, disse um participante dessa discussão [289] .

Mas foi o episódio Clinton-Monica Lewinsky que trouxe elementos mais fortes para o questionamento dessa mediação, a partir da iniciativa de Matt Drudge, que se qualificava como “um homem multimídia” interessado em fazer tudo por si próprio: “pode-se dizer o que se quer, tocar numa tecla e aí está. Seria estúpido renunciar a isto” [290] .

Tudo começou quando um certo Matt Drudge enviou pelo seu site na internet, The Drudge Report, o conteúdo das conversas telefônicas gravadas pela amiga-denunciante de Monica Lewinsky, Linda Tripp. A revista Newsweek havia hesitado em difundir essas conversas, pedindo mais um tempo para verificar a informação, precaução que o próprio Matt Drudge não tomou. De modo que a irrupção da notícia na esfera da internet enlouqueceu a imprensa escrita, que, para entrar na corrida, pôs-se a cercar por todos os lados os furos de reportagem (scoops) com um único objetivo em mente: não se deixar distanciar pela internet [291] .

Essa irracionalidade se explica no contexto da velocidade como fetiche: se o valor principal da informação é a instantaneidade, o próprio sentido do trabalho do jornalista se modifica, a ponto de se tornar desnecessário.

Etimologicamente, o termo jornalista significa “analista de um dia”. (...) hoje, com a transmissão direta, e em tempo real, é o instante que é preciso analisar. A instantaneidade tornou-se o ritmo normal da informação. Portanto, um jornalista deveria chamar-se um “instantaneísta” ou um “imediatista” [292] .

Analisar o instante, porém, é impossível, pois

com o momento imediato do evento, nenhuma distância - precisamente aquela distância indispensável à análise - é possível. Por ora, o jornalista tem afinal cada vez mais a tendência de tornar-se um simples vínculo. Ele é o fio que permite conectar o evento com sua difusão [293] .

Nesse contexto, entra em crise o sentido de serviço público que originalmente orientava o jornalismo, e que foi uma questão central nas discussões sobre o futuro da mídia impressa diante da chegada da internet. De fato, o papel tradicional de mediador, embora referido à idéia de imparcialidade, sistematicamente a contradizia ao exigir do jornalista dizer “a verdade sobre os fatos”, compelindo-o ao ato eminentemente político de intervir sobre a realidade. O jornalista, portanto, teria sua importância reconhecida na tarefa de “dar ao público aquilo que ele não sabe que precisa”, como definiu Warren Hoge, chefe de redação adjunto do New York Times, no I Fórum Folha de Jornalismo, em sua crítica a certas perspectivas insinuadas com o surgimento da internet:

No futuro, o leitor, em vez de comprar o New York Times ou a Folha, liga o computador de manhã e pede a informação que ele quer. O preço das ações que tem, o placar de algum jogo, alguma informação sobre a profissão dele. E chega. Se isso acontecer, vão roubar de nós, editores, o direito, o poder e o desejo de levar ao leitor o que chamo de accidental encounter, “eu ofereço a você notícias que você não sabe que quer” [294]

A função de mediador, portanto, contrasta com o apelo da “informação personalizada” oferecida pela nova mídia, que convida o público a montar o seu próprio jornal. A liberdade de escolha seria crescente, estimulada pelo aumento exponencial da oferta de informações, proporcionado pela redução de custos de veiculação via internet. É uma fórmula que expande o velho princípio do “direito de saber”: o público não apenas tem esse direito como já sabe o que quer e sabe onde encontrar.

A consequência lógica é, por um lado, a segmentação da audiência e a formação de um círculo vicioso que termina por se revelar o contrário da diversidade prometida: a constituição de guetos fechados em torno de seus próprios interesses. Ao mesmo tempo, esse sistema radicaliza o processo de pasteurização da informação a que já nos referimos. O contraste transparece numa observação de Paulo Vaz, na resenha sobre a então mais recente edição do livro A nova mídia, de Wilson Dizard:

O New York Times se gaba de trazer em suas páginas “todas as notícias dignas de serem publicadas”. A digitalização permite antever um futuro próximo onde não haverá mais notícia que não seja noticiada, não importa se indigna ou banal [295] .

Seymour Topping, editor do The New York Times, afirma porém que existe aí uma confusão, pois informação não é sinônimo de notícia.

A notícia é um produto final de um processo no qual o jornalista age como árbitro. (...) É o jornalista que interpreta e seleciona os acontecimentos para qualquer audiência. (...) Ao classificar e selecionar o enorme dilúvio de informações às quais nós temos acesso, o jornalista desempenha uma função crucial nesta era da informação. Sem jornalistas treinados e responsáveis, nos arriscamos a ser inundados por uma abundância de fatos e imagens sem contexto, muitos dos quais trivialidades [296] .

Entretanto, de fato a lógica do “tempo real” tende a misturar as coisas, ofuscando a nitidez dos limites entre notícia e informação. Foi o que levou Robert J. Samuelson a se interrogar sobre a hipótese do “fim da notícia”, na esteira da formulação de Fukuyama sobre a história, dez anos antes [297] , e que levaria naturalmente ao “fim do jornalista” - isto é, ao fim de sua função política como mediador.

Bauman demonstra que esse processo se insere no discurso despolitizador vitorioso no mundo contemporâneo, facilitado por uma globalização que pressupõe justamente o desaparecimento de projetos capazes de dar conta da humanidade como totalidade.

E se a continuada existência da totalidade já não é uma tarefa, então os planejadores de tarefas não são mais necessários e os possíveis impostores, os autoproclamados profetas, que nunca faltam, devem ser mantidos à distância. E não há necessidade de as classes detentoras de conhecimento assumirem o papel de intelectuais - de guias espirituais que pretendem tornar as pessoas diferentes do que são ensinando-lhes coisas que elas não aprenderiam por si mesmas e antes de mais nada ensinando-lhes que é útil para elas aprender essas coisas. Não existem grandes tarefas, portanto não há utilidade para as grandes idéias [298] .

Faz sentido, portanto, a considerável mudança de orientação no trabalho jornalístico: “servir ao público” passa a ser uma atividade pautada por máximas de supermercado segundo as quais é preciso “servir bem para servir sempre”, pois “o cliente tem sempre razão”. Como mercadoria, a notícia deve ser oferecida de acordo com o gosto do freguês. E, evidentemente, a qualidade do produto passa a ser medida exclusivamente por esse padrão mercadológico: um jornal é bom simplesmente porque vende ou tem audiência.

Essa transformação é coerente com o modelo de soberania do consumidor consagrado pelo neoliberalismo e exemplarmente exposto por Mattelart:

O consumidor é, na reorganização da livre empresa, uma peça central. É, ao mesmo tempo, como “co-produtor”, um dos elos do processo de produção e, enquanto representante do povo-mercado, o pedestal do processo de legitimação da concepção neoliberal da sociedade. Com efeito, não se trata de qualquer consumidor, mas de um consumidor soberano em suas escolhas em um mercado livre (...) Nesse aspecto, o neoliberalismo sente incessantemente a necessidade de invocar a representatividade dos consumidores que fazem parte integrante do mercado. Fala em nome deles. Refém e álibi, esse consumidor desempenha, com efeito, um papel principal no palco da democratic marketplace; é seu cidadão. O discurso construído a partir do consumidor - ou, antes e sempre, desse consumidor livre de todas as amarras e determinações que não sejam as de sua própria vontade - institui-se em tal argumento de autoridade que se torna, frequentemente, um discurso terrorista. Um discurso em que só há lugar para a questão relacionada ao campo do consumo, que deverá encontrar em si mesma sua explicação e razão de ser [299] .

O mercado procura, assim, legitimar-se através da oferta de uma interatividade plebiscitária do tipo “você decide”, baseada na mesma lógica binária (sim/não) dos sistemas de informação, e da realização de pesquisas que supostamente “ouvem” o consumidor para dar-lhe o que ele quer. Jean-Marie Piemme mostra o vício oculto desse processo:

são colocados face a face dois elementos (os meios de comunicação de massa/as pessoas, os grupos, a sociedade) que foram, previamente, autonomizados; em seguida, interrogamo-nos sobre sua relação. Tal fato significa claramente que, no começo, não há localização dos meios de comunicação de massa no âmago das instâncias da formação social. São apresentados fora da estrutura e parecem engrendrar um efeito sui generis sobre pessoas/grupos/determinada sociedade: as determinações estruturais dos usuários, assim como as contradições que os habitam ou das quais constituem um dos termos, são silenciadas. Nessa teoria, tudo se passa como se estes nada tivessem a ver com as relações de poder que conferem à formação social sua configuração particular. Essa teoria parece ignorar que os meios de comunicação de massa fazem parte das contradições sociais, que seus efeitos são intervenções suscetíveis de corroborar ou alterar a relação de forças que se encontram frente a frente [300] .

François Brune acrescenta que esse sistema revela uma forma muito sutil de controle da opinião pública sob a aparência de um convite à participação democrática, pois “sonda-se o público sobre o que lhe foi mostrado, não sobre o que lhe foi escondido. Controlar a opinião pública é controlar o real sobre o qual ela é instada a reagir” [301] .

Esse controle, porém, nunca é absoluto - do contrário, não estaríamos escrevendo sobre ele, nem haveria tantos estudos a respeito. E, mesmo, a recente crise por que passa a imprensa sugere ser possível e necessário retomar criticamente alguns pressupostos fundamentais do jornalismo, numa perspectiva mais ampla de mudança social. A crise, segundo Ramonet, é dupla: perda de leitores (de 78% para 59% entre 1970 a 1997) e espectadores de telejornal (de 60% para 38% entre 1993 e 1998), e perda de credibilidade, tanto nos Estados Unidos quanto na Grã-Bretanha, de acordo com uma pesquisa de 1985 do Pew Research Center, que tomava como critério as referências clássicas de objetividade e exatidão.

Certamente não será o caso de retomar esses conceitos tais como foram formulados originalmente, mesmo porque a análise desenvolvida aqui permite mostrar o quanto eles são precários. Mas é inevitável sublinhar o papel decisivo do jornalismo como prática de mediação discursiva: é através dela que podemos tomar conhecimento do que ocorre no mundo. O ponto de partida, portanto, é a recuperação da importância do jornalista como mediador, como parte da recuperação do próprio sentido político de mediação.

Durante mais de cem anos, o progresso consistiu em suprimir os intermediários, que representavam freios à liberdade dos homens. Hoje, graças às técnicas, cada um, em sua casa, no trabalho, na escola, em férias, pode ter acesso diretamente a tudo: é o reino do do it yourself (“faça você mesmo”). Reintroduzir os intermediários torna-se então uma necessidade, porque quanto mais uma sociedade é complexa, interativa, aberta, mais eles são indispensáveis: políticos, jornalistas, professores, médicos, comerciantes [302] .



[212] Cf. Karl Marx e Fredrich Engels. “El carácter fetichista de la mercancía y su secreto”. El Capital, tomo I, vol. 1, Mexico, Siglo XXI, 1978.

[213] Cf. Warren Hoge, Folha de S. Paulo, 22 de outubro de 1993.

[214] Ciro Marcondes Filho. O capital da notícia. op. cit., p. 30.

[215] Jean Baudrillard. Por uma economia política do signo, apud Marcondes Filho, op. cit., p. 30.

[216] Coletivo de autores “imprensa”, apud Marcondes Filho, op. cit., p 32.

[217] Genro Filho, op. cit., p. 210.

[218] Idem, p. 211.

[219] Antonio Negri. “Infinitude da comunicação/finitude do desejo”, in André Parente (org.), Imagem-máquina - a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro, 34, 1993, p. 173.

[220] Idem, ibidem.

[221] Virilio, op. cit., p. 109.

[222] Idem, p. 113-114.

[223] Idem, p. 122. Grifos do autor.

[224] Laymert Garcia dos Santos, prefácio a Paul Virilio, Velocidade e política. São Paulo, Estação Liberdade, 1996, p. 10-11.

[225] John von Neumann, L’ordinateur et le cerveau, apud. Virilio, op. cit., p. 119.

[226] Virilio, op. cit., p. 93.

[227] Idem, p. 108. Grifos do autor.

[228] Idem, p. 49.

[229] Idem, p. 46.

[230] Idem, ibidem.

[231] Ramonet, op. cit., p. 7-8.

[232] Mariana Mainenti Gomes. A engrenagem do tempo real - relato de uma experiência no jornalismo on line. Projeto experimental em jornalismo. IACS/UFF, Niterói, março de 2000.

[233] “As verdades de Caco Barcellos”, in Esquinas de S.P., jornal laboratório da Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero, nº 19, setembro de 1999.

[234] Ricardo Kotscho, A prática da reportagem. São Paulo, Ática, 1986; Gilberto Dimenstein e Ricardo Kotscho. A aventura da reportagem. São Paulo, Summus, 1990; Clóvis Rossi, O que é jornalismo?,  op. cit., e Vale a pena ser jornalista?. São Paulo, Moderna, 1987.

[235] Cf. Márcia Lisboa, Jornalista, profissão passageiro, op. cit.

[236] Eric Klinenberg. “Les journalistes à tout faire de la presse américaine”. Le Monde Diplomatique, fev. 1999, p. 7.

[237] Idem, ibidem.

[238] Idem, ibidem.

[239] Sérgio Augusto, in Geraldinho Vieira. Complexo de Clark Kent - são super-homens os jornalistas? São Paulo, Summus, 1988.

[240] Folha de S. Paulo. Manual Geral da Redação, op. cit., p. 36.

[241] Idem, p. 112.

[242] Robert Fisk. “TV mostrou e perdeu a guerra do Golfo”. in Folha de S. Paulo, especial (multimídia), 19 de janeiro de 1992, p. 1.

[243] Folha de S. Paulo, 20 de outubro de 1993.

[244] Edwin Neuman. “A responsabilidade do jornalista”, in Robert Schmuhl (org). op. cit., p. 40-41.

[245] Idem, p. 34.

[246] Idem, p. 41.

[247] Idem, p. 31.

[248] Cf., por exemplo, Edward Herman & Noam Chomsky. Manufacturing consent - the political economy of the mass media. New York, Pantheon, 1988.

[249] Michael Schudson. “When? Deadlines, datelines, and history”. in Robert Karl Manofff e Michael Schudson. Reading the news. New York, Pantheon Books, 1986, p. 81.

[250] Caco Barcellos, entrevista à revista Caros Amigos, nº 2, maio de 1997, p. 19.

[251] Janio de Freitas. “As ondas do Rio”. Folha de S. Paulo, 30 de outubro de 1994.

[252] Cf. Projeto Editorial 97, Folha de S. Paulo.

[253] Schudson, op. cit., p. 81.

[254] Idem, p. 82.

[255] Salete Maria Polita Maccalóz. O Poder Judiciário, os meios de comunicação e a opinião pública. Tese de doutorado, ECO-UFRJ, agosto de 2000.

[256] Ignacio Ramonet, op. cit., p. 21.

[257] Marcondes Filho, op. cit., p. 21.

[258] Idem, p. 113.

[259] Luís Nassif. “O jornalismo de insinuações”. Folha de S. Paulo, 24 de junho de 1997.

[260] Luís Nassif. “Cena de sangue na CPI do narcotráfico”, in revista Imprensa, janeiro de 2000, p.33.

[261] Idem, ibidem. Grifos nossos.

[262] Ramonet. op. cit., p. 132-133.

[263] apud Ramonet, op. cit., p. 25-26.

[264] apud Renato Pompeu. “Jornalismo Disney”, art. cit.

[265] apud Ramonet., op. cit., p. 52.

[266] Ramonet. op. cit., p. 8.

[267] Idem, p. 99-100.

[268] Idem, p. 26.

[269] Idem, p. 98-99.

[270] Idem, p. 101.

[271] Franciscato, art. cit.

[272] Genro Filho, op. cit., p. 36.

[273] Contardo Calligaris. “A mídia carpideira”. Folha de S. Paulo, caderno Ilustrada, 22 jul 1999, p. 8.

[274] Alfredo Boneff de Pina. Beijo sem língua no asfalto! Volúpia pelo furo deu barriga! Projeto experimental em jornalismo. IACS/UFF, Niterói, setembro de 1997.

[275] Renata lo Prete. “Uma resposta simples”. Folha de S. Paulo, 14 de maio de 2000.

[276] Apud Ramonet, op. cit., p. 102.

[277] Idem, p. 92.

[278] Ramonet, p. 32.

[279] Idem, p. 45.

[280] Idem, p. 63-65.

[281] Renato Pompeu, art. cit.

[282] Marilena Chauí. Convite à filosofia. São Paulo, Ática, 1994, p. 18.

[283] Schudson, op. cit., p. 99. Grifo nosso.

[284] Antonio A. Serra. O desvio nosso de cada dia - a representação do cotidiano num jornal popular. Rio de Janeiro, Achiamé, 1980, p. 23.

[285] Terry Eagleton. A ideologia da estética. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1993, p. 231

[286] José Luiz Proença. “Apresentação” a Claudia Santiago e Vito Gianotti. Comunicação Sindical - falando para milhões. Petrópolis, Vozes, 1997, p. 9.

[287] João Sayad. “Notas sobre a imprensa”. Folha de S. Paulo, 12 de fevereiro de 1993.

[288] Carlos Heitor Cony. “Ratos e salários”. in Folha de S. Paulo, 10 de janeiro de 1998.

[289] Revista Internet World, outubro de 1995, p. 56.

[290] Le Monde, 16 de agosto de 1998, apud Ramonet, op. cit., p. 56.

[291] Ramonet, op. cit., p. 14.

[292] Idem, p. 74.

[293] Idem, ibidem.

[294] Folha de S. Paulo, 22 de outubro de 1993.

[295] Paulo Vaz. “Na velocidade da mídia”. Jornal do Brasil, caderno Idéias, 10 de junho de 2000, p. 6.

[296] Seymour Topping, apud Sérgio Mattos. “Novas técnicas, tecnologias e tendências no jornalismo”. in Pauta Geral, ano 3, vol. 3, Salvador, UFBA, setembro 1995, p. 125.

[297] Robert J. Samuelson. “O fim das notícias?”, in Exame, 28 de julho de 1999, p. 156.

[298] Bauman, op. cit., p. 105. Grifos nossos.

[299] Mattelart. Comunicação-mundo, op. cit., p. 279.

[300] Jean-Marie Piemme. "La télévision comme on la parle", 1978, apud Mattelart, Comunicação-mundo, op. cit., p. 281-282.

[301] François Brune. “De la soumission dans les têtes”. Le Monde Diplomatique, abril 2000, p. 26.

[302] Dominique Wolton. Sortir de la communication médiatisée. Le Monde Diplomatique, junho 1999, p. 29.