O JORNALISMO NA ERA SLASHDOT

Catarina Moura, Universidade da Beira Interior

Janeiro de 2002

(versão para imprimir - em pdf)

 

I. A Filosofia

À medida que os computadores invadiram as nossas vidas, assumindo uma ubiquidade sem retorno através de um sistema em rede que velozmente se apossa de todo o mundo, a ideia de implementar uma filosofia peer-to-peer foi ganhando consistência e adeptos, surgindo como uma evolução natural do novo medium.
Antes de mais, o conceito. Por peer-to-peer entende-se “a partilha de recursos e serviços através de troca directa entre sistemas” [1] . Isto significa, no fundo, um aproveitamento de recursos, que se traduz aos mais diversos níveis, desde a troca de informação à partilha de espaço em disco.
O encontro peer-to-peer / open source era, à partida, inevitável e desejável. O termo open source surge aplicado ao software que algumas pessoas criam e disponibilizam gratuitamente na rede e cuja qualidade é compatível com o que de melhor é desenvolvido pelas grandes empresas. É o caso do sistema operativo Linux, que vem conquistando cada vez mais adeptos entre a comunidade cibernauta.
A eficácia desta filosofia fez com que se questionasse sobre como seria aplicá-la a outras áreas, nomeadamente o jornalismo, fazendo surgir uma ideia ainda com pouca expressão real: a do jornalismo open source. Indiciando desde logo uma mudança fundamental no jornalismo como é entendido e praticado, esta ideia tem vindo a concretizar-se em sites como o Slashdot (http://slahdot.org).


II. O Fenómeno Slashdot

Situado entre a webzine e o fórum, o Slashdot representa o que muitos consi­deram o início da era do jornalismo open source, o que implica, desde logo, permitir que várias pessoas (que não apenas os jornalistas) escrevam e, sem a castração da imparcialidade, dêem a sua opinião, impedindo assim a prolife­ração de um pensamento único, como o pode ser aquele difundido pela maioria dos jornais, cuja objectividade e imparcialidade são muitas vezes máscaras de um qualquer ponto de vista que serve interesses mais particulares que apenas o de informar com honestidade e isenção o público que os lê.
O Slashdot é, em essência, uma democratização do jornalismo, deixando bem claro, no entanto, que não é jornalismo. “In a lot of ways, journalists have decided that journalism is something journalists do.” “That’s sort of elitist, but (...) I really won’t contest that: we’re just not journalists.” [2] A declaração é de Rob Malda (CmdrTaco), um dos criadores do site, juntamente com Jeff Bates (Hemos).
Fenómeno recente, o Slashdot surge como “Chips & Dips” no verão de 1997, numa conta que o então estudante Rob Malda mantinha no Hope College. Construído quase exclusivamente a partir de software open source, tal como o Linux e o Apache, o sucesso foi tão rápido e esmagador que em Novembro de 2001 o Slashdot é vendido à empresa  Andover.net. Esta decisão não foi lamentada. A venda permitiu o seu alojamento em computadores mais potentes e, portanto, mais compatíveis com as necessidades de um site que serve 30 milhões de páginas por mês. Para Rob Malda, que continua a gerir o site, mas agora com a ajuda de uma equipa de cerca de dez pessoas, o Slashdot continua o mesmo, está apenas mais eficaz.
O que define o Slashdot enquanto fórum é o facto de funcionar como uma comunidade, o que implica, antes mais, a existência de interesses específicos em comum. Consequentemente, o conteúdo é integralmente vocacionado para as apetências dos “nerds” tecnológicos (segundo auto-definição) que compõem a comunidade. Daí o subtítulo da página: “News for Nerds. Stuff that Matters.” Apesar de se pautar pelo particular e não pelo universal, na essência continua a ser um fórum noticioso, diversificado e plural.
O seu funcionamento, embora se assemelhe ao do fórum normal, apresenta algumas peculiaridades que estabelecem a diferença. O utilizador envia, através de uma “submissions bin”, a informação que deseja pôr online e que pode assumir os mais diversos formatos: um texto, um link, um fragmento de uma página Web, ... Se o assunto for considerado relevante, actual ou apelativo, será escolhido e publicado por um dos editores do Slashdot que, diariamente, seleccionam entre os artigos submetidos aqueles que preencherão o site, escolhendo os melhores ou mais actuais para a primeira página e dividindo os restantes pelas diversas secções listadas à esquerda da página. Sob cada secção listada surge a data do último artigo ali colocado e o número de artigos publicados no próprio dia. Aos artigos é atribuído um ícone, que imediatamente elucida o leitor sobre o assunto (‘topic’) a que se refere.
O artigo publicado é, muitas vezes, apenas o início de uma longa lista de comentários que, como em qualquer fórum, acabam por ser não só reacções ao artigo inicial mas também reacções a reacções. Como muitos dos utilizadores do Slashdot são especialistas, ler os comentários pode muitas vezes ser mais produtivo que ler o próprio artigo. No entanto, nem todos os comentários são interessantes. Muitos deles podem de facto não dizer nada. Tendo isto em consideração, o Slashdot tem um sistema de moderação que procura “separar o trigo do joio”, por assim dizer, e em relação ao qual o utilizador pode escolher ter uma maior ou menor dependência. Esta escolha é importante na medida em que o que interessa a uns pode não interessar a outros. Os moderadores são escolhidos pelo sistema entre os utilizadores mais assíduos e com uma contribuição mais positiva. A sua função é atribuir uma pontuação aos comentários submetidos. Os comentários mais pontuados são, consequentemente, os mais lidos.
O estatuto de moderador é temporário, de modo a salvaguardar a pluralidade de ideias que caracteriza o site. Por outro lado, e para prevenir eventuais abusos, não lhe é permitido submeter comentários nas discussões que está a moderar.


a) Anonimato: um risco calculado

Uma das características mais peculiares do Slashdot enquanto fórum noticioso é o facto de permitir o anonimato.  Os participantes só se identificam se dese­jarem e a publicação dos artigos não depende de o autor se ter identificado ou não. Ao permitir intervenções anónimas ou sob pseudónimo, o Slashdot per­mite que os artigos sejam avaliados pelo seu conteúdo e não pela sua autoria e, por outro lado, oferece a quem tenha informação importante mas não possa ou queira identificar-se a hipótese de a divulgar sem medo.
Embora muitos artigos sejam publicados sem grande ou mesmo nenhum conhecimento sobre a sua origem ou veracidade, isso é considerado um risco apenas para quem submete a informação, pois dados falsos ou infundados são normalmente detectados com rapidez pela comunidade. Consequentemente, a falsa informação é rara, o que possibilita um ambiente de segurança e assegura o sucesso do sistema.
No entanto, consciente de que o anonimato, embora vantajoso para o utilizador, pode prejudicar a credibilidade do site, o Slashdot estabelece restri­ções a todos os utilizadores não identificados. Desde logo rotulados pelo sistema como “Anonymous Cowards” (AC’s), não podem ser moderadores e os seus artigos ou comentários recebem uma pontuação mínima, o que significa, na prática, que serão pouco lidos e, hipoteticamente, que poderão nunca vir a sê-lo.


b) Do universal para o particular: o filtro

O Slashdot vem transformar as expectativas tradicionais em relação à informação noticiosa. São os seus utilizadores que fazem o site. São eles que pesquisam, que escrevem, que comentam, sem pretensões ao jornalismo.
A crescente quantidade global de informação dificulta a capacidade de filtrar o que realmente interessa e de avaliar o que é de confiança. E estes fóruns funcionam, no fundo, como filtros de um tipo de informação que interessa espe­cificamente a uma comunidade virtual. Por outro lado, a multiplicidade de comentários que se gera em volta de cada tópico permite ao leitor obter uma visão muito mais ampla e aprofundada sobre a questão.
A natureza hipertextual / não linear das publicações online, bem como a instantaneidade e comodidade de acesso que permitem, justificam plenamente o seu sucesso, mas o facto de grande parte dos sites noticiosos serem pouco mais que espelhos das suas versões “reais“ (real entendido enquanto oposto de virtual), transportando muitas vezes para o novo medium os vícios que lhe estão associados, travam esse sucesso e abrem espaço para a popularidade de sites como o Slashdot. Mas há também quem defenda que os valores do jornalista profissional devem marcar diferença no tipo e na qualidade da informação disponibilizada online, assegurando desde logo a objectividade e imparcialidade dos seus conteúdos, de modo a criar uma relação de confiança com o leitor.


III. O Jornalismo integra, a Ética transcende

Quando se deu o “boom” da Internet, em 1994, foram muitos os cépticos e os temerosos em relação às possibilidades de o jornalismo vingar no novo meio sem ver diluídos os seus valores tradicionais. A inexistência de regras deixava antever o caos.
Cerca de oito anos depois, muitas regras continuam por estabelecer, mas uma análise do meio revela que, salvo raras excepções, os sites noticiosos tiveram um comportamento muito positivo. J.D. Lasica defende que os jornalistas souberam transportar para a rede os seus valores de longa data, concluindo que a dimensão ética transcende o meio [3] .
O que falhou foi, talvez, a falta de visão de futuro, que se traduz desde logo numa crónica incapacidade de experimentação. As reais potencialidades do novo medium só agora começam, timidamente, a ser exploradas.
O jornalismo online tem que ser visto como uma outra forma de jornalismo. Embora seja desejável que importe toda a deontologia que pauta a profissão, ultrapassa necessariamente os moldes tradicionais, desde logo ao permitir a convergência texto – som – imagem. É aquilo que Mark Deuze classifica como “jornalismo integrado” ou total [4] .
A constatação de que os meios noticiosos online podem ser mais do que um prolongamento dos respectivos corpos impressos, televisivos ou radiofónicos é um primeiro passo para conseguir compreender com maior amplitude a possibilidade do seu nascimento na rede não como outro do mesmo mas como algo em si mesmo, ou seja, tendo nos media “reais” não um modelo mas apenas uma inspiração.
Elementos como “arquivo”, “recursos” ou “material de referência” são vantagens óbvias de uma publicação digital, que pode alimentar-se do imenso e crescente capital informativo armazenado nas extensas bases de dados que se estendem em rede por todo o mundo. Em termos de conteúdo, essa vantagem traduz-se desde logo pela possibilidade de solidificar a informação publicada disponibilizando links que permitam ao leitor uma percepção muito mais aprofundada do assunto. Deste modo, o texto passa a ter vários níveis de leitura (“layers”, segundo M. Deuze), algo que o jornal tradicional não pode oferecer.
O próprio texto é algo a que o jornalista online deve dedicar-se. A Net exige experiências com a linguagem e com o estilo, de modo a adaptar os mesmos a uma leitura que é, à partida, feita no monitor do computador e que requer rapidez, tendo em conta que o utilizador está a pagar para poder aceder à Internet e quer ter tudo no menor espaço de tempo possível.
Há, obviamente, novas considerações éticas a ser feitas ao pensarmos a Web como medium de recolha e difusão, pois ambas as vertentes colocam em causa a sua credibilidade. A recolha de informação pode ser feita das mais variadas formas através da Internet, desde a vulgar consulta à participação em fóruns e chats. Para evitar que a sua conduta seja posta em causa, o jornalista deve citar todas as fontes de onde retirou a informação utilizada no seu artigo e identificar-se sempre que se encontre num chat com o propósito de recolher material.
Mas é enquanto meio difusor de informação noticiosa que a Internet levanta mais dúvidas. A velocidade é simultaneamente a sua grande vantagem e o seu grande vírus. A competição pela divulgação da notícia em primeira mão é exacerbada no novo meio, levando a que muitas vezes fiquem factos por confirmar ou sejam adiantadas informações erradas sobre acontecimentos ainda em desenvolvimento. Claro que um jornalista que respeite o seu código deontológico vai evitar estas situações, mas muitas vezes a sobrevivência num meio que tanto a dificulta pode ditar regras paralelas a que o jornalista é forçado a obedecer.
São estes “perigos” que deixam espaço para o sucesso dos vários Slashdot’s que vão surgindo na rede.


IV. O Jornalismo pós-Slashdot

Analisadas as partes, a questão impõe-se: o que significaria, em termos concretos, a fusão entre o jornalismo e o modelo slashdot?
Embora, aparentemente, esta fusão permitisse testar a eficácia da filosofia peer-to-peer aplicada ao jornalismo, a natureza do Slashdot levanta algumas dúvidas. Desde logo a possibilidade de interacção com o leitor, que é transformado numa espécie de jornalista. Ora, elitismos à parte, nem toda a gente pode ser jornalista. Há, desde logo, uma formação inerente à profissão que, obviamente, não é inata. Se, por um lado, esta interacção (que é a base do Slashdot) é interessante e certamente sedutora para o utilizador, podendo garantir a sua assiduidade (R. Malda reconhece-o: “we feel that the unique nature of slashdot is largely because the contents of the homepage are determined by a handful of people” [5] ), por outro não seria aconselhável salvaguardar a hipótese de rescrever os artigos, de modo a adaptar a matéria-prima aos parâmetros jornalísticos? Isto implica, à partida, eliminar por completo o carácter parcial do texto, que ficaria guardado para a secção dos comentários ou da opinião. A objectividade e a imparcialidade são valores fulcrais do jornalismo. Não sendo uma prioridade, ou sequer uma preocupação, para os membros da comunidade Slashdot, isso não poderia manter-se num jornal.
Além de permitir que qualquer pessoa participe e se expresse livremente, no Slashdot também o editorial pode ser da autoria de qualquer utilizador, bastando o envio antecipado de uma proposta. Tendo em consideração que o editorial de um jornal deve conter uma ideia capaz de exprimir o espírito da publicação, a sua autoria deverá ser deixada a quem a queira?
Por outro lado, preocupações sintácticas e semânticas, descuradas no Slashdot a favor da rapidez de publicação, não podem ser esquecidas num site noticioso. Rob Malda assume que “a gramática é péssima” [6] mas, apesar de terem um copy editor cuja função é tentar encontrar e corrigir erros, a qualidade da escrita não é uma prioridade, o que certamente não poderia acontecer jornalisticamente.
A questão do anonimato levanta dúvidas óbvias. Apesar do sistema de moderação do Slashdot, faria sentido permitir artigos e comentários de autor não identificado, sabendo o efeito que isso pode ter na credibilidade da publicação? A identificação pedida pelo Slashdot resume-se a um e-mail que o utilizador deve submeter à autoridade central. Mas até que ponto um e-mail e um nickname tornam um utilizador menos anónimo? Não seria recomendável que fosse pedida mais informação, pelo menos a quem quisesse submeter um artigo?
Esta precaução é tanto mais pertinente se considerarmos que, num jornal, a verificação da autenticidade da informação não deve ser póstuma à sua publicação. Embora numa comunidade tão extensa como a do Slashdot a falsa informação seja facilmente detectada, isso torna-se demasiado arriscado num site ainda pequeno, que esteja a começar e que não pode ver a sua credibilidade afectada sob pena de não vingar.
A resposta a todas as dúvidas levantadas pela ideia do jornalismo peer-to-peer exige reflexão e análise. Exige sobretudo um laboratório real, no qual possam ser testadas todas as hipóteses de modo a avançar, um passo que seja, na determinação de um novo jornalismo, mais consentâneo com as imensas possibilidades apresentadas pela Internet.

“Acredita-se que o jornalismo open source poderia fazer a catedrais mediáticas centralizadas como o Wall Street Journal, o New York Times ou a CBS o mesmo que os programadores Linux estão a fazer à Microsoft”. (Bart Preecs) [7]


BIBLIOGRAFIA

BÉLANGER, André, Journalisme et Nouveau Journalisme, Multimédium, 1999
(http://www.mmedium.com/chroniques/abelanger/19990830.html)

CRAMER, Florian, The Slashdot Effect

(http://userpage.fu-berlin.de/~cantsin/h...ung/slashdot/blz_slashdot_-_english.txt)

DEUZE, Mark, The Web Communicators: Issues in Research into Online Journalism and Journalists, First Monday – Peer-reviewed Journal on the Internet
(http://www.firstmonday.dk/issues/issues3_12/deuze/)

GLAVE, James, Slashdot : All the News that Fits, Wired News, 1999
(http://www.wired.com/news/print/0,1294,21448,00.htm)

KAHNEY, Leander, CmdrTaco on Slashdot Sale, Wired News, 1999
(http://www.wired.com/news/print/0,1294,20483,00.html)

LASICA, J.D., How the Net is Shaping Journalism Ethics, The Well, 2001
(http://www.well.com/user/jd/newsethics.htm)

LASICA, J.D., A Scorecard for Net News Ethics, Online Journalism Review, 2001
(http://ojr.usc.edu/content/story.cfm?request=643)

MALDA, Rob, Inside Slashdot, Linux World
(http://www.linuxworld.com/linuxworld/lw-1998-10/lw-10-slashdot.html)

MILLER, Robin, From Niche to News Portal, How Slashdot Survived the Attack, Online Journalism Review, 2001

(http://ojr.usc.edu/content/print.cfm?print=641)

Peer-to-peer Work Group (página oficial)

(http://www.p2pwg.org)

PREECS, Bart, Open Source Journalism, Make Your Own Media
(http://www.makeyourownmedia.org/osj.html)

PRIESTLEY, Matthew, Honest News in the Slashdot Decade, First Monday – Peer-reviewed Journal on the Internet
(http://www.firstmonday.dk/issues/issues4_8/priestley/)

Slashdot FAQ – Frequently Asked Questions
(http://slashdot.org/faq/)

THOMPSON, Nicholas, Reboot! How Linux and Open-source Development could Change the Way we Get Things Done, The Washington Monthly Online, 2000
(http://www.washingtonmonthly.com/features/2000/0003.thompson.htm)



[1] In Site oficial Peer-to-Peer Work Group (http://www.p2pwg.org)

[2] in Glave:1999

[3] in Lasica, How the Net is Shaping Journalism Ethics

[4] in Deuze, The Web Communicators: Issues in Research into Online Journalism and Journalists

[5] in Malda, Inside Slashdot

[6] Malda, Slashdot: Frequently Asked Questions

[7] in Preecs, Open Source Journalism