Janeiro de 2002
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À medida que os computadores invadiram
as nossas vidas, assumindo uma ubiquidade sem retorno através de um sistema
em rede que velozmente se apossa de todo o mundo, a ideia de implementar uma
filosofia peer-to-peer foi ganhando consistência e adeptos, surgindo
como uma evolução natural do novo medium.
Antes de mais, o conceito. Por
peer-to-peer entende-se “a partilha de recursos e serviços através de
troca directa entre sistemas”
[1] . Isto significa, no fundo, um aproveitamento de recursos, que
se traduz aos mais diversos níveis, desde a troca de informação à partilha de
espaço em disco.
O encontro peer-to-peer / open
source era, à partida, inevitável e desejável. O termo open source
surge aplicado ao software que algumas pessoas criam e disponibilizam gratuitamente
na rede e cuja qualidade é compatível com o que de melhor é desenvolvido pelas
grandes empresas. É o caso do sistema operativo Linux, que vem conquistando
cada vez mais adeptos entre a comunidade cibernauta.
A eficácia desta filosofia fez com que se questionasse sobre como seria aplicá-la
a outras áreas, nomeadamente o jornalismo, fazendo surgir uma ideia ainda com
pouca expressão real: a do jornalismo open source. Indiciando desde logo
uma mudança fundamental no jornalismo como é entendido e praticado, esta ideia
tem vindo a concretizar-se em sites como o Slashdot (http://slahdot.org).
Situado entre a webzine e o fórum,
o Slashdot representa o que muitos consideram o início da era do jornalismo
open source, o que implica, desde logo, permitir que várias pessoas (que
não apenas os jornalistas) escrevam e, sem a castração da imparcialidade, dêem
a sua opinião, impedindo assim a proliferação de um pensamento único, como
o pode ser aquele difundido pela maioria dos jornais, cuja objectividade e imparcialidade
são muitas vezes máscaras de um qualquer ponto de vista que serve interesses
mais particulares que apenas o de informar com honestidade e isenção o público
que os lê.
O Slashdot é, em essência, uma democratização do jornalismo, deixando bem claro,
no entanto, que não é jornalismo. “In a lot of ways, journalists have decided
that journalism is something journalists do.” “That’s sort of elitist, but (...)
I really won’t contest that: we’re just not journalists.” [2] A declaração é de Rob Malda
(CmdrTaco), um dos criadores do site, juntamente com Jeff Bates (Hemos).
Fenómeno recente, o Slashdot surge
como “Chips & Dips” no verão de 1997, numa conta que o então estudante Rob
Malda mantinha no Hope College. Construído quase exclusivamente a partir de
software open source, tal como o Linux e o Apache, o sucesso foi tão
rápido e esmagador que em Novembro de 2001 o Slashdot é vendido à empresa Andover.net.
Esta decisão não foi lamentada. A venda permitiu o seu alojamento em computadores
mais potentes e, portanto, mais compatíveis com as necessidades de um site
que serve 30 milhões de páginas por mês. Para Rob Malda, que continua a gerir
o site, mas agora com a ajuda de uma equipa de cerca de dez pessoas,
o Slashdot continua o mesmo, está apenas mais eficaz.
O que define o Slashdot enquanto fórum é o facto de funcionar como uma comunidade,
o que implica, antes mais, a existência de interesses específicos em comum.
Consequentemente, o conteúdo é integralmente vocacionado para as apetências
dos “nerds” tecnológicos (segundo auto-definição) que compõem a comunidade.
Daí o subtítulo da página: “News for Nerds. Stuff that Matters.” Apesar de se pautar pelo particular
e não pelo universal, na essência continua a ser um fórum noticioso, diversificado
e plural.
O seu funcionamento, embora se assemelhe
ao do fórum normal, apresenta algumas peculiaridades que estabelecem a diferença.
O utilizador envia, através de uma “submissions bin”, a informação que
deseja pôr online e que pode assumir os mais diversos formatos: um texto, um
link, um fragmento de uma página Web, ... Se o assunto for considerado relevante,
actual ou apelativo, será escolhido e publicado por um dos editores do Slashdot
que, diariamente, seleccionam entre os artigos submetidos aqueles que preencherão
o site, escolhendo os melhores ou mais actuais para a primeira página
e dividindo os restantes pelas diversas secções listadas à esquerda da página.
Sob cada secção listada surge a data do último artigo ali colocado e o número
de artigos publicados no próprio dia. Aos artigos é atribuído um ícone, que
imediatamente elucida o leitor sobre o assunto (‘topic’) a que se refere.
O artigo publicado é, muitas vezes,
apenas o início de uma longa lista de comentários que, como em qualquer fórum,
acabam por ser não só reacções ao artigo inicial mas também reacções a reacções.
Como muitos dos utilizadores do Slashdot são especialistas, ler os comentários
pode muitas vezes ser mais produtivo que ler o próprio artigo. No entanto, nem
todos os comentários são interessantes. Muitos deles podem de facto não dizer
nada. Tendo isto em consideração, o Slashdot tem um sistema de moderação que
procura “separar o trigo do joio”, por assim dizer, e em relação ao qual
o utilizador pode escolher ter uma maior ou menor dependência. Esta escolha
é importante na medida em que o que interessa a uns pode não interessar a outros.
Os moderadores são escolhidos pelo sistema entre os utilizadores mais assíduos
e com uma contribuição mais positiva. A sua função é atribuir uma pontuação
aos comentários submetidos. Os comentários mais pontuados são, consequentemente,
os mais lidos.
O estatuto de moderador é temporário, de modo a salvaguardar a pluralidade de
ideias que caracteriza o site. Por outro lado, e para prevenir eventuais
abusos, não lhe é permitido submeter comentários nas discussões que está a moderar.
a) Anonimato: um risco calculado
Uma das características mais peculiares
do Slashdot enquanto fórum noticioso é o facto de permitir o anonimato. Os
participantes só se identificam se desejarem e a publicação dos artigos não
depende de o autor se ter identificado ou não. Ao permitir intervenções anónimas
ou sob pseudónimo, o Slashdot permite que os artigos sejam avaliados pelo seu
conteúdo e não pela sua autoria e, por outro lado, oferece a quem tenha informação
importante mas não possa ou queira identificar-se a hipótese de a divulgar sem
medo.
Embora muitos artigos sejam publicados
sem grande ou mesmo nenhum conhecimento sobre a sua origem ou veracidade, isso
é considerado um risco apenas para quem submete a informação, pois dados falsos
ou infundados são normalmente detectados com rapidez pela comunidade. Consequentemente,
a falsa informação é rara, o que possibilita um ambiente de segurança e assegura
o sucesso do sistema.
No entanto, consciente de que o anonimato, embora vantajoso para o utilizador,
pode prejudicar a credibilidade do site, o Slashdot estabelece restrições
a todos os utilizadores não identificados. Desde logo rotulados pelo sistema
como “Anonymous Cowards” (AC’s), não podem ser moderadores e os seus
artigos ou comentários recebem uma pontuação mínima, o que significa, na prática,
que serão pouco lidos e, hipoteticamente, que poderão nunca vir a sê-lo.
b) Do universal para o particular: o filtro
O Slashdot vem transformar
as expectativas tradicionais em relação à informação noticiosa. São os seus
utilizadores que fazem o site. São eles que pesquisam, que escrevem,
que comentam, sem pretensões ao jornalismo.
A crescente quantidade global de informação
dificulta a capacidade de filtrar o que realmente interessa e de avaliar o que
é de confiança. E estes fóruns funcionam, no fundo, como filtros de um tipo
de informação que interessa especificamente a uma comunidade virtual. Por outro
lado, a multiplicidade de comentários que se gera em volta de cada tópico permite
ao leitor obter uma visão muito mais ampla e aprofundada sobre a questão.
A natureza hipertextual / não linear das publicações online, bem como a instantaneidade
e comodidade de acesso que permitem, justificam plenamente o seu sucesso, mas
o facto de grande parte dos sites noticiosos serem pouco mais que espelhos
das suas versões “reais“ (real entendido enquanto oposto de virtual), transportando
muitas vezes para o novo medium os vícios que lhe estão associados, travam
esse sucesso e abrem espaço para a popularidade de sites como o Slashdot.
Mas há também quem defenda que os valores do jornalista profissional devem marcar
diferença no tipo e na qualidade da informação disponibilizada online, assegurando
desde logo a objectividade e imparcialidade dos seus conteúdos, de modo a criar
uma relação de confiança com o leitor.
Quando se deu o “boom” da Internet,
em 1994, foram muitos os cépticos e os temerosos em relação às possibilidades
de o jornalismo vingar no novo meio sem ver diluídos os seus valores tradicionais.
A inexistência de regras deixava antever o caos.
Cerca de oito anos depois, muitas
regras continuam por estabelecer, mas uma análise do meio revela que, salvo
raras excepções, os sites noticiosos tiveram um comportamento muito positivo.
J.D. Lasica defende que os jornalistas souberam transportar para a rede os seus
valores de longa data, concluindo que a dimensão ética transcende o meio
[3] .
O que falhou foi, talvez, a falta de
visão de futuro, que se traduz desde logo numa crónica incapacidade de experimentação.
As reais potencialidades do novo medium só agora começam, timidamente,
a ser exploradas.
O jornalismo online tem que ser
visto como uma outra forma de jornalismo. Embora seja desejável que importe
toda a deontologia que pauta a profissão, ultrapassa necessariamente os moldes
tradicionais, desde logo ao permitir a convergência texto – som – imagem. É
aquilo que Mark Deuze classifica como “jornalismo integrado” ou total
[4] .
A constatação de que os meios noticiosos online podem ser mais do que um prolongamento
dos respectivos corpos impressos, televisivos ou radiofónicos é um primeiro
passo para conseguir compreender com maior amplitude a possibilidade do seu
nascimento na rede não como outro do mesmo mas como algo em si mesmo,
ou seja, tendo nos media “reais” não um modelo mas apenas uma inspiração.
Elementos como “arquivo”, “recursos” ou “material de referência” são vantagens
óbvias de uma publicação digital, que pode alimentar-se do imenso e crescente
capital informativo armazenado nas extensas bases de dados que se estendem em
rede por todo o mundo. Em termos de conteúdo, essa vantagem traduz-se desde
logo pela possibilidade de solidificar a informação publicada disponibilizando
links que permitam ao leitor uma percepção muito mais aprofundada do assunto.
Deste modo, o texto passa a ter vários níveis de leitura (“layers”, segundo
M. Deuze), algo que o jornal tradicional não pode oferecer.
O próprio texto é algo a que o jornalista online deve dedicar-se. A Net exige
experiências com a linguagem e com o estilo, de modo a adaptar os mesmos a uma
leitura que é, à partida, feita no monitor do computador e que requer rapidez,
tendo em conta que o utilizador está a pagar para poder aceder à Internet e
quer ter tudo no menor espaço de tempo possível.
Há, obviamente, novas considerações éticas a ser feitas ao pensarmos a Web como
medium de recolha e difusão, pois ambas as vertentes colocam em causa a sua
credibilidade. A recolha de informação pode ser feita das mais variadas formas
através da Internet, desde a vulgar consulta à participação em fóruns e chats.
Para evitar que a sua conduta seja posta em causa, o jornalista deve citar todas
as fontes de onde retirou a informação utilizada no seu artigo e identificar-se
sempre que se encontre num chat com o propósito de recolher material.
Mas é enquanto meio difusor de informação noticiosa que a Internet levanta mais
dúvidas. A velocidade é simultaneamente a sua grande vantagem e o seu grande
vírus. A competição pela divulgação da notícia em primeira mão é exacerbada
no novo meio, levando a que muitas vezes fiquem factos por confirmar ou sejam
adiantadas informações erradas sobre acontecimentos ainda em desenvolvimento.
Claro que um jornalista que respeite o seu código deontológico vai evitar estas
situações, mas muitas vezes a sobrevivência num meio que tanto a dificulta pode
ditar regras paralelas a que o jornalista é forçado a obedecer.
São estes “perigos” que deixam espaço para o sucesso dos vários Slashdot’s
que vão surgindo na rede.
Analisadas as partes,
a questão impõe-se: o que significaria, em termos concretos, a fusão entre o
jornalismo e o modelo slashdot?
Embora, aparentemente, esta fusão
permitisse testar a eficácia da filosofia peer-to-peer aplicada ao jornalismo,
a natureza do Slashdot levanta algumas dúvidas. Desde logo a possibilidade de
interacção com o leitor, que é transformado numa espécie de jornalista. Ora,
elitismos à parte, nem toda a gente pode ser jornalista. Há, desde logo, uma
formação inerente à profissão que, obviamente, não é inata. Se, por um lado,
esta interacção (que é a base do Slashdot) é interessante e certamente sedutora
para o utilizador, podendo garantir a sua assiduidade (R. Malda reconhece-o:
“we feel that the unique nature of slashdot is largely because the contents
of the homepage are determined by a handful of people”
[5] ), por outro não seria aconselhável salvaguardar a hipótese de
rescrever os artigos, de modo a adaptar a matéria-prima aos parâmetros jornalísticos?
Isto implica, à partida, eliminar por completo o carácter parcial do texto,
que ficaria guardado para a secção dos comentários ou da opinião. A objectividade
e a imparcialidade são valores fulcrais do jornalismo. Não sendo uma prioridade,
ou sequer uma preocupação, para os membros da comunidade Slashdot, isso não
poderia manter-se num jornal.
Além de permitir que qualquer pessoa
participe e se expresse livremente, no Slashdot também o editorial pode ser
da autoria de qualquer utilizador, bastando o envio antecipado de uma proposta.
Tendo em consideração que o editorial de um jornal deve conter uma ideia capaz
de exprimir o espírito da publicação, a sua autoria deverá ser deixada a quem
a queira?
Por outro lado, preocupações sintácticas
e semânticas, descuradas no Slashdot a favor da rapidez de publicação, não podem
ser esquecidas num site noticioso. Rob Malda assume que “a gramática
é péssima” [6] mas, apesar de terem um copy
editor cuja função é tentar encontrar e corrigir erros, a qualidade da escrita
não é uma prioridade, o que certamente não poderia acontecer jornalisticamente.
A questão do anonimato levanta dúvidas óbvias. Apesar do sistema de moderação
do Slashdot, faria sentido permitir artigos e comentários de autor não identificado,
sabendo o efeito que isso pode ter na credibilidade da publicação? A identificação
pedida pelo Slashdot resume-se a um e-mail que o utilizador deve submeter
à autoridade central. Mas até que ponto um e-mail e um nickname
tornam um utilizador menos anónimo? Não seria recomendável que fosse pedida
mais informação, pelo menos a quem quisesse submeter um artigo?
Esta precaução é tanto mais pertinente se considerarmos que, num jornal, a verificação
da autenticidade da informação não deve ser póstuma à sua publicação. Embora
numa comunidade tão extensa como a do Slashdot a falsa informação seja facilmente
detectada, isso torna-se demasiado arriscado num site ainda pequeno,
que esteja a começar e que não pode ver a sua credibilidade afectada sob pena
de não vingar.
A resposta a todas as dúvidas levantadas pela ideia do jornalismo peer-to-peer
exige reflexão e análise. Exige sobretudo um laboratório real, no qual possam
ser testadas todas as hipóteses de modo a avançar, um passo que seja, na determinação
de um novo jornalismo, mais consentâneo com as imensas possibilidades apresentadas
pela Internet.
“Acredita-se que o jornalismo open source poderia fazer a catedrais mediáticas centralizadas como o Wall Street Journal, o New York Times ou a CBS o mesmo que os programadores Linux estão a fazer à Microsoft”. (Bart Preecs) [7]
BÉLANGER, André, Journalisme et Nouveau Journalisme,
Multimédium, 1999
(http://www.mmedium.com/chroniques/abelanger/19990830.html)
CRAMER, Florian, The Slashdot Effect
(http://userpage.fu-berlin.de/~cantsin/h...ung/slashdot/blz_slashdot_-_english.txt)
DEUZE, Mark, The Web Communicators: Issues in Research
into Online Journalism and Journalists, First Monday – Peer-reviewed Journal
on the Internet
(http://www.firstmonday.dk/issues/issues3_12/deuze/)
GLAVE, James, Slashdot : All the News that Fits,
Wired News, 1999
(http://www.wired.com/news/print/0,1294,21448,00.htm)
KAHNEY, Leander, CmdrTaco on Slashdot Sale, Wired News,
1999
(http://www.wired.com/news/print/0,1294,20483,00.html)
LASICA, J.D., How the Net is Shaping Journalism Ethics,
The Well, 2001
(http://www.well.com/user/jd/newsethics.htm)
LASICA, J.D., A Scorecard for Net News Ethics, Online
Journalism Review, 2001
(http://ojr.usc.edu/content/story.cfm?request=643)
MALDA, Rob, Inside Slashdot, Linux World
(http://www.linuxworld.com/linuxworld/lw-1998-10/lw-10-slashdot.html)
MILLER, Robin, From Niche to News Portal, How Slashdot Survived the Attack, Online Journalism Review, 2001
(http://ojr.usc.edu/content/print.cfm?print=641)
Peer-to-peer Work Group (página oficial)
PREECS, Bart, Open Source Journalism, Make Your Own Media
(http://www.makeyourownmedia.org/osj.html)
PRIESTLEY, Matthew, Honest News in the Slashdot Decade,
First Monday – Peer-reviewed Journal on the Internet
(http://www.firstmonday.dk/issues/issues4_8/priestley/)
Slashdot FAQ – Frequently Asked Questions
(http://slashdot.org/faq/)
THOMPSON, Nicholas, Reboot! How Linux and Open-source Development
could Change the Way we Get Things Done, The Washington Monthly Online,
2000
(http://www.washingtonmonthly.com/features/2000/0003.thompson.htm)
[1] In Site oficial Peer-to-Peer Work Group (http://www.p2pwg.org)
[2] in Glave:1999
[3] in Lasica, How the Net is Shaping Journalism Ethics
[4] in Deuze, The Web Communicators: Issues in Research into Online Journalism and Journalists
[5] in Malda, Inside Slashdot
[6] Malda, Slashdot: Frequently Asked Questions
[7] in Preecs, Open Source Journalism