Moore than this!
Um estudo sobre o filme documentário de Michael Moore

Marilu Ribeiro Pimenta

Centro Universitário de Belo Horizonte

2004


Índice



Monografia apresentada ao Curso de Comunicação Social do Departamento de Ciências da Comunicação - DCC - do Centro Universitário de Belo Horizonte (Uni-bh), como requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em Jornalismo.

Professor orientador: Nísio Teixeira


Introdução

Este estudo surgiu na vontade de reunir dois campos de conhecimento, jornalismo e cinema. O gênero cinematográfico escolhido foi o documentário porque, assim como o jornalismo, trabalha com imagens da realidade e tem como objeto o olhar sobre o outro.

Apesar de o documentário estar inserido na produção cinematográfica, ele sempre ocupou o segundo plano no cinema, o que lhe proporcionou o apelido de a ``gata borralheira do cinema'', em uma posição de inferioridade se comparado a outras produções cinematográficas. O avanço tecnológico possibilitou novas formas de documentários e também ampliou as possibilidades de se construir a `realidade'. Quando se fala em construção da realidade, tem que se considerar que o documentário não é feito ao acaso sem nenhum direcionamento. Isso porque o registro in loco é guiado pela visão do documentarista por meio de sua abordagem ou ponto de vista da realidade que captou, seja de maneira espontânea ou intencional.

Atualmente, afirmar que o documentário está mais próximo da realidade é limitar a produção cinematográfica. Mesmo porque, na contemporaneidade, os registros documentais coabitam com os registros ficcionais. Misturar as duas formas de registro não é modismo nem um modo inovador de fazer filme, mais do que isto é apenas mais um modo de representar a realidade.

Pensando nas possibilidades de representar a realidade e no tratamento que é dado a ela foram escolhidos três documentários do cineasta Michael Moore: Roger e Eu (1989), Tiros em Columbine (2002) e Fahrenheit 9/11 (2004). Em Roger e Eu (1989) o documentarista tenta descobrir por que uma empresa lucrativa como a General Motors fecha suas fábricas em Flint e, para ter a resposta, passa três anos atrás de Roger Smith, presidente da GM. Em Tiros em Columbine (2002), o documentarista investiga a fascinação dos norte-americanos por armas de fogo, e questiona a origem dessa cultura bélica e traz à tona a grande polêmica sobre o porte de arma indiscriminado e a facilidade de adquirir armas e munição. Já em Fahrenheit 9/11 (2004), o diretor investiga como os Estados Unidos se tornaram alvo de terroristas, a partir dos eventos ocorridos no atentado de 11 de setembro de 2001 e faz paralelos entre as relações da família Bush e a família Bin Laden. Os três documentários mostram como pode se trabalhar a realidade usando imagens ficcionais e imagens in loco feitas pelo documentarista. Estes filmes mostram que, apesar do filme documental trabalhar com a realidade o seu campo de atuação não é limitado por causa de sua diversidade temática e por ter a finalidade de levantar a opinião pública a ponto de cobrar atitude das pessoas perante os acontecimentos.

Os capítulos 1 e 2 trazem, respectivamente, as teorias jornalísticas e cinematográficas estudadas para estabelecer os pontos comuns entre jornalismo e documentário, uma vez que, ressaltamos, essa monografia tem como objeto de estudo o filme documental. No capítulo 3 será pontuado o modo como Michael Moore lança o seu olhar documentarista e, nele, como usa o jornalismo para confirmar a realidade ou para criticá-la. Aqui, a proposta é mostrar como o diretor Michael Moore relê os fatos, quais os argumentos e recursos que utiliza para explicar o por quê dos acontecimentos e reconstruir a realidade a partir do material de que dispõe.

O ponto de partida serão as reconstruções do fato a partir da visão do diretor e como a linguagem jornalística e a cinematográfica são usadas para mostrar a ``realidade'' de outro ângulo, a do documentarista. E mais do que isto, como o cineasta revela o mundo que vive, e quais as leituras podem ser extraídas desse mundo.


Olhar jornalístico


À notícia, cabe a função essencial de assimilar os acontecimentos, ou seja, tornar público um fato (que implica em algum gênero de ação), através de uma informação (onde se relata a ação em termos compreensivos). (...) Notícia não é a morte do ditador, mas o relato que é feito dessa morte.

Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari

História do jornalismo

Tão antiga quanto o ser humano é a luta que ele enfrenta para criar meios de registrar e passar adiante informações. Desde o Império Romano encontramos elementos jornalísticos, como a publicação diária da ``As Acta diurna'' - os atos do povo e do Senado - que era afixada no muro do Fórum de Roma. No início, o senador Júlio César a criou para divulgar os discursos, as decisões e os atos dos senadores. Mas com o tempo o jornal passou a noticiar temas variados do cotidiano.

Mesmo com uma periodicidade diária, durante vários anos sua circulação ainda era limitada. Pois as pessoas tinham de ir ao Senado para lê-las e faltava, também, disponibilidade de papel. O papiro e o pergaminho, usados na época, eram caros.A partir do século XVI, a prática jornalística se consolidou com os primeiros jornais, em forma de panfletos. Tais jornais circulavam em centros de comércio para atender aos interesses da burguesia.

Fazer jornal era atividade barata: bastava uma prensa, tipos móveis, papel e tinta. As tiragens possíveis - centenas, talvez poucos milhares de exemplares - correspondiam a um público leitor restrito de funcionários públicos, comerciantes e seus auxiliares imediatos. (LAGE, 2001, p.10)

No século XVI as informações escritas começaram a se consolidar na Europa por causa da fabricação do papel, que substituiu o pergaminho de couro e os papiros egípcios. Outro fator que também propiciou a divulgação da informação, além da escrita, foi o estabelecimento do correio como instrumento de circulação de informações entre indivíduos. A França regularizou seu sistema regular de correspondência em 1464, mas desde 1315 Paris mantinha correspondência com outras cidades francesas, por iniciativa privada (universidades, casas comerciais e indústrias). A implantação do correio significou a ampliação geográfica da comunicação.

O papel e o correio propiciaram melhores condições para a correspondência entre indivíduos a partir do século XV, tendo ambos influência decisiva no desenvolvimento posterior do jornalismo. (...). No século XVII, por exemplo, a periodicidade de postar a cada oito dias, transformou certas correspondências em verdadeiros periódicos informativos. (HAMILTON, 2003, p.9)

De acordo com Rizzini1.1, as cartas particulares dos séculos XVI, XVII e XVIII possuíam maior conteúdo jornalístico, no sentido informativo, do que a maioria das folhas à mão. A troca crescente de correspondência entre os aristocratas deu origem às gazetas manuscritas (RIZZINI apud HAMILTON, 2003, p.9).

As gazetas desta época contavam com repórteres e editores cujas funções já eram semelhantes às dos profissionais da atualidade. Os repórteres eram encarregados de procurar novidades, enquanto os editores podiam desempenhar dois papéis: o de copiar as informações de forma fiel ou de escrever opiniões abertas e críticas direcionadas à aristocracia. Também foi neste período que surgiram os correspondentes internacionais.

A evolução tecnológica permitiu que as limitações da atividade jornalística diminuíssem, o que possibilitou ao jornalismo tornar-se uma atividade social. A evolução técnica também trouxe uma nova característica ao jornalismo que é de fundamental importância atualmente: a rapidez. O que significa que a divulgação de fatos novos a um grande número de indivíduos passou a ser mais rápida.

Vários fatores contribuíram para o aumento da velocidade no jornalismo, tais como: o desenvolvimento tecnológico, que aperfeiçoou as técnicas de impressão com a invenção de tipos móveis; os novos meios de transporte e de comunicação (correio, trem e telégrafos) e a consolidação do modo de produção capitalista no Ocidente.

Somente dois séculos depois do método de impressão de Gutenberg é que surgem os jornais periódicos, mas foi no século XIX que a imprensa se desenvolveu, acompanhando as grandes transformações sociais e econômicas geradas pela Revolução Industrial desde 1769. Pode-se dizer que a Revolução Industrial, no século XIX, mudou radicalmente as condições em que se exercia o jornalismo. O público leitor aumentou devido ao deslocamento de pessoas para trabalhar na cidade. Neste período, houve uma reorganização do trabalho e expansão do comércio que exigia das pessoas alfabetização.

De acordo com Lage, as tiragens dos jornais multiplicaram-se por cem ou por mil. E para conseguir produzir número muito grande de exemplares, a mecanização, chave da Revolução Industrial, chegou à indústria gráfica.

Não foram apenas as técnicas de produção do jornal que modificaram. Houve também mudanças no estilo das matérias. A retórica do jornalismo, publicista por tratar de fatos com orientação e interpretação política, sofre uma ruptura: tal retórica era impenetrável para os novos leitores, herdeiros de uma tradição de cultura popular muito mais objetiva, afirma Lage (2001).

A mecanização, além de aumentar o número de exemplares do jornal, também, o tornou mais caro provocando o surgimento do mercado publicitário. Neste momento nascia a integração da imprensa com os interesses gerais da economia. Para conquistar e agradar pessoas, cujos interesses eram os mais variados possíveis, os jornais simplificaram a linguagem e começaram a tratar dos mais diversos temas como moda, literatura, teatro, costumes, além dos temas habituais (economia, política, cidades, polícia).

Com o advento de uma sociedade mais dinâmica devido às novas formas de produção o jornal passa a ter um papel educativo capaz de mudar o comportamento das pessoas.

O jornal ensinava às pessoas o que ver, o que ler, como vestir, como se portar - e mais: exibia, como numa vitrina, os bons e, para escândalos geral, os maus hábitos dos ricos e dos poderosos. (LAGE, 2001, p. 15)

Desta forma nota-se que a revolução tecnológica causou mudanças consideráveis na comunicação de massa, como: a ampliação dos meios e dos modos de produção da notícia. A prática jornalística se tornou dinâmica e os veículos de comunicação, sejam quais forem, estão em constante evolução.

Linguagem jornalística

Pode-se dizer que a linguagem jornalística obedece a leis gerais da comunicação que são comuns a muitos idiomas, por ser o jornalismo uma prática social transfronteiras. Mas a linguagem jornalística não se limita apenas aos sistemas lingüísticos. Há, também, uma linguagem simbólica cheia de significados que constitui as informações.

A linguagem jornalística desenvolveu-se de acordo com cada veículo de comunicação e com suas necessidades. Mesmo havendo diferença de linguagem entre os meios de difusão da notícia, não se pode esquecer que a matéria-prima do jornalismo é a informação.

O produto do jornal é a notícia, e o público que a consome quer novidade. Por isto, o jornal tem que ser dinâmico. ``O jornal moderno, produto industrial que custa enorme esforço, mobiliza grandes equipes, enfeixa considerável poder e, não obstante, vive menos do que uma borboleta''. (LAGE,1997, p.8). Se para Lage a informação é a matéria-prima do jornalismo, Erbolato considera como tal a própria notícia.

As notícias são a matéria-prima do jornalismo, pois somente depois de conhecidas ou divulgadas é que os assuntos aos quais se referem podem ser considerados, interpretados e pesquisados, servindo também de motivo para gráficos e charges. (ERBOLATO, 1991, p. 49)

Para que uma notícia seja considerada boa, não basta, apenas, estar relacionada ao tema das matérias, mas também, a forma como é escrito o texto e como o leitor vai entender. Os jornalistas devem lembrar que o jornal vai ser lido por pessoas diferentes, com experiências distintas e com interesses contrários.

A linguagem, portanto, deve ser correta e acessível a todos. O primeiro dever do jornalista é conhecer as regras gramaticais, a fim de que seus textos não apresentem erros graves. O segredo da notícia depende da maneira compreensível como chega ao receptor. (ERBOLATO, 1991, p 90)

Segundo os manuais de jornalismo, o repórter não deve influenciar ou distorcer a notícia com suas apreciações pessoais. O que ele deve fazer é ser imparcial ao narrar um acontecimento, mesmo sabendo que tal prática é difícil.

De acordo com Rodriguez1.2, ``apenas conserva a sua pureza objetiva quando se refere a fatos inquestionáveis, como o estado do tempo, os resultados esportivos, os horários de transporte e o anúncio de espetáculos''. (RODRIGUEZ apud ERBOLATO, 1991, p.91)

O desenvolvimento das técnicas jornalísticas influenciou a arte contemporânea submetendo-a, assim como o jornal, às leis do consumo rápido e da obsolescência, dando um caráter informativo à obra de arte que, também, leva informação e não se limita apenas à estética.

De canções e romances e filmes de ficção, disseminam-se obras feitas com a preocupação principal de informar o público sobre a realidade contingente, em seus aspectos menos desvelados. Entre a reportagem sobre a vida nas favelas e um drama passado na favela há freqüentemente pouca diferença. (LAGE, 1997, p.10)

A linguagem jornalística pode ser formal ou coloquial de acordo com o público que quer atingir, com o veículo de comunicação e com outros fatores externos, que podem determinar qual a linguagem que deve ser ou não usada.

A linguagem coloquial reflete a realidade comunitária e o imediatismo. É mais eficiente e mais acessível às pessoas com pouca escolaridade. Já a linguagem formal é mais valorizada na sociedade e funciona como um registro formal. Portanto, para atender a linguagem formal e a coloquial, o jornalismo tem que dosar ambas para se ter uma comunicação eficiente e de aceitação social. E tem que procurar palavras, expressões que são possíveis no registro coloquial e aceitas no registro formal.

Na comunicação jornalística, por ser referencial e tratar do mundo exterior ao emissor, ao receptor e ao processo de comunicação, há o uso obrigatório da terceira pessoa.

A busca de enunciados mais referenciais, concretos, justifica muito do trabalho da apuração de notícias. A hora exata do atropelamento, (...), vão ter, no texto, efeito de realidade, isto é, contribui para a verossimilhança da história. (LAGE, 1997, p.42)

Não se pode pensar na linguagem jornalística desprendida da sociedade e nem do tempo histórico, pois ela está envolvida nas grandes ou pequenas questões ideológicas da humanidade. Desde as conquistas mais antigas até as mais modernas (imprensa, telégrafo, cinema, rádio, televisão, satélite), o que se depreende é que, em toda e qualquer época, o ser humano tem a necessidade de transmitir conhecimento como uma característica essencial para sua sobrevivência. E foi ao longo da história humana que o homem sistematizou sua capacidade de comunicação e, graças a ela, sobrevive. A comunicação torna possível a interação e ao mesmo tempo proporciona a convivência entre os homens já que a integração de um indivíduo ao ambiente e ao tempo está relacionada, de forma intrínseca, ao seu acesso à informação. Portanto, a linguagem jornalística está inserida na língua, seja qual for o idioma. Afinal, ``a língua é a mais importante articulação da cultura''. (LAGE, 1997, p.42)

O fato de a linguagem jornalística estar inserida no cotidiano das pessoas e, conseqüentemente, fazer parte da articulação cultural não quer dizer que deve ser desprovida de qualquer regra. Pelo contrário, no jornalismo os fatos para serem noticiados obedecem a critérios de noticiabilidade. Por sua vez, a noticiabilidade é que vai definir o `valor notícia' de acordo com as características de cada acontecimento, para depois o fato chegar ao estatuto de notícia. Caso contrário, o fato tornará matéria-prima perdida e ``não irá fazer parte dos conhecimentos do mundo adquiridos pelo público através das comunicações de massa'' (WOLF, 1999, p.190).

As exigências organizativas e estruturais e as características técnicas expressivas próprias de cada meio de comunicação de massa são elementos fundamentais para a determinação da reprodução da realidade social fornecida pelos mass média. (WOLF, 1999, p.185)

Fatores que podem interferir na seleção dos acontecimentos que serão noticiados são: a relevância, o nível hierárquico dos envolvidos (instituições governamentais, pessoas conhecidas), o interesse (regional ou nacional), quantidade de pessoas envolvidas no acontecimento, o direcionamento do veículo de comunicação e outros fatores. O importante é perceber que para um fato tornar se notícia ele tem que vir de encontro aos interesses dos meio que será divulgado. O que não significa que os meios de comunicação não são flexíveis, pelo contrário, os critérios de noticibilidade da empresa jornalística podem mudar de acordo com os seus interesses e com as novas tendências do mercado jornalístico.

Investigação no jornalismo

Toda e qualquer reportagem jornalística pressupõe ser investigativa, pois a prática jornalística exige pesquisa prévia sobre os fatos. Seja para uma reportagem sobre a feira de flores de uma cidade do interior ou sobre denúncias de corrupção o repórter tem que investigar (pesquisar) o assunto. De acordo com Ricardo Kotscho, ``em qualquer época, uma das funções principais do Jornalismo é a de fiscalizar os poderes públicos - e é o repórter o encarregado desta tarefa''. (KOTSCHO, 2000, p.34)

Quando se fala em jornalismo investigativo ninguém vai associar a prática à reportagem das flores, mas apenas à reportagem sobre a corrupção - o que é errado, como vimos anteriormente. De acordo com o jornalista José Arbex Jr1.3, ``todo jornalismo deveria ser investigativo. (...). Se existe um jornalismo que não faz pesquisa, que não vai fundo, que não é crítico, não deveria ser qualificado como jornalismo''. (ARBEX apud PADILHA, 2003, p.62). Da mesma forma, pensa a jornalista Mônica Teixeira1.4.

Investigar é um dos fundamentos do jornalismo, um é inerente ao outro, não se separam nunca. A gente bota muitos nomes e sobrenomes em jornalismo, mas jornalismo. Na minha opinião Jornalismo Investigativo é a grande reportagem. (TEIXEIRA apud PERIAGO, 2003, p.170)

O ponto de partida para uma reportagem investigativa pode decorrer de um fato ser noticiável ou o interesse público, inexplicável ou curioso, observação direta da realidade ou denúncias feitas. No entanto, a grande investigação jornalística ``é aquela que trata de assuntos que não estão diretamente na ordem do dia da publicação, que revela algo que não se sabia'', afirma Sergio Conti.1.5 (CONTI apud HASWANI, 2003, p.112). O que demonstra que a reportagem investigativa depende da capacidade de observação do repórter.

Apesar das técnicas básicas da investigação jornalística derivarem dos métodos da investigação policial, não é correto confundir as duas práticas. O repórter que faz esta confusão pode entrar em um caminho perigoso e até exercer uma função que diz respeito à polícia, e se distanciar de seu objetivo, como afirma Audálio Dantas1.6.

Se há essa confusão, o jornalista está entrando por um caminho extremamente perigoso, pois alguns deles chegaram até a usar metralhadoras, quando iam fazer reportagens, quando era uma caçada de bandidos. (DANTAS apud HERACLITO, 2003, p.127)

Caco Barcellos1.7, um dos pioneiros do Jornalismo Investigativo no Brasil, discorda que os métodos usados na investigação policial sejam semelhantes aos da investigação jornalística. Barcellos gostaria que os métodos fossem mais parecidos porque para ele ``... a polícia não investiga. Ela é muito mais adepta da brutalidade do que da investigação científica. Isso é um atalho para os policiais preguiçosos. Por isso, muitas vezes a imprensa assume esse papel''. (BARCELLOS apud KONOPCZYK, 2003, p.162)

Como a reportagem investigativa necessita de um tempo maior na apuração dos fatos pelo repórter, este tem que se dedicar quase que exclusivamente a ela. O resultado dessa dedicação exclusiva são textos longos que não cabem em qualquer veículo. O que não significa que não pode ``ser praticado em qualquer tipo de mídia, desde que se respeitem as características e recursos de cada suporte de publicação'', afirma Willian Waack.1.8 (WAACK apud LÚCIO, Antônio., ASSIZ, Rodrigues. 2003, p.143). As matérias investigativas extensas costumam ser publicadas na forma de livro reportagem, ou documentários em vídeo.

Na realidade, ``o Jornalismo Investigativo pode ser definido como a busca da verdade oculta ou mesmo como uma reportagem em profundidade''. (LOPES, 2003, p.12)

Imagem no jornalismo

Atualmente, são muitos os veículos que transportam a notícia até o receptor. Do jornal impresso, passando pelo rádio, a televisão e a Internet houve, sem dúvida, muitos avanços tecnológicos. Mas o objetivo permaneceu o mesmo: noticiar o fato. Depois que a televisão conseguiu juntar em um único veículo de comunicação de massa a audição e a visão tornou-se impensável falar de notícias sem falar da comunicação por imagens.

Da mesma forma que no jornal, a palavra obedece a convenções e o que elas significam. No vídeo tape a palavra pode, em alguns casos, dar significações distintas ao que se refere, devido à junção da palavra com a imagem na formação de um significado. Porque, no vídeo tape, imagem não é um elemento alegórico. Pelo contrário, é um elemento que colabora na construção do discurso.

A sintaxe da linguagem falada ou escrita é mais sólida e complexa, mas sua semântica remete a conceitos que são quase sempre abstrações da realidade a sintaxe da linguagem visual é mais frágil, seus recursos escassos, mas que surge diante de nós são fragmentos da realidade''. (LAGE, 1999, p.6)

Sabe-se que a televisão descende do rádio e, hoje, está mais próxima do cinema devido ao desenvolvimento da tecnologia de imagem. O telejornalismo apareceu, neste período, como o relato visual dos acontecimentos e constatou que o fator analógico da mensagem radiofônica ganha mais destaque com a presença da imagem do locutor. As imagens dos noticiários aparecem como documentação do lead feita pelo apresentador ou narrados em off pelo locutor, fora do vídeo, no estúdio.

Entre as duas guerras, os filmes cinematográficos iniciaram a tentativa de levar à tela determinadas classes de notícia. A televisão, por sua vez, intensificou-se logo após o término do último conflito (1939/1945). A imprensa começava a ter sérios concorrentes. (ERBOLATO, 1991, p.27)

A importância da imagem na televisão não significa que a audição fica em segundo plano, pelo contrário ``por mais importante que seja a imagem, ela pode se tornar vazia ou incompreensível se não tiver a articulação do texto para dar sentido ao que está sendo exibido''. (MACIEL, 1995, p.15)

A invenção do vídeo tape, as transmissões de imagem à distância, por microondas ou satélites de comunicação, e a câmera portátil deram mais agilidade ao telejornalismo. A notícia ficou mais próxima da realidade a partir do momento que o fato era transmitido quase que simultaneamente ao seu acontecimento. A possibilidade de edição também deu uma nova leitura à notícia a tornando mais precisa e sem excesso. ``A edição de imagens insere a televisão na história do documentarismo, gênero audiovisual que passou a ter esse nome em 1920''. (LAGE,1997, p. 28)

A inovação da imagem no jornalismo está no comportamento do narrador perante a câmera, como ele dialoga com o receptor. A imagem do repórter no vídeo pode complementar o sentido da matéria por causa do tipo de abordagem que ele estabelece com o entrevistado.

O repórter de campo, como um locutor; presente à cena, registra tudo como uma câmera cinematográfica, que ora se aproxima em close, ora se afasta para uma panorâmica; onisciente, tem informações de arquivo, recortes de jornal etc. Tudo isso ultrapassa o simples recurso cinematográfico (já incorporado à moderna narrativa jornalística): o que se tem aqui é a assimilação da técnica documental de TV. (FERRARI e SODRÉ, 1986, p.107)

Desta forma o ver da televisão aumenta a veracidade da notícia, porque o telespectador pode duvidar do que lê nos jornais, mas dificilmente dúvida do que os seus olhos vêem. A invenção da televisão obrigou que os outros meios de comunicação se tornassem mais rápidos para conseguir satisfazer as novas necessidades. Segundo Alberto Dines1.9, ``começava a era do jornalismo interpretativo, analítico, avaliador. (...) tinha início a fase da melhoria visual dos jornais''. (DINES apud ERBOLATO, 1991, p.27)

O desenvolvimento do documentário permite ao jornalismo contemporâneo fazer a documentação visual dos fatos para a reportagem, que por sua vez dá dimensões a acontecimentos singulares que eventualmente fugiriam ao interesse do texto. Como uma das características do documentário é o registro in loco e o jornalismo utiliza este recurso nas reportagens de televisão, não é errado dizer que as notícias televisivas são documentários sobre a vida das personagens. Na TV, a narrativa pode ser feita de qualquer ponto da história, com a câmera partindo do plano geral até o menor detalhe ou demonstrando imagens do mesmo acontecimento, compondo versões conflitantes. Desta forma percebe-se que a linguagem que aparece no telejornalismo é a do cinema.

De acordo com a afirmação de Lage (1997) sobre a visão de Arnheim, ``o filme não pode ser arte senão quando há oportunidade real de um artista manipulá-lo como veículo''. (LAGE, 1997, p.33). Entre a televisão e o cinema há diferenças consideráveis como: a dimensão da imagem, a relação obra-público. A televisão é mais abrangente que o cinema. A ficção do cinema compete com a realidade da TV: em ambos há possibilidade da imagem editada, mas apenas a TV pode transmitir ao vivo.

Portanto, quando o jornalismo passa a fazer uso da imagem, ele abre um leque de possibilidades para construir a notícia e a torna mais próxima do telespectador. Mas não significa que a imagem pode substituir a palavra. Caso contrário não haveria necessidade de o cinema ou de a televisão ter som. O que descarta a totalidade do significado do provérbio chinês ``uma boa imagem vale mais do que mil palavras''.O que torna a afirmação de Nilson Lage mais aceitável ``uma imagem pode conter informações que não cabe em mil palavras, mas uma palavra pode resumir o conhecimento de mil imagens''. (LAGE, 1999, p. 7).

Telejornalismo

Em telejornalismo o texto é escrito para ser falado (pelo locutor) e ouvido (pelo telespectador). Pela própria característica dos veículos eletrônicos de comunicação - a instantaneidade -, o receptor deve assimilar a informação sem precisar repeti-la. Se isso não acontece, o objetivo de quem está escrevendo - transmitir a informação - fracassa.

Estas características do veículo televisão estabelecem alguns padrões que os jornalistas precisam seguir se buscam um melhor entendimento com o telespectador. (...) Construção de frases objetivas e diretas que não deixam dúvidas sobre o que realmente o jornalista quis dizer. (MACIEL, 1995, p.23),

Como a imagem é parte da natureza da TV, e em telejornalismo precisa-se casar imagem com informação, aqui a preocupação é fazer com que texto e imagem caminhem juntos, sem um competir com o outro: ou o texto tem a ver com o que está sendo mostrado ou não tem razão de existir, perde a sua função. O papel da palavra é dar apoio à imagem e não brigar com ela.

Para escrever um texto de TV, é importante saber, antes de tudo, quais imagens disponíveis para serem usadas de forma coordenada com as informações. Para se associar à imagem - sem redundância -, o texto precisa basicamente identificar os elementos fundamentais da notícia. Aliás, uma prioridade de qualquer texto jornalístico - independentemente de estilo, forma ou veículo. Mas, na TV, é com palavras precisas, bem escolhidas, que o texto deve responder às seis perguntas clássicas - os elementos fundamentais de toda notícia: Quem? O quê? Quando? Onde? Como? Por quê?

A esses ingredientes devemos acrescentar algo que muitas vezes está no próprio jornalista: a emoção. Juntar imagem, emoção e informação é uma boa saída para transmitir a notícia com a qualidade ideal.

Se a televisão se impõe através da informação visual, é ainda limitada quanto à análise da mensagem que emite. O ritmo da programação da televisão é contundente. O que se considera desvantagem da TV (superficialidade) aliada a uma vantagem (imagem) gera um momento peculiar dentro do processo global de informação. A televisão estimula e provoca o interesse e a necessidade de se ampliar o conhecimento dos fatos: acredita-se no poder motivador da televisão enquanto meio de informação.

Na reportagem de TV a imagem é primordial, mas não significa que, se o acontecimento não tiver imagem, não será noticiado, neste caso será feita uma nota coberta. Mesmo assim, por ser a tevê um veículo de comunicação que faz o uso da imagem é comum que, desde a pauta, durante a produção e a gravação de uma reportagem, é importante ter em mente que a imagem juntamente com as informações a respeito do fato, é que vão constituir a matéria que o telejornal levará ao ar.

Para saber o que é importante ou não para a reportagem televisiva, basta o jornalista obedecer à estrutura básica de qualquer veículo de comunicação: a produção. A produção, por sua vez, envolve repórteres, pauteiros e produtores. O importante nos telejornais ``é extrair as conseqüências necessárias dessa estrutura''. Porque um telejornal ``é, antes de mais nada, o lugar onde se dão atos de enunciação a respeito dos eventos''. (MACHADO, 2003, p.104)

Quem organiza a estrutura e abastece o veículo de notícias e reportagens é o Chefe de Reportagem. A edição é feita pelo editor de imagem e pelo editor de texto. É esta estrutura básica que permite ordenar os processos de produção e finalização das notícias. O resultado deste processo é o que assistimos nos telejornais.

Os assuntos que vão receber cobertura no dia seguinte foram pensados pelos produtores, cuja função é fazer contatos, levantar as informações adicionais e marcar as entrevistas. Essas informações levantadas pela produção permitem ao repórter e ao cinegrafista desenvolver a matéria pensada anteriormente pela produção.

Tanto o desenvolvimento da pauta quanto a escolha dos assuntos que vão ser abordados no telejornal é, em geral, resultado de reuniões entre o pauteiro, editores, chefe de reportagem, chefe de redação e diretor de telejornalismo. (MACIEL, 1995, p.29)

O espelho do telejornal (ordem, duração e divisão dos blocos da reportagem), também é resultado de uma reunião entre o chefe de reportagem, o chefe de redação e o diretor de telejornalismo. O telejornalismo evoluiu junto com a modernização do meio e com a utilização de novas técnicas. E devido às mudanças, as pessoas que trabalham nas redações de TV - jornalistas e técnicos - acabam adquirindo vocabulário próprio, que envolve termos específicos relacionados com as operações técnicas necessárias no telejornalismo como um todo.

Por isto, não é difícil encontrar telejornais em que a estrutura está armada ao redor da figura do editor-chefe, que é capaz de buscar a notícia, editar o material gravado e de apresentá-lo caso for necessário.

Da mesma forma, o repórter se vê obrigado a entender todo o processo de produção da notícia e muitas vezes é ele o responsável pela edição da matéria que recolheu nas entrevistas. O jornalista que amplia sua área de atuação e conhece todas as ferramentas necessárias para produzir a notícia, tem a possibilidade de realizar seu trabalho com mais qualidade.

O planejamento dos telejornais é de fundamental importância. Pois, cada segundo de notícia tem que ser planejado inclusive os imprevistos. Porque ao contrário do que muitos pensam não cabe em um telejornal a quantidade de notícias de um jornal impresso. Este sim pode ser ampliado infinitamente ou reduzido conforme a necessidade de espaço. Já o telejornal é limitado pelo tempo.

Se o telejornal tivesse tomado outro rumo na história, ele ``poderia ter adotado para si o modelo do documentário: um apresentador recitaria um texto absolutamente coerente e sistemático''. (MACHADO, 2003, p.105). Aí provavelmente o texto seria desenvolvido por roteirista.

Portanto, a história do telejornalismo foi outra e conseqüentemente sua estrutura é baseada nos depoimentos dos sujeitos que fazem parte dos acontecimentos, seja diretamente ou indiretamente.

Olhar cinematográfico

O cinema, dando continuidade àquilo que a fotografia já havia começado, inaugurou uma era de predominância da imagem e desenvolveu uma linguagem que se tornou uma das mais populares do planeta até o surgimento da televisão e das mídias eletrônicas.

Flávia Cesarino Costa

Cinema: Breve histórico

O desejo do homem em preservar a imagem é antigo. Desde a pré-história o homem representa a sua vivência ou o seu imaginário em desenhos. Com o passar dos anos, novos mecanismos e métodos possibilitaram ao homem captar imagens por meio de pinturas e fotografias. Mas parecia que ainda faltava algo: o movimento. Para representar o movimento o homem usou os mais variados artifícios até a invenção do cinematógrafo.

O cinema surgiu com o desejo de representar o movimento. Qual foi a primeira representação e como ela sucedeu é sempre um tema polêmico. Para delimitar uma data inicial escolhi o dia 28 de dezembro, de 1895, quando os irmãos Auguste e Louis Lumière, inventores do cinematógrafo, projetaram as primeiras imagens no Salão Indien, em Paris. Neste momento os Lumière tinham a consciência de que descobriram um instrumento científico capaz de reproduzir o movimento. Mas não imaginavam que ali, também, nascia o instrumento que possibilitaria a criação de um movimento artístico, o cinema. Para os Lumière, a técnica cinematográfica serviria apenas para a pesquisa: por mais que as pessoas se divertissem com as primeiras representações o seu fim era breve. Nos EUA, Thomas Edison, assim como os Lumière, acreditou que a técnica cinematográfica serviria, apenas, para a pesquisa, e deixou a indústria do cinema logo que seu potencial de entretenimento se demonstrou.

Não foi um anseio artístico que propiciou a descoberta gradual de uma nova técnica: foi uma invenção técnica que propiciou a descoberta e a perfeição gradual de uma nova arte. (PANOFSKY, 2000, p. 345)

No início, o cinema era um instrumento mecânico que se limitava em captar imagens do cotidiano. A captação das imagens não apresentava qualquer preocupação interpretativa, estética e também não havia nenhum tema especifico. Por isto, os primeiros registros não seguiam nenhum roteiro e demonstravam apenas simples registros de movimentos: operários saindo das fábricas, animais andando, trens ferroviários. Os Lumière filmavam cenas da realidade natural para documentar o cotidiano.

A imagem da chegada de um trem à estação La Ciotat fez com que o público levasse um susto. A filmagem feita com câmera parada captou a imagem de um trem vindo de longe que aos poucos enchia a tela. A projeção de tal imagem na tela parecia projetar o trem sobre a platéia. O fato de a imagem ser em preto e branco e da ausência de som característico do trem não diminuiu a ilusão, porque as pessoas presentes na platéia acreditaram na fantasia criada pela máquina do movimento, o cinema. ``Essa ilusão de verdade, que se chama impressão de realidade, foi provavelmente a base do grande sucesso do cinema'' (BERNARDET, 2000, p.12)

De acordo com Luiz Carlos Merten, o cinema viajou à Lua e começou a sonhar quando o mágico George Méliès viu a potencialidade do cinema em tornar-se uma nova representação artística. Se para os irmãos Lumière o cinema era uma máquina que reproduzia o movimento, para Méliès era uma máquina que contava histórias. O filme Viagem à Lua, de 1902, abre a janela para a fantasia, ``e essa é a base do conceito hegemônico de Hollywood, com suas trucagens e vôos de imaginação''. (MERTEN, 2003, p. 17). Com o desenvolvimento das técnicas os filmes não se limitavam a simples reprodução de paisagens, começavam a incorporar ``números de magia, gags burlescas, encenações de canções populares''. (COSTA,1995, p.5).

Mesmo depois que os Lumière descobriram a técnica e Méliès a redescobriu como arte ainda continuamos a acreditar no cinema. Talvez não com o mesmo fascínio dos seus primórdios, porque, atualmente, temos mais informações de sua estrutura e da verossimilhança que representa. Mas ainda nos encontramos envolvidos diante da tela, fascinados com a imagem.

Cinema: A arte da imagem em movimento

Apesar do marco histórico dos Lumierè, desde a pintura e a fotografia o homem preocupa-se em captar os instantâneos da realidade. Depois, quis registrar o que os olhos eram incapazes de perceber. Ora, mesmo com todo o desenvolvimento tecnológico sabemos que não há movimento na imagem cinematográfica: pelo contrário, a imagem é imóvel e o que vemos na tela não passa de ilusão.Tal ilusão só é possível por causa da fotografia.

A impressão de movimento nasce do seguinte: `fotografa-se' uma figura em movimento com intervalos de tempo muito curtos entre cada `fotografia'. (...). De forma que, quando captamos uma imagem, a imagem anterior ainda está no nosso olho, motivo pelo qual não percebemos a interrupção entre cada imagem, o que nos dá a impressão de movimento contínuo, parecido com o da realidade. (BERNARDET, 2000, p. 18)

Não se pode esquecer que toda imagem extraída de um filme é um não senso, se partir do pressuposto que ela é um fragmento inerte e estático da continuidade de um ato. A imagem não revela todo o seu significado enquanto não se desenvolve temporalmente.

O cinema é a arte da ilusão, seja pela impressão do movimento ou pela verdade que é associada à imagem. Sabe-se que a imagem é capaz de induzir à `verdade', os diretores a utilizam em seqüências bem pensadas para conduzir o espectador, para criar efeitos de suspense ou surpresa.

Mesmo a apropriação da imagem em função da narrativa fílmica ficcional nem sempre significa que a imagem mostrada é veraz. Isto porque as imagens são usadas de acordo com o que o filme quer demonstrar e com o tipo de emoção ou comoção quer causar. Não é difícil vermos nos filmes narrativas em flash back, que posteriormente se tornam falsas. Tal artifício é usado para ludibriar o espectador guiando o na narrativa até o ponto necessário para desmascarar a `mentira' que foi mostrada, mesmo porque este é o objetivo do cinema, prender a atenção e recriar o imaginário de quem está assistindo ao filme.

Neste caso, a regra do jogo do cinematógrafo é mudada porque a imagem é, deliberadamente, destituída de seu prestígio de objetividade: são, em suma, imagens de uma negação diegética2.1 dotada de ser fílmico (MARTIN,1963, p.22). É considerada diegética porque estes acontecimentos visualizados na tela não ocorreram de fato. O que não descarta a possibilidade de ter existência fílmica real.

A fragmentação da realidade fílmica se dá sempre no presente, pois os elementos do passado e do futuro que nos são apresentados na construção da narrativa servem para uma interpretação temporal que permite o julgamento. E é apenas o julgamento que dispõe o acontecimento diegético de determinados planos temporais na ação do filme. Portanto, a imagem do passado em flash back nos faz entender o presente, enquanto que o futuro será o produto do julgamento feito dos fragmentos do filme que compreendemos. Tal interpretação só é possível porque os nossos olhos estão acostumados a fazer a leitura prévia de estereótipos.

Em um filme temos que ter a consciência de que a imagem constitui uma realidade artística, porque a visão que nos é passada foi escolhida, pré-selecionada, composta, pensada esteticamente, pois se trata de uma representação e não uma cópia fiel da natureza.

O cinema é considerado uma arte, neste caso uma arte que se movimenta, porque como qualquer manifestação artística ele é feito de escolhas ordenadas para constituir a narrativa que será apresentada, ou melhor, representada ao espectador.

As escolhas em qualquer manifestação artística não são feitas por acaso, mas a partir do significante. Caso contrário, uma obra de arte não representaria nada, por não haver significante algum inerente a ela. O fato do entendimento de uma obra não está relacionado à sua falta de significado, mas do desconhecimento de quem vê. Por isso, se diz que:

Intertextualidade é um termo empregado para descrever o modo como qualquer texto de um filme será entendido mediante nossa experiência ou percepção de textos de outros filmes. (TURNER, 1997, p.69).

Isto não quer dizer que dependemos exclusivamente da experiência adquirida em outros filmes para termos uma compreensão fílmica. Ora, sabe-se que os conhecimentos de mundo e cultural também são importantes na leitura de um filme. No entanto, a arte é produzida e entendida dentro do contexto cultural e social que fazem parte da bagagem de conhecimento dos indivíduos que vivem no mesmo meio.

Desta forma, pode-se dizer que o cinema é o mecanismo que proporcionou a realização do sonho em movimento em uma tela. Representar tal movimento é a sua razão de ser.

Linguagem do cinema

O cinema surgiu como uma técnica de reprodução de imagens e não como uma nova arte com linguagem própria. Acreditava-se que o cinematógrafo era apenas um aparelho capaz de fazer tomadas e projetar fotografias animadas criadas pelos irmãos Lumière. Não havia associação de linguagem ao novo mecanismo, talvez por não acreditar na sua capacidade de discurso. Por isso muitos estudiosos do cinema consideram que as primeiras imagens feitas pelos irmãos Lumière eram insignificantes no campo da linguagem.

No início, tanto as imagens feitas pelos Lumière, que não passavam de uma reprodução de um prodígio técnico, ou as imagens vistas nos filmes de Méliès, que demonstravam tentativas de se construir uma narrativa, estavam longe de adquirir o estatuto de linguagem. Porque não passava de ``uma curiosidade científico-tecnológica para o uso dos ingênuos espectadores das feiras, das salas do progresso''. (COSTA, 1989, p.60)

Por sua vez, Graeme Turner, discordando do pensamento de Antônio Costa, considera que mesmo as representações mais rudimentares de imagens em movimento não podem ser dissociadas de qualquer tipo de linguagem. ``O que a linguagem faz é construir, e não rotular, a realidade''. (TURNER, 1997, p.52). Isto porque não é possível pensar sem a linguagem, pois ela faz parte da vida, na medida em que se adquire o senso de identidade cultural e pessoal por meio da linguagem. Porque ``não podemos sair do âmbito da linguagem para produzir um conjunto de significados pessoais totalmente independentes do sistema cultural'', completa Turner (1997, p.52).

Para não se perder tempo em discutir se havia linguagem ou não nas primeiras imagens captadas, é melhor entender as primeiras representações cinematográficas não como a gênese de uma nova arte ou de uma nova narrativa. Mas como um mecanismo que provocou mudanças no sistema tradicional de artes, chamado por Benjamin de ``a época da reprodutibilidade técnica''.

À obra inteiramente concebida por meio das técnicas de reprodução (ou antes, à obra que, como filme, nasceu dessas próprias técnicas), nada se opõe mais radicalmente do que o teatro. (...) como escrevia Arnheim em 1932, no cinema é quase sempre representando menos que se obtém mais efeito. (BENJAMIN, 2000, p.237).

O que transformaria o cinema em arte posteriormente seria o desenvolvimento de uma linguagem própria que contém, em sua essência, características das manifestações artísticas. Logo que a linguagem cinematográfica se estrutura começa a aparecer articulações espaciais e narrativas mais complexas nos filmes e nas cenas. A partir daí as imagens são organizadas em estruturas narrativas, constituindo, assim, a base da linguagem do cinema.

A estrutura da linguagem cinematográfica é claramente perceptível vinte anos após as primeiras projeções dos irmãos Lumière, quando David Wark Griffith marca o fim do cinema primitivo e dá início à maturidade lingüística em O Nascimento de uma nação (The Birth of Nation), de 1915, no qual Griffith mostra o que o cinema já havia conquistado no plano do espetáculo, da narração e da linguagem. Os momentos básicos da expressão cinematográfica como: a seleção de imagens na filmagem e a organização das imagens numa seqüência temporal de montagem são utilizados no filme. ``Com Griffith, o cinema aprende as regras da narração, estabelece os fundamentos de sua sintaxe narrativa''. (COSTA, 1989, p. 64).

O deslocamento da câmera também contribuiu na construção da linguagem do cinema por exercer um papel criador no que diz respeito ao ponto de vista. Pois, no início, a câmera era muito pesada e estática, o que limitava as angulações e os locais de locação. Com a câmera portátil o cinema se tornou mais ágil e as possibilidades de explorar o espaço e os ângulos de filmagem ampliaram. Isto só foi possível em 1900 quando o inglês S. A. Smith libertou a câmera de sua inércia. A partir da mobilidade da câmera o ato de filmar pode ser considerado um recorte do espaço em um determinado ângulo. Conseqüentemente, a imagem passa a ter uma finalidade expressiva na construção da narrativa.

A partir do momento que o cinema desenvolveu uma linguagem própria ficaram explicitadas as possibilidades de escolhas no ato de filmar. Nota-se que neste momento fica claro o processo de manipulação de imagens, que é próprio desta nova manifestação artística, tanto nos filmes de ficção quanto no documentário, o que descarta a possibilidade de que o cinema é a representação do real.

Mesmo porque definir a realidade é um tanto subjetivo, pois ela pode ser distinta para cada um. E por se tratar de uma realidade representativa ou mesmo recortada de um contexto dirigido esteticamente pelo realizador (pessoa que decide qual imagem deve ser capturada pela câmera ou que decide a montagem que o filme terá).

Dizer que o cinema é natural, que ele reproduz a visão natural, que coloca a própria realidade na tela, é quase como dizer que a realidade se expressa sozinha na tela. Eliminando a pessoa que fala, ou faz cinema, (...), elimina-se também a possibilidade de dizer que essa fala ou esse cinema representa um ponto de vista. (BERNARDET, 2000, p. 20)

A linguagem cinematográfica trabalha com a verossimilhança, pois o seu objetivo é chegar o mais perto do real. Isto porque um dos objetivos do cinema é convencer que o objeto da tela pode ser real, pelo menos no instante em que as pessoas o vê. O ilusionismo é usado para dar um tratamento realista no fantasioso - filme ficcional - no intuito de estabelecer relações com o real.

O que se vê ao extremo é a noção de simulacro e a constatação de que o artificialismo pode recobrir inteiramente a realidade, reduzindo-a a não mais que um efeito de crença, uma aceitação da familiaridade. (NOGUEIRA, 1999, p.2)

É uma constante na história do cinema a necessidade de se manter como a expressão da realidade. Como se a máquina tivesse características e significações independentes de quem as utiliza.

O que temos na tela do cinema é a realidade fabricada que se apresenta na forma de simulações do real. Porque o cinema não se limita a contar histórias e nem pode ser considerado a construção da realidade imediata, pois uma das suas funções é a reconstrução de uma nova realidade. E é por meio da linguagem que o cinema cria as suas astúcias para ``produzir'' a realidade.

A montagem no cinema possibilita a ligação dos recortes feitos pela câmera. Por sua vez, a montagem pode ser considerada o coração do filme porque é ela que impulsiona a veia condutora da narrativa fílmica.

A montagem não reproduz o real, não o macaqueia, ela é criadora. Não reproduz, produz. Já que a estrutura da montagem é a estrutura do pensamento, o cinema não terá por que se limitar a contar estórias, ele poderá produzir idéias. (BERNARDET, 2000, p.49)

Uma das façanhas de um filme é proporcionar ao espectador a subtração de sua própria realidade e o transferir para a `realidade' que é representada na tela como se aquela imagem fizesse parte daquele momento. Isto aconteceu no início do cinema com a imagem do trem que se atirava contra a platéia e acontece atualmente quando as pessoas se identificam com o que é projetado na tela. A identificação entre filme e espectador é o grande truque que permite a ilusão tornar-se real. Uma cena marcante pode cegar a consciência, por isto pessoas choram, riem e se desesperam mesmo sabendo que não é real.

O cinema nos arrasta para fora de nós mesmos, retardando o movimento dos pulmões e do coração. É difícil continuar falando de realidade quando o que estamos fazendo é penetrar num corpo que não é o nosso, num cenário que não é o nosso. (CARRIÈRE, 1994, p.75)

O cinema é a arte do engano, na medida que se vê obrigado a ludibriar para manter a idéia de que a sua matéria-prima é a realidade. Para continuar fascinando o espectador a linguagem cinematográfica teve que criar várias formas de ilusão, distorcendo idéias e emoções. Para tornar o irreal em realidade.

Se o cinema preocupa-se em falar da realidade, não seria mais fácil que ele só tratasse de fatos reais? As coisas não são tão simples assim. A que realmente acontece na vida cotidiana nem sempre pode ser representada em filmes por mais reais que sejam. Porque ``a verdade não é sempre convincente''. (CARRIÈRE,1994, p.87). Como se o irreal nos convencesse mais que a realidade.

De certa forma a realidade no cinema é a própria ilusão, ou seja, a construção da idéia torna a vida imaginária tão real que a qualquer momento podemos achar que a vida que tomamos por real pode se tornar inverossímil. As barreiras estreitas entre realidade e ilusão demonstram que no fundo a realidade não é, de todo, real.

A ilusão no cinema é devida à dualidade real-fantasia. Pois a qualidade intrínseca está na composição da tomada, em sua representação do mundo real. ``Assim, o tema da arte cinematográfica é o mundo real''. (TURNER, 1997, p.43).

Principais teóricos cinematográficos

Os estudos a respeito do cinema são tão recentes quando a sua origem e ao longo de sua história vários são os estudiosos que delimitaram suas características e analisaram sua linguagem. Dentre eles encontramos Béla Balázs, Siegfried Kracauer e André Bazin (tradição realista), Rudolf Arnheim, Hugo Munsterberg e Sergei Eisenstein (tradição formativa), Jean Mitry e Christian Metz (tradição acadêmica).

Béla Balázs escreveu seus primeiros ensaios sobre cinema em 1922. Em seus estudos já demonstrava que era necessária a fundamentação de uma teoria cinematográfica para que o cinema seguisse caminhos mais promissores. Desde o início, Balázs percebeu que, o cinema só poderia se estabelecer como entretenimento quando começasse a trabalhar com temas que só fossem possíveis nele, pois competia com atrações ao vivo.

O cinema, para se diferenciar das demais manifestações artísticas, tinha de criar narrativas mais complexas e se diferenciar do teatro filmado. Para isto novas concepções de ângulo e montagem tinham que ser estabelecidas, ou seja, uma nova forma lingüística. Como é descrito por Andrew (1989, p.96), Balázs viu nos filmes de Griffith ``uma nova forma lingüística do cinema ao fragmentar as cenas, mudando a distância e o ângulo da câmara de fragmento para fragmento, e especialmente ao armar seu filme, não como uma ligação de cenas, mas como uma montagem de fragmento''.

Balázs foi também um dos primeiros a analisar os vários gêneros do cinema e percebeu uma divisão entre filme abstrato e documentário puro. ``Entre eles existem os gêneros mais convencionais de filme ficcional, cine-jornal, filme educacional e documentário pessoal''. (ANDREW,1989, p.102). Dentre este gêneros Balázs demonstra simpatia ao documentário puro como mostra Andrew:

Balázs inicia sua argumentação salientando com a maior das simpatias a base `lógica do `documentário puro', que pretende penetrar tão profundamente no âmago da vida, reproduzir tão vividamente a matéria-prima da realidade, de modo a encontrar elementos dramáticos suficientemente expressivos sem ter necessidade de um enredo construtivo. (ANDREW, 1989, p. 103)

Para Siegfried Kracauer, assim como Balázs, a realidade não era algo que pudesse ser capturada ingenuamente, pois via no cinema o resultado de uma ``mistura de assunto e tratamento do assunto, da matéria-prima e da técnica cinemática''. (ANDREW, 1989, p. 116). O cinema, diferente das outras manifestações artísticas, não representa o mundo imaginário: o seu objetivo, muitas vezes, é mostrar a vida como ela é. Isto significa que o cineasta tem que saber utilizar todos os métodos para explorar a realidade que fala ao mundo por meio dos objetos. Kracauer, apesar de criticar as ideologias, acreditava na experiência real e na ciência como fonte de conhecimento das coisas. Neste contexto, Kracauer contradiz a sua idéia: apesar de ele ver com bons olhos a expressão da realidade, diz que o documentário e os cinejornais sofrem de uma limitação de campo.

André Bazin, assim como Kracauer, compartilha a idéia de que o cinema é o espelho do real. Bazin é considerado o mais importante teórico realista, por ser o primeiro crítico a desafiar a tradição formativa e acreditar no poder da imagem registrada mecanicamente ao invés de dar credito ao controle artístico sobre as imagens. Dentro da tradição realista, a imagem no cinema dependia da realidade visual, a qual representava o mundo real físico.

De acordo com Hélio Godoy (2001, p. 29), ``o realismo baziniano pode ser analisado em dois níveis: o plástico e o da montagem''. O primeiro marca a relação da imagem fotográfica com a realidade e a montagem dentro de uma concepção metafísica (por ser a realidade ambígua) pode ser dividida em duas ordens diferentes: Como é colocado por Andrew (1989, p.153), o primeiro tipo de montagem para Bazin ``é aquela associada basicamente ao cinema mudo, onde as imagens reunidas de acordo com algum princípio abstrato de argumento, drama ou forma''. O segundo tipo que tem prevalecido desde a chegada do som ``é uma montagem psicológica por meio da qual um evento é quebrado nos fragmentos que duplicam as mudanças de atenção que naturalmente experimentaríamos se estivéssemos presentes no evento''.

Contrário ao pensamento de Bazin, Rudolf Arnheim não aceitava uma arte com ambigüidade, para que não ocorra o fracasso de sua arte. Ora, para Arnheim é o veículo que torna o cinema uma ilusão da realidade, como especifica Hélio Godoy.

Para Arnheim, o cinema não poderia ser arte se ele fosse somente um veículo da realidade, pois nesse casso o artista não teria como manipular o meio de expressão. Se o cinema fosse apenas a representação da realidade, não haveria muito o que criar nesse processo. (GODOY, 2001, p.32)

Hugo Munsterberg também via o cinema como um veículo, no entanto não o percebia como veículo do mundo, mas como veículo da mente. Desta forma de acordo com Godoy (2001, p.37), Munsterberg vê que o documentário não atingirá o ``status estético do cinema ficcional'', por não estar ``baseado na mente, nas emoções, e sim no mundo''. Segundo suas concepções o cinema não evolui, e em 1915 ``já havia chegado a sua fase máxima''. Suas idéias, como se percebe, não eram as mesmas de Bazin, que via a possibilidade evolutiva do cinema.

Sergei Eisenstein passou a vida tentando entender o cinema, por este motivo sua concepções a respeito do cinema são mais ricas que as de Munsterberg e Arnheim. O seu interesse pelo cinema talvez seja devido à sua inquietação diante dos acontecimentos que filmava. Conforme as explicações de Andrew (1989, p.55), Eisenstein notava que a ``platéia olhava para os eventos cinematográficos exatamente como olhava para os acontecimentos cotidianos''. Segundo Eisenstein, ``os elementos componentes do espetáculo cinematográfico (iluminação, composição, interpretação) deveriam combinar-se para criar no espectador uma impressão psicológica forte''. (GODOY, 2001, p.40) e não para se resumir em um contador de história. E era por meio da montagem que o cinema demonstrava seu poder criativo de unir imagens isoladas em um conjunto criativo.

Eisenstein nunca poderia aceitar a noção do plano como um pedaço da realidade do qual o cineasta se apodera. (...) Se o cineasta é realmente criativo, extrairá seu próprio sentido dessa matéria-prima, construirá relações que não estão implícitas no significado do plano. (ANDREW, 1989, p.59)

A posição de Jean Mitry a respeito do cinema fica entre Eisenstein, (obsessão pela abordagem e montagem), e Bazin (profundidade da realidade). Como descreveu Andrew (1989, p. 195), Mitry considerava que a imagem ``diferente do mundo que representa, pode ser trabalhada e ordenada de acordo com os esquemas mentais do cineasta''.

Mitry concorda com Bazin a respeito de que é o tratamento da realidade o objeto principal do cinema, mas discorda a respeito da montagem. Para Mitry, a imagem é sempre associada à narrativa e é por meio da montagem que o homem confere à realidade uma ordem e uma lógica.

A montagem inclui todos os métodos que dão contexto a imagens isoladas, que transforma a matéria-prima num universo fílmico, que fazem a tendência natural das coisas e seus análogos terem sentido numa significação humana. (ANDREW, 1989, p.195).

Apesar de vários teóricos discutirem e analisarem aspectos da linguagem cinematográfica, esta ainda não era vista como ciência. Foi a partir da publicação de ``Language et cinema'' (1971) de Christian Metz que iniciou a fundamentação do cinema como ciência. Quando Metz propôs uma discussão científica a respeito do cinema, demonstrou que era hora de deixar de ver o cinema de maneira genérica para passar a enxergá-lo como um objeto de estudo específico. De acordo com Godoy (2001, p.52), o projeto científico de Metz estabelece um campo de análise ``denominada audiovisual que é composto por um grupo de linguagens próximas onde estão incluídos o cinema, a televisão, o desenho animado, as gravações sonoras, a fotografia, a fotonovela e os quadrinhos''. Andrew (1989, p. 229), descreve que a definição de cinema para Metz ``é a soma de todos os códigos, junto com seus subcódigos, que talvez possa produzir significado nos materiais de expressão do veículo''.

Assim, o desenvolvimento da teoria cinematográfica possibilitou as demarcações da linguagem cinematográfica e o seu reconhecimento como ciência. Mas, mais do que isto demonstrou o seu caráter evolutivo por ser uma linguagem mutável que se recria com a evolução tecnológica e com as novas possibilidades de representação da imagem.

Documentário como categoria cinematográfica

A definição de documentário de acordo com o dicionário é: relativo a documento e filme, geralmente de curta-metragem, que registra e comenta um fato, um ambiente ou determinada situação. (FERREIRA, 2001, p.264). Tais definições são limitadas porque o documentário não se resume a isto. Mesmo porque é sabido que exprimir o que seja documentário em um único significante não é fácil, devido à variedade de caminhos que este gênero fílmico pode seguir. Por mais que o documentário tenha consolidado algumas características, é difícil determinar ``O que é documentário?'', por estar em uma fase de afirmação. ``A resolução desta situação implicaria que o documentário fosse objeto de uma teoria fílmica própria''. (PENAFRIA, 1998, p.1). O que não é possível, pois o documentário é um gênero cinematográfico que pode incorporar características do cinema ou da TV. Isto dependerá inclusive de qual será o seu destino, o cinema ou a televisão. Curioso é também notar que a percepção do que seja um filme documentário pode ser dada em oposição à ficção e à animação - embora possa incorporar elementos destas categorias em seus filmes (e vice-versa).

O filme documental foi um dos primeiros gêneros cinematográficos e, nos primórdios das exibições, o que as pessoas viam nas telas eram imagens in loco, cujo objeto fílmico era a vida cotidiana. O desenvolvimento das técnicas e da linguagem cinematográfica contribuiu para o cinema tomar rumos diversificados e constituir novos gêneros. Tal evolução não atrapalhou o desenvolvimento do filme documental: pelo contrário, deu maior liberdade a ele.

O documentário desenvolveu e consolidou suas características a partir do movimento documentarista britânico nos anos 30. Um pouco antes, na década de 20, o documentário demonstrou que não se limitava ao registro de imagens in loco: um exemplo clássico desta época é o filme Nanuk (1922) de Robert Flaherty. Neste filme, Flaherty capta o quotidiano do povo inuit e dá vida às tradições dos seus antepassados na medida em que são retratados hábitos antigos de pescar e de construção de iglus. Este documentário mistura realidade e memória quando os inuit que representam a maneira de pescar dos antepassados não estão reconstruindo a realidade, mas apresentando sua memória coletiva ao mundo. Não é errado afirmar que o material filmado também serve como documento sobre o povo inuit, entretanto tem que se tomar cuidado para não tomar o filme como verdade inquestionável sobre esse grupo, porque o documentário é um gênero fílmico que pode sofrer interferências na construção da sua realidade.

Uma das características do documentário é o registro dos acontecimentos no instante em que eles acontecem. Por isto ele foi e é usado, algumas vezes, para levantar a opinião pública a ponto de cobrar atitude das pessoas ou simplesmente informar o que está se passando na sociedade. Um exemplo foi a divulgação, por meio do documentário, das medidas governamentais para a resolução dos problemas da `Grande Depressão dos anos 30'.

Para captar a imagem no local dos acontecimentos as técnicas e os equipamentos de filmagem tiveram que evoluir. A câmera portátil e o som sincrônico foram os instrumentos que possibilitaram o desenvolvimento da linguagem documental. Desta forma, sair do estúdio para gravar com uma câmara foi o primeiro passo para consolidar o filme documentário. O material filmando in loco era prova de que a câmara havia registrado algo importante, dando autenticidade ao fato.

Se a câmera, por qualquer motivo, não esteve presente em determinados momentos, faz-se uso de imagens de arquivo que carregam consigo a verdade da representação ou recorre-se à reconstrução (recriar uma determinada situação). A reconstrução não é exemplar na sua relação de `verdade' para com a realidade, mas serve o propósito de mostrar situações importantes para o espectador. (PENAFRIA, 2003, p. 1 ).

A reconstrução dos fatos e imagens de arquivo em documentários é legitimada, desde que as cenas estejam mais próximas da realidade. O que importa não é a autenticidade do material usado, mas a autenticidade do filme, ou seja, o resultado final tem que provocar e convencer o espectador. O movimento documentarista britânico, por exemplo, não queria constituir o documentário como um projeto de cinema, mas sim filmes com utilidade social.

O que diferenciava o documentário das outras manifestações do cinema, no início, era o uso de câmaras portáteis, som sincrônico, as entrevistas de rua, o uso de plano-seqüência. O `cinema direto', uma vertente do filme documental, preocupa-se com o enquadramento e a composição subjetiva dos planos, porque sua intenção era representar a visão direcionada do outro, mas sem interferir nos acontecimentos. No entanto, não podemos esquecer de que o grande diferencial do documentário era o uso de imagens `reais', recortadas da realidade. Enquanto as outras manifestações fílmicas abriam a janela do mundo para o imaginário ao demonstrar a capacidade de se criar e reinventar de acordo com a ótica do cineasta, o filme documental, ao contrário, não queria reinventações, mas abrir a janela do mundo real porque o que o interessava era mostrar as imagens da realidade da vida que se apresentava em frente à câmera.

Como já foi mencionado, o documentário como produção fílmica tem características variadas, por isto encontramos filmes documentais em que o documentarista não interfere no objeto filmado e nos dá a impressão de um voyeurismo sem interesse. Em outros casos, por mais que as pessoas acreditem estar diante da realidade a presença da equipe de filmagem e as intervenções com perguntas nos faz lembrar que aquela `realidade' projetada na tela é uma realidade trabalhada, que faz parte de um filme. Consuelo Lins, quando fala do documentário Edifício Master (2002), de Eduardo Coutinho, em seu livro, fala como o documentarista pode demonstrar ao espectador que a imagem da tela faz parte de um filme.

Não é à toa que a primeira imagem do filme é a de uma das câmeras da vigilância. Nela, Coutinho está chegando com parte da equipe. Se há uma retomada do procedimento habitual do cineasta afirmando que estamos assistindo não ao ``real'' propriamente, mas ao encontro de uma equipe de cinema com um determinado universo, (...). Estamos filmando, diz o filme, mas também somos filmados, indicando ao espectador uma espécie de circuito fechado, (...). (LINS, 2004, p.153).

A conscientização de que o documentário é um filme e por isto está inserido no cinema, demonstra, mais uma vez, que ele deve ser estudado por conceitos cinematográficos e não por termos que lhe são exteriores. As teorias devem ser encontradas nos filmes documentais e também no cinema. Atualmente, não se pode rotular completamente um filme de documental ou não documental, pelo fato de não existirem barreiras sólidas que os separem. Isto porque muitos filmes são rotulados de ficção, mas apresentam em sua constituição imagens documentais. Manuela Penafria cita em seu estudo o filme JFK (1991), de Oliver Stone que, embora traga um rótulo de ficção, tem muitas imagens documentais, filmadas in loco. É um filme baseado em fatos reais que utiliza a imagem do assassinato do presidente Kennedy e outras na construção de sua narrativa.

A revista francesa Première entrevistou Oliver Stone e perante a pergunta: `Qual a parte de ficção no filme?' Stone começa por afirmar de modo bastante categórico: `Praticamente zero'. (PENAFRIA, 2003, p 2)

A resposta de Stone nos faz perceber que a fronteira entre ficção e realidade é muito próxima, mesmo que, ao contrário do que insinua o diretor, o filme retrate uma versão do fato. Se analisarmos a resposta dele, à revista francesa, percebe-se que ele gostaria de ver o seu filme rotulado como documentário e não como ficção. Mesmo porque a palavra ficção segundo o dicionário Aurélio significa ``ato ou efeito de fingir, coisa imaginária, fantasia e criação'' (FERREIRA, 2001, p.346), ou seja, é antônima de realidade.

No universo cinematográfico há filmes documentais que estão mais próximos da ficção, devido ao tratamento criativo da realidade. É o caso de dois filmes `Las Hurdes, terra sem pão' (1932) de Luís Buñuel e `En construccion' (2000) de José Luís Guerín, ambos catalogados como documentário, mas a maneira como editaram o material in loco fez com que pareçam filmes de ficção. Uma pergunta pertinente feita por Manuela é: ``Que realidade consegue sobreviver ao tratamento criativo?''. Apesar de muitos filmes documentais utilizarem registros de ficção ou imagens de arquivo, isso não faz com que deixem de ser considerados documentários.

Todo filme é documental no sentido em que documenta algo, quanto mais não seja, aquilo que nos mostra, que dá a ver, independente dessa realidade ter existência (física) fora dessas imagens ou de ter sido construída propositadamente para as filmagens. (PENAFRIA, 2003, p.3)

Atualmente, afirmar que o documentário está mais próximo da realidade é limitar a produção cinematográfica. Mesmo porque, na contemporaneidade, os registros documentais coabitam com os registros ficcionais. Misturar as duas formas de registro não é modismo nem um modo inovador de fazer filme, mais do que isto é um modo de representar a realidade.

Por ser a realidade complexa, o que se tem nos documentários é uma representação fiel da realidade? Nem sempre. Mesmo porque: o que é a realidade? Por mais que o documentarista use recursos cinematográficos variados para não perder os detalhes, ele sabe que a realidade captada é apenas um recorte de um todo. Apesar de o documentarista preocupar em registrar a vida das pessoas e os acontecimentos do mundo que são demonstrados pelas imagens e sons que são externas a elas, não tem como captar todos os detalhes que lhes dizem respeito.

Apesar do documentário estar inserido dentro da produção cinematográfica, ele sempre ocupou um lugar de segundo plano no cinema, em uma posição de inferioridade se comparado a outras produções cinematográficas, pois parece que quanto mais próximo da realidade mais distante da arte. O desenvolvimento da linguagem cinematográfica encontra no documentário o seu principal aliado quando demonstra que a realidade se manifesta, inevitavelmente. Afinal, não se pode esquecer que o ato de documentar com uma câmera foi o primeiro ato cinematográfico.

A discussão a respeito do documentário contribui para que seja definido o seu exato contorno, a sua especificidade, proporciona uma caracterização mais precisa em relação aos outros filmes. Assim será possível posicionar o documentário dentro da produção fílmica em geral.

O avanço tecnológico e o filme documental

A riqueza e unidade estilística do filme documentário como gênero fílmico é distinta por sua característica de produção. Como dito no item anterior, ele tem como característica principal o registro in loco guiado pela visão do documentarista por meio de sua abordagem ou ponto de vista da realidade que captou, seja de maneira espontânea ou intencional. Nos últimos anos, a produção de documentário, assim como a sua divulgação aumentaram, e alguns dos fatores que contribuíram foram a facilidade de meios e a simplificação dos equipamentos cada vez mais avançados utilizados em sua produção.

Cada nova tecnologia constitui sempre uma nova oportunidade para o documentarismo se manifestar e, embora as diversas práticas documentais não tenham sido nunca mutuamente exclusivas, ganhou-se na criação de novas formas e/ou expansão das anteriores. (PENAFRIA, 1998, p. 1)

Neste caso, novas técnicas serviram para determinar as características do filme documentário e o distinguir da produção filmica restante, o que determinou sua identidade, cuja principal característica é o registro histórico que teve origem na década de 20 e 30. Atualmente, as ``novas tecnologias'' trazem novas perspectivas de desenvolvimento para a produção documental e possibilita a criação de um novo produto multimídia: o documentário digital, uma vez que o documentário exige que muitas imagens e sons sejam obtidos nos locais onde as pessoas vivem e onde os fatos históricos acontecem, e que muitas vezes são de difícil acesso.

As novas tecnologias têm proporcionado a expansão do documentário, porque este soube incorporar os novos meios de produção tecnológica, aproveitando da melhor maneira as novas técnicas. Nesse novo ambiente, totalmente digital, há maior liberdade de experimentação documental, pois as possibilidades de introduzir e organizar as informações podem variar de acordo com a estrutura definida, pois será a sua perspectiva e a sua visão que determinará como se dará a abordagem do tema.

Todo e qualquer documentário permite uma nova experiência de realidade devido à sua multiplicidade de formas, o que constitui o seu valor único como gênero e sua autenticidade. Em formato digital, o documentário amplia a percepção da realidade, esteja ela próxima ou distante de nós.

O documentário só evoluiu porque o documentarista soube explorar esses novos meios. Principalmente após a invenção da câmera portátil e do som síncrono, também portátil, que possibilitou ao documentarista registrar cenas importantes da história no momento em que elas acontecem, como o atentado de 11 de Setembro, o assassinato de Kennedy em Dallas e outros fatos que ocorreram na história mundial. Tais registros históricos foram possíveis porque havia no local alguém com uma câmera portátil.

Deste modo, o documentarista, ao gravar fragmentos da realidade, utilizando os novos meios, expande as possibilidades de criação à medida que ele dá um tratamento criativo à realidade. Os avanços tecnológicos fazem com que o documentarismo seja reinventado a cada produção documental.

O ponto de vista no filme documental

No âmbito de tantas possibilidades de criação o documentarista não se limita a reproduzir o óbvio: ele recria o mundo, mostra um ponto de vista ou vários sobre o mesmo objeto, mostra a realidade de acordo com a leitura feita das imagens captadas pela câmera. Mas isto não significa que o documentarista pega a câmera e filma, aleatoriamente, tudo o que lhe aparece pela frente.

Na produção de qualquer filme, seja ele documental ou não, o documentarista tem que fazer uma pré-produção (pesquisa o tema/assunto a tratar) antes da realização do roteiro. A pesquisa feita, antes de iniciar as filmagens serve para contextualizar a equipe que trabalha no documentário. Com a pesquisa feita, a equipe traça um roteiro para nortear o trabalho. É bom lembrar que o roteiro do documentário não é tão detalhado quanto a do filme de ficção. Mesmo porque o documentarista trabalha com imagens in loco, com personagens que não são atores e ele não sabe o que o entrevistado falará, porque durante as filmagens tudo pode acontecer.

Ao contrário das outras produções fílmicas, em que o cineasta sabe qual será o começo e o fim do filme, o documentarista, por lidar com o imprevisível, pode terminar a filmagem sem saber como começará a história. Para evitar contratempos, o documentarista tem que definir o tipo de abordagem, mesmo que seja impossível determinar os acontecimentos antecipadamente. Tentar prever o imprevisível é uma forma de distinguir o que é interessante ser filmado do que não é.

Ao selecionar a temática a ser abordada em seu filme, o documentarista não está delimitando o seu ponto de vista. Porque há uma fonte inesgotável de formas e conteúdos a serem usados para expressar um ponto de vista. ``O único limite é a sua própria criatividade''. (PENAFRIA, 2001, p.5). Sua liberdade de criação só é limitada quando o filme a realizar é encomendado. Desta forma o cineasta terá de fazê-lo de acordo com os interesse de quem encomendou. Um exemplo são os documentários da BBC e da National Geographic que seguem o mesmo padrão.

O documentarista não deve ser visto apenas como um meio para transmitir determinada realidade. A partir do momento em que se decide fazer um documentário, isso constitui já uma intervenção na realidade. (PENAFRIA, 2001, p. 4).

A narrativa no filme documental é construída depois que o documentarista capta tudo que necessita, ou seja, depois que recolhe todo o material bruto é que ele determinará o que mostrará ao espectador. A partir do momento em que as cenas são selecionadas inicia-se o processo de montagem e a criação da narrativa, o que significa que é o documentarista que determina qual leitura deve ser feita da realidade.

As características do documentário são expressas pela seleção e combinação de imagens e sons do filme determinados pela criatividade de quem o realiza. ``Cada seleção que se faz é a expressão de um ponto de vista, quer o documentarista esteja consciente ou não''. (PENAFRIA, 2001, p.5). Portanto, é essencial que o documentarista defina o ponto de vista predominante em seu filme, caso contrário, não conseguirá atingir o espectador.

O documentarista garante a unidade do documentário pela relação próxima que estabelece com a temática que aborda, pela definição do ponto de vista que deve percorrer a produção do documentário e refletir-se no mesmo (...). O documentário é um espaço onde existe e deverá existir sempre a possibilidade de construção de significados a partir das imagens e dos sons do mundo que nos rodeia. (PENAFRIA, 1998, p.1)

Por mais que o documentarista queira demonstrar a visão da totalidade isto não é possível, porque ver é selecionar um objeto em foco é diferenciá-lo de todo o restante. ``O centro do quadro é o ponto para onde o dedo invisível está apontando. Olhe apenas para o que escolhi mostrar a você''. (CARRIÈRE, 1995, p.66). Os nossos olhos diante da tela do cinema vêem apenas as imagens que foram selecionadas pelo documentarista, o que ele julgou desnecessário com certeza não será mostrado. Não são apenas os olhos ou as escolhas feitas pelo documentarista que delimitam as imagens, os limites geométricos da tela também selecionam. ``E, mesmo dentro daquele luminoso espaço retangular, somente as imagens bem definidas são visíveis, aquelas que estão em foco; todas as outras são nebulosas, e nossos olhos simplesmente as ignoram''. (CARRIÈRE, 1995, p.65).

Nas palavras de Dudley Andrew (1989) sobre a visão de Bazin, o cineasta, quando tenta ``fazer um filme significativo, deve confrontar a realidade crua de seu material com a sua própria capacidade de abstração. O estilo e a forma do filme são o resultado dessa confrontação'' (ANDREW, 1989, p. 151). O cineasta, por sua vez, capta através da câmera a sua visão do mundo. Por mais que queira demonstrar a verdadeira realidade, não pode se esquecer que a realidade naquele momento diz respeito ao que ele quer mostrar e o que ele quer despertar nas pessoas como: ódio, amor, esperança, medo, indignação ou apenas uma concordância ou discordância. O importante é não esquecer que o seu papel é levar a `realidade'ao espectador.

O documentário não limita a sua atuação à observação do outro, ele também pode interagir com o outro quando o escuta e fazer intervenções para aprofundar a fala da personagem. A personagem no documentário é um ator que apresenta sua própria história. De acordo com Carrière ``são personagens errantes, à deriva da vida real, apanhadas assim na rede astuciosamente intricada da ficção, perdem a veracidade'' (CARRIÈRE, 1995, p. 59). Muitas vezes as personagens perdem a veracidade por causa do tratamento que o documentarista dá ao seu depoimento por causa de montagens mal feitas e principalmente porque esquece que: ``um documentarista não dirige atores, não constrói personagens''. (PENAFRIA, 2001, p.1).

De acordo com as considerações de Consuelo Lins a respeito da relação entre o cineasta e o personagem nota-se o que o ``interessa é a visão de mundo do personagem, o ponto de vista específico que ele tem sobre o mundo e sobre si mesmo'' por isto não é interessante definir ``o personagem à revelia dele, nem tratá-lo como um fenômeno da realidade, dotado de rígidos traços típico-sociais'' (LINS, 2004, p. 24).

A realidade que é construída pelas personagens é estabelecida com a relação que a mesma tem com a câmera. De acordo com Bernardet (2003, p.22) há três etapas que determinam o tratamento das personagens:

A primeira etapa consiste no primeiro encontro que o documentarista tem com as pessoas que participam do filme. Dependendo do que essa pessoa tem a falar e a sua disponibilidade, o documentarista pode usá-la ou não.

A segunda etapa é a do ator natural: a pessoa que o documentarista escolheu e que se dispôs a ser filmada e entrevistada age em função da filmagem. Vai repetir o que falou com o documentarista anteriormente e vai obedecer ao que foi combinado com a equipe: onde sentar, refazer a cena ou não se for necessário, a personagem representa a si mesma. Este tipo de personagem demonstra o tempo todo que ela atua em função da filmagem.

A terceira etapa diz respeito à montagem e finalização do filme. O material obtido é coordenado em função das necessidades expressivas e das idéias do filme. É a montagem que vai armar a relação entre as personagens. Como estas três etapas não são obrigatórias, cabe ao documentarista segui-las ou não.

A montagem é o fio condutor da produção cinematográfica. É ela que permite a junção de imagens captadas em diferentes lugares com durações distintas em um único objeto fílmico e dá significado a esta combinação que antes parecia caótica. ``A montagem não junta, organiza; é um meio que pode dar ordem ao caos e criar um cosmos''. (PENAFRIA, 1999, p.35). As imagens in loco organizadas em uma montagem que revela apenas a seqüência dos fatos sem qualquer intervenção criativa não revelam a sua plenitude, porque o filme tem que ser mais que a soma das partes.

Como o cinema é uma arte de possibilidades e o filme documentário é um gênero cinematográfico nada o impede de usar qualquer tipo de cena para construir sua narrativa. Vários filmes utilizam cenas de arquivo quando vão documentar fatos históricos com a finalidade de esclarecer o espectador fornecendo informações que não estão nas imagens obtidas in loco. As imagens ficcionais podem aparecer em documentário, nada impede o documentarista de utilizá-las e o seu uso não compromete e veracidade do filme porque elas, assim como as imagens de arquivo, também são usadas para enriquecer a narrativa fílmica.

Um recurso muito usado em documentários e talvez o que mais o diferencia das outras produções fílmicas e o aproxima da TV é a locução em off. A voz do off em um documentário é diferente de todas as outras é uma voz única modelada no estúdio. Uma característica do locutor do off é que ele nunca aparece na imagem: ele tem uma função onipresente dentro da narrativa e, ao contrário dos entrevistados, nada lhe é perguntado, mas ele sabe todas as respostas.

É a voz do saber, de um saber generalizante que não encontra sua origem na experiência, mas no estudo do tipo sociológico; ele dissolve o indivíduo na estatística e diz dos entrevistados coisas que ele não sabem a seu próprio respeito. (BERNARDET, 2003, p.17).

Os filmes que utilizam muita locução usam as imagens como amostragem do que o locutor fala, o que não quer dizer que as imagens repetem o que é falado e sim que as imagens acrescentam dados ao que é falado ou vice-versa. O fato de a locução funcionar como um elo entre as personagens a ponto de uniformizar a narrativa faz com que o filme funcione, no sentido de transformar experiências individuais em coletivas. Mas não é apenas o off que proporciona a unidade.Algumas imagens podem representar muito pouco, ``caso não fossem rigorosamente domadas e enquadradas por uma série de mecanismos (seleção, montagem, música, locução) que as levassem a dizer o que se quer que digam'' (BERNARDET, 2003, p. 248). Desta forma, o texto (locução ou entrevistas) direcionam a imagem à ``significação pretendida'' e limpa o que não é necessário. ``O texto, nessa concepção de filme, é a muleta da imagem''. Outro recurso que o documentarista utiliza para dar ritmo e dizer o que o locutor ou a imagem não diz é a trilha sonora.

O simples resgate de imagem-documento do passado parece ser o próprio reerguimento da história soterrada, que falaria por si só. As imagens, de fato, falam muito pouco, ou melhor, a potencialidade de fala que elas têm é enorme, mas nem sempre tão dispersas e tão ambígua, que elas nunca apresentariam o discurso da história. (BERNARDET, 2003, p. 248)

Desta forma, o documentarista exerce uma função criadora na construção do filme documental e lhe cabe saber combinar e utilizar todos os métodos. No entanto, apesar de ter uma liberdade criadora, o documentarista não deve extrapolar a ponto de distorcer a realidade e torná-la incompreensível. Pois as projeções da realidade feitas no documentário têm que ser mais realistas do que nos outros gêneros cinematográficos, caso contrário não exercerá sua principal função: retratar a realidade.

Documentário e reportagem

A reportagem é, geralmente, confundida com o documentário por estar inserida nos filmes de não-ficção. Apesar de ambos fazerem parte do mesmo universo audiovisual e de tratarem dos acontecimentos do mundo, não é correto confundi-los. A reportagem, por obedecer a rígidos critérios jornalísticos de noticiabilidade, é pautada por princípios opostos aos do documentário.

Conhecedor dos critérios de noticiabilidade, o jornalista tem a capacidade de reconhecer quando um acontecimento deve ou não ser notícia, ao noticiar esse acontecimento, deve personificar os cinco sentidos do leitor ou ouvinte. (PENAFRIA, 1999, p. 23)

O objetivo de qualquer reportagem é mostrar às pessoas os acontecimentos do mundo e, para esclarecê-las, responder às questões básicas do lead: quem, o quê, quando, onde, como e por quê. É bom lembrar que nem todo acontecimento do mundo desperta interesse jornalístico a ponto de virar reportagem.

Enquanto os jornalistas seguem todas as normas pertinentes à profissão, o documentarista não precisa seguir nenhum tratado que formalize sua prática, e nem aos princípios de noticiabilidade, mesmo porque ``o ponto de partida para a produção de um documentário é a ausência de receitas'' (PENAFRIA, 1999, p.23). A reportagem por sua vez tem que seguir todas as normas ditadas pela linguagem televisiva e pela linguagem jornalística. A obrigatoriedade na reportagem é devido à necessidade de explicar os fatos de maneira objetiva e imparcial.

A imagem na reportagem é muito importante, pois além de ilustrar ou confirmar o que foi dito no off, é a principal responsável pela existência da matéria. Ora, na tevê, não adianta a matéria ser boa se não houver imagem. Assim como na reportagem, a matéria-prima do filme documental é a imagem, mas ao contrário da reportagem, a imagem no documentário pode ter um tratamento criativo e não serve apenas para reforçar e evidenciar o que já foi dito, porque tanto o texto quanto a imagem no documentário têm que trazer elementos novos.

O documentário tem por objetivo e função dar-nos a ver o nosso mundo ou, aliás, revelar-nos o nosso próprio mundo. Isso não significa que nos mostre o óbvio. Pelo contrário, tem de, a partir da ênfase que coloca nas pessoas e nos acontecimentos diante de si, permitir-nos aceder a um determinado ponto de vista em relação ao tema em causa. (PENAFRIA. 1999, p.24)

A confusão feita entre reportagem e documentário é devida a inúmeras produções documentais para a tevê, que utilizam a linguagem jornalística ou que são apresentadas como reportagem. Exemplo disso são os programas jornalísticos que transmitem em sua programação trechos de documentários como se fossem materiais jornalísticos. O Fantástico, todos os domingos transmite fragmentos de documentários produzidos pela BBC sobre os mais variados temas. Por se tratar de um programa jornalístico e os documentários estarem inseridos em sua programação a confusão se estabelece.

Outro programa que utiliza documentários estrangeiros ou produz documentários com linguagem televisiva é o Globo Repórter. Eduardo Coutinho, quando trabalhou no programa, ``conseguiu realizar uma experiência de documentário bastante singular'', na produção trabalhava ``jornalistas, profissionais da própria televisão e vários cineastas'' (LINS, 2004, p.19).

Desta forma, percebe-se que o documentário se distancia da reportagem devido à sua flexibilidade no tratamento das coisas, por isso o documentário pode usar recursos da reportagem ou critérios jornalísticos na concepção de seus filmes.

Um perfil de cinco olhares

Neste capítulo faremos a análise de conteúdo dos filmes Roger e Eu (1989), Tiros em Columbine (2002) e Fahrenheit 11 de Setembro (2004) do diretor Michael Moore. Os estudos bibliográficos apresentados nos dois primeiros capítulos serviram para o embasamento teórico e para nortear os caminhos a serem tomados. Os filmes analisados partem do ponto de vista do mesmo diretor, mas como poderão notar a forma com ele expressará o seu olhar em cada documentário não será a mesma. Entretanto, ele preserva na sua produção fílmica traços marcantes que identificarão o seu estilo. Assim, dividimos a análise de acordo com o olhar estabelecido pelo documentarista em cada filme.

Perfil do documentarista

Michael Moore,o documentarista mais polêmico da atualidade, nasceu em 23 de abril de 1954 em Flint, no Estado de Michigan. Sua cidade era conhecida como o berço da indústria automobilística norte americana, por causa da fábrica da General Motors (GM).

Moore abandonou a faculdade ainda no primeiro ano e logo após criou o jornal independente Flint Voice, que acabaria se transformando em Michigan Voice. Posteriormente foi chamado para trabalhar em São Francisco onde escreveria para uma revista, mas suas idéias não agradaram aos editores e logo retornou a Flint. Quando retornou descobriu que o presidente da GM, Roger Smith, havia iniciado uma política de retenção de gastos fechando todas as fábricas da cidade, cuja economia dependia diretamente da produção de veículos. E foi pegando como ponto de partida o fechamento das fábricas que Moore deu início à sua carreira de documentarista e passou três anos perseguindo o executivo, em festas, clubes e no prédio da companhia em Detroit. O resultado das imagens obtidas foi o documentário Roger e Eu (1989).

Com um adiantamento de 8 milhões de dólares da Warner para o filme ficcional, Moore realizou Canadian Bacon (1995), uma comédia satírica sobre a declaração de guerra dos Estados Unidos contra o Canadá, feita por um presidente idiota. O filme teve sérias complicações por causa da Guerra do Golfo, a Warner abandonou a produção e Moore teve que tentar vender a distribuição para alguns estúdios.

Quando viajava para Los Angeles para vender Canadian Bacon (1995), foi convidado pela NBC para fazer o programa de TV Nation (1995). O programa fazia quadros humorísticos com críticas à sociedade. Mesmo com críticas favoráveis, ficou no ar apenas por dois anos.

Depois da TV Moore resolveu entrar para o mundo das letras e escreveu o livro humorístico Downsize This! (Enxugue Isso!), que entrou para a lista dos best sellers. Durante a viagem que fez para divulgar o livro por quarenta cidades do EUA, o escritor aproveitou para filmar o seu segundo longa documentário: The Big One (1997), no qual visita algumas empresas para saber por que estavam fechando suas fábricas nos Estados Unidos e se mudando para outros países, mesmo dando lucros de bilhões de dólares. No documentário ele desafia o presidente da Nike e entrega um cheque de 80 centavos de dólar para o pessoal da Johnson Products, o valor que os funcionários do México recebem por uma hora de trabalho.
O formato do segundo documentário de Moore inspirou outro programa para a televisão o The Awful Truth (1999), no qual o humor era mais pesado do que TV Nation. Ele convidava, por exemplo, o responsável de um hospital para o funeral de um homem a quem eles negaram um transplante.

Apesar de todo o sucesso que Moore tinha ele ainda não era uma figura muito conhecida, principalmente fora dos Estados Unidos. E foi na noite de entrega do Oscar quando Tiros em Columbine (2002) ganhou o prêmio de melhor documentário que Michael Moore fez o seu famoso discurso, ``chamei os outros indicados para melhor documentário ao palco porque nós gostamos de realidade. Gostamos da realidade, porque nós vivemos tempos fictícios, com eleições fictícias e um presidente fictício. Estamos lutando uma guerra por razões fictícias. Que vergonha, senhor Bush, que vergonha!''3.1 , que ele teve visibilidade fora do país.

O documentário retrata a natureza violenta dos Estados Unidos e usa o massacre de Columbine como fio condutor do filme. Tiros em Columbine (2002) se tornou a maior bilheteria do gênero em todo mundo, ganhou vários os prêmios além de ter sido o primeiro documentário a concorrer no Festival de Cannes em cinqüenta anos.

Ele lançou mais dois livros Stupid White Men, Cara cadê meu país? e o seu documentário mais polêmico: Fahrenheit 9/11 (2004), que crítica a administração de George W. Bush mostrando as ligações da família Bush com Bin Laden e empresários sauditas. O ponto de partida utilizado pelo documentarista foi o atentado de 11 de setembro.

O olhar do documentarista

O olhar de Michael Moore em seus documentários é a característica mais marcante devido à maneira como remonta a realidade. Percebe-se que há uma releitura dos fatos desde a seleção do tema abordado até a montagem final do filme. Nos três documentários analisados o diretor parte de um fato isolado como: o fechamento da fábrica da GM - Roger e Eu (1989) - o massacre de Columbine - Tiros em Columbine (2002) e o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 - Fahrenheit 9/11 (2004) - e constrói um mosaico de significações para `tentar' explicar tais fatos.

Com o intuito de explicar todas as indagações que aparecem no decorrer das filmagens ou simplesmente comprovar suas hipóteses, Moore cruza informações que podem desmentir ou reafirmar a fala de alguma personagem e constrói a narrativa do filme de acordo com a sua ótica do acontecimento. Neste caso, o confronto entre o recorte que faz da realidade com a sua capacidade de abstração resulta no estilo e na forma de seus filmes.

Em Roger e Eu (1989) a entrevistada, miss Michigan, que acaba de participar de um desfile pelas ruas de Flint, diz que aquele foi o maior desfile que já havia participado e que as pessoas estavam empolgadas. Moore, para contradizer a fala da miss mostra imagens das poucas pessoas que viam o desfile, algumas desmotivadas e quase dormindo. A miss também fala de sua participação no concurso Miss American (1988) e pede para todos torcerem por ela. Mais uma vez o documentarista mostra, logo após as imagens, ela ganhando o título.

Isto demonstra que o documentarista não se limita às imagens in loco, mesmo porque o filme documental é um gênero cinematográfico que pode incorporar características tanto do cinema quanto da televisão, dependendo do seu direcionamento. Significa que os registros, ficcionais podem coabitar com os registros documentais, o que é feito pelo diretor quando usa imagens de programas televisivos, filme ficcional, animação, propagandas, imagens de telejornais, imagens de arquivos pessoais e outras que julgar necessário para constituir a narrativa fílmica. Essa bricolagem de referências será constante nas produções de Moore.

Por dar um tratamento criativo à realidade com suas edições e por aparecer no vídeo, Moore é muito criticado pela mídia, mas temos que ter em mente que o documentarista não é um simples retransmissor da realidade, porque ``a partir do momento em que decide fazer um documentário isso já constitui uma intervenção na realidade''. (PENAFRIA, 2001, p.4 )

O cineasta sabe que nem sempre o que é mais importante em um documentário é a autenticidade, mas o quanto o seu resultado vai mexer com o espectador. Tal preocupação com o resultado final pode ser percebida se analisarmos os direcionamentos que o olhar de Moore dá à narrativa de cada documentário. Para isto realiza uma pesquisa minuciosa de imagens e as interliga em uma edição dinâmica e sarcástica.

Moore não direciona seus filmes apenas pelo olhar, ele também guia a narrativa pelo ouvido com uma trilha sonora que, às vezes, diz mais do que as imagens apresentadas. Por exemplo, em Tiros em Columbine (2002) após mencionar um decreto no qual constava que todos os moradores de uma cidade tinham que portar arma de fogo aparece um clip com pessoas de todos os tipos portando armas. Mas o que há de interessante neste trecho não são as imagens, mas a música Happiness Is a warn gun que diz que a felicidade é uma arma engatilhada. Como diz Manuela Penafria, ``cada seleção que se faz é a expressão de um ponto de vista, quer o documentarista esteja consciente ou não'' (PENAFRIA, 2001, p.4).

Portanto, o direcionamento do olhar de Moore abrange todo o processo desde o material bruto até a criação da narrativa e não se limita à primeira visão do fato e às imagens in loco. Como já foi dito anteriormente no segundo capítulo, o documentarista exerce uma função criadora na construção do filme documental e lhe cabe saber combinar e utilizar todos os métodos. Pois as projeções da realidade feitas no documentário têm que ser mais realistas do que nos outros gêneros cinematográficos, caso contrário não exercerá sua principal função: retratar a realidade. Principalmente numa época em que a imagem do real é cada vez mais confusa, devido aos avanços tecnológicos da cinematografia que possibilitam a manipulação das imagens ficcionais a ponto de as torná-las mais próximas da `realidade' do que as imagens in loco.

Devido às várias possibilidades de abordagem que o filme documental pode ter, mesmo tratando-se de um mesmo tema, o documentarista também pode exercer o seu olhar sobre o fato de maneiras distintas. Há documentaristas que não limitam o olhar apenas ao que lhe é estranho, o outro, como é o caso de Moore.

O documentarista garante a unidade do documentário pela relação próxima que estabelece com a temática que aborda, pela definição do ponto de vista que deve percorrer a produção do documentário e refletir-se no mesmo. (PENAFRIA,1998,p. 1)

Em seus documentários, Moore interage com o outro quando o escuta e faz intervenções nas falas das personagens, mas além disto, o cineasta aponta a câmera para si. O ato de inserir-se em seus filmes, não somente como o entrevistador, mas também como uma personagem é uma forma de familiarizar o espectador com a temática ao demonstrar que a `história' narrada diz respeito à sua vida, a vida das personagens ou à de qualquer outra pessoa que esteja assistindo. Partindo dessa premissa vamos analisar aqui três formas de olhar do documentarista, Michael Moore, sobre a visão de acontecimentos distintos: Um olhar sobre a GM, Um olhar sobre Columbine e Um olhar sobre Bush.

Olhar sobre a GM

Em Roger e Eu (1989), a proximidade do documentarista com a temática é percebida logo no início. Ela diz respeito ao universo do documentarista e a abordagem feita é muito pessoal, quase autobiográfica, pois quando o documentarista faz a ambientação do fato que será explorado, mistura informações e imagens que dizem respeito à sua vida, mas que ao mesmo tempo também dizem respeito à história da cidade, Flint. Para isso são usadas imagens de arquivos pessoais (da família de Moore) intercaladas com imagens, de arquivo, dos principais acontecimentos da cidade, à época em que sua economia girava em torno da General Motors.

Percebe-se que, neste documentário, a construção da narrativa é feita de um ponto específico, o fechamento das fábricas da GM, e parte para a história individual na qual envolve várias personagens que estão ligadas diretamente ou indiretamente à fábrica ou a Flint. Apesar de o documentarista ter como fio condutor um único fato ele não trabalha apenas com danos uniformes (mesmo ponto de vista) a seu respeito. É possível notar ao longo da narrativa que há mistura de elementos conflitantes sobre a mesma temática. A junção de olhares distintos ao contar a `realidade' de Flint confirma que a realidade no cinema é o resultado de uma ``mistura de assuntos e tratamentos e tratamento de assuntos'' como dizia Siegfried Kracauer e Balázs (ANDREW, 1989, p. 103).

No documentário a unidade semântica foi estabelecida pela narração em off e pela montagem. Pois a narração, feita por Michael Moore, exerce uma função onipresente dentro da narrativa, disponibiliza informações complementares ao que é mostrado e faz indagações quanto à veracidade dos fatos e dados ditos pelas personagens. A locução funciona como um elo entre as personagens, as imagens e o pensamento de Moore a ponto de uniformizar a narrativa para transformar experiências individuais em coletivas. Como visto anteriormente:

É a voz do saber, de um saber generalizante que não encontra sua origem na experiência, mas no estudo do tipo sociológico; ele dissolve o indivíduo na estatística e diz dos entrevistados, coisas que ele não sabem a seu próprio respeito. (BERNARDET, 2003, p.17).

A montagem, por sua vez, trabalha com fragmentos da vida de personagens reais e direciona o olhar sobre a GM a partir do que pensa o observador para o observado, resultando em uma narrativa irônica. A ironia é resultado de um jogo de imagens e idéias entre dois pólos: fracos e fortes. Os fracos são as pessoas atingidas pelo fechamento da fábrica e a parte da cidade que está degradada, os fortes são a elite, as celebridades e Roger Smith (presidente da GM responsável pelo fechamento das fábricas). O confronto no decorrer do documentário ganha dimensões pessoais na medida em que o Moore passa a ser o porta voz dos fracos e Roger a figura personificada dos fortes. Esta luta entre o bem e o mal é resultado ``de uma montagem psicológica por meio da qual em evento é quebrado nos fragmentos que duplicam as mudanças de atenção'', como disse Andrew (1989: p.153) ao explicitar as idéias de Bazin.

Duas cenas do documentário exemplificam bem a ironia estabelecida por Moore ao juntar os elementos imagem, voz em off ou trilha sonora e conflito entre personagens. A primeira é quando aparecem imagens de uma região de Flint, abandonada e destruída, ao som da música Wouldn't it be nice? (Beach Boys). Não resulta em uma montagem harmoniosa porque a música e a imagem não compartilham do mesmo significado, pois demonstram idéias diferentes a respeito do que está acontecendo realmente. É a partir desta antítese, desta desarmonia significativa entre os dois elementos que se instaura um novo significado irônico.

A segunda, talvez a mais marcante e conclusiva do documentário, acontece quando Roger Smith faz o discurso de Natal da GM. Nesta seqüência há intercalações de imagens do discurso com imagens de uma família que acaba de receber uma ordem de despejo na véspera de Natal. As imagens do despejo mostradas contradizem a fala de Roger que também serve como locução em off na seqüência junto a canção natalina do coro que se apresenta no evento onde esta o presidente da GM . Desta forma, o texto (locução ou entrevistas) direcionam a imagem à ``significação pretendida'' e limpa o que não é necessário.

O fato de o documentarista aparecer no vídeo e de utilizar a sua voz para a locução demonstra, mais uma vez, que a temática por ser próxima a ele foi tratada de uma forma muito pessoal e no estilo show man do documentarista. Esta abordagem não comprometeu o objetivo principal do filme que era mostrar uma visão de mundo maniqueísta, que separa as relações sociais entre maus (o chefe da corporação) e os bons (os trabalhadores). Percebe-se que há uma preocupação em sacudir e indignar o espectador por meio das contradições que aparecem em uma situação consensualmente ultrajante. Mas o espectador deste documentário tem que ter a consciência de que o documentarista procura as causas do fato e produz suas leituras a respeito, substituindo uma análise mais profunda das questões por uma boa piada irônica que demonstra as contradições desumanas do capitalismo.

Olhar sobre Columbine

``A Associação Nacional do Rifle produziu um filme que com certeza você achará muito interessante. Daremos uma olhada''. Esse texto, dito por um representante da associação do rifle em um comercial, apresenta o filme. A seqüência que se segue mostra um dia comum nos EUA com acontecimentos triviais como: o fazendeiro que trabalha, o leiteiro que entrega o leite, a professora que recebe os alunos e o presidente, Bill Clinton, que manda bombardear uma cidade cujo nome não sabe pronunciar. Enfim, faz uma apresentação prévia dos caminhos que irá seguir para construir sua narrativa fílmica.

Os vários caminhos apresentados no princípio de Tiros em Columbine (2002) demonstram que não há um olhar direcionado para um fato específico. Apesar de destacar o `massacre de Columbine', o que norteou o documentário foi o fascínio dos nortes americanos por armas de fogo, a facilidade de adquiri-las e a indústria do medo. Com a intenção de entender o por quê disso, Moore lança a seguinte pergunta: ``Somos uma nação de loucos por armas ou somente loucos? E, se realmente são loucos, como, historicamente, chegaram a essa situação?'' (off de Moore).

Por causa das perguntas abrangentes o fato principal é subdividido em várias vertentes cuja variedade de enfoques, às vezes divergentes, constitui a unidade fílmica. O documentário mostra o culto às armas e a obsessão dos americanos em achar um inimigo, e para tentar explicar o porquê de tal fascínio pega o massacre na escola Columbine, em Littleton - Colorado - e traça as infinitas razões que podem ter influenciado os garotos, o fato dos meninos terem jogado boliche antes de cometerem o massacre (por isso o título original do filme Bowling for Columbine) a fábrica de mísseis da cidade, o cantor Marilyn Manson, as campanhas feitas pela Associação Nacional do Rifle até as decisões de guerra do presidente Bill Clinton.

As imagens de um comercial de armas de brinquedo, que têm o som parecido com as de verdade, mostra a realidade fabricada pela indústria publicitária e serve de ponte à seqüência em que aparece o documentarista e a irmã, quando crianças, brincando com armas de brinquedo. A junção das duas seqüências mais a locução de Moore, que fala do seu desejo de sair dando tiros pela vizinhança. Mostra como a televisão pode influenciar as pessoas principalmente as crianças. Nesse momento, nota-se aspectos importantes do universo cinematográfico: o uso do off para dar informações que estão além do entendimento da imagem e a mistura do filme publicitário com cenas da realidade do documentarista por meio de montagem, o que mostra o poder do cinema em unir imagens isoladas para fazer uma releitura criativa do material selecionado. Outro aspecto marcante está relacionado com o pensamento de Mitry, o qual acreditava que a imagem ``diferente do mundo que representa, pode ser trabalhada e ordenada de acordo com os esquemas mentais do cineasta'' (ANDREW, 1989, p.195). Ora, quando os seus pensamentos íntimos são explicitados na locução podemos ter várias interpretações, pois pode se relacionar a idéia de que se trata de um brinquedo educativo, mas um brinquedo que contribuiu para a formação de ``assassinos''. A variedade de interpretações a respeito de um único fato confirma a idéia de Turner ao falar da relação que se estabelece entre a mensagem do filme e a vivência de quem vê, pois ``um filme será entendido mediante nossa experiência ou percepção de textos de outros filmes''. (TURNER,1997, p.69)

A inclusão de Moore como narrador-personagem o distancia do senso de que a função do documentarista limita-se a olhar para o outro, o que não é uma verdade absoluta, pois nada impede de ser também um personagem. Neste caso, a relação cineasta e personagem vai além das considerações feitas por Consuelo Lins ao afirmar que o cineasta se ``interessa é pela visão de mundo do personagem, o ponto de vista específico que ele tem sobre o mundo e sobre si mesmo'' (LINS, 2004, p.24). O cineasta em questão não trabalha apenas com a visão do outro: ele também se inclui na narrativa fílmica quando intervém na fala da personagem ou quando usa suas experiências pessoais para compor o filme: um exemplo são as imagens do documentarista adquirindo um rifle após ter aberto uma conta bancária, ato que poderia ser feito por qualquer cidadão. A escolha de mostrar a si próprio no mesmo patamar das outras personagens mostra que o documentarista não tem uma visão distanciada do acontecido por tratar o assunto com familiaridade.

O fato de o documentarista ou a equipe de filmagem aparecer no documentário não é uma obrigatoriedade da produção documental: o que Michael Moore fez foi uma escolha dentro das diversas maneira de expressar sua visão em Tiros em Columbine (2002). Pode-se perceber que o enfoque do filme gira em torno do documentarista, no que diz respeito à abordagem feita sobre o fato. Não há imagens da equipe trabalhando e não há imagens do documentarista ou da equipe conversando com as pessoas antes de entrevistá-las.

O documentarista causa a impressão de que todas as abordagens são diretas sem uma conversa prévia, tanto que há imagens de abordagens mal sucedidas como a abordagem que faz ao produtor Dick Clark. Ao pedir a opinião do produtor a respeito do programa auxílio-desemprego, Moore é ignorado e o assunto é abandonado no filme. Mas há imagens que revelam a presença da equipe de filmagem, quando pede ao cinegrafista para desligar a câmera no K-Mart e na seqüência em que o documentarista entrevista o ator Charlton Heston. Após Moore fazer uma série de perguntas que deixaram nervoso o ator, Heston abandona o local, o cineasta o segue e lhe mostra a foto da criança assassinada pelo colega de 6 anos no jardim de infância. A imagem que apareceu no filme não foi feita no mesmo instante por não haver câmera que pudesse ter enfocado Moore segurando a foto da garota, significa que: aquela tomada específica foi feita posteriormente, quando Heston já não se encontrava mais ali. O fato deve ter acontecido como apareceu na cena, mas a imagem de Moore foi gravada depois. O que é perfeitamente aceitável na produção documental de acordo com Manuela Penafria:

Se a câmera, por qualquer motivo, não esteve presente em determinados momentos faz-se uso de imagens de arquivo que carregam consigo a verdade da representação ou recorre-se à reconstrução. A reconstrução não é exemplar na sua relação com a realidade, mas serve o propósito de mostrar situações importantes para o espectador. (PENAFRIA, 2003, p.1)

O olhar diversificado sobre Columbine é devido à insistência do documentarista em averiguar as falas dos entrevistados, pois quando uma entrevistada diz a Moore que no Canadá eles deixam as portas abertas, o documentarista vai confirmar essa informação abrindo as portas dos canadenses. O documentarista tem que ir aos locais, confirmar as informações, interferir, para poder compreender a ``realidade'' que vai trabalhar em seus filmes.

Portanto, a preocupação em cercar todas as causas da violência faz com que o filme não segue uma seqüência lógica dos acontecimentos e muitas vezes há um vai e vem de informações que tomam rumos distintos ao da proposta inicial do documentário, por exemplo: ao tentar convencer um polícia de que os responsáveis pela poluição devem ser presos e ao investigar o preconceito racial nos Estados Unidos - a abordagem foi interessante, mas ele não conseguiu sustentar a relação entre racismo e as armas de fogo. Mas isso não compromete o andamento do documentário porque mostra que, ao contrário de outras produções fílmicas o filme documental lida com o imprevisível e a construção da narrativa é conseqüência do que foi capturado in loco.

De acordo com o tópico 2.7, o fato de o documentarista lidar com o imprevisível, por não saber como será o começo ou o fim de seu filme é importante definir o tipo de abordagem antes de começar a filmagem para não ter contratempos e para não perder o foco principal. Nota-se que em Roger e Eu (1989) a abordagem foi bem delimitada, já em Tiros em Columbine (2002) não houve a mesma preocupação em limitar a abordagem, e o resultado é uma série de entrevistas e sobreposições de imagens que tentam demonstrar todas as possíveis causas do fato. Por isso, entrevista as mais diversas pessoas como: o RP da fábrica de mísseis Lockheed, o policial que apreende um cão armado com um rifle, Matt Stone (co-criador de South Park) e Marilyn Manson; e imagens reais de gente matando e se matando; a investigação sobre as portas de canadense, dentre outras. No meio de tantas informações Moore ainda lança teorias curiosas sobre a história de violência que construiu os EUA.

No entanto, o que Moore faz ao buscar um número considerável de informações para explicar o que deseja é exercer o seu papel de jornalista juntamente com o de documentarista. Pois de acordo com a jornalista Mônica Teixeira, ``investigar é um dos fundamentos do jornalismo, um é inerente ao outro, não se separam nunca. (TEIXEIRA apud PERIAGO, 2003, p.170). O tipo de apuração e de abordagem do fato possibilita a aproximação da linguagem cinematográfica com a linguagem jornalista. Principalmente no que diz respeito à busca da realidade, pois ``o Jornalismo Investigativo pode ser definido como a busca da verdade oculta ou mesmo como uma reportagem em profundidade'' (LOPES, 2003, p.12).

No meio do tiroteio de informações, nem a mídia é poupada. De acordo com as informações dadas pelo documentarista, o grande responsável pelo terror instaurado no país é a mídia que vive atrás da tragédia, como pode ser percebido na seqüência que mostra a cobertura da imprensa no incidente com o garoto de 6 anos que atiram na colega de classe. O repórter da Fox News que antes quase chora diante das câmeras ao noticiar o fato apresentou-se irritado com a equipe de filmagem e incomodado com o seu cabelo após a filmagem. Demonstra que o jornalista estava mais preocupado em comover do que informar.

No decorrer do filme o documentarista também mostra as falhas do jornalismo quando fala da matéria que a TV divulgou sobre o possível ataque de abelhas africanas assassinas nos EUA. Quando o documentarista fala (voz em off) que tal fato não aconteceu mostra que faltou ao jornalismo naquele momento executar procedimentos básicos à profissão: checar as informações e conversar com mais de um especialista de visões diferentes sobre o assunto.

Desta forma, Tiros em Columbine (2002) se estabelece pela diversidade de assuntos que são originados de um fato e demonstra que o olhar do documentarista sobre o objeto pode tomar caminhos distintos.

Olhar sobre Bush

Fahrenheit 9/11 (2004) esbarra no limite entre o horror e o sarcasmo e se destaca muito pelo belo trabalho de edição das imagens que Moore aproveita da imprensa e de arquivos pessoais. Embalado por um conto de fadas onírico ``Foi um sonho?'', pergunta a voz em off de Moore, no início do filme, sobre as imagens da comemoração de Al Gore, candidato liberal à presidência dos EUA. As eleições são o ponto de partida para o documentarista começar a discussão sobre a legitimidade da vitória de George W. Bush em tom irônico e de forma impiedosa a respeito das possíveis conexões entre o presidente e os terroristas sauditas em geral.

De todos os documentários analisados este é o mais panfletário e direcionado, pois o olhar está sobre um único alvo: George W. Bush.O documentarista é direto e incisivo quanto ao seu ponto de vista a respeito do assunto tratado e aponta a seta sempre para o centro do alvo. Como é de costume Moore apresenta no prólogo do filme a temática, mas destaca as grandes ``estrelas'' do filme ao mostrar Bush e seus ministros se maquiando nos bastidores. O ato de maquiar pode ter o sentido simbólico de esconder a verdadeira face, o que vai de encontro com a proposta do filme que é de desmascarar, ou seja, retirar a maquiagem dos que estão no poder dos EUA.

Logo após a seqüência dos ``astros'' principais há uma fusão em preto de alguns minutos ao som dos aviões de chocando as torre do World Trade Center e de pessoas gritando, a imagem que se abre são de pessoas chorando. A escolha de não mostrar as imagens do atentado deve estar relacionado ao desgaste que elas têm na mídia e por isso não causariam tanto impacto, mas a tela preta com o barulho causa mais angústia.

Enquanto que em seus trabalhos anteriores o seu objetivo era buscar a ``verdade'', em Fahrenheit 9/11 (2004) o seu objetivo é mostrar a ``verdade''. Em Roger e Eu (1989) e Tiros em Columbine (2002) o tema foi analisado de ângulos diferentes e os entrevistados tinham opiniões divergentes à do documentarista. Em Fahrenheit 9/11, Moore repete o mesmo ponto de vista: da primeira tomada até a última.

O fato de Moore limitar a sua participação como pesonagem / criador não significa que é um filme composto por edição de imagens de arquivo, de telejornais ou programas de entrevistas. Pelo contrário, tais imagens são usadas para sustentar as afirmações do documentarista e confrontar as informações das entrevistas, que parecem não ter sido feitas por ele e sim por outras pessoas da equipe. Este aparecimento reduzido em frente as câmeras pode ser justificado, pois o foco principal do filme não era um fato específico, mas uma pessoa específica. Portanto, limitar as suas aparições significa fazer de Bush o astro do filme e não ele como acontece em Roger e Eu (1989) e Tiros em Columbine (2002). Segundo o documentarista:

Por que apareço menos no filme: Quando você tem George W. Bush como seu personagem principal, ele não precisa de ajuda como o humor. Ele tem as frases mais engraçadas e eu apenas achei um modo de ficar fora de seu caminho. (SALEM, 2004, p.24)

De acordo com Andrew, ao falar sobre as teorias do cinema, a manipulação de imagens feita por Moore não é algo que o cinema abomina. Eisenstein, por exemplo ``nunca poderia aceitar a noção de plano como um pedaço da realidade do qual o cineasta se apodera'', segundo seus pensamentos a combinação das imagens tem que criar uma interpretação psicológica, pois ``se o cineasta é realmente criativo, extrairá seu próprio sentido dessa matéria-prima, construirá relações que não estão implícitas no significado do plano''. (ANDREW, 1989, p.59)

Encontrar imagens de Bush realizando as mais diversas atividades, inclusive a de um comercial de um carro, não foi difícil por vivermos em uma sociedade que idolatra a imagem, especialmente nos EUA, e a disponibilidade de material realmente não parece ter sido problema. Para dar um tratamento criativo na realidade, Moore e sua equipe de editores não perdem a oportunidade de demolir o presidente, sua imagem, visão política e pessoal.

A locução em off estabelece a unidade das imagens editadas, a seqüência de imagem é uma amostragem do que é dito pela locução, mas isso não significa que a locução apenas repete o que é mostrado na imagem. A função da locução é acrescentar dados que não são perceptíveis na cena e funciona como a voz de um observador onipresente e onisciente capaz de descobrir os pensamentos das personagens. Na cena em que Bush fica aproximadamente 7 minutos lendo um livro em uma escola infantil a voz do locutor especula a respeito dos possíveis pensamentos do presidente ``Estaria pensando... Será que me meti com as pessoas erradas? Qual deles me ferrou?'' (voz do Moore). As imagens seqüentes mostram as possíveis respostas às perguntas do locutor e é neste momento que as ligações com os sauditas são estabelecidas por meio de imagens e dados ditos por Moore como em um fluxo de consciência. De acordo com Bernardet, ``o texto, nessa concepção de filme, é a muleta da imagem'', e mais:

O simples resgate de imagem-documento do passado parece ser o próprio reerguimento da história soterrada, que falaria por si só. As imagens, de fato, falam muito pouco, ou melhor, a potencialidade de fala que elas têm é enorme, mas nem sempre tão dispersas e tão ambígua, que elas nunca apresentariam o discurso da história, caso não fossem rigorosamente domadas e enquadradas por uma série de mecanismos (seleção, montagem, música, locução) que as levassem a dizer o que se quer que digam. (BERNARDET, 2003, p. 248)

É necessário acrescentar que o fluxo de pensamento estabelecido a partir das perguntas feitas pelo suposto inconsciente do presidente, enquanto permanecia na escola, não foram respondidas, no entanto o seu ``inconsciente'' levanta a hipótese ao faze a pergunta: ``Seria sobre isso que ele estava pensando?''.

Como em outros documentários Moore transita entre a tragédia e a comédia e mostra desembaraço ao entrevistar as pessoas. Como entrevistador consegue arrancar das pessoas respostas comprometedoras sem que elas percebam. Um congressista ao falar para sua câmera diz sem constrangimento que ninguém no congresso lê os textos que aprovam. No entanto, apesar de sua genialidade ao entrevistar, há momentos em que Moore tem atitudes próximas da imprensa marrom e sensacionalista ao picotar imagens fora do contexto e as montar de uma forma como se estivesse colocando as palavras na boca das pessoas.

Entretanto, é curioso o questionamento quanto à veracidade das informações, visto que as imagens de Fahrenheit 9/11 (2004) são, na sua maioria, tiradas da TV. Significa que estas cenas exibidas na TV sem um tratamento criativo, não diziam muito. Depois que foram trazidas para o cinema, e montadas em um documentário ganham credibilidade "documental". Revela que cenas exibidas no cinema têm mais credibilidade que as exibidas na televisão, mesmo se tratando de cenas que já foram veiculadas na TV. Isto demonstra que o filme não traz novidade quanto à informação às pessoas mais atentas às notícias.

O filme transita entre a tragédia, ao mostrar as atrocidades da guerra e o sofrimento da mãe que perde o filho, e a comédia, ao mostrar Moore andando pelas ruas de Washington, em um carro que vende sorvete, lendo um documento aprovado que não foi lido pelos congressistas ou um pouco de sarcasmo quando pede aos congressistas para manterem os seus filhos para a guerra. Mostra que quem está na linha de frente na guerra são as vítimas do desemprego e aqueles que vêm no serviço militar a única chance para melhorar de vida. Não é à toa que o documentarista retorna a Flint, cidade em que há um número grande de desempregados como ele mesmo mostrou em Roger e Eu (1989), para comprovar o que diz. A comédia inserida no filme serve para ridicularizar a imagem de Bush, e num dos muitos segmentos cômico-irônicos do filme o presidente aparece em uma montagem do seriado Bonanza vestido como um caubói e acompanhado de seus ministros e Tony Blair, tendo no Iraque um enorme e inóspito pasto.

A trilha sonora deste documentário é peça fundamental para sustentar e destacar a ironia estabelecida quando a voz em off de Moore não está em ação. As imagens das férias presidenciais, ao som de Vacation (The Go-Go's), representam a censura contra ao longo período de férias tirados por ele, Shiny Happy People (R.E.M) executada durante a amostragem dos vários encontros entre a família Bush e os árabes ironiza as relações comerciais entre os EUA e os Sauditas, Fire Water Burn (Bloodhound Gang) música ouvida pelas tropas norte americanas durante os ataques ao Iraque e, para fechar, o filme Rockin' in the Free World (Neil Young) criticando a idéia de há liberdade no mundo.

Fahrenheit 9/11 (2004) tem uma das principais características do documentário, o registro dos acontecimentos, no sentido em que está documentando e questionando os fatos recentes da história. E por isso ele conserva uma das primeiras funções deste gênero fílmico, mobilizar a opinião pública, cobrar a atitude das pessoas ou simplesmente informar o que está se passando na sociedade. E foi por causa desta necessidade de capturar imagens dos acontecimentos que as câmeras se desenvolveram, o que as tornaram presente em quase todos os lugares exercendo a função de um olho sobre a sociedade.

Desta forma, todos os recursos utilizados por Moore para direcionar o seu olhar sobre os fatos que apresenta são legitimadas, de acordo com o que foi dito no capítulo 2, porque segundo a concepção do movimento documentarista britânico, o documentário não era visto como um projeto cinematográfico desprovido de utilidade social. Sendo assim, em um filme documental não importa a autenticidade do material usado, mas a autenticidade do filme, isso se partimos do pressuposto que o objetivo do filme é convencer o espectador.

Um olhar sobre o Jornalismo

A resposta mais aceita à pergunta: ``O que é notícia?'', deveria ser ``depende''. Pois para um fato se tornar notícia, tem que se obedecer a critérios de noticiabilidade que julgarão `o valor notícia' baseado nas características de cada acontecimento, nas exigências organizativas e estruturais de cada meio de comunicação. O que não torna simples a tarefa de delimitar o que pode ser notícia. Depois de o fato passar por todos os critérios de noticiabilidade e não ir de encontro aos interesses dos meios em que será divulgado se tornará matéria-prima perdida e ``não irá fazer parte dos conhecimentos do mundo adquiridos pelo público através das comunicações de massa'' (WOLF, 1999: p. 190)

Assim como no jornalismo, o cinema também faz suas seleções o que significa que não são todos os fatos ou histórias que podem viram um filme. Ou que fatos desprezados pela imprensa não possam geram bons filmes ficcionais ou documentais.

Uma seqüência de Tiros em Columbine (2002) ilustra bem como funciona o valor notícia para a imprensa, quando o documentarista faz uma crítica aos critérios de noticiabilidade. Moore notou que havia uma operação policial perto do local em que estava e que logo depois a imprensa chegou. Um repórter diz ao documentarista que ia fazer a matéria sobre um quase afogamento, mas achou melhor acompanhar a polícia. Moore lhe sugere uma pauta: ``Que tal fazer a matéria sobre não ver os morros de Hollywood por causa da poluição?'', o jornalista ri. Tal seqüência mostra que é mais fácil um quase afogamento virar notícia do que a poluição, que atinge um número maior de pessoas.

Nesta relação estabelecida entre Moore e o repórter percebe-se que há divergência de opiniões a respeito do valor notícia e comprova-se que a reportagem é pautada por princípios opostos aos do documentário. Sem fazer julgamento de valor entre os fatos, princípio de afogamento e a poluição que tampa um morro, nota-se que o repórter segue os critérios de noticiabilidade seguidos por sua empresa e demonstra, dentro dessa ótica, que ``o jornalista tem a capacidade de reconhecer quando um acontecimento deve ou não ser notícia'' (PENAFRIA, 1999: p.23).

A ótica do documentarista é diferente do repórter por não precisar seguir nenhum princípio de noticiabilidade e quando ele explicita o valor notícia nesta seqüência, fica claro que, apesar de fazerem parte do universo audiovisual e de tratarem dos acontecimentos do mundo os seus direcionamentos podem seguir caminhos opostos.

Enquanto que para o jornalismo a busca pela imparcialidade é fundamental no tratamento dos fatos, para o documentário isto não é verdade absoluta, ou seja, o documentarista pode mostrar a visão que deseja sobre o acontecimento e se portar de maneira imparcial ou parcial. O jornalismo tem que explicar o fato de forma objetiva e imparcial, como dizem os manuais de jornalismo. Como o seu referencial é o mundo que lhe é exterior, o jornalista não deve pôr suas considerações. O que não ocorre na produção documental de Moore, pois ele fala de um mundo que lhe é interior em primeira pessoa, pode ser totalmente parcial e panfletário, como mostra em Fahrenheit 9/11 (2004).

``As TV já anunciavam a vitória de Al Gore, menos a Fox'' (voz off de Moore). Este foi o ponto inicial para perceberem que havia algo errado. Logo no início do filme Fahrenheit 9/11, o documentarista deixa bem claro como a Fox ajudou Bush a fraudar as eleições de 2000.

O documentarista usa em seus documentários as notícias jornalísticas para dois fins: a primeira finalidade é para mostrar com a mídia consegue induzir as pessoas a acreditarem no que dizem, como quando usa uma seqüência de imagens em Tiros em Columbine (2002) sobre o alarde que as TVs fizeram sobre a ameaça terrorista ao som de um coração em um ritmo cada vez mais acelerado.

A segunda finalidade é, paradoxalmente, comprovar o que ele diz, ou seja, tornar verdadeiras as suas palavras. Esse recurso usado pelo documentarista estabelece a relação imagem jornalística-verdade. Em Fahrenheit 9/11 (2004), quando Moore usa entrevistas de programas de jornalismo das grandes redes de televisão ou do programa de Larry King na CNN, sabe que aumentara a veracidade do que ele está enfocando. Isto porque a notícia está mais próxima da realidade quando o fato é filmado, e o uso de imagens in loco pela TV que aproxima ainda mais com a realidade é um instrumento que o telejornalismo herdou do documentário.

No entanto, o documentarista estabelece paradoxos quando mostra o jornalismo como verdade e quando o mostra como uma fábrica de mentiras. Para causar estranheza mostra imagens que não pareceram na TV e pergunta: ``Vocês querem saber porque essas imagens não passam na TV? Perguntem à Fox News, CNN, ABC, CBS e NBC. Talvez eles saibam responder'', diz na locução em off de Fahrenheit 9/11 (2004).

Elementos jornalísticos são notados em seus filmes desde Roger e Eu (1989) ao usar imagens de telejornais falando sobre o desemprego e o aumento da criminalidade. Nos outros dois documentários as imagens de arquivos, vídeos institucionais, seqüências de animação, conversas por rádio-comunicadores, gravações feitas pelo circuito interno de vídeo de Columbine, e até mesmo trechos de uma apresentação do comediante Chris Rock (que alega que, se cada bala custasse 5 mil dólares, não haveria mais vítimas de balas perdidas), servem como evidências para seus argumentos, imagens

Mas de todos eles, sem dúvida, Fahrenheit 9/11 (2004) é o que se consolida basicamente a partir de informações jornalísticas disponibilizadas por órgãos mídiaticos (rádio, televisão, internet). Seja para confirmar as suas afirmações ou apenas para ironizar estes órgãos.

Conclusão

O ponto de partida para o jornalismo e o documentário é o fato, e o que vai diferenciá-los ou aproximá-los será o tipo de tratamento que cada veículo dará a ele. Pois percebe-se que os documentários analisados, Roger e Eu (1989), Tiros em Columbine (2002) e Fahrenheit 9/11 (2004) partiram de um fato, que também foi assunto em outras mídias, tanto que o documentarista se apropriou do material que elas produziram para montar a ``realidade'' de acordo com as suas observações. Isto só é possível porque o documentarista pode tratar a realidade de acordo com a visão que tem sobre o fato e agregar aí suas considerações pessoais. O que não pode acontecer com o jornalismo: por mais que o repórter represente o seu ponto de vista em relação ao acontecimento, este tem que obedecer a critérios básicos como: noticiabilidade e estrutura da narrativa jornalística. Suas considerações pessoais a respeito do fato não devem aparecer e sua visão tem que ser a mais imparcial possível.

O documentário, por sua vez, não tem compromisso com a imparcialidade e pode ser totalmente parcial e panfletário como em Fahrenheit 9/11 (2004), que apresenta a visão unilateral a respeito da administração Bush. Se o filme produzido fosse uma reportagem jornalística, o outro lado, pessoas que estão de acordo com o governo seriam ouvidas. Nos filmes de Michael Moore, os entrevistados desempenham, inúmeras vezes, o papel de confirmar as suposições do diretor, mesmo quando falam algo que não vai ao encontro de seus pensamentos - neste caso, Moore usa imagens ou falas que foram ditas em outras situações para ridicularizar o entrevistado.

Em alguns casos, suas perguntas reforçam o absurdo que o entrevistado diz, por exemplo, quando pergunta a Charlton Heston (presidente da associação americana do rifle), 'Você não acha meio perigoso distribuir armas em um banco?' ou apenas para ridicularizar o entrevistado, como na seqüência de Tiros em Columbine (2002) em que Moore indaga ironicamente ao policial se o cachorro que provocou a morte de um caçador 'sabia o que estava fazendo'. Antes da pergunta o documentarista mostra o vídeo feitos pelos caçadores, antes do incidente, com a imagem de um cão vestindo trajes típicos de caça e com um rifle amarrado nas costas.

O que torna os filmes de Moore diferentes do que é feito normalmente dentro do gênero documental é o fato dele mexer com a estrutura do filme, pois apesar de tratar de assuntos com documentação real, esta realidade é recriada por ele com o intuito de provar seu ponto de vista. Para isso ele usa imagens de arquivo, depoimentos, sua inserção ativa diante da câmera e cria cenas engraçadas a/xper/idisk partir da manipulação destas imagens. À primeira vista, talvez a imagem de Moore na tela nos faz lembrar um repórter de telejornal, mas o jeito com que conduz as entrevistas, suas roupas e seu physique du role se diferem muito do padrão adotado pelo jornalismo e pelo próprio documentário.

Quando não está presente na tela, sua locução em off, onisciente, guia a narrativa juntando as seqüências, dando unidade significativa ao filme. A manipulação que ele exerce não é disfarçada, pois pode ser percebida pela edição de seus filmes principalmente quando usa as imagens para confrontar informações e, assim, mostrar a sua visão irônica e crítica sobre os acontecimentos.

Por outro lado, é notório que, em momento algum Moore tenta fingir ser imparcial e faz questão de mostrar ao espectador que aquela é a sua visão sobre o fato. Suas observações são feitas internamente, de dentro do olho do furacão, por isso ele trata os temas com uma certa familiaridade. Principalmente em Roger e Eu (1989) cuja temática abordada diz respeito à sua cidade. Ao iniciar o filme com imagens da sua infância e ao misturar a história de Flint com a de sua família e amigos, ele deixa bem claro para o público que os fatos apresentados partiram de suas observações pessoais.

Apesar de Moore usar imagens da TV e informações jornalísticas para confirmar suas afirmações, ele também coloca a mídia em sua mira, quando mostra como ela consegue manipular as pessoas a ponto de causar uma onda de terror contra um inimigo invisível, da mesma forma que George Orwell descreve no livro 1984, no qual o autor fala de como o Big Brother mantinha o povo num estado constante de guerra contra um inimigo onipresente. A mídia neste caso é o meio usado para propagar este medo. Em Tiros em Columbine (2002) e Fahreinheit 9/11 (2004) Moore mostra muito bem como a mídia consegue induzir as pessoas a ponto de criar tal ameaça. Não é por acaso que o documentarista usou em Fahreinheit 9/11 uma frase de George Orwell, que fala da necessidade de perpetuar a guerra, com intuito de manter sólida estrutura de dominação baseada na hierarquia.

A mídia também é massacrada em Fahrenheit 9/11 (2004) principalmente em relação ao tratamento que esta dá sobre a guerra do Iraque. Segundo a visão de Moore, no filme os jornais transformaram a guerra em um espetáculo e, com isso, deixaram de mostrar o que realmente estava acontecendo. Mostrou que os jornais não tinham compromisso com a verdade. Mas Moore também soube tirar proveito da mídia, além de usar o que esta veiculava também a usou para pressionar a K- Mart: quando levou dois garotos, vítimas de Columbine, para pedir que a loja deixasse de vendar munição, ele convoca a mídia para registrar o pronunciamento da empresa com a finalidade de documentar tal episódio em um veículo que dá credibilidade ao acontecido.

Portanto, o que se percebe é que os documentários de Michael Moore fogem dos parâmetros adotados por este gênero devido ao seu posicionamento diante das temáticas escolhidas. Por outro lado, o que ele faz é dar um tratamento criativo à realidade que é uma das características marcantes da produção documental. Como já foi dito no segundo capítulo, o documentarista não deve limitar o seu trabalho de criação a reprodução do óbvio: ele tem que recriar o mundo e mostrar o resultado do seu olhar sobre ele. Mostrar como o mundo é fragmentado por meio das realidades que expressa: seja de uma família rica de Flint, da classe média que tranca suas casas; dos ricos que não mandam seus filhos à guerra ou a realidade das vítimas do desemprego, da mídia, das armas de fogo e da guerra, seja ela psicológica ou não.

As temáticas de seus filmes são apresentadas por ele como cenas da vida cotidiana que dizem respeito a todos que estão inseridos no sistema. O que Moore faz ao pairar o seu olhar sobre os fatos é tentar responder aos seus porquês, não da forma afirmativa como é feita no jornalismo, mas por meio de novas interrogações que apresenta e estimula junto aos espectadores.

Referências bibliográficas

Filmes

Anexos

A - Filmografia

B - Premiações



Notas de rodapé

... Rizzini1.1
RIZZINI, Carlos. O jornalismo antes da tipografia. São Paulo: Editora Nacional. 1977. p.60
... Rodriguez1.2
RODRÍGUEZ, Eulalio Ferrer. Comunicación pública. México, B. Costa Amir Editor
... Jr1.3
Entrevista publicada em (PADILHA, 2003, p.62-70)
... Teixeira1.4
Entrevista publicada em (PERIAGO, 2003, p.170-177)
... Conti.1.5
Entrevista publicada em (HASWANI, 2003, p.112-116)
... Dantas1.6
Entrevista publicada em (HERACLITO, 2003, p.118-130)
... Barcellos1.7
Entrevista publicada em (KONOPCZYK, 2003, p. 162-167)
... Waack.1.8
Entrevista publicada em (LÚCIO. ASSIZ, 2003, p. 142-152)
... Dines1.9
DINES, Alberto. O papel do jornal. Rio de Janeiro, Artenova, 1977
...etica2.1
``Diegese: termo usado para designar o ambiente autônomo da ficção, o mundo da história que está sendo contada. Diegese é o processo pelo qual o trabalho de narração constrói um enredo que deslancha de forma aparentemente automática, como se fosse real, mas numa dimensão espaço-temporal que não inclui o espectador''. (COSTA, 1995, p.7)
... vergonha!''3.1
CORLISS, Richard. According To. Taking aim at George W., a populist agitator makes noise, news and a new kind of political entertainment. Time. EUA. V.164. n. 2. p. 62-70. jul. 2004