Ideologia, vingança e loucura: a hermenêutica revive em Hamlet

Paula Puhl1


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O presente ensaio será centrado no filme ``Hamlet'', de 1948, dirigido por Laurence Olivier, baseado na obra de William Shakespeare, intitulada com o mesmo nome. O objetivo é verificar a Ideologia presente no discurso verbal e não-verbal da personagem principal, Hamlet, príncipe infeliz da Dinamarca, órfão de pai e filho de uma mãe traidora. Sua missão: vingar a morte do pai, o Rei Hamlet, um guerreiro, homem digno e amoroso, que acaba sendo envenenado por seu irmão Cláudio, que além de roubar o seu trono e a esposa, o torna um espectro inconformado que vaga pelas altas torres do castelo Elsenor, confirmando o enunciado: havia algo de podre no reino da Dinamarca!

O teórico norteador do estudo será John B.Thompson, que interpreta a Ideologia em separado, por tratá-la como uma forma específica da Hermenêutica de Profundidade (HP), que prioriza o estudo da produção de sentido, através das formas simbólicas, que segundo ele são ações, falas, textos e imagens que servem, para sustentar ou estabelecer relações de poder.

O autor, a obra e a adaptação retratam a complexa condição humana

"O mundo está fora dos eixos.
Oh! Maldita sorte! ...
Por que nasci para colocá-lo em ordem?...- Hamlet, I,V

Seria este o pensamento de Shakespeare ao criar as suas peças? Talvez ninguém tenha respondido esta indagação, até hoje, quase 450 anos após o seu nascimento. Dono de um estilo próprio, para tratar temas inerentes à condição humana, William Shakespeare escritor da obra Hamlet, nasceu na pequena cidadezinha de Stratford-on-Avon, nas proximidades de Londres, em 23 de abril de 1564, é unanimemente consagrado como um dos maiores nomes das letras universais. Apesar disso, sabe-se muito pouco a respeito da sua vida, causando até hoje pasmo em todo os seus admiradores pelo fato de ter sido um jovem saído de uma pequena cidade do interior da Inglaterra, e que, porém tenha conseguido penetrar tão profundamente na psicologia humana.

Shakespeare foi um daqueles grandes escritores que conseguiu não apenas levar aos palcos a sua época, mas fazer com que elas o imortalizasse. De acordo com as informações obtidas no site (www.terra.com.br/voltaire) do historiador Voltaire Schilling, a razão do sucesso são os traços marcantes das suas personagens - rigorosamente individualizadas - e o caráter universal e perene dos seus temas, foi assim que: Hamlet, Ricardo III, Lear, Polônio, Falsfat, Ofélia, Macbeth, Otelo, tornaram-se conhecidos por todos.

Hamlet, príncipe da Dinamarca, peça escrita, provavelmente, em 1600/2, é seguramente a tragédia de Shakespeare mais representada em todos os tempos e a que mais se prestou a interpretações de toda ordem. Praticamente todos os escritores e pensadores importantes nos últimos quatro séculos deixaram suas impressões sobre o impacto que lhes causou a história do infeliz príncipe da Dinamarca, constrangido a fazer, sem nenhuma vocação para tal, uma terrível vingança.

Schilling (2001) destaca que Hamlet é a peça mais longa escrita por Shakespeare (4.042 linhas com 29.551 palavras, 73% delas em verso e 27% em prosa) e, provavelmente, a que mais lhe deu trabalho. Supõe-se inclusive a existência de um esboço original que teria sido alinhavado uns dez ou 12 anos antes da sua conclusão, por volta de 1588. Texto que os críticos denominaram de Ur-Hamlet (um primeiro Hamlet). Isso, porém são especulações, pois a influência mais direta sobre ele veio mesmo da peça The Spanish Tragedie, de um autor de menor importância chamado Thomas Kyd, que a encenou possivelmente em 1590.

 O historiador cita que a fonte original da história do príncipe dinamarquês encontrou-se na Gesta Danorum, obra de Saxo Gramaticus, (1150-1206), escrita em latim, mas que recebeu o título de Danish History, na edição inglesa de 1514. Shilling diz que certamente a versão que chegou às mãos de Shakespeare é a de Belleforest, intitulada de Histoires Tragiques, de 1570. Coube a Shakespeare alterar alguns aspectos do enredo e os nomes originais dos personagens.

No Hamlet, de Shakespeare, por exemplo, Fergon, o rei criminoso, que mata o irmão para ficar com o trono e a cunhada, chama-se Cláudio; o rei morto Horwendil passou a ser Hamlet-pai, enquanto a rainha Gerutha tornou-se, simplesmente, Gertrudes. Amleth, o filho vingador, foi chamado de Hamlet (o mesmo nome que Shakespeare deu ao seu filho Hamnet, que morreu na infância). Tudo indica que a tragédia, que se passa no castelo de Elsenor, na Dinamarca, era muito popular entre os escandinavos, em geral, havendo uma série de lendas dela derivada. Acredita-se que mesmo na época de Shakespeare, uma versão alemã da tragédia do príncipe dinamarquês corria encenada pela Europa.

Mesmo tratando-se de uma ``adaptação'' de uma obra já existente, o fervor de Hamlet está no significado das suas personagens. Além de Hamlet, fingindo-se boa parte do tempo de louco, está o seu rival, o tio Cláudio. Este teria assassinado o pai de Hamlet ao pingar gotas de um mortal licor no ouvido do rei Hamlet, enquanto este dormia num banco de um jardim no castelo de Elsenor.

Em meio a essa trama, ambos, sobrinho e tio vão nutrindo, um pelo outro, um ódio crescente ao longo da história, e, como símbolo da harmonia, está a rainha Gertrudes, mãe de Hamlet, e também Polônio, o ministro da casa.

Esta narrativa repleta de personagens fortes e mutáveis, característica que Harold Bloom (1995) chama de ``psicologia da mutabilidade'', que caracteriza Shakespeare, como um Cânone, parece ter atraído a industria cinematográfica, que utilizou este conflito em mais de 57 filmes desde 1907 até os dias atuais. Realmente, este fato confirma que existem mais possibilidades entre Shakespeare e a sétima-arte do que mostra a sua vã filmografia. Nenhuma outra dramaturgia mostrou-se tão moderna e eterna num pleonasmo, que entra em cartaz a cada nova temporada de filmes de língua inglesa.

O cinema percebeu que não existem tantas idéias originais e decidiu não fazer rodeios e levar às telas paixões e conflitos universais sob a ótica de quem transformou esta matéria-prima em texto. Por estes motivos que Laurence Olivier resolveu dirigir e, ainda, atuar em um texto de Shakespeare, criando, em 1948 o premiado Hamlet em 1948. O filme baseado na obra do pai do teatro britânico, mesmo que não tenha sido a primeira versão da obra no cinema foi a primeira bem sucedida, pois foi ganhadora do ``Oscar'' de melhor filme, ator, direção de arte e figurinos. A partir daí, muitas outras versões cinematográficas foram produzidas, mas nenhuma obteve o sucesso e o reconhecimento da crítica.

Ideologia: a busca nas formas simbólicas para explicar as relações de poder

A pesquisa terá como aporte teórico a categoria Ideologia, utilizada por John B. Thompson (1995). O conceito de Ideologia para o autor se refere ``às inter-relações entre sentido (significado) e poder'' (1995, p. 16), falando de modo mais amplo define: ``Ideologia é o sentido a serviço do poder''.

O autor caracteriza uma nova formulação do conceito de Ideologia, ao invés de reabilitar alguma concepção anterior do seu significado através da história. Em um primeiro momento ele acredita que a análise da Ideologia, de acordo com a sua proposta, está interessada com as maneiras que as formas simbólicas se entrecruzam com as relações de poder e como o sentido é mobilizado, no mundo social, servindo para reforçar pessoas e grupos que ocupam posições de poder, ou seja, ``estudar a Ideologia é estudar as maneiras como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de poder'' (Thompson, 1995, p.76).

A fim de desenvolver esta reformulação da categoria de Ideologia Thompson destaca três aspectos que merecem atenção: a noção de sentido, o conceito de dominação e as maneiras como o sentido pode servir, para estabelecer e sustentar relações de poder.

Thompson esclarece que, para estudar as maneiras como o sentido serve para estabelecer e sustentar essas relações de poder, devemos nos ater no sentido das formas simbólicas que estão inseridas nos contextos sociais e circulando no mundo social. Para ele, formas simbólicas são: ``Um amplo espectro de ações e falas, imagens e textos, que são produzidos por sujeitos e reconhecidos por eles e outros como construtos significativos'' (1995, p. 79).

Porém o autor ressalta que além das falas lingüísticas e expressões faladas ou escritas, as formas simbólicas também podem ser uma imagem ou imagem com palavras.

Para analisar o caráter significativo das formas simbólicas, Thompson acredita que a localização social, o contexto onde as pessoas estão inseridas fornecem aos indivíduos diferentes graus de poder, isto é, a capacidade que cada pessoa tem de tomar decisões, conseguir seus objetivos e realizar seus interesses. Assim ocorre a ``dominação'', quando as relações, estabelecidas de poder são ``sistematicamente assimétricas'', ou seja,

``quando grupos particulares de agentes possuem poder de uma maneira permanente, e em grau significativo, permanecendo inatingível a outros agentes, ou a grupos de agentes, independente da base sobre a qual tal exclusão é levada a efeito'' Thompson (1995, p. 80).

Após caracterizar o sentido e dominação, Thompson lança um terceiro problema: de que maneira o sentido serve, para estabelecer e sustentar relações de poder? Buscando clarificar esta questão, o autor cita cinco modos de operações gerais da Ideologia que colaboram para a resposta desta indagação. São eles: Legitimação, Dissimulação, Unificação, Fragmentação e Reificação. Esses cinco modos, através dos quais a Ideologia pode operar ajudam a analisar as maneiras que o sentido pode servir, em condições sociohistóricas específicas, a manter relações de poder, pois eles estão ligados com várias estratégias de construção simbólica. Ver quadro abaixo (Thompson, 1995, p. 81):

Modos de operação da ideologia


Modos Gerais Algumas Estratégias Típicas

de construção Simbólica

Legitimação Racionalização

Universalização

Narrativização

Dissimulação Deslocamento

Eufemização

Tropo (sinédoque, metonímia, metáfora)

Unificação Estandartização

Simbolização da unidade

Fragmentação Diferenciação

Expurgo do outro

Reificação Naturalização

Eternização

Nominação/ Passivização


A fim de esclarecer os modos de operação da Ideologia e as suas respectivas estratégias típicas de construção simbólica, caracterizamos cada um dos itens da seguinte forma, de acordo com as explicações de Thompson (1995, p 81-89):

1 - Legitimação: é a necessidade de legitimar as relações de poder.

a) Racionalização: o produtor da forma simbólica usa uma cadeia de raciocínio para defender a relação.

b) Universalização: a estratégia serve ao interesse de todos.

c) Narrativização: as histórias contam o passado e fazem do presente algo eterno e aceitável.

2 - Dissimulação: as relações de poder são estabelecidas e sustentadas pelo seu ocultamento.

a) Deslocamento: as conotações são transferidas, mudadas em relação a uma pessoa ou objeto.

b) Eufemização: ações ou relações socias são descritas de modo positivo.

c) Tropo: uso figurativo da linguagem no discurso.

3 - Unificação: ligação dos indivíduos, como uma unidade.

a) Padronização: um fundamento aceitável entre todos.

b) Simbolização da unidade: construção de uma identidade coletiva, como a bandeira nacional, o hino, etc..

4 - Fragmentação: segmentação dos grupos que podem ameaçar uma relação de poder.

a) Diferenciação: tem o objetivo de desunir os grupos os enfraquecendo.

b) Expurgo do outro: construção do inimigo.

5 - Reificação: as relações de poder podem ser estabelecidas e sustentadas pela retração de uma situação transitória, histórica, como se essa situação fosse permanente, natural, atemporal. A Ideologia como reificação envolve a eliminação do caráter sócio-histórico.

Naturalização: o estado das coisas faz parte de uma criação social, porém tratado como um acontecimento natural.

Eternalização: os fenômenos sociohistóricos não possuem caráter histórico, ou seja, são permanentes e imutáveis.

Nominalização/ Passivização: ocorre, quando as descrições das ações são transformadas em nomes, dando ênfase em alguns pontos, destacando somente o que o interlocutor permite, desprezando fatos que não o interessam.

A categoria de Ideologia, para Thompson, a partir desta reformulação, procura chamar a atenção para as maneiras como o sentido é mobilizado a serviço dos indivíduos e grupos dominantes, isto é, as maneiras como o sentido é construído e transmitido pelas formas simbólicas e serve, em circunstâncias particulares, para estabelecer e sustentar relações sociais estruturadas no jogo do poder, do dominado e do dominante, onde uns buscam preservar e outros procuram contestar.

Hermenêutica de profundidade, de John Thompson: nas entrelinhas a interpretação, obscura da Ideologia

Como já foi dito anteriormente, usaremos a categoria Ideologia, baseado nos estudos de John Thompson e a sua aplicação da Hermenêutica de profundidade para reconhecer a Ideologia na versão fílmica Hamlet, produzida em 1948.

Segundo Thompson (1995) a Hermenêutica pode oferecer uma reflexão filosófica sobre o ser e a compreensão como uma reflexão metodológica sobre a natureza e tarefas da interpretação na pesquisa social.

O autor quer demonstrar, que a Hermenêutica de Profundidade (HP), é o estudo de construções significativas e da contextualização social das formas simbólicas, além de fornecer um referencial metodológico para a condução da análise, em especial, a análise da ideologia.

Iremos focalizar a nossa atenção, nas inter-relações entre significado e poder, nas maneiras pelas quais as formas simbólicas podem ser usadas para estabelecer e sustentar relações de poder, fazendo com que a análise da Ideologia assuma um caráter distintivo e crítico, levantando questões a respeito do uso das formas simbólicas.

A tríplice análise da HP

É fundamental reconhecer que o objeto de nossas investigações forma um campo pré-interpretado, importando-se com as maneiras em que as formas simbólicas são interpretadas pelos sujeitos que participam deste campo.

Um segundo passo do nosso enfoque é como as formas simbólicas são interpretadas e compreendidas pelas pessoas que as produzem e as recebem, na sua vida quotidiana. A fim de verificar essa produção e recepção das formas simbólicas, podemos utilizar a entrevista, observação participante ou algum outro tipo de pesquisa etnográfica, para reconstruirmos a maneira como as formas simbólicas são interpretadas e compreendidas nos vários contextos da vida social, ou seja, faremos um processo interpretativo, das opiniões, crenças -uma interpretação da doxa. Esses pontos-de-vista são sustentados e compartilhados entre as pessoas que constituem o mundo social. Assim visualizamos melhor uma condição fundamental da hermenêutica - a pesquisa sociohistórica.

Thompson (1995) adverte que não podemos ficar bitolados somente nesta primeira fase sociohistórica, é indispensável verificar a compreensão das formas simbólicas pelas pessoas que as produzem e recebem, pois estas formas são estruturadas de maneiras definidas e inseridas em condições sociais e históricas específicas.

Para realizar tal tarefa descrita acima, Thompson confere três fases à HP:

a) Análise sociohistórica

b) Análise formal ou discursiva

c) Interpretação / Re-interpretação

O autor ressalta, que dentro de cada fase do enfoque da HP, existe uma variedade de métodos de pesquisa, que estão à disposição do pesquisador, tudo requer um prévio conhecimento do objeto de análise e da investigação que será desenvolvida.

a) Análise sociohistórica

A primeira fase do enfoque da HP - análise sociohistórica. As formas simbólicas são produzidas, transmitidas e recebidas em condições sociais e históricas específicas. Esta fase tem como finalidade reconstruir as condições sociais e históricas da produção, circulação e recepção das formas simbólicas.

De acordo com Thompson (1995) há quatro aspectos básicos dos contextos sociais, sendo que cada um sugere um nível de análise distinto. As situações espaçio-temporais são onde as formas simbólicas são produzidas (faladas, narradas, inscritas) e recebidas (vistas, ouvidas, lidas) por pessoas que pertencem a um lugar específico, agindo e reagindo a tempo particulares e a locais especiais, fazendo com que a reconstrução desses ambientes seja uma parte importante da análise sociohistórica.

As formas simbólicas estão situadas dentro de um campo de interação, que pode ser visto como um espaço de posição e um conjunto de trajetórias, que determinam algumas das relações entre pessoas e oportunidades acessíveis a elas.

O terceiro nível de análise sociohistórica se refere às instituições sociais, que são vistas como conjunto relativamente estável de regras e recursos, estabelecendo as relações sociais. ``Analisar instituições sociais é reconstruir os conjuntos de regras, recursos e relações que as constituem, é traçar seu desenvolvimento através do tempo e examinar as práticas e atitudes das pessoas que agem a seu favor e dentro delas.''(Thompson 1995, p. 367)

O quarto e último nível de análise podemos chamar de estrutura social, que se refere às assimetrias e diferenças relativamente estáveis, que caracterizam as instituições sociais e os campos de interação, ou seja, sua finalidade é identificar as assimetrias, as diferenças e as divisões. Juntamente com a estrutura social, encontramos os meios técnicos de construção das mensagens e de transmissão, já que as formas simbólicas são trocadas entre as pessoas, implicando algum meio de transmissão, seja ondas moduladas, até uma conversa face-a-face, ou através dos meios de comunicação. Thompson (1995, p. 368) caracteriza os meios técnicos como, `` um substrato material, determinando certas características, certo grau de fixidez, certo grau de reprodutibilidade, e certa possibilidade de participação para os sujeitos que empregam o meio''. No entanto, o autor destaca que a análise sociohistórica dos meios técnicos não podem se constituir apenas numa investigação técnica, mas deve procurar elucidar os contextos sociais mais amplos em que esses meios estão inseridos e empregados.

b) Análise Formal ou discursiva:

A Análise Formal ou Discursiva surge em virtude dos objetos e das expressões que circulam nos campos sociais, que se tratam, também, de construções simbólicas complexas que apresentam uma estrutura articulada. As formas simbólicas são produtos contextualizados, que têm capacidade, e têm por objetivo, dizer alguma coisa sobre algo. Este tipo de análise está preocupada com a organização interna das formas simbólicas, com suas características estruturais, seus padrões e relações, servindo, para a construção do campo-objetivo.

Há muitas maneiras de conduzir a análise formal ou discursiva, de acordo com o objeto e das circunstâncias de investigação. Inicialmente, temos a análise semiótica, que ajuda a iluminar as maneiras pelas quais as formas simbólicas são construídas, podendo colaborar na identificação dos elementos constitutivos e suas inter-relações, em virtude dos quais o sentido de uma mensagem é construído e transmitido.

Por sua vez, para analisar as características estruturais das expressões lingüísticas e as relações do discurso, a análise sintática, é pertinente, por se preocupar com a sintaxe e com gramática do dia-a-dia.

Outra maneira de estudarmos o discurso é encontrada na estrutura narrativa, que gera a análise narrativa. Thompson conceitua a narrativa falando de maneira geral, como um discurso que narra uma seqüência de acontecimentos, ou como dizemos, conta uma história. Geralmente a história possui uma constelação de personagens e uma sucessão de eventos, combinados em uma maneira que apresente, o enredo. Já os personagens, são definidos de acordo com as suas relações mútuas dos seus papéis no desenvolvimento do enredo.

c) Interpretação / Re-interpretação

A terceira e última fase do enfoque da HP é chamada de Interpretação/ re-interpretação, que é facilitada pela fase da análise discursiva ou formal, pois seus métodos procuram revelar os padrões e efeitos, que constituem e que operam dentro de um forma simbólica ou discursiva. É através da análise discursiva e da análise sociohistórica, é que se constrói a interpretação. Para Thompson (1995, p. 375), ``a interpretação implica um movimento novo de pensamento, ela procede por síntese, por construção criativa de possíveis significados''.

O processo da interpretação está localizado dentro do referencial da HP, mediado pelos métodos da análise sociohistórica e da formal ou discursiva, além disso, ele transcende a contextualização das formas simbólicas tratadas como produtos socialmente situados, e o fechamento das formas simbólicas, vistas como construções que apresentam uma estrutura articulada.

A interpretação é simultaneamente um processo de re-interpretação. Isto ocorre por que as formas simbólicas, que são o nosso objeto de interpretação, fazem parte de um campo pré-interpretado, interpretadas pelos sujeitos que constituem o mundo sócio-histórico e também possuem características estruturais internas.

Este conflito que foi gerado pelas divergências entre uma interpretação de superfície e outra de profundidade, entre pré-interpretação e re-interpretação, cria o espaço metodológico que o autor descreve como potencial crítico da interpretação.

Sob este viés, Thompson (1995) acredita que a metodologia da Hermenêutica de Profundidade quer nos possibilitar fazer um uso de métodos particulares de análise, formando um esquema intelectual para um movimento de pensamento que demonstra as características distintas das formas simbólicas, sem cair nas armadilhas gêmeas do internalismo ou no reducionismo.

Estas características são reforçadas com as conclusões de Minayo (1999) que destaca que o produto final de uma pesquisa que utiliza o método hermenêutico deve ser encarado de maneira aproximativa e provisória. Não existem afirmações, mas sim conclusões prévias, e Demo (1992) completa, ao dizer que, ao tentarmos compreender o sentido ``oculto'' de um texto é preciso conhecer os antecedentes, o passado que ficou, a cultura que gerou, a maneira particular de ser e a circunstância momentânea.

Hamlet e a hermenêutica de profundidade

Contextualizando a criação shakespeariana

Depois de termos traçado um caminho formado pela apresentação do objeto, seguido do esclarecimento da fundamentação teórica e findado com a descrição metodológica, chegamos ao ponto crucial: a análise da Ideologia no filme Hamlet de 1948.

Produzido na Inglaterra em 1948, em preto e branco, com duração de 155 minutos e som mono, a obra de Laurence Olivier pode ser encontrada em VHS e em DVD. Sua principal particularidade é ser fiel a obra de Shakespeare.

O contexto histórico no qual Shakespeare estava envolvido influenciou a sua obra num todo, principalmente no que envolve o caráter ideológico, pois segundo Thompson (1995) a análise sociohistórica orienta o estudo das relações de poder.

Segundo Schilling (2001), o cenário histórico em que viveu Shakespeare foi inteiramente dominado pela forte presença da polêmica personalidade de Isabel I (1558-1603), chamada pelo povo de Good Queen Bess. Ela reinou na Inglaterra por longos 45 anos. Nesse quase meio século, em suas questões domésticas, o trono de Isabel não só foi ameaçado por vários complôs e atentados, como também enfrentou, vindo de fora, sérios desafios à sua sobrevivência como reino, que foi palco de vários conflitos religiosos e teológicos que separavam os católicos (papistas), os calvinistas (puritanos) e os que seguiam a religião oficial (anglicanos).

O clima extremamente tenso, dramático, apaixonado, resultante daquilo tudo acirrou o patriotismo de todos, inclusive o do maior dramaturgo da época. Shakespeare, tomado pelo clima emocional que envolveu os ingleses naqueles momentos, dedicou-se a compor uma série de grandes peças históricas.

Shakespeare e seu grupo de teatro - a Companhia do Camerlengo - ainda se viu envolvido em um complô. Em 1601, os seguidores do conde de Essex, pretendendo derrubar o governo da rainha Isabel, imaginaram um coup-d'état em que o ponto de partida do golpe a ser dado seria a apresentação da peça de Shakespeare, Ricardo II, que justamente tratava da deposição de um rei.

Em suas peças encontramos uma imensa diversidade de tipos humanos, (reis, rainhas, príncipes, cortesãos, ministros, bufões, soldados, estalajadeiros, mulheres do povo, mercenários, comerciantes, atores, padres, escroques, mágicos), como a mais variadas situações existenciais e as mais diferentes classes sociais. Como homem do Renascimento, Shakespeare desprezou as fronteiras nacionais. Os seus dramas ocorrem na Dinamarca, como Hamlet, nas cidades italianas, na Grécia e na Roma antiga.

Infelizmente, no tempo em que viveu, ser um autor teatral não era considerada uma profissão ilustre. Apesar de Shakespeare ter-se tornado um bem-sucedido homem de negócios e um excelente empreendedor, tudo indica que ele não se importava muito com o que escrevia. Ou pelo menos não tinha consciência do seu valor. Tanto é assim que quando morreu no seu lugarejo de nascença, em 1616 (dizem que depois de uma bebedeira na companhia de Ben Johnson, que o visitava), não havia se dado ao trabalho de juntar seus escritos numa obra só. Deixou-os dispersos. Dois de seus amigos, os atores John Hemige e Henry Condell, felizmente recolheram quase tudo que estava espalhado e publicaram o primeiro in-fólio, em 1623.

A interrogação que resta a fazer sobre a atitude de Shakespeare a respeito da sua obra é se ele minimizou a importância dos seus escritos a ponto de desconsiderá-los ou se realmente jamais teve a idéia da importância extraordinária que ela iria ter no futuro.

Dor, aflições e ideologia no monólogo de Hamlet

Thompson recorda que identificar as características estruturais das formas simbólicas que facilitam a mobilização do significado, é a finalidade da análise formal ou discursiva, que junto com os modos gerais em que opera a Ideologia e algumas estratégias típicas de construção simbólica, colaboram para a Interpretação da Ideologia.

Sendo assim, a fim de identificar a estrutura das formas simbólicas no filme Hamlet de 1948, selecionamos um trecho da narrativa fílmica, que se dá no seguinte contexto:

Algumas cenas antes Hamlet encontra o fantasma do seu pai, que lhe pede vingança, pois conta ao filho que fora assassinado por seu irmão (rei Cláudio).

Por isso, na cena em questão, o príncipe encontra-se apático em um banquete com muita fatura, vinho à vontade e risos à toa.

O motivo da celebração: Rei Cláudio (seu tio) comunica ao reino sua união com a rainha Gertrudes (mãe de Hamlet). Hamlet está sentado longe, quase excluído da mesa principal, onde estavam todos aqueles que considerava traidores do seu digno pai, o falecido rei-Hamlet. Após declarações cínicas de carinho do seu tio que o pede que não deixe o reino, a festa termina no salão principal e todos se retiram para ver os tiros de canhão que o rei Cláudio pede aos seus subalternos para simbolizar a felicidade do seu casamento com a ex-cunhada.

Hamlet, então, fica sozinho, perdido em seus devaneios e fortifica o seu ódio mais profundo em relação a toda aquela situação que acabara de presenciar e leva até o espectador o seu pensamento, através do seguinte discurso:

``Oh, se esta carne tão sólida se derretesse e se fundisse com o orvalho, ou se o Eterno não tivesse condenado o suicídio.[1]

Oh, Deus! Quão cansativos os gostos vulgares e inúteis me parecem os costumes do mundo. Que vergonha! Vergonha![2]

É um jardim inculto, cheio de ervas daninhas invadido por coisas espessas e vulgares.[3]

Que tenha chegado a isso![4]

Morto a apenas dois meses. Não, nem tanto, nem dois.[5]

Um rei que antes era como Apolo comparado a um sátiro, tão amoroso que não tolerava que os ventos fossem muito rudes com o rosto de minha mãe.[6]

Céus! Precisa lembrar-me?[7]

Ela se apegava nele como se o apetite crescesse enquanto era saciado.[8]

E, contudo, um mês depois...que eu não pense nisso.[9]

Inconstância, teu nome é mulher.[10]

Apenas um mês.[11]

Antes que envelhecessem os sapatos com que acompanhou o corpo de meu pai, como Níobe, toda em lá lágrimas.[12]

Ela...logo ela...Oh Deus, um animal irracional teria chorado mais tempo.[13]

Casou-se com meu tio, irmão de meu pai, mas nada igual a ele, como eu a Hércules. Em um mês ela se casou.[14]

Oh! Que pressa iníqua de galgar vivamente em lençóis incestuosos.[15]

Isso não pode acabar bem! Mas despedaça-te, meu coração, pois deves conter a língua!''.[16]

Procederemos a análise, destacando a principais frases, de acordo com a tabela que mostra os modos gerais de operação da Ideologia e suas respectivas estratégias de construção simbólica.

Iniciando com a frase [1] Hamlet refere-se ao ``Eterno'', utilizando-se da Universalização, para legitimar a sua dor e desespero, como se tivesse pedindo a Deus o aval para a sua morte e fugir da sua missão de eliminar o traidor rei Cláudio.

Já nas frases [2] e [3] Hamlet se refere ao banquete e ao reino, como uma corja de inúteis e porque não desrespeitosos em relação à morte de seu pai. Ele chama os atos feitos no banquete de ``costumes do mundo'', há um exagero neste adjetivo, assim como na frase ``É um jardim inculto, cheio de ervas daninhas invadido por coisas espessas e vulgares''. Assim, podemos visualizar a estratégia de construção simbólica tropo, que serve para dissimular as relações de poder.

Na frase [6] a personagem utiliza-se da Nominalização, por intermédio da comparação: ``Um rei que antes era como Apolo comparado a um sátiro''. Ao citar o nome do deus grego Apolo que tinha uma natureza intrinsicamente dual, podendo, por um lado, trazer a boa fortuna e afastar o mal, enquanto por outro lado ele podia dar origem a desastres (Informações retiradas do site: www.geocities.com/athens/olympus/7866/dicionario.html), Hamlet elimina o caráter sociohistórico, fazendo a Ideologia operar como uma Reificação.

Nas frase [7], [8] e [9], o protagonista pergunta-se a respeito dos atos de sua mãe, tentando buscar uma explicação para o seu sofrimento. Já na frase [10], a fim de responder as suas aflições perante as ações de sua mãe, ele unifica, caracteriza as mulheres como ``Inconstância, teu é nome mulher'', fazendo-nos identificar a simbolização da unidade, estratégia de construção simbólica citada por Thompson no modo geral de operação da Ideologia chamado, Unificação.

Mais uma vez, nas frases [12], [13] e [14], o discurso de Hamlet se direciona para a estratégia nominalização/ passivização, ao usar o nome de Niobe, em relação a sua mãe e Hércules, referindo-se a si mesmo. Níobe, segundo a mitologia se considerava a mais afortunada que Leto (mãe somente de duas crianças: Artemis e Apolo), por ter tido sete filhas e sete filhos, mas no final, os filhos de Leto acabam matando todos os filhos de Níobe, para vingar a ofensa feita a sua mãe. Então, Níobe derrama tantas lágrimas, durante dias e noites, por causa do seu desespero e dor pela perda dos filhos que acaba virando uma rocha (Informações extraídas do site: www.mundodosfilósofo.com.br ). Já Hércules, era visto um deus maioral, acima de tudo, poderoso e digno.

Nota-se então, o paralelo, a rainha Gertrudes é comparada a Níobe durante o enterro do Rei Hamlet, em seguida a um ``animal irracional'', que teria chorado mais que ela, pois dois meses depois se casou com o assassino do seu marido. Em seguida, Hamlet ciente da sua vingança, mas confuso em saber como agir utiliza o nome de Hércules, para expressar a sua vontade de perfeição.

Na última frase [16], Hamlet termina o seu discurso através da Racionalização, ao preferir que seu coração se despedace ao invés de contar a todos a verdade sobre a morte do seu pai, que o ronda a falar do caráter e das ações grotescas praticadas pelo seu tio Cláudio.

Reinterpretando a Ideologia em um discurso sofrível

Retornando aos princípios da Hermenêutica de Profundidade e a tríplice análise proposta por Thompson, verificamos que acabamos de fazer uma análise discursiva, isto é, de acordo com o autor ``estudou-se a análise das características estruturais das relações do discurso'' (Thompson: 1995, p. 371).

Thompson utiliza o termo ``discurso'', de um modo geral para se referir ``às instâncias de comunicação correntemente presentes'', ou seja, para estudar casos concretos de comunicação, como o filme em questão, onde estão presentes as formas simbólicas nos textos e imagens.

Por se tratar de um artigo, a análise pode ser considerada como um exercício de aplicação da HP. Por isso, a esta última fase da tríplice análise compete interpretar a Ideologia, como uma síntese decorrente das outras duas fases.

De acordo com Thompson os resultados da análise sociohistórica e da análise formal ou discursiva, mostram como o sentido das formas simbólicas serve, para estabelecer e sustentar as relações de poder. No caso do trecho do filme Hamlet, notou-se que os principais modos de operação da Ideologia como a Reificação, pelo a Legitimação, a Dissimulação e a Unificação validam o discurso como tendo traços Ideológicos, caracterizando as relações de poder. Porém através das frases analisadas percebemos a subjetividade da personagem e o sofrimento intrínseco no seu monólogo.

Shakespeare, ao escrever Hamlet, tinha uma Ideologia tão marcante que mesmo as inúmeras adaptações feitas para o cinema, para o teatro ou através das traduções para diversos idiomas não conseguiu se perder. Seus personagens guardam até hoje e talvez eternamente suas idéias, suas aspirações e o seu contexto que é ressuscitado cada vez que alguém tem acesso as suas criações. Mas o verdadeiro valor é que seus temas continuam vivos, abertos, se atualizando através do tempo, e conseqüentemente são objeto de interpretações e reinterpretações.

Muitos já pronunciaram a célebre frase, interpretada por Hamlet: ser ou não ser, eis a questão? Mas poucos já desafiaram a interpreta-la, mas Laurence Olivier foi um deles, transformando o reino da Dinamarca em algo real, mostrando o vento e o mar batendo nas rochas como talvez Shakespeare um dia sonhará.

Referências Bibliográficas:

Referências Eletrônicas



Notas de rodapé

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Doutora em Comunicação Social PUCRS- Brasil.