VIDEO & PESQUISA ANTROPOLÓGICA: encontros & desencontros
Carlos Pérez Reyna, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp - BRASIL)
RESUMO
Desde sua invenção, as imagens animadas vêm sendo utilizadas de diferentes maneiras. Tanto como ferramentas de pesquisa nos fenômenos culturais, quanto instrumento para ilustração e difusão das pesquisas. A práxis videográfica precisa de propostas metodológicas que possam ir além da simples utilização das imagens animadas como instrumento de registro. É por isso que, baseados em nossas experiências e análises imagéticas tentamos refletir as especificidades, potencialidades e, sobretudo, algumas considerações metodológicas e epistemológicas a respeito da utilização videográfica na pesquisa de campo, Como resultado disso, levantamos certos fragmentos incômodos destes encontros e desencontros entre vídeo e a pesquisa antropológica.
1. ENCONTROS
Desde que em 1870, o fotógrafo inglês Edward Muybridge demonstrou através do uso de fotografias paradas em intervalos controlados, que as quatro patas de um cavalo em pleno galope ficavam suspensas no ar ao mesmo tempo, inquestionavelmente colocou-se a base fundamental do uso do filme na pesquisa científica. Esse estudo foi o primeiro reconhecimento científico sobre detalhes efêmeros do movimento que não são facilmente capturados a olho nú. Em 1882, Etienne Jules Marey, conseguiu construir nas dimensões de um fuzil de caça um aparelho capaz de fotografar doze vezes por segundo um mesmo objeto na linha de mira. Dava origem com ele a cronofotografia que, pela primeira vez, permitia a produção de imagens em movimento.
A câmara moderna está estreitamente vinculada a esta primeira invenção, à qual registrou uma imagem dez a doze vezes por segundo em uma bobina contínua de papel sensibilizado. A partir de então, a imagem animada tem sido usada abundantemente nas pesquisas científicas desde a astronomia e zoologia até as ciências humanas, em todos esses campos vem sendo a melhor ferramenta para registrar o movimento. Os psicólogos as têm usado, tanto no estudo animal como no comportamento humano, Gessell (COLLIER & COLLIER; 1986:140) gostava de trabalhar o desenvolvimento da criança (1934,1945), o seu trabalho baseava-se não somente no estudo da metragem do filme mas na comparação e análises detalhadas de frames ampliados e únicos.
A antropologia experimentou a utilização deste novo meio de comunicação quando no final do século XIX, o médico Félix-Louis Regnault [1] (PIAULT; 1995:23) filmou uma mulher ouolve enquanto fabricava potes de cerâmica durante uma exposição sobre África Ocidental, em Paris. Segundo Demetrio Brisset (1989:134), um destacado e pouco valorizado precedente é encontrado na obra de Edward S. Curtis, que passou mais de 30 anos realizando documentários sobre os índios norte-americanos.
Mas foram Margaret Mead e Gregory Bateson (1936-38), que fizeram uso efetivo da imagem animada para a análise cultural do comportamento. Marvin Harris (CANEVACCI; 1994:33-34) considera que a capacidade demonstrativa das observações destes antropólogos, publicando ou exibindo esses registros juntamente com as descrições verbais, foram práticas fundamentais para a instauração de uma nova práxis no trabalho de campo. Hoje em dia esses primeiros documentos visuais alcançam o status de clássicos [2] .
A partir dessas primeiras experiências o audiovisual tem sido utilizado de duas maneiras. Marc-Henri Piault diferencia esses usos: “para a antropologia, o cinema e os diversos métodos audiovisuais são tanto instrumentos de observação, instrumentos de transcrição e interpretação de realidades sociais diferentes quanto instrumentos para ilustração e difusão das pesquisas” (1994:63). A primeira diz respeito a uma ampla gama de investigações que envolve o audiovisual como ferramenta de pesquisa nos fenômenos culturais. A segunda, ao grande interesse pelos filmes antropológicos - e à produção destes - na utilização em salas de aula e outros auditórios. Estes usos conferem ao cinema antropológico ou à antropologia visual uma constituição [3] sem a robustez de outras disciplinas nas ciências humanas.
1.1 Algumas características da imagem animada
Embora não seja nossa pretensão entrar em discussões sobre as diferenças entre a imagem videográfica e a imagem fílmica, para efeito de uma melhor separação entre os dois tipos de imagens o faremos desde o ponto de vista técnico. Para tanto vamos nos manter àquilo que diz Jacques Aumont a propósito desta distinção:
“- Enquanto a imagem videográfica é gravada em suporte magnético; a imagem fílmica é uma imagem fotográfica;
- a imagem do vídeo é gravada por varredura eletrônica que explora as linhas horizontais superpostas; a imagem fílmica é gravada de uma vez;
- a imagem fílmica resulta da projeção sucessiva de fotogramas separados por faixas pretas; a imagem videográfica, de uma varredura da tela por um spot luminoso.”(1993:170)
Cabe assinalar que além de “ruídos” e “chuviscos” de transmissão, “não há entre vídeo e cinema nenhuma diferença perceptível no que tange ao movimento aparente” acrescenta o autor. Baseado nestas “coincidências”, é que, ao falar de imagens em movimento, estamos nos referindo tanto ao vídeo quanto ao filme. Depois desta prévia consideração, podemos nos perguntar o que caracteriza as imagens em movimento? Podem essas imagens captar o caráter do comportamento humano? Para John Collier Jr., com as imagens em movimento, a natureza e o significado do comportamento social tornam-se fáceis para uma descrição com detalhes responsáveis. A linguagem do movimento define o amor e o ódio, a indignação e a alegria, a raiva e o prazer entre outras qualidades de comportamento (COLLIER & COLLIER; 1996:140). É por isso, tanto na prática quanto nas análises visuais sobre comportamento e comunicação, geralmente a tendência é a utilizar o filme e o vídeo.
Tomando como ponto de partida os motivos explicados por este autor, surge uma série de pesquisas que servem como ilustração. A experiência realizada por Edward T. Hall no verão de 1968 é um bom exemplo disso. Usando um equipamento Super-8, registrou três diferentes tipos de famílias: uma anglo, uma tewa (índia) e uma espanhola, todos desfrutando de um passeio em uma feira de uma cidade ao norte de New México. Á primeira vista o filme parece conter cenas de comportamento habitual, mas ao projetá-lo em câmara lenta e quadro a quadro, revela detalhes e contrasta estilos não verbais de cada família, sincronismo e aspereza dos movimentos e comunicações entre pessoas de diferentes práticas sociais (1996:141). Nesta experiência, a utilidade do filme constitui-se numa prática ideal tanto no registro quanto na análise visual e/ou estudo do comportamento, da comunicação humana, e dos processos de análises culturais.
Só o filme e o vídeo [4] podem chegar mais próximos do realismo do tempo e do movimento ou as variedades de realidades psicológicas nas relações interpessoais. Um exemplo disso está na difícil avaliação do caráter do amor entre pais e filhos com fotografias, enquanto que tanto o filme quanto o vídeo podem registrar a natureza, a duração e a freqüência do contato familiar. O que não acontece com a fotografia, porquê ela quebra a cadeia de atitudes e reações em face do meio social; estes cortes no tempo são fragmentos de vestígios emocionais fluentes de um processo qualquer de comunicação.
O filme e o vídeo são meios operacionais que nos introduzem em novos domínios do estudo antropológico. Desde a captação de sutilezas imperceptíveis a olho nú como as relações sociais, até as cerimônias, as danças ou qualquer evento complexo onde muitos elementos estão em movimento conjunto e/ou permanente. Barrie Machin (1988:64-68), questiona os resultados da pesquisa “A Performative Approach to Ritual” do etnólogo Tambiah, (1981), que trata do exorcismo em Sri Lanka. Tendo trabalhado na mesma região e com dados coletados em vídeo, as observações de Machin [5] , diferem daquelas levantadas por Tambiah que só utilizou a observação direta.
Neste caso, a dificuldade de reunir dados para desvendar eventos complexos - rituais - coloca aos pesquisadores não usuários da imagem animada certos problemas de observação. Os clássicos métodos para a coleta de dados são pouco questionados, não obstante se constituam em assim chamados dados primários, tem que ser com antecedência analiticamente reconstituídos. Nesta situação, o “cru” [6] caderno de campo e a memória chegam a ser, em conjunto, altamente incompletos e inadequados. O valor especial do vídeo na citação mencionada, está bem entendemos, na capacidade de registrar as nuances do processo, da emoção e outras sutilezas do comportamento e da comunicação, que a fotografia, a memória e o caderno de campo não estão em condições de prover.
É muito natural que o material recolhido no trabalho de campo requeira muitos exames, uma vez que os fenômenos observados são compostos por vários elementos às vezes dispersos, que formam um conjunto. Tradicionalmente, o pesquisador só dispõe de sua memória para, a partir de suas notas, recompor esse conjunto. O vídeo modifica radicalmente esse processo, pois os elementos constituintes do fenômeno observado podem agora ser vistos, revistos e envolver os informantes em sua interpretação.
1.2 Especificidades do vídeo: O feedback como processo
Historicamente, temos muitos pioneiros que utilizaram a imagem animada como meio de documentar o que entendia-se na época como sociedades pouco evoluídas. A realização desses documentários fez deles precursores da transformação dos métodos clássicos de pesquisa antropológica. Entre os mais nomeados e conhecidos, o geólogo Robert Flaherty - considerado o patriarca do filme antropológico, filmou o dia-a-dia do esquimó Nanook. Ainda jovem Flaherty acompanhava seu pai, proprietário arruinado de uma pequena mina, em suas viagens de exploração para grandes companhias de mineração. Em uma dessas expedições pela Baía de Hudson, levou uma câmara para filmar em seus momentos livres, os esquimós. A sua idéia era mostrar aos Innuit suas próprias imagens, porém o resultado da montagem não chegou a satisfaze-lo. Abandonadas as explorações, Flaherty e a esposa voltaram ao norte do Canadá para continuar seu projeto. Por que não registrar um típico esquimó e sua família, e fazer uma biografia de suas vidas durante um ano? Esta foi sua idéia central, estruturando-a em torno da constante luta contra a fome no terrível clima polar. Com o apoio financeiro de um curtume, e uma câmara de 35 mm., os Flaherty levaram 16 meses para filmar o caçador Nannok e sua família, encarregando-se de sua alimentação para assim poder dedicar-se exclusivamente às filmagens. A essência de seu método foi no mesmo dia revelar e projetar aos seus personagens as imagens registradas. O filme converteu-se na mais famosa das crônicas sobre formas de vida primitiva. Surgia, então, o que Jean Rouch. chamaria “a invenção de toda nossa ética”, para responder à sua principal preocupação: “como filmar pessoas sem lhes mostrar as suas imagens?”(1979:56). É a partir desta observação compartilhada ou participante [7] , que se abre a colaboração mútua entre pessoas filmadas e o antropólogo-cineasta. A participação imediata [8] e direta dos personagens observados no registro, constitui a singularidade deste método de pesquisa, uma vez que aumenta o campo de observação, de analise e interpretação conjunta. Isto é, mostrar aos personagens suas próprias imagens e motivá-los a comentá-las, debatê-las e discuti-las após os registros. Este procedimento implica, muitas vezes, o que Clarice Peixoto salienta como “encontro ou confronto de lógicas e culturas diferentes, de conceitos de identidade ou ‘alteridade’, do problema da realidade e da representação ou ainda o lugar do visual nos modos de expressão”(1994:14). Em outras palavras, o vídeo [9] enquanto ferramenta, além de animar e instigar o conhecimento mútuo, tem a capacidade de provocar uma autocontemplação, levando o agente filmado a rever e reencontrar momentos e situações nos quais foram observadas. Em razão disso, a imagem provoca estados de ânimo em harmonia à aceitação ou rechaço, de riso ou de choro, ou simples silêncio, do mesmo modo que estimula à fala e a reflexão sobre si mesma. Jean Rouch, explica exemplarmente estas situações quando narra os bastidores da projeção do seu filme “Bataille sur le Grand Fleuve”(1993:19-20).
Portanto, esta especificidade é meio de transmissão de conhecimento que leva o espectador à descoberta de uma outra cultura, e aqui não somente nos aspectos mais espetaculares, mas nas suas interações, representações ou dimensões menos evidentes (relações interpessoais, espaços geográficos, etc.). Nesse sentido, a experiência da pesquisadora Clarice Peixoto evidencia essas dimensões. A sua proposição fundamental foi apresentar os copiões às pessoas filmadas e realizar, em sua companhia, o exame das imagens de seu cotidiano tanto na praça Batignolles, bem como aquelas que mostravam as atividades dos personagens brasileiros. O ato de filmar desempenhou, desse modo, um papel importante tanto no estabelecimento dos contatos com os personagens quanto no acompanhamento de suas práticas sociais (PEIXOTO; 1993). Neste caso, filmar é muito mais uma investigação do processo de conhecimento do que um instrumento para escrever os sistemas.
A potencialidade da prática videográfica recebe um destaque especial na obra de Claudine de France, a qual elabora toda uma proposta metodológica que vai muito além das simples utilização das imagens animadas como instrumento de registro. France mostra com clareza as suas principais funções: “Podemos inicialmente afirmar que colocar em evidência os fatos que são impossíveis de estabelecer somente com a observação direta e descrever aqueles dificilmente restituídos pela linguagem constituem as duas funções principais do filme etnográfico” (1976:140). Assim sendo, a imagem animada tornaria evidentes as diferentes manifestações sensíveis e impossíveis de estabelecer com a observação naturalista; e descreveria aqueles dificilmente restituídos pela linguagem escrita. Nesse caso, a imagem animada permite uma utilidade científica, a sua originalidade de evidenciar fatos que são impossíveis de estabelecer em relação a outras formas de observação e de expressão clássica.
Qual seria então o papel das expressões verbais e escritas? Segundo a autora, as expressões verbais e escritas têm na imagem animada um suporte que lhes permite desempenhar-se melhor sobre constantes e inalteráveis fenômenos fluentes, e não mais sobre a persistência cristalizada das representações artísticas de características figurativas estáticas (desenhos, pinturas, fotografias), ou sobre o fluente efêmero do mesmo modo que apreende a observação direta, imediata. France enfatiza essa relação: “Tomando o lugar da escrita, a imagem animada libera assim linguagem de seu papel de espelho aproximativo do fluente, sobre o qual pode ser dito agora um discurso totalmente diferente.” (DE FRANCE; 1989:7). Como resultado disso, a adoção da imagem animada nas pesquisas modifica profundamente as relações entre a observação e a linguagem (oral ou escrita). A autora chama a esta nova relação “observação imediata / observação diferida / linguagem” (OP. CIT; 1987:7).
1.3 A observação diferida
Observar e descrever são ações inerentes a toda prática antropológica, sobretudo nos moldes da práxis clássica. Com a introdução das novas propostas imagéticas - o vídeo, neste caso - as possibilidades de enriquecer e incrementar um outro exercício além destas duas técnicas, revolucionaram o método empírico natural dirigido a revelar e explicar as características observáveis dos fatos reais. Essas particularidades pressupõem determinadas operações práticas, tanto com os objetos estudados quanto com os meios materiais de apreensão de conhecimento utilizados. Entenda-se este método de observação como o método de conhecimento empírico, isto é, “a percepção dirigida à obtenção de informação sobre objetos e fenômenos da realidade constitui a forma mais elementar de conhecimento científico, na qual encontra-se a base dos demais métodos empíricos” (RODRIGUEZ; 1984:40). Em outras palavras, este tipo de observação se produz da ação do objeto exterior sobre os órgãos sensitivos do homem, e como conseqüência desta atividade origina-se a percepção da realidade objetiva.
Destas práticas - observar e descrever - julgava-se ter dito tudo. A partir de 1969, após numerosos exames e realizações de filmes, Claudine de France [10] levanta interrogações, questões, opções e dificuldades de ordem metodológica que, no filme antropológico, permaneciam obscuras, ainda que existissem aportes teóricos metodológicos efetuados por diferentes pesquisadores usuários da imagem animada. Dos resultados destas análises, a autora entra num terreno importante a ser desvendado, sobretudo no que diz respeito à utilização do audiovisual como meio de obter conhecimento na antropologia. Com o intuito de propor certas considerações de rigor metodológico ela parte da seguinte interrogação “sobre os aspectos da atividade humana os mais acessíveis à imagem animada e sobre os meios específicos à disposição do etnólogo-cineasta para mostrá-los ou colocá-los em relevo, fomos levados a nos colocar a seguinte questão: até que ponto a introdução do cinema na etnologia modificou a maneira que tinha o etnólogo de observar e descrever?” (DE FRANCE; 1989:3).
Sabemos que em todo processo de observação podem ser reconhecidos basicamente cinco componentes:
O objeto de observação, o sujeito de observação, as condições de observação, os meios de observação, e o sistema de conhecimentos a partir do qual formula-se o objetivo da observação.
Tanto o objeto quanto o sujeito de observação são elementos imprescindíveis para que esta se realize; não há observação sem objeto quanto menos sem sujeito. Por outra parte, as condições de observação se constituem nas circunstâncias através das quais esta se realiza; quer dizer, o contexto natural ou artificial no qual o fenômeno social se manifesta ou se reproduz. Por sua vez, o sistema de conhecimentos onde se demarca o processo de observação, é o corpo de conceitos, categorias e fundamentos teóricos da antropologia.
No entanto, são os meios materiais de observação - neste caso, o vídeo - que possibilitam a ampliação, a transformação das qualidades, as características e/ou as particularidades do objeto da observação. É neste estágio do processo de observação que nos detemos a pensar na seguinte questão: será que antes de passar a observar outras fases do objeto de pesquisa ou, eventualmente, a elaborar e descrever os primeiros resultados da observação sensorial [11] , não deveríamos verificar se esta observação foi minuciosamente realizada? Aqui, a imagem animada desempenha um papel fundamental porque ela oferece às práticas de observar e descrever um novo suporte a usufruir [12] , colocando assim um novo olhar, desta vez “mecânico”, naquilo que nos é dado ver. No entanto, reconhece-se que pela mediação [13] deste olhar “mecânico” o pesquisador usuário deste novo suporte orienta a observação e a descrição, ao sujeito sensível de registro imagético.
Exemplos de pesquisas e filmes que nos permitem sustentar este propósito, estão, entre outros, o exemplo do Barri Machin sobre a restituição de rituais de exorcismo em Sri-Lanka, a experiências fílmicas descritivas como Dead Birds, de Robert Gardner [14] , fundada nas atividades guerreiras (com arcos, flechas e lanças) e rituais funerais dos Dani [15] . Ou para citar outros ensaios fílmicos micro-descritivos de Claudine de France em La Charpaigne e Laveusses, cujos exercícios baseados na descrição do referencial espacial do movimento individual humano, de que o maior exemplo é o trabalho das mãos em oposição ao conjunto do corpo. Neste caso, a descrição aproxima a restituição das cadeias de gestos e operações concernentes a esses momentos (1989:38-70).
O fato de fixar de forma persistente todo um fluxo de atividades sensíveis que podem ser analisados pelo pesquisador-cineasta, pelo informante e pelos dois juntos, no próprio campo ou no laboratório, inúmeras vezes, torna-se fundamental para novas descobertas. A abertura de uma nova relação de troca de informações, graças à potencialidade deste novo meio, segundo de France, dá origem a uma nova proposta - a pesquisa exploratória [16] - na antropologia:
Face a esta proposição, a observação diferida possui duas funções metodológicas:
1) com a mesma essência técnica e metodológica da observação partilhada, substitui a observação imediata no exame aprofundado do processo, a partir do momento em que: “o registro cinematográfico, suporte da observação diferida, torna-se o primeiro ato da pesquisa. O filme abre a pesquisa. A entrevista com as pessoas filmadas e a inquirição dos informantes apoiam-se no exame do registro e deixam de ser uma etapa preliminar à filmagem, sendo eles próprios diferidos”. (DE FRANCE; 1989:309)
2) instaura uma nova relação na construção dos resultados finais na pesquisa, pois enquanto na metodologia tradicional a verificação dos resultados pode ser prejudicada na passagem da observação sensorial, direta e imediata, uma vez que essa passagem traz como suporte o caderno de notas e a memória. Na observação diferida esta passagem é mediada pelo observado filmado que gera um novo tipo de construção dos resultados finais, pois estes se baseiam na observação diferida, que possibilita dois tipos de análises.
- do ponto de vista do antropólogo: em primeiro lugar para examinar e interpretar os dados repetidamente com o propósito de obter respostas às interrogantes da pesquisa ou descobrir novas, e ao mesmo tempo oferecer alternativas de análise a outros pesquisadores sobre os mesmos dados visuais.
- E em segundo lugar, do ponto de vista do cineasta: para tomar conhecimento das diferentes relações entre as imposições instrumentais (neste caso, videográficas), e os procedimentos de descrição fílmica e principalmente de certas circunstâncias e situações [17] do processo observado que não figuram sobre a imagem. Permitindo desta maneira um melhor ajuste nos métodos particulares de registro fílmico.
A conjunção destes olhares é um dos fatores que explicitam as vantagens de uma proposta metodológica colocadas na observação diferida [18] . Desta maneira, temos um bom exemplo de decifração nas análises das imagens que Annie Comolli faz do filme de Jean Rouch Architectes Ayorou (DE FRANCE; 1989:339). Dito filme tinha sido pacientemente analisado pela pesquisadora antes que descobrisse em segundo plano da imagem, a presença de uma garota observando atentamente o trabalho das mulheres. Embora o cineasta não tenha tido a intenção de colocar em evidência esta forma particular de aprendizagem, a observação diferida resulta neste caso ser um meio eficaz de encontrar no observado filmado, elementos ocultos da imagem. Deste modo, a fundamental preocupação para Annie Comolli, não é ver somente os fatos e gestos da vida cotidiana ou cerimonial, mas de sublinhar sobre a imagem, alguns de seus aspectos melhor do que outros.
Mas, o aproveitamento conjugado destes dois pontos de vista, é encontrado, entre outras pesquisas, nas análises imagéticas de Jane Guéronnet [19] , que usufruiu das particularidades do vídeo e procedeu ao estudo da vida de uma família francesa de classe media alta em Paris. Nessa perspectiva, o seu objetivo foi estudar os cuidados do corpo a partir do comportamento que os pais dispensam na proteção higiênica de seus filhos na infância. Segundo a autora os resultados desta sociologia elementar são eloqüentes: “O filme foi visto cerca de trinta vezes. Deste modo, o fluxo contínuo foi estabelecido: a revisão do vídeo, o comentário oral das imagens e a descrição por escrito das análises. A partir da visualização das imagens fomos capazes de formular algumas perguntas e respostas concernentes ao material observado.” (HOCKINGS; 1993:25-43). Nestes casos, as análises dos filmes permitem descobrir as relações e modos de cooperação e manipulação ou ritmo corporal dos pais durante o ato de banhar os filhos. Estes, por sua vez, mostram as diferentes formas de rituais de divertimento. Deste modo, todo movimento costumeiro é expressivo no coração das relações sociais entre os componentes da mesma família.
Enfim, a observação diferida fundamentada no observado filmado, propicia o esclarecimento, a explicação, a decomposição eventual e/ou mapeamento das diferentes formas de expressão ocultas ou de difícil percepção nos processos a descrever. Os diferentes exemplos aqui expostos admitem a possibilidade de outros resultados finais nas pesquisas. A observação diferida abre um novo suporte à escrita. Isto é, após múltiplos exames das imagens, tornarão possíveis maiores informações descritivas no texto final. Claudine de France o sublinha pertinentemente