O caso Ônibus 174: Entre o documentário e o telejornal

Leonardo Coelho Rocha

Centro Universitário de Belo Horizonte-UNI-BH


Índice



``Chegou a minha hora de correr desta maldita Radiopatrulha. Sou um menino tímido, bem-compor-tado, nada fiz de errado, mas sei que devo fugir. Até hoje me limitava a assistir a fuga dos amigos maiores. Mas já completei 12 anos, tenho que começar a me prevenir. Estamos fugindo desde o momento em que a Bate-lata apontou, na descida de nossa rua.''
Caco Barcellos, livro Rota 66

Introdução

Este estudo tem as suas raízes fincadas em janeiro de 2003, quando pude acompanhar a 6ª Mostra de Cinema de Tiradentes, realizada na cidade de Tiradentes (MG). Dentre os filmes exibidos, estava o documentário Ônibus 174, que trazia o relato do seqüestro do ônibus 174 em pleno bairro Jardim Botânico, zona sul da cidade do Rio de Janeiro, em 12 de junho de 2000. O algoz da tragédia era Sandro do Nascimento, cujo rosto ainda estava na memória devido à grande exposição do fato, à época, pela mídia.

Após o término do filme, o semblante dos espectadores, inclusive o meu, trazia o peso do conhecimento de uma ``realidade'' que, pela mídia, não se teve acesso. No dia-a-dia, essa mesma ``realidade'' revela-se apenas como evidência, com a qual nos acostumamos a conviver e a ignorar. Ônibus 174 trouxe tudo à tona e, de uma só vez, colocou à nossa frente parte da problemática social brasileira, sem que pudéssemos fugir ou virar o rosto. O resultado foi estarrecedor: depois da exibição, muitos permaneceram estáticos nas cadeiras, outros saíram pensativos, inúmeros caíram no choro e alguns olhavam o nada como se tivessem recebido uma notícia fúnebre. E, naquele momento, percebi o quão distorcida pode ser a visão fornecida pelos fatos a partir da mídia.

A pedra fundamental para este estudo estava lançada. Faltava apenas o ``outro lado'', ou seja, o veículo de comunicação com o qual eu estabeleceria uma comparação a partir do documentário. O objetivo era levantar as principais características de ambos, o que, por si só, já indicaria os desníveis informativos entre eles. Não demorou muito para que o Jornal Nacional fosse escolhido, por quatro motivos óbvios: a abrangência, o número de telespectadores e a liderança na audiência, a tradição governista, e por se tratar de um meio audiovisual como o filme.

Os resultados da pesquisa estão nas próximas páginas. Além das próprias evidências recolhidas, creio que este estudo pode ser um bom começo para que possamos nos perguntar: até que ponto a mídia tem o direito de reclamar para si a construção social da ``realidade''? Talvez seja a hora e o momento da Internet, o cinema, a produção editorial e outros meios participarem mais ativamente nessa elaboração do ``real'', multiplicando as maneiras de interpretar os fatos e o cotidiano brasileiro. Assim, cria-se uma alternativa às informações padronizadas dos veículos de ``massa'', saturados pela objetividade inatingível e a imparcialidade camuflada.

Entre o documentário e o telejornal: o caso do ônibus 174

``Você saiu de casa (que era um edifício de tijolos, convenções e miséria) para entrar num circuito fechado, sem ar e sem luz, como o túnel de uma toupeira. Túnel que não pode ser o caminho da libertação individual que você talvez estivesse procurando.''
Rubem Fonseca, conto Lúcia McCartney

Na tarde do dia 12 de junho de 2000, segunda-feira, Sandro do Nascimento sobe no ônibus da linha 174, rota Gávea-Central, no Rio de Janeiro, com um revólver calibre 38 nas mãos. Seu intuito é realizar um assalto. Às 14h20min, uma patrulha da Polícia Militar intercepta o veículo, que seguia pela rua Jardim Botânico, zona sul da capital carioca. A ação é motivada pelo sinal de um dos passageiros do ônibus.

Sem ter como ou para onde fugir, Sandro faz dez reféns, com os quais pretende negociar a sua vida. Os policiais do Batalhão de Operações Especiais (Bope) são os encarregados de demovê-lo da empreitada. A televisão exibe o drama dos reféns ao vivo, para todo o Brasil e o mundo.

O seqüestrador pede armas e um motorista para dirigir o ônibus. Ele ameaça matar os reféns a partir das 18 horas, caso não seja atendido em suas reivindicações. Ao longo da tarde, Sandro utiliza a estudante Janaína Lopes Neves, 23 anos, como porta-voz e escudo dentro do ônibus. Com um batom às mãos, ela escreve no vidro frontal do veículo: ``Ele vai matar geral''.

O drama se arrasta por mais de quatros horas. Durante esse tempo, Sandro desafia os policiais com discursos de ordem, dita novas mensagens de terror para serem escritas nas vidraças, diz estar possuído pelo diabo e simula a execução de Janaína. Às 18h50min, ele decide descer do ônibus, já revelando sinais de cansaço e menor agitação. À sua frente, como escudo, está a professora Geisa Firmo Gonçalves, 20 anos.

A ação precipitada de um policial do Bope põe a perder o que parecia ser uma negociação exaustiva, mas de provável sucesso. Armado com uma submetralhadora, ele tenta alvejar Sandro no momento em que este saía do ônibus com a professora à frente. Tiros são disparados em direção ao seqüestrador, que cai no chão junto à refém. Sandro é imobilizado pelos policiais e levado para o camburão, e Geisa, inconsciente, é carregada até uma ambulância. Instantes depois, ambos estão mortos.

A primeira versão divulgada é a de que Sandro teria sido morto pelos tiros do policial e que havia tido tempo suficiente para disparar fatalmente contra Geisa. A partir de imagens de televisão e laudos do Instituto Médico Legal, uma outra versão é apresentada no dia seguinte ao fato. Sandro fora morto por asfixia mecânica, quando cinco policiais militares tentavam imobilizá-lo no camburão que seguia rumo ao Hospital Souza Aguiar, e que os tiros disparados pelo policial tinham acertado somente a refém.

O caso do ônibus 174 desencadeia uma série de ações, iniciativas, eventos e mobilizações por parte da sociedade civil e dos governos estadual e federal. Pressionado pela opinião pública, o Governador do Estado do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho, pede a exoneração do comandante da Polícia Militar, o Coronel Sérgio da Cruz. Várias operações também são implementadas pela polícia, como blitz em ônibus e ruas para apreensão de armas e drogas, acirramento dos confrontos com traficantes e divulgação de listas com os nomes de policiais corruptos e envolvidos em crimes. O Governo Federal, por sua vez, elabora o Plano Nacional de Segurança Pública, divulgado pelo Ministro da Justiça, José Gregori, e pelo Chefe da Casa Civil, Pedro Parente, no dia 20 de junho de 2000, uma semana após o episódio do ônibus 174. A sociedade civil também se mobiliza em duas passeatas, uma realizada por associações de moradores da Zona Sul e outra pela organização não-governamental (ONG) Viva Rio, que ainda promoveria um calendário de manifestações a partir do slogan `Basta! Eu quero paz!'.

Sandro do Nascimento é enterrado como indigente no dia 15 de julho de 2000, mais de um mês depois de sua morte. O soldado que disparou contra o seqüestrador, acertando somente a refém Geisa Firmo Gonçalves, consegue sua absolvição em 2002, através do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. No mesmo ano, no dia 11 de dezembro, os policiais militares acusados da morte de Sandro são absolvidos pelo júri popular por 4 votos a 3, em mais de 20 horas de julgamento no 4º Tribunal do Júri. O capitão Ricardo de Souza Soares e os soldados Flávio do Val Dias e Márcio Araújo David eram acusados de homicídio qualificado. Os jurados se convenceram de que o próprio bandido se sufocara ao tentar se libertar dos policiais1. A promotoria recorre da decisão. No dia 14 de agosto de 2003, a 8ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro mantém, por unanimidade de votos, a absolvição dos policiais.

O protagonista

O episódio do ônibus 174, protagonizado por Sandro do Nascimento, é um reflexo da violência urbana nas grandes cidades. Enjeitado pela sociedade, Sandro faz parte do grupo dos que

por máxima desproteção, são forçados à violência como última alternativa. Estes são localizados, presos e punidos. Sempre, lamentavelmente, irão assimilar (``introjetar'') a violência dos seus algozes - daqueles que os espancam e humilham, cada vez mais convictos de que a brandura jamais os protegerá. Marcados muitas vezes para sempre, usarão seus dias de liberdade para uma dupla prática: a de atacar para se defender e, muito pior, a de atacar para vingarem-se. (MORAIS, 1981, p.55)

A trajetória de Sandro, desde o nascimento até a morte no camburão, coloca-o dentro desse grupo que sofre de ``máxima desproteção'' e que ``ataca para se defender e para se vingar''. Muitos episódios de sua vida foram trazidos à tona pelo documentário Ônibus 174, de José Padilha, lançado em 2002. Segundo o filme, Sandro nasceu em uma região próxima a Niterói e, logo aos seis anos de idade, viu a mãe ser assassinada a facadas em frente ao próprio bar, na favela do Rato Molhado. Uma tia ficou responsável por ele, pois não se sabia quem era o pai de Sandro. Durante a infância e a adolescência, envolveu-se em assaltos e consumo de drogas, principalmente cocaína. Passou por internatos de menores infratores, chegou a ser preso em delegacias, onde conheceu a realidade subumana das celas superlotadas, e foi testemunha ocular e sobrevivente do massacre de garotos na Praça da Candelária2. Durante o episódio do ônibus 174, Sandro revelou este fato aos policiais do Bope, como se quisesse indicar que a sua presença ali significava mais do que um simples ato de contravenção, mas antes um ato de vingança.

O personagem principal do caso 174 teve, durante quatro horas consecutivas, câmaras de televisão apontadas contra o seu rosto, exibindo para todo o país e o mundo as suas ações dentro do veículo. Este fato é abordado por Cláudia Regina Fonseca Lemos, na sua tese Seis questões sobre o jornalismo: uma leitura da imprensa brasileira nos anos 90 a partir de Ítalo Calvino, como sendo responsável por aproximar a imagem do protagonista do 174 à dos personagens dos contos de Rubem Fonseca. A obra do escritor exprime um tempo perdido, em que ``os heróis cedem lugar a personagens sem legitimidade, que matam futilmente'' (LEMOS, 2001, p.85). A exposição de Sandro às lentes da televisão contribui, portanto, para a sua ``demonização''.

A grande cobertura policial do Rio de Janeiro no ano 2000 [a do ônibus 174] foi marcada pela presença de um criminoso que, num primeiro momento, foi percebido, nas imagens transmitidas ao vivo pela televisão, em moldes próximos da futilidade dos personagens de Rubem Fonseca, uma espécie de pura maldade que precisa ser eliminada. (idem, p.85)

Mesmo depois de ``eliminado'', Sandro do Nascimento continuou a ser a figura central na repercussão do caso do ônibus 174. Marcos Alan Gorita, na sua dissertação de mestrado Notícias do crime, relatos de insegurança - os discursos da violência na cidade do Rio de Janeiro (1995-2000), mostra que, por se tratar de um legítimo representante do estereótipo de jovem drogado, violento, favelado e criminoso, Sandro do Nascimento acaba se tornando um referencial para as medidas de combate ao crime adotadas pela polícia carioca após o episódio.

O erro de um policial num seqüestro de ônibus é respondido por uma intensificação das atividades policiais em áreas consideradas `perigosas' da cidade, onde as drogas associadas às armas pesadas comporiam uma fórmula `perigosa'. O caso de Sandro ajudou a definir uma estratégia de combate ao crime, pois sua figura representava todas as imagens das minorias urbanas marginalizadas: menor de rua, usuário de drogas, morador de favela e armado com armas pesadas. (GORITA, 2003, p.97)

Sandro do Nascimento morava com a mãe ``adotiva''3 na favela Nova Holanda, periferia da cidade do Rio de Janeiro. Segundo Yvonne Bezerra de Melo, assistente social que cuidava de crianças de rua e que conhecia Sandro desde os tempos de convivência na Candelária, Nascimento teria retornado às ruas da cidade antes do episódio no ônibus 174, morando em uma praça do Catumbi, região central da capital carioca. Ele estaria envolvido em dívidas com traficantes, o que, para ela, explica o fato de Sandro ter pedido aos policiais a quantia de mil reais, durante o seqüestro do ônibus.

Em relação à cobertura da mídia, Sandro do Nascimento foi um dos seus personagens centrais, por causa das imagens de terror que protagonizou ao longo do episódio e dos discursos de condenação veiculados nos jornais contra ele. Gorita destaca duas frases proferidas pelo seqüestrador de dentro do ônibus - ``Um, dois, três, quatro, vou atirar'' e ``Vocês têm medo, eu não, estou com o diabo'' - como sendo as únicas frases de Sandro presentes nos jornais da cidade carioca. ``A fala de Sandro somente virá a público quando um documentário [o Ônibus 174] sobre o caso for exibido dois anos depois'' (idem, p.91). A mídia não procurou investigar a vida de Sandro, na tentativa de contextualizar o momento vivido por ele e que o levou à tarde fatídica de 12 de junho. Antes, buscou explorar suas imagens ``aterrorizantes'' e condená-lo à morte.

Um exemplo dessa tendência pode ser visto na cobertura realizada pelo jornal Extra, do Rio de Janeiro. Lemos analisou os exemplares do Extra na semana do seqüestro do ônibus. Ela define a abordagem do impresso, no dia seguinte ao episódio, como sendo a de condenação do `bandido sanguinário e frio', `disposto a morrer e a matar', que `debochou da polícia e da imprensa' (LEMOS, 2001, p.87). Grandes fotos retratam a expressão raivosa e debochada de Sandro, em consonância com o teor das reportagens do jornal, que repetem insistentemente a palavra `bandido' para se referir a Nascimento e deixam entrever o merecimento por ele ter sido morto. Na análise da matéria principal do Extra, no dia 13 de junho, Lemos demonstra essa ``equação''.

O subtítulo da matéria principal informa que ``A-lém de usar a arma errada, atirador pode ter falhado ao disparar contra o bandido, que foi andando para o camburão''. Ou seja: a falha da polícia foi ter permitido que o bandido saísse vivo dali, enquanto a refém estava morta. (idem, p.88)

A edição seguinte, de 14 de junho, traz um selo referente ao episódio, constituído por uma foto colérica de Sandro e os dizeres ``Inferno no 174'', para marcar as páginas relativas ao assunto. O protagonista é apresentado, portanto, como a própria encarnação do diabo.

O documentário

O aprofundamento na abordagem do episódio do ônibus 174 e, especialmente, da trajetória de vida de Sandro do Nascimento, só ocorre dois anos depois do fato. E não vem à tona pelas mãos dos telejornais ou impressos, mas pelo cinema. O diretor José Padilha4 lança, em outubro de 2002, no Rio de Janeiro, o filme documentário Ônibus 174, que traz ao grande público informações inéditas e esclarecedoras sobre o caso protagonizado por Sandro em junho de 2000.

O filme estabelece uma narrativa cronológica do fato, entreme-ada pelos depoimentos de especialistas e de pessoas ligadas ao episódio e ao protagonista Sandro do Nascimento. O documentário conta duas histórias ao mesmo tempo, a partir de imagens intercaladas do ônibus 174 e da trajetória de vida de Sandro, construindo um diálogo que transcende ambos e aponta para as causas da violência urbana em países em desenvolvimento como o Brasil. Na construção da trama, Padilha utilizou imagens do episódio gravadas pela TV Globo, TV Bandeirantes e Rede Record5 , realizou entrevistas com personagens relacionados ao fato e montou um ``mapa'' da vida de Sandro com as informações obtidas a partir do trabalho de investigação de um detetive profissional e de um advogado, que juntos reuniram 187 páginas de documentos oficiais e arquivos da polícia sobre o seqüestrador.

A abrangência dos argumentos, depoimentos e informações presentes no documentário provoca uma outra interpretação acerca do episódio, menos imediatista e superficial do que a apresentada pelos veículos de comunicação à época. O crítico de cinema Thiago Ribeiro, em artigo publicado na Internet sobre o filme, compartilha essa evidência.

A cobertura televisiva, apesar de ter se estendido por todo o tempo do seqüestro, não teve condições de ambientar o telespectador na real tragicidade do caso. A crueldade das imagens expôs a face demoníaca do pobre menino. Suas atitudes o transformaram em um ser sem alma. O povo clamava por justiça. (...)

Agora, longe deste momentâneo estado de histeria que envolveu a todos, o diretor José Padilha volta ao episódio para nos revelar que o que vimos era apenas um fragmento da história. Tínhamos uma impressão errônea, nublada pela raiva e cega pela covardia. Os depoimentos colhidos, o levantamento dos dados e a investigação efetuada nos revela que as raí-zes do mal plantado naquela tarde carioca estavam profundamente fincadas nas mazelas sociais e econômicas do país6.

Os depoimentos de personagens ligados ao caso do ônibus 174 e à vida de Sandro do Nascimento reforçam a profundidade pretendida na abordagem feita pelo documentário Ônibus 174. Entre eles, destacam-se Yvonne Bezerra de Melo, assistente social que conheceu Sandro na Praça da Candelária; Janaína Lopes Neves e Luanna Belmont, reféns do seqüestro; Luís Eduardo Soares, sociólogo; Julieta do Nascimento, tia que cuidou de Sandro após o assassinato da mãe; Dona Elza, mãe ``adotiva'' e única pessoa a comparecer ao enterro de Nascimento; Mendonça, carcereiro da 26ª Delegacia de Polícia do Rio de Janeiro, conhecida como ``o cofre'', onde Sandro chegou a ficar preso; Rodrigo Pimentel, ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (Bope), afastado da Polícia Militar por ter se colocado contra a ação policial no episódio; entre outros.

A argumentação proposta pelo filme vai de encontro ao que Manuela Penafria, da Universidade da Beira Interior, em Portugal, define sobre o papel do documentário como linguagem e gênero audiovisuais. Mais do que simplesmente ser um ``espelho do real'', o documentário promove discussões na sociedade e dá significado à realidade.

O documentário não é um mero ``espelho da realidade'', não apresenta a ``realidade tal qual'', ao combi-narem-se e interligarem-se as imagens obtidas in loco está-se a construir e a dar significado à realidade, está-se o mais das vezes àquilo que se pretende que um documentário seja, que se exclua o voyeurismo ou mero sensacionalismo a favor do questionamento e da discussão através da construção de argumentos7.

O diretor José Padilha explora essa possibilidade permitida ao gênero, de significação e entendimento da realidade empírica, distanciando o conteúdo do filme dos padrões herméticos e objetivos da cobertura jornalística e aproximando-o do viés documentarista. Esta abordagem fica clara ao longo do filme, em que a história de vida de Sandro conduz a linha narrativa da película e, de certa forma, explica a sua própria existência. O filme Ônibus 174 é, também, um produto oriundo da trajetória de vida do seqüestrador. Esse olhar diferenciado do diretor sobre o episódio, o protagonista e o contexto que os envolve, proporciona ao documentário a condição de criar significados e promover argumentos que ajudam a entender a própria realidade social brasileira.

Meu filme conta a história a partir de duas diferentes perspectivas. Eu poderia ter simplesmente contado a história cronologicamente. No entanto, decidi contá-la baseada em outro ponto de vista: o da vida do seqüestrador. E uma perspectiva explica a outra. Como eu estou disposto a entender a vida do seqüestrador, a relação desse garoto de rua com o Estado do Rio, com a polícia, com o Instituto Padre Severino [instituição para delinqüentes juvenis] e com as prisões, é possível que eu entenda quem ele é e porque ele faz e fala coisas daquela maneira particular. E isso não é tudo: também me permite entender porque existe violência no Brasil e porque a polícia não resolve esse problema8.

De acordo com o diretor, o documentário Ônibus 174 foi o primeiro a trazer as opiniões da família de Sandro do Nascimento para o conhecimento do público. Antes, nenhum veículo de comunicação o havia feito.

Para a realização do documentário Ônibus 174 foram gastos R$ 800 mil reais, pagos pelos produtores José Padilha e Marcos Prado. O material audiovisual bruto reuniu cerca de 70 horas de gravações. Da idéia inicial9 à montagem final, o filme demorou 18 meses para ficar pronto, tempo em que foram realizadas as entrevistas, pesquisas, investigações e tratamento (montagem e edição) do material audiovisual. O documentário percorreu diversos festivais de cinema em todo o mundo e ficou entre os doze filmes pré-selecionados para concorrer ao Oscar de Melhor Documentário em 2004.

A notícia na TV

Um telejornal veicula notícias, que são informações apuradas, checadas, processadas e disponibilizadas para a transmissão audiovisual. Olga Curado, no livro A notícia na TV - o dia-a-dia de quem faz telejornalismo, identifica aspectos teoricamente inerentes à notícia televisiva, que por definição

revela como determinados fatos se passaram, identifica personagens, localiza geograficamente onde
ocorreram ou ainda estão acontecendo, descreve as suas circunstâncias, e os situa, num contexto histórico para dar-lhes perspectiva e noção da sua amplitude e dos seus significados. (CURADO, 2002, p.16)

Este conceito de notícia está ligado ao da informação de caráter público10, premente de significações, entendimento e contextualização acerca dos fatos do dia-a-dia. A questão é até que ponto esse ``discurso'' pode ser realmente encontrado na prática telejornalística brasileira. A análise das principais características da cobertura do caso ônibus 174 pelo Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, é um percurso interessante para aferir tal questão, como propõe esta pesquisa. E situá-la ao lado da abordagem realizada pelo documentário Ônibus 174 é, também, uma forma de enriquecer o estudo acerca do papel da mídia e de como outras formas de linguagem audiovisuais podem contribuir para comple-mentá-la.

A escolha do Jornal Nacional (JN) e, especialmente, da cobertura do ônibus 174, não é aleatória. Ela é sustentada pelos seguintes parâmetros: 1) o JN é o veículo telejornalístico mais tradicional da televisão brasileira, e com os maiores índices de audiência; 2) o JN possui uma trajetória marcada por diversas intervenções na história nacional, exercendo um papel ativo nos rumos tomados pela sociedade; 3) as mudanças no JN, em 1996, com a substituição dos antigos apresentadores por jornalistas, apontam para o intuito de se fazer um jornalismo mais plural e menos ``governista''; 4) a cobertura do caso do ônibus 174 alcançou os maiores índices de audiência no ano 2000; 5) o caso 174 tem como protagonista um indivíduo que representa o estereótipo do marginal brasileiro. Portanto, as características da cobertura do Jornal Nacional - o mais antigo, influente e prestigiado telejornal brasileiro, sobre o fato mais repercutido em 2000, o do ônibus 174, podem trazer à tona o perfil da notícia telejornalística na emissora, indicando se ela está de acordo, ou não, com as definições teóricas que versam sobre o caráter público da notícia e o seu papel na construção de significado social.

Jornal Nacional

O Jornal Nacional estréia na televisão brasileira no dia 1º de setembro de 196911 , apresentado por Hilton Gomes e Cid Moreira. Ele traz um novo modelo de telejornalismo para o Brasil, caracterizado pela eliminação do improviso, a duração rígida do noticiário, os cuidados com cenário, entonação de voz e visual dos locutores, a qualidade das imagens e a edição das matérias. Rapidamente o JN torna-se o maior destaque da programação jornalística da TV Globo, sendo classificado por Roberto Marinho, presidente da emissora, como ``patrimônio da sociedade brasileira''.

Entretanto, a criação do JN escondia objetivos menos ``nobres'' do que o de propor uma nova forma de fazer jornalismo televisivo, como afirma Guilherme Jorge de Rezende, no livro Telejornalismo no Brasil - um perfil editorial. O intuito da TV Globo era desbancar o Repórter Esso, telejornal de grande audiência à época e que dominava o horário das 20 horas,apresentado por Gontijo Teodoro.

Os objetivos reais que motivavam a iniciativa [de criar o JN] ligavam-se a interesses políticos e mercadológicos. Além de possuir um noticiário que lhe desse prestígio, a TV Globo queria competir com o Repórter Esso, da TV Tupi. (REZENDE, 2000, p.109)

Na década de 70, a Rede Globo desenvolve-se tecnicamente e melhora as suas produções, resultando na expressão ``padrão global de qualidade'' para definir os programas da emissora. Os locutores do JN têm boa aparência e voz, o cenário é rígido e interage com os apresentadores, e há um abundante uso de videoteipes e efeitos especiais nas matérias, criando uma imagem de requinte e objetividade do telejornal e, dessa forma, ganhando credibilidade junto ao público. O apuro formal é o grande trunfo do JN. O mesmo, porém, não se pode dizer do conteúdo jornalístico. Nos seus primeiros dez anos de existência, o Jornal Nacional caracteriza-se pela manipulação de notícias e a desinformação, em larga medida derivadas da censura imposta pela ditadura aos meios de comunicação, além da formatação de uma linha editorial baseada na superficialidade das matérias, sem preocupações com aprofudamentos críticos dos fatos12 .

A riqueza plástica não encontrava compatibilidade com o trabalho jornalístico. Durante a fase de censura mais aguda, o telejornalismo, sobretudo o praticado na Globo, líder de audiência, acabou se afastando da realidade brasileira. Despolitizada, a emissora encontrava nos programas de entretenimento o atalho para se aproximar efetivamente de sua audiência. (...)

Não como reflexo da censura, a superficialidade do noticiário [o JN] explicava-se, assim, como resultado de uma diretriz editorial baseada na agilidade do estilo ``manchetado'', que se ajustava ao perfil da audiência do programa. Essa orientação continua a ser adotada até hoje pelo Jornal Nacional e noticiários de outras emissoras veiculados no horário-nobre da TV. (ibidem, pgs. 115-116)

A censura aos órgãos de informação é a ``desculpa'' para a despolitização das notícias apresentadas pelo Jornal Nacional durante o regime militar. Porém, ao fim da ditadura e o respectivo término da censura, percebe-se a continuidade das distorções informativas no JN, evidenciando os laços da emissora com o autoritarismo. Esta constatação é comprovada a partir da cobertura da campanha das Diretas-já13, em 1984, por eleições diretas para presidente.

O retorno da democracia brasileira, em 1985, não arrefece o papel político do Jornal Nacional e da Rede Globo de Televisão. Muitos exemplos dão conta dessa influência da emissora nos rumos tomados pela sociedade brasileira. Em 1989, nas primeiras eleições diretas para Presidente da República, o Jornal Nacional realiza uma cobertura desproporcional e favorável ao então candidato da direita Fernando Collor de Mello, culminando com uma edição tendenciosa do último debate entre Luís Inácio Lula da Silva, o candidato da ``esquerda'', e Collor, dias antes da votação final para presidente14 . Em 1994, a cobertura das eleições presidenciais novamente suscita discussões sobre o posicionamento da emissora em relação aos candidatos. Nos meses iniciais da campanha, o JN retrata mais favoravelmente a candidatura de Fernando Henrique Cardoso, além de dar-lhe mais tempo no vídeo. Em razão de uma legislação que exigia imparcialidade na cobertura das eleições, o JN passa a equilibrar o tratamento das notícias referentes aos candidatos.

Esses exemplos servem para demonstrar, segundo afirma Mau-ro Porto em artigo, o papel político do Jornal Nacional, cuja característica principal é ``o desenvolvimento de uma cobertura parcial que tende a favorecer as fontes e posicionamentos do governo federal''15.

Um novo JN?

No dia 1º de abril de 1996, os apresentadores do Jornal Nacional, Cid Moreira e Sérgio Chapelin, são substituídos por dois jornalistas da Globo, William Bonner e Lilian Witte Fibe. A saída dos âncoras reflete, na verdade, um processo de reformulação do telejornalismo da emissora, que já havia começado em julho de 1995, quando Evandro Carlos de Andrade, à época diretor de redação do jornal O Globo, assume o posto de diretor de jornalismo da TV Globo, no lugar de Alberico Souza Cruz.

As explicações para as mudanças no telejornal de maior prestígio do país são variadas. Porto afirma que ``a Rede Globo escolheu jornalistas com o objetivo de mudar a imagem da emissora em um período de declínio crescente dos seus índices de audiência''16. Esta queda estaria ligada à imagem ``governista'' da emissora, solidificada a partir dos exemplos presenciados nas últimas décadas de cobertura do telejornal. Para Porto, ``a substituição de Cid Moreira seria parte de uma nova estratégia política da Globo que teria como objetivo o desenvolvimento de um jornalismo mais ativo e `independente', buscando assim construir uma nova imagem para a emissora''17.

Além do declínio na audiência, outros fatores podem ter contribuído para a substituição de Cid Moreira no Jornal Nacional e a reformulação do telejornalismo na Rede Globo: a introdução de apresentadores que se aproximam dos âncoras norte-americanos, resultando num processo de modernização e adoção das práticas jornalísticas dos Estados Unidos; e o acirramento da competição pela audiência, a partir do crescimento do telejornalismo do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), que, em 1988, coloca o jornalista Boris Casoy à frente do noticiário TJ Brasil, obtendo ótimos índices de audiência e credibilidade18.

A partir da análise de edições do Jornal Nacional, coletadas em épocas diferentes, Porto relata as conseqüências que essas mudanças tiveram no conteúdo do telejornal. Ele explica que o

``novo'' Jornal Nacional se caracteriza por um papel mais ativo e interpretativo dos apresentadores e por uma cobertura mais plural e menos baseada no governo federal, apesar de que os resultados sobre ``pluralidade'' não são estatisticamente significantes. A análise também demonstrou uma tendência no sentido de um tipo de jornalismo com menos cobertura de temas políticos e mais ênfase em criminalidade, violência e variedades19.

Apesar do declínio da audiência constatado nas décadas de 80 e 90, o Jornal Nacional é, ainda hoje, o telejornal com maior público no país20 . Ele é apresentado, atualmente, por Fátima Bernardes e William Bonner. Foram eles que, na noite de 12 de junho de 2000, trouxeram ao público as notícias do trágico seqüestro de um ônibus no Rio de Janeiro, que resultou na morte de duas pessoas. O caso do ônibus 174 era o destaque do mais antigo telejornal do país, e também o mais influente, trazendo como protagonista um sobrevivente do massacre da Candelária, negro, pobre, drogado e armado. E, ironicamente, em pleno horário nobre da televisão.

Análise do filme documentário Ônibus 174

``Isso aqui não é filme não.''

Sandro do Nascimento, durante o seqüestro do ônibus 174

O filme documentário Ônibus 174, de José Padilha, lançado em outubro de 2002, é freqüentemente associado por articulistas e cronistas diversos à sensação de ``um soco na boca do estômago'' - gíria do senso comum referente a notícias ou informações tão impactantes quanto a própria agressão. E essa ``força'' do filme reside, particularmente, na riqueza informativa acerca do caso do ônibus 174 e, também, na contextualização da vida pregressa do protagonista da tragédia, Sandro do Nascimento. Some-se a esses fatores a distância entre a cobertura realizada pela mídia em geral e a abordagem do filme Ônibus 174, o que contribuiu para dar um ``susto'' no espectador que, ao se ver aprofundar no caso, tem a s ensação de presenciar o que nem sequer imaginava ter existido. O jornalista e professor de telejornalismo Antônio Cândido afirma em artigo que o filme Ônibus 174 ``procura fazer o que a TV jamais sequer tentou: explicar ou contextualizar todas aquelas imagens tão violentas e chocantes que todos sempre adoramos assistir e que depois tentamos rapidamente esquecer''21.

O profundo trabalho investigativo, a realização de entrevistas com diversos personagens do episódio do ônibus 174, a apresentação de documentos e vídeos sobre a vida de Sandro do Nascimento, e a revelação de ``verdades'' até então inéditas para o grande público, impõem ao documentário Ônibus 174, numa primeira análise rápida, a ``roupagem'' de meio audiovisual jornalístico, especificamente a reportagem. O jornalista e professor Eugênio Bucci, em artigo publicado originalmente no Jornal do Brasil e depois disponibilizado na Internet no site do Observatório da Imprensa, comenta o filme como se este fosse um produto genuinamente jornalístico.

O documentário Ônibus 174, que entrou recentemente em circuito comercial, já foi elogiado por muitos motivos diferentes. E justos. Destaco, entre tantos outros, os méritos jornalísticos do longa-metragem (mais de duas horas!) do diretor José Padilha. Não são méritos jornalísticos quaisquer. São méritos que alcançam uma dimensão estética tão grandiosa que chega a ser assustadora. (...)

Ônibus 174 acerta no particular (no episódio que narra) e no geral: é uma reportagem devastadora e incontestável22.

Entretanto, essa associação entre jornalismo e documentarismo, explicitada na fala de Bucci, é apenas aparente. Ambos os gêneros possuem características próprias e que os fazem diferentes entre si. Manuela Penafria, em seu livro O filme documentário - História, Identidade, Tecnologia, pontua essa questão de forma bastante objetiva, buscando separar os gêneros conforme suas especificidades.

O documentário não é uma reportagem. Se ambos os gêneros se aproximam pela possibilidade de tratarem o mesmo material, nomeadamente a vida das pessoas e os acontecimentos do mundo, afastam-se, quer no tratamento desse material, quer no modo como procedem na escolha das temáticas. Também o jornalista e o documentarista se pautam por princípios muito diferenciados. (PENAFRIA, 1999, p.22)

O presente capítulo pretende analisar as principais características do filme documentário Ônibus 174, na sua abordagem sobre o episódio que vitimou Geisa Firmo Gonçalves e Sandro do Nascimento. Neste estudo, a referida obra cinematográfica será considerada como pertencente, exclusivamente, ao gênero documentário, sendo analisada de acordo com os parâmetros e conceitos relativos à tal produção. O primeiro passo, portanto, consiste em estabelecer uma definição do que é o filme documentário e quais as suas diferenças em relação à prática jornalística, para que, em um segundo momento, possa ser efetuada a análise das principais características do Ônibus 174 na abordagem do fato ocorrido em junho de 2000.

O que é documentário?

Definir um conceito objetivo e, ao mesmo tempo, incontestável sobre o filme documentário é uma tarefa difícil, devido à multiplicidade de enfoques que se pode lançar mão, como seus objetivos, modos de produção, características narrativas, relações com a história e a realidade, especificidades estéticas, entre outros. Porém, uma definição pode ser construída a partir dessa diversidade de ``olhares'' sobre o que vem a ser o filme documentário, reunindo todas as suas características para lhe categorizar como tal.

Na década de 20 do século passado, os diretores Robert Flaherty (1884-1951) e Dziga Vertov (1895-1954) contribuíram para dar um primeiro posicionamento ao documentário. Os filmes Nanuk, o Esquimó (1922), dirigido por Flaherty, e O Homem da Câmara (1929), de Vertov23 , ``marcam o início da história do cinema documental e abrem caminho para a afirmação da identidade do filme documentário e do documentarista'' (idem, p.39). Os dois autores e seus respectivos filmes trazem as primeiras características do gênero, como as imagens recolhidas in loco (filmadas no local do fato, acontecimento ou assunto abordado), a retratação de ``atores'' naturais (não-dirigidos) e a filmagem em locais ambientes, sem cenários.

Com eles [Flaherty, Vertov e seus filmes], ficou definido que, no documentário, é absolutamente essencial que as imagens do filme digam respeito ao que tem existência fora dele. Esta é a principal e primeira característica do documentário. A segunda, já em estúdio, é a organização das imagens obtidas in loco (este material poderá eventualmente ser trabalhado com outro, por exemplo, legendas, sons, etc) segundo uma determinada forma; o resultado final dessa forma é um filme. (ibidem, p. 39)

Mas é com o escocês John Grierson24 (1898-1972) que o filme documentário encontra sua identidade, afirmando-se e desenvolven-do-se no cenário cinematográfico. É ele quem utiliza, pela primeira vez, o termo documentário25 para designar a produção fílmica condicionada por imagens in loco.

No artigo First Principles of Documentary, datado entre 1932 e 1934, Grierson estabelece características que distinguem o documentário do restante da produção fílmica. Ele destaca o gênero como uma nova alternativa cinematográfica, superior aos filmes de ficção hollywoodianos e aos ``filmes de fato''26 . O documentário está acima das películas ficcionais por causa da sua estreita vinculação com a realidade, revelando histórias e personagens reais, enquanto os filmes ``de estúdio'' lidam com a fantasia e a criação de mundos imaginários. A superioridade sobre os ``filmes de fato'', por sua vez, advém do tratamento dado ao material recolhido in loco, que é utilizado de maneira criativa e recombinada, promovendo interpretações e significações acerca do mundo.

Nos ``filmes de factos'' (``factual films'') impera a mera descrição e exposição de factos. Pelo contrário, no documentário, por ele [Grierson] definido como o ``tratamento criativo da realidade'', há combinações, recombinações e formas criativas de trabalhar o material recolhido in loco27.

Grierson define também a atitude do documentarista, que não deve se limitar à reprodução da realidade a partir das imagens colhidas in loco, mas sim intervir de forma criativa no trabalho e na análise do material filmado, buscando criar interpretações sobre o tema abordado. Este papel de ``produtor de significados'' acaba por revelar o ponto de vista do documentarista a respeito do assunto em questão.

Outro aspecto analisado por Grierson concerne à temática do filme documentário. Se Flaherty retrata as atividades cotidianas do povo inuit em Nanuk, o esquimó, Grierson distancia-se dessa abordagem ``exótica'' e propõe a aproximação com o mundo que está à sua volta, em meio aos problemas econômicos e sociais como desemprego, pobreza, exploração da mão-de-obra e outros. Ele acredita que o documentário tem um potencial educacional sobre as ``massas'', podendo ser utilizado para superar problemas econômicos, sociais ou políticos através da conscientização das pessoas a respeito de suas responsabilidades como cidadãos.

Portanto, a superação do gênero documentário em relação aos demais filmes, segundo Grierson, baseia-se na construção de significados e interpretações acerca da realidade concreta, o que é passível de ser atingido a partir dos princípios básicos do documentarismo: a obrigatoriedade de se fazer um registro in loco da vida de pessoas e dos acontecimentos; de apresentar os temas a partir de um determinado ponto de vista; e de tratar criativamente o material recolhido in loco. Penafria acentua que ``essa superioridade assentou,por um lado, no cumprimento de um objectivo último de utilidade social e, por outro lado, na relação próxima e privilegiada com a vida das pessoas e com os acontecimentos do mundo'' (PENAFRIA, 1999, p.75).

O autor Brian Winston, no livro Claiming the real, de 1995, aponta críticas à escola griersoniana e indica novos rumos para o documentário. Ele afirma que, por causa da escola de Grierson, o filme documentário encontra-se associado à função de ter uma responsabilidade social, trazendo temas sérios e pesados, no mais das vezes relacionados a injustiças sociais. Esta herança contribuiu para que o gênero fosse considerado ``maçante e aborrecido'', sendo marginalizado da produção cinematográfica ao longo dos anos, bem longe da superioridade pretendida por Grierson nos anos 30 (idem, p.75).

Winston defende a idéia de um ``documentário pós-griersonia-no'', cuja principal característica é a interação subjetiva com o mundo, podendo-se lançar mão de uma vertente mais satírica, irreverente ou cômica na abordagem dos temas. Em suma: a produção de filmes que possam ser mais atraentes e instigantes para o público, ao invés de tediosos e maçantes. O documentário Roger and me28 (1989), de Michael Moore, é destacado por Winston como uma alternativa à herança griersoniana e, portanto, um exemplo a ser seguido.

As características que configuram a identidade do gênero documentário, citadas até aqui - produção de significados, registro de imagens in loco, proximidade com o real, o ponto de vista e a criatividade do documentarista, a função social, entre outras, são complementadas pelos elementos do cinema utilizados nos documentários. Dentre eles, destacam-se a escolha dos planos, a preocupação estética com os enquadramentos, a iluminação, a montagem, as fases de produção e pós-produção29 , a utilização de músicas, legendas, som ambiente, efeitos visuais, sonoros e especiais.

A definição do que é o documentário, portanto, reside na somatória de todas as suas características. Vale ressaltar que aquelas que lhe conformam a identidade, citadas aqui, são as mais relevantes e, por isso, devem ser exploradas.

Diferenças entre documentário e reportagem

Muitas vezes, o documentário é confundido com a reportagem. Afinal, ambos procuram tratar seus temas de forma aprofundada, apoiando-se na realidade imediata e no registro de imagens, falas, gestos, diálogos e expressões. Essa ``interseção'' entre ambos gêneros contribui para que ocorram distorções na classificação dos documentários. Não foram poucas as vezes em que Ônibus 174, por exemplo, foi exaltado pelos seus ``méritos jornalísticos''.

Jean-Jacques Jespers, na sua obra Jornalismo televisivo, desta-ca que o documentário ``fala na primeira pessoa, confessa a sua subjetividade, enquanto a grande-reportagem ou o inquérito escondem esta subjetividade sob uma pretensão à universalidade'' (JESPERS, 1998, p.175). O documentário resulta de um olhar pessoal sobre determinado fato, acontecimento, assunto ou tema, baseado no ponto de vista do documentarista. É uma obra de autor, com premissas e estética particulares. A reportagem, por sua vez, busca a formulação de um``retrato completo'' sobre determinado fato, valendo-se de procedimentos como a apresentação de diferentes pontos de vista e a utilização criteriosa das citações para criar o status de imparcialidade. Como bem disse Jespers, qualquer opinião dos ``media sobre o real é, por definição, parcial. O documentário de criação reivindica, de algum modo, esta limitação'' (idem, p.175).

Outra diferença entre os gêneros diz respeito à utilização das imagens e da voz em off30 . Na reportagem televisiva, as imagens têm um papel ilustrativo, confirmando tudo o que é dito pelo jornalista ou pelos entrevistados. Elas também são sempre sobrepostas pela voz em off que, por sua vez, procura explicar as imagens apresentadas no ecrã. No documentário, o off não é um elemento obrigatório e, por isso, as imagens ganham maior importância, pois não são utilizadas apenas para ilustrar textos ou falas - elas têm significado em si mesmas. Como explica Penafria,

ao contrário do que habitualmente se vê na televisão, não é obrigatório que um texto em off faça parte de um documentário. Na reportagem, essa obrigatoriedade deriva da necessidade de se explicarem ou descreverem as imagens que se vêem. Pelo contrário, no documentário a imagem não é utilizada com fins meramente ilustrativos ou para confirmação do que é dito; a exploração do seu lado conotativo é o que de mais importante o documentário imprime nas imagens que utiliza. São elas o elemento essencial do documentário e que se sobrepõem ao que possa ser dito. (PENAFRIA, 1999. p.23)

A temática é outro ponto destoante entre os gêneros jornalístico e documentário. A escolha dos assuntos a serem abordados nas reportagens televisivas é realizada por meio de parâmetros jornalísticos conhecidos como critérios de noticiabilidade. É a partir deles que determinados acontecimentos ou fatos são classificados pelos jornalistas como noticiáveis ou não. Em artigo, Marilene Mattos cita um trecho da obra Teorias da Comunicação, de Mauro Wolf, para explicar o que é noticiabilidade e como os critérios atuam para determinar essa característica aos fatos do cotidiano.

``(...) a noticiabilidade corresponde ao conjunto de critérios, operações e instrumentos com os quais os órgãos de informação enfrentam a tarefa de escolher, quotidianamente, de entre um número imprevisível e indefinido de factos, uma quantidade finita e tendencialmente estável de notícias''31.

Há, portanto, regras para a escolha do conteúdo que será exibido em um telejornal. No caso do documentário, não existem limitações nesse sentido, podendo o documentarista escolher o assunto ou tema que bem entender. ``As temáticas abordadas podem respeitar a qualquer aspecto da vida das pessoas e dos acontecimentos do mundo (...); ou seja, aqui não é necessário que chegue o verão para se falar sobre incêndios'' (PENAFRIA, 1999, p.24). O próprio caso do ônibus 174 revela essa diferença. No calor dos acontecimentos, os telejornais produziram inúmeras reportagens sobre o assunto, noticiando-o exaustivamente. Passados os dias, o episódio perdeu seu ``valor de notícia'' e, por isso, não se produziu mais reportagens a respeito. O documentário Ônibus 174, lançado dois anos depois do acontecimento, retomou o tema sem que houvesse atrativos especiais ou novidades no caso. A volta ao episódio foi possível pela liberdade temática proporcionada ao gênero documentário, uma vez que o ``valor'' do caso do ônibus 174 já era nulo em termos jornalísticos. Como afirma o diretor José Padilha, a intenção do filme era contar a história de um menino de rua que, protagonista de um seqüestro transmitido via satélite, trazia consigo as conseqüências da sua relação com a opressão do Estado. ``Quis fazer o filme por acreditar que a história do Sandro era importante, por pensar que ela escancara a forma como o Estado brasileiro lida com os meninos de rua e os delinqüentes juvenis, um processo que, a meu ver, gera violência''32.

A idéia da ``polifonia de vozes'' também é operacionalizada de modos distintos no documentário e no telejornalismo. No primeiro, o emaranhado das falas dos protagonistas, personagens e narradores define qual é o ponto de vista do documentarista a respeito do assunto abordado. No telejornal, essas vozes se misturam sem indicar uma fonte referencial ou uma linha de pensamento que perpasse todas elas, terminando assim por ``esvaziar o discurso'' e provocar a sensação de neutralidade no telespectador. No livro A televisão levada a sério, Arlindo Machado afirma que ``ao embaralhar no fluxo televisual os materiais originários de fontes diversas, o telejornal coloca em choque os diferentes enunciados e os relativiza ou os anula no mesmo momento em que lhes dá publicidade'' (MACHADO, 2003, p.111). Por essas razões, o modelo polifônico dos telejornais recebe acusações de mascarar o fato de que todo relato emana de alguém (indivíduo, grupo ou empresa), não sendo o resultado de um consenso coletivo mas, pelo contrário, de uma postura de interpretação e interesse frente aos acontecimentos noticiados (idem, p.109).

Já no documentário, essa polifonia opera de modo a destacar o ponto de vista do autor. Todas as falas presentes em um filme - diversas, múltiplas e variadas - carregam consigo um traço comum: a submissão ao posicionamento do documentarista sobre o assunto abordado. Em artigo, Cristina Teixeira Vieira de Melo reforça que no documentário,

a costura de vozes caminha para que, ao final, o espectador chegue a um entendimento claro de qual é o posicionamento do documentarista sobre o tema retratado. Tudo é trabalhado para assinalar o ponto de vista do diretor. A síntese global revela-se no caráter autoral do gênero, traduzido pela relação estabelecida entre o ponto de vista e a maneira como a tese defendida pelo documentarista se materializa no filme33 .

Estabelecidas as diferenças entre documentarismo e telejornalismo (especificamente a reportagem), e definidas as características intrínsecas ao filme documentário, o próximo passo consiste em situar a obra cinematográfica Ônibus 174, de José Padilha, dentro do contexto do cinema brasileiro.

Ônibus 174 no cinema nacional

O marginalizado, em especial o habitante das favelas, sempre teve um papel de destaque no cinema nacional. O pontapé inicial para esta relação teria sido dado por Humberto Mauro que, em 1935, dirige o filme Favela dos meus amores. Na película, a favela é retratada de forma romântica, como o próprio título deixa entrever.

Na década de 60, o marginalizado foi o principal representante das aspirações cinematográficas brasileiras, como afirma Jean-Claude Bernardet no livro Brasil em tempo de cinema. À época, procurava-se mostrar na tela os problemas do povo, de forma paternalista, e com o objetivo de controle social ``das massas''. O marginalizado das favelas tornava-se então o ``grande personagem'', contribuindo para desviar a atenção das temáticas relativas às lutas operárias, assunto temido pela classe média.

Um povo sem operários, uma burguesia sem burgueses industriais, uma classe média à cata de raízes e que quer representar na tela seu marginalismo, mas sem se colocar problemas a si própria e sem revelar sua má consciência: isso dá um cinema cujo herói principal será o lumpen-proletariado. A favela será a melhor frente de batalha: o favelado é um marginal social, é um pária, acusa a sociedade vigente através de sua indigência, e portanto não obriga a encarar abertamente problemas de lutas operárias. (BERNAR-DET, 1978, p.38)

Esses ``filmes de favela'' promoveram a elevação do número de produções cinematográficas nacionais. São da época Cinco vezes favela (1962), constituído por cinco curtas-metragens de diferentes diretores; O assalto ao trem pagador (1962), de Roberto Farias, em que o favelado Tião Medonho rouba e depois enfrenta a polícia; Os mendigos (1962), de Flávio Migliaccio; A grande feira (1962), de Roberto Pires; Gimba (1963), de Flávio Rangel; entre outros. Um concurso de filmes amadores, realizado em 1965, demonstrara que a temática preferida dos diretores iniciantes ambi-entava-se nas favelas34.

Em 1964, o advento da ditadura militar e a respectiva censura ao cinema nacional contribuem para que o tema das favelas seja deixado de lado, em prol da abordagem de assuntos menos censuráveis e mais alienáveis. Este período dura até meados da década de 90, quando ocorre a retomada do cinema nacional.

O filme Como nascem os anjos (1996), de Murilo Salles, volta a enfocar a questão da favela e dos marginalizados, incluindo as crianças como vítimas da exclusão social proporcionada pela sociedade e o Estado Brasileiro. A obra ficcional conta a história do seqüestro de uma família americana por dois menores de idade, revelando a favela como espaço violento e marginal. Segundo Márcio Rezende Jr., em reportagem publicada na Internet, a partir dos anos 90 a favela passa a ser retratada pelo cinema como algo ``descolado'' da sociedade convencional, com modos de vida, leis e códigos distintos.

A favela é assumidamente um espaço à parte da cidade, com seus próprios códigos e leis. Tanto documentários quanto filmes de ficção procuram mostrar a ausência do Estado nesses lugares, assim como a existência de uma realidade peculiar, impensável para um morador do asfalto afeito às manchetes de jornal35.

No campo do cinema documentário, de particular interesse à presente pesquisa, algumas produções evidenciam esse caráter ``diferenciado'' das favelas e de seus personagens. Santo Forte (1997), de Eduardo Coutinho, mostra as crenças e experiências religiosas dos habitantes da favela Vila Parque da Cidade, situada na Gávea, zona sul do Rio de Janeiro. O mesmo diretor realiza, dois anos depois, o filme Babilônia 2000, que apresenta as opiniões e reações dos moradores das favelas Chapéu Mangueira e Babilônia, localizadas na orla de Copacabana, zona sul carioca, sobre a virada de ano e as suas expectativas para o futuro. Por sua vez, o documentário Notícias de uma guerra particular (1999), de João Moreira Salles, procura analisar as causas da violência no Rio de Janeiro, por meio da relação entre a corrupção dos órgãos públicos e o narcotráfico.

Em 2002, José Padilha lança o documentário Ônibus 174, que faz uma abordagem analítica da exclusão social e da violência, bem parecida com a realizada em Notícias de uma guerra particular36. Embora trate de um fato ocorrido fora dos limites das favelas - o caso do ônibus 174, o filme recorre sempre a estes locais e à sua marginalidade intrínseca para tentar explicar as razões pelas quais Sandro do Nascimento protagonizaria a tragédia ocorrida em junho de 2000.

Principais características de Ônibus 174

Um dos objetivos desta pesquisa é definir as principais características do filme documentário Ônibus 174 na abordagem do caso do ônibus 174. Para a tarefa, procedeu-se à leitura de referenciais teóricos sobre o assunto, à análise do próprio filme, e a entrevistas com o diretor José Padilha e o produtor Marcos Prado. A partir daí, estabeleceu-se os seguintes tópicos para a apresentação das características do filme: 1) Ônibus 174 segundo Nichols; 2) O ponto de vista de Padilha; 3) Registro in loco; 4) As vozes do Ônibus 174; 5) A estrutura narrativa; 6) O legado de Grierson.

Ônibus 174 segundo Nichols

Os elementos da narrativa cinematográfica são empregados de maneiras distintas na realização dos documentários. A voz em off, a presença do diretor em cena, a interação com os entrevistados, a observação passiva dos acontecimentos, a utilização das imagens e do som ambiente, dentre outros aspectos, somam-se de formas variadas para a composição do documentário, de acordo com as pretensões do diretor.

Em sua obra, Penafria cita o livro Representing reality: issues and concepts in documentary, de Bill Nichols (1991), que define quatro modalidades de representação possíveis no documentário, de acordo com a utilização dos elementos narrativos. Esta categorização é um referencial para os estudiosos do documentarismo, sendo bastante empregada nos meios teóricos. Ela abrange quatro conceitos: Documentário Expositivo, Documentário de Observação, Documentário Interativo e Documentário Reflexivo.

A modalidade expositiva consiste em apresentar uma argumentação acerca do mundo histórico, por meio da voz em off. Segundo Penafria, ``compete à locução fornecer uma explicação para as imagens que se vêem no ecrã. Essas imagens são a evidência irrefutável da argumentação aduzida pela voz do narrador (...)'' (PENAFRIA, 1999, p.59). O texto é o elemento narrativo dominante, ao qual as imagens estão subordinadas e a lhe servir de ilustração. O documentário expositivo tem um efeito persuasivo no espectador, sendo utilizado em filmes institucionais e de propaganda37.

O documentário de observação é caracterizado pela não intervenção do autor nos acontecimentos que está a filmar. Não há comentários, entrevistas, legendas ou reconstruções neste filme. O som é captado diretamente do ambiente, com as pessoas falando entre si e não para a câmara. ``A existência do som sincrônico faz com que o discurso esteja estruturado em imagens definidas historicamente no tempo e no espaço. Cada cena situa o espectador dentro da especificidade daquele lugar e daquele determinado momento'' (idem, p.12). Atividades e costumes são registrados de maneira direta, revelando a experiência vivida e o cotidiano do que se filmou.

O documentário interativo, por sua vez, põe em jogo a presença do realizador e dos atores sociais, provocando a interação entre eles. Este tipo de filme é sustentado pelas entrevistas, que podem ser apresentadas ao espectador de formas variadas, como diálogos, confissões, monólogos, testemunhos, interrogatórios e outros. A voz em off, quando utilizada, nunca é sobreposta à dos entrevistados. A modalidade interativa é aquela em ``que deve ser construída e apresentada a partir da interacção do autor com as pessoas que participam no filme e, finalmente, que deve refletir o ponto de vista do autor sobre o que se passa no filme'' (PENAFRIA, 1999, p.65).

O último tipo de filme documentário classificado por Nichols - o reflexivo, procura expor o seu próprio processo de construção. O interesse não está no mundo histórico, mas na forma como o documentário se apresenta. Segundo Penafria, ``ser reflexivo é estruturar um produto de modo que produtor, processo e produto sejam um todo coerente'' (idem, p.69).

O filme Ônibus 174, de José Padilha, caracteriza-se como um documentário essencialmente interativo, pois está fundamentado na realização de entrevistas para contar a história do caso do ônibus 174 e do seu protagonista, Sandro do Nascimento, juntamente com as imagens de arquivo do episódio. Não há voz em off (somente a leitura de documentos prisionais de Sandro) e as falas dos entrevistados praticamente constróem todo o fio narrativo, sendo umas encadeadas às outras.

José Padilha entrevistou pessoalmente todos os depoentes do filme Ônibus 174. Embora ele não apareça fisicamente no ecrã, sua presença (e da equipe de filmagem) pode ser sentida através dos testemunhos, que são fornecidos pelos entrevistados em meio a olhares desviantes do centro da câmara, encontrando o diretor por detrás dela e evitando assim o contato direto com o espectador. Certos depoimentos, como os do carcereiro Mendonça e da ex-garota de rua Claudete Beltrana, ocorrem em meio à ação de ambos personagens, que andam e explicam à câmara, sem encará-la diretamente, como era a vida de Sandro do Nascimento na cadeia da delegacia e na Praça da Candelária, respectivamente. Neste caso, a interação entre autor e entrevistados mostra-se ainda mais evidente, quase como um diálogo a ser testemunhado pelos espectadores no ato da projeção do filme.

O papel do documentarista, além de interagir com as pessoas participantes da história, também é o de preparar previamente o que será perguntado a cada um deles. Penafria afirma que

para a produção de um filme interactivo, o que o documentarista mais explora são as entrevistas. Estas implicam alguma preparação anterior e, consequentemente, a delimitação de determinada questão. Tal motivo obriga ou à tomada de posição em relação ao tema ou à exploração e procura de respostas para questões que o documentarista entende importantes. (ibidem, p.67)

As entrevistas de Ônibus 174 revelam essa preparação prévia, sustentada pelas imagens de arquivo do episódio, e o trabalho de investigação de um detetive profissional e um advogado, que juntos reuniram 187 páginas de documentos oficiais e fichas da polícia sobre Sandro do Nascimento. De cada depoente é retirado o máximo de informações possíveis, respeitando sua participação no caso e seguindo o ponto de vista traçado pelo diretor para o filme. Rogerinho, colega de rua de Sandro, fala das suas atividades e contravenções diárias na cidade carioca; Coelho revela fatos da época em que Sandro jogava capoeira com ele; as reféns Luanna Belmont, Luciana Carvalho e Janaína Lopes Neves contam as minúcias do seqüestro e tentam construir o perfil psicológico de Sandro naquele momento, entre outros. Cada depoimento tem o seu objetivo e lugar dentro do filme, sendo explorado dentro desse campo de abrangência. O próprio diretor José Padilha, em entrevista à Gazeta Mercantil, confirma esse procedimento: ``Quando conduz a entrevista, o documentarista sabe o que precisa pegar, sabe os pontos que precisam ser esclarecidos. (...) Eu entrevistei Luana [uma das reféns] por seis horas - isso é tempo suficiente para buscar todas as possibilidades''38 .

O ponto de vista de Padilha

O filme documentário tem um forte caráter autoral e reivindica para si certa parcialidade na análise dos fatos e acontecimentos que cercam o mundo. Citado por Melo, o diretor João Moreira Salles, de Notícias de uma guerra particular, afirma que a autoria é uma ``construção singular da realidade'' e o contato com o documentário presume a existência de ``não apenas fatos, mas o acesso a outra maneira de ver''39.

Penafria ainda destaca que o ``olhar'' do documentarista está presente em todas as escolhas realizadas ao longo do filme, oferecendo uma obra pessoal e interpretativa acerca do assunto abordado.

O documentarista organiza diversos elementos: entrevistas, som ambiente, legendas, música, imagens filmadas in loco (incluindo as imagens de arquivo), reconstruções etc. A organização implica variadas escolhas: pessoas, ângulos, sons, palavras, justaposições de imagens, etc. (...) Cada seleção que faz é a expressão do seu ponto de vista, quer esteja ou não disso consciente. (PENAFRIA, 1999, p.108)

Em Ônibus 174, esse ponto de vista está expresso na abordagem do protagonista Sandro do Nascimento. Ao invés de denotá-lo por ``diabo'', como a mídia fez enquanto o caso rendeu notícias, o filme procura retratar o seqüestrador de forma mais humana, contextualizando sua vida pregressa, os principais acontecimentos da sua trajetória, as tentativas de mudança, as amizades, a família, o comportamento e outros aspectos. Algumas passagens do filme evidenciam essa intenção: a projeção de uma foto da família de Sandro, com ele ainda criança, carregado no colo, perto da mãe e dos tios; o depoimento de Claudete Beltrana, colega de rua de Sandro, no qual ela relembra o momento em que os moradores de rua da Candelária se reuniam para comer batatas fritas e sanduíches comprados numa rede de fast food; o testemunho da mãe adotiva Elza, que cedeu um quarto de sua casa para Sandro morar, ante a vontade deste em mudar de vida e sair da criminalidade; o vídeo de Sandro jogando capoeira, ainda na adolescência; e a fala sintomática da refém Luanna Belmont, em que ela rememora o que disse a Sandro pouco antes dele sair do ônibus 174: ``Você sabe qual a maior vítima desse episódio? Você.''

A partir desse ``olhar'' sobre o protagonista do caso do ônibus 174, José Padilha utiliza os episódios ocorridos na vida do seqüestrador para expandir seu ponto de vista, no sentido de criticar as instituições públicas, a relação entre Estado e marginalizados, o preconceito, a exclusão social, a falta de oportunidades para os mais pobres, entre outros pontos. Alguns trechos do filme revelam essa intenção: o carcereiro Mendonça mostra as instalações subumanas do chamado ``cofre'', cadeia da 26ª Delegacia de Polícia do Rio de Janeiro, onde Sandro chegou a ficar preso; o testemunho de Claudete Beltrana, colega de rua de Nascimento, em que ela conta a prática corriqueira de pessoas jogarem paralelepípedos de cimento, durante a noite, na cabeça dos moradores de rua da Praça da Candelária, causando-lhes traumatismo e morte; o depoimento da assistente social Yvonne Bezerra, em que ela diz ter sido procurada por Sandro pouco antes do episódio do ônibus 174, e que ele lhe revelara a dificuldade de um analfabeto, pobre e marginalizado arrumar emprego; e a seqüência que retoma o massacre da Candelária, ocorrido em 23 de julho de 1993, do qual Sandro acabou escapando, embora tenha presenciado a morte de seis companheiros.

José Padilha, em debate realizado em janeiro de 2003, publicado na revista Forum on-line - debate sobre justiça e cidadania, expõe suas motivações para a realização do filme:

Minha idéia era fazer um filme sobre menino de rua, e a forma pela qual o Estado, ao tratá-lo de manei-ra brutal - quer seja pela polícia na rua, quer seja quando ele é preso em instituições, como o Instituto Padre Severino, ou quando, maior de idade, é preso em cadei-as, como a 26ª DP, que hoje está desativada - explica em grande parte o comportamento que vimos pela televisão no dia do seqüestro40

A ``idéia'' expressa acima já é, em si, o ponto de vista adotado na realização de Ônibus 174. O diretor trabalha para que o documentário carregue consigo as marcas desse ``olhar'', seja na narrativa, no conteúdo, na forma ou na abordagem do filme. O depoimento de Luanna Belmont sobre Sandro do Nascimento, já no final de Ônibus 174, vai de encontro ao ponto de vista citado. Ela se pergunta o que teria acontecido na vida de Sandro para que ele acabasse ali, dentro de um ônibus, drogado e armado, fazendo reféns e sendo o protagonista de um seqüestro. As respostas a esta questão delimitam o trajeto seguido por Padilha ao longo do filme, configurando-lhe o ponto de vista.

Registro in loco

O filme documentário necessita de sons e imagens para existir e, dessa forma, tornar-se um produto cultural. Daí a importância de registrar o fato que vai ser abordado no filme, por meio de imagens, sons, enquadramentos, planos e outros. Este registro in loco é colocado por Penafria como uma das características fundamentais que compõe a identidade do filme documentário.

O impulso de registar o mundo é essencial para o documentário e, mais concretamente, para o documentarista. A câmara de filmar sai do estúdio, vai de encontro ao mundo. As imagens, o principal material do filme, são recolhidas in loco, os actores são as próprias pessoas, sendo, portanto, actores naturais, e o cenário é o próprio meio ambiente em que vivem. (PENAFRIA, 1999, p.39)

A realização de Ônibus 174 envolve uma situação curiosa, mas recorrente na produção de documentários: a utilização de imagens de arquivo. No dia 12 de junho de 2000, data da tragédia protagonizada por Sandro do Nascimento, José Padilha estava em uma academia de musculação e, pela TV, acompanhava o desenrolar do episódio. ``Eu fiquei na academia assistindo a transmissão porque moro no Jardim Botânico, perto do local em que o seqüestro ocorreu, e ouvi que a avenida estava fechada''41. Àquela altura, o diretor não cogitava fazer um filme sobre o caso e, portanto, não havia motivos para mandar uma equipe de filmagem ao local, de modo a obter imagens e sons do acontecimento. Seis meses depois, em janeiro de 2001, após assistir no Festival de Sundance ao filme Um dia em setembro, cujo tema era o seqüestro de atletas israelenses nas Olimpíadas de Munique, José Padilha teve a idéia de fazer o documentário sobre o caso do ônibus 174. Só não dispunha das imagens e sons referentes ao fato. Porém, o episódio havia sido fartamente registrado pelas câmaras de televisão, totalizando mais de 24 horas de material filmado, em um evento que durara apenas cinco horas. Padilha utilizou parte dessas imagens de arquivo, feitas in loco, para realizar o seu filme.

As imagens e sons registradas in loco pelas câmaras de TV são a base sobre a qual Padilha reconstrói o caso do ônibus 174. Elas não se limitam apenas à ilustração do fato, mas servem também como fonte de análise sobre o episódio, procurando explicá-lo. O Coronel Penteado, encarregado da operação policial de cerco ao ônibus, é flagrado pela câmara conversando ao celular, quando provavelmente estaria recebendo ordens ``superiores'' para não alvejar Sandro do Nascimento; também são registrados os discursos do seqüestrador para os policiais, num dos quais ele revela ter sobrevivido à chacina da Candelária; com o auxílio do recurso de slow motion, outra seqüência de imagens revela que o tiro disparado pelo policial acerta somente Geísa, quando ela e Sandro desciam do ônibus; e a imagem de Nascimento sendo asfixiado dentro do camburão da polícia, por um grupo de soldados; entre outras.

As cenas in loco do episódio também reforçam o que é dito pelos entrevistados, em especial os reféns. À medida em que eles falam sobre os momentos tensos vividos dentro do ônibus, as ações de Sandro, as libertações de passageiros, as conversas com o seqüestrador e o comportamento de si próprios, imagens do fato vão ilustrando seus depoimentos, dando-lhes veracidade e correspondência com a realidade.

Outros registros in loco estão presentes em Ônibus 174, e não dizem respeito ao caso especificamente, mas sim ao seu protagonista, Sandro do Nascimento. Por exemplo, o filme apresenta imagens amadoras da festa de aniversário de uma assistente social, comemorada em meio às escadarias da Praça da Candelária, com a presença no vídeo do então adolescente Sandro do Nascimento. Uma legenda informa que tal filmagem fora realizada um dia antes da chacina da Candelária. O massacre, por sua vez, também é retratado através de imagens de arquivo, captadas no local da tragédia. Outro registro é o vídeo do batismo de capoeira de Sandro do Nascimento, filmado meses depois da chacina.

Imagens colhidas in loco também mostram os lugares pelos quais Sandro passou durante a adolescência e a maioridade, como o Instituto Padre Severino, a prisão da 26ª Delegacia de Polícia do Rio de Janeiro e a casa em Nova Holanda. Também é registrada a situação calamitosa dos presos, amontoados em espaços ínfimos, através de imagens gravadas em ``uma prisão qualquer do Rio de Janeiro'', como descreve a legenda sobreposta à cena do filme.

Esses registros in loco, sejam de arquivo, sejam realizados durante a produção, são o material audiovisual utilizado pelo diretor para demonstrar o seu ponto de vista. Padilha analisa o caso do ônibus 174 a partir da trajetória de vida de Sandro do Nascimento, expandindo para a crítica sobre a relação entre governo, sociedade e marginalizados. As cenas selecionadas, editadas e presentes em Ônibus 174 carregam essa tônica.

As vozes do Ônibus 174

O discurso textual do documentário Ônibus 174 é construído a partir das falas dos personagens envolvidos no episódio e na trajetória de vida de Sandro do Nascimento. Não há narração em off e o texto que perpassa todo o filme é ``montado'' a partir dos depoimentos colhidos pelo diretor. Todas essas vozes se unem em um discurso coeso, que perpassa todo o filme e revela, em si, o ponto de vista do diretor.

Os personagens ``que falam'' em Ônibus 174 têm ligações diferentes com a tragédia de 12 de junho de 2000 e com o seu protagonista, Sandro do Nascimento. Desde fotógrafos e familiares, até reféns e policiais, todos contribuem para a ``polifonia'' de vozes do documentário. Essa heterogeneidade discursiva é analisada e tratada por Padilha de acordo com o seu ponto de vista, resultando em um filme autoral.

Documentários sustentados por entrevistas, como Ônibus 17442 , são vistos por Penafria como socialmente responsáveis, pois dão ``voz'' aos participantes do filme. Ela ainda afirma que a multiplicidade de personagens não ``esvazia'' o ponto de vista do diretor, pois é ele quem organiza o material de que dispõe para a montagem final do filme.

(...) colocar no ecrã as pessoas a falarem sobre determinado tema é, em si, o cumprimento social de uma responsabilidade social, nomeadamente a de dar voz aos participantes do filme.

O fato de se produzirem filmes que se baseiam em entrevistas não é, só por si, sinônimo de perda de ponto de vista ou apagamento do documentarista. Há que, mais uma vez, reafirmar a sua importância. É o documentarista quem organiza ou interpreta o material que irá fazer parte do filme. (PENAFRIA, 1999, p.67)

Os personagens do documentário Ônibus 174 podem ser classificados em três categorias, de acordo com suas participações no episódio ou na trajetória de vida de Sandro do Nascimento: 1) os envolvidos diretamente no ``174''; 2) os relacionados à vida de Sandro; 3) os que opinam sem qualquer vínculo com o caso. No primeiro grupo estão os reféns do seqüestrador, os policiais em atividade no cerco do ônibus, e repórteres e fotógrafos que faziam a cobertura jornalística do caso. São deles os principais testemunhos a respeito do fato em si, ou seja, o seqüestro do ônibus 174, revelando detalhes sobre os acontecimentos daquele dia. O segundo agrupamento, por sua vez, é composto por familiares de Sandro, amigos da Praça da Candelária, da capoeira e das ruas, a assistente social, o carcereiro, o traficante e a mãe adotiva. Estes personagens realizam a construção da vida pregressa de Sandro, e expõem os seus hábitos, virtudes e vícios. Eles são os responsáveis por formular o contexto social no qual Nascimento estava inserido, dando-lhe assim mais humanidade. Enfim, o terceiro grupo é o dos que opinam sem ter ligação direta com o caso ou com Sandro. Ele é formado pelo sociólogo, os meninos de rua, os presos e os ambulantes. Seus depoimentos versam sobre assuntos gerais, relacionados aos problemas brasileiros. A invisibilidade dos menores de rua, alijados da convivência social, a superlotação das cadeias, a falta de oportunidades de trabalho, a ausência de esperança no futuro e a indiferença da sociedade no trato com os marginalizados são alguns dos temas abordados pelos representantes deste último grupo.

Essas três categorias se misturam durante o filme, de forma profusa mas ordenada, construindo o fio narrativo do documentário. Um depoimento é completado pelo seguinte, e daí em diante, formando uma rede circular de informações e opiniões a respeito do caso ``174'' e do seu protagonista. Essa ``teia'' polifônica acaba por dar um grande aprofundamento ao episódio, devidamente conformado pelo ponto de vista de Padilha.

Sandro do Nascimento também é uma dessas vozes. Ônibus 174 apresenta vários trechos dos seus discursos dirigidos aos policiais, proferidos de dentro do ônibus, fazendo dele um personagem que fala. Com as imagens e os sons captados in loco pelas câmaras da TV, e dispostas ao longo do documentário, é possível ver e ouvir Sandro:

``Pode me filmar, Brasil. Eu estava na Candelária. O bagulho é sério. Mataram os irmãozinho na maior judaria. Então, não tenho nada a perder mais não.''

``Da mesma forma que vocês é perverso, também não sou de bobeira não, tá ligado? O bagulho é sério. Vou explodir a cabeça dela às seis horas. Isso aqui não é filme de ação não. Não mataram os irmãozinho da Candelária? Eu tava lá!''

A partir dessas falas, percebe-se que o episódio da Candelária não havia sido esquecido por Sandro. É a hora da sua revanche. Portanto, é uma informação que se soma às outras dadas pelos vários personagens do filme, criando assim contextos acerca do episódio, do protagonista e da sociedade brasileira em geral.

A estrutura narrativa

O documentário é um obra que lida diretamente com a realidade, buscando retratá-la a partir dos acontecimentos cotidianos, enfocados sob o ponto de vista do diretor. Fazê-lo consiste, antes de tudo, em contar uma história. Ou melhor, um fragmento da história, devidamente condicionado por um ``olhar''. Daí a importância da elaboração de uma estrutura narrativa que possibilite abordar o tema, expor o ponto de vista do diretor e dar forma visual e textual ao filme, se possível de maneira atrativa e pouco enfadonha. Em artigo, Penafria define as características dessa estrutura.

Um documentário pauta-se por uma estrutura dra-mática e narrativa, que caracteriza o cinema narrativo. A estrutura dramática é constituída por personagens, espaço de acção, tempo da acção e conflito. A estrutura narrativa implica saber contar uma história; organizar a estrutura dramática em cenas e seqüências, que se sucedem de modo lógico. A suportar tudo isto deve estar uma idéia a transmitir43.

Na sua composição dramática, Ônibus 174 traz os depoimentos dos personagens, as imagens do seqüestro, os vídeos da Candelária e do batismo de capoeira de Sandro, as incursões ao Instituto Padre Severino e à 26ª Delegacia de Polícia do Rio de Janeiro, a trilha sonora de João Nabuco e Sacha Ambak, o plano aéreo sobre a cidade do Rio de Janeiro, entre outros. Todo esse material recolhido e apurado encontra-se ``costurado'' na estrutura narrativa, a partir da montagem do filme e seqüencialização das cenas e planos.

O diretor de Ônibus 174, José Padilha, utilizou 187 páginas de documentos levantados sobre Sandro do Nascimento para traçar o mapa da vida do seqüestrador. A partir dele, Padilha pôde construir a estrutura narrativa sobre a qual o filme assenta, promovendo um diálogo entre o fato em si - o seqüestro do ônibus 174, e a vida pregressa de Sandro. O diretor afirma que a narrativa do documentário ``intercala entre a história do ônibus e a história de Sandro, de maneira que elas constróem um diálogo sobre algo que transcende ambos: a violência urbana em países em desenvolvimento''44 .

O filme começa com um plano-seqüência aéreo da capital carioca, cujo término se dá no enquadramento da Avenida Jardim Botânico, local onde o ônibus 174 foi interceptado. Junto a estas imagens, surgem as sonoras de moradores de rua, que falam da desesperança e do abandono a que estão submetidos: ``Meu nome é Luciana. Moro na rua há 19 anos. Acho que não tem mais jeito de eu ser feliz não. Não tenho mais ninguém. Não tenho mãe, não tenho pai, não tenho porra nenhuma. Só tenho meus filhos. Não tem mais jeito de eu ser feliz não''. Já é um prenúncio do objetivo do filme: transcender o caso do ônibus 174 rumo às causas da violência urbana e caos social brasileiros.

No instante seguinte, o ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (Bope), Rodrigo Pimentel, aparece no vídeo relembrando a chamada recebida pelo rádio no dia 12 de junho de 2000, dando a notícia de um seqüestro no Jardim Botânico. São mostradas imagens de arquivo do ônibus parado no meio da avenida. Depois, o capitão Batista, também do Bope, dá o seu depoimento sobre aqueles momentos iniciais, revelando que ninguém sabia a identidade verdadeira do seqüestrador e, por isso, Sandro acabou sendo chamado pelo nome fictício de ``Sérgio''. Neste ponto, o filme começa a descrever quem é esse ``desconhecido'', a partir do testemunho da assistente social Yvonne Bezerra e da colega de rua de Sandro, Cláudia Macumbinha.

A construção dialógica sustenta a estrutura narrativa do documentário - do fato para a vida de Sandro e vice-versa. O episódio do 174 é contado de forma cronológica, do início do seqüestro até o desfecho, entremeado por depoimentos, imagens, sons, documentos e revelações acerca da vida de Sandro do Nascimento. Todo o material fílmico é montado para que se possa relembrar o caso do ônibus 174 e, ao mesmo tempo, ter consciência dos acontecimentos que permearam a trajetória de Sandro.

O episódio da Candelária é retratado no filme a partir do mesmo recurso dialógico. Sandro surge no vídeo com a refém Janaína Neves à frente, dentro do ônibus 174. Ele põe o rosto na janela e começa a discursar para os policiais, quando revela que esteve na Candelária no dia do massacre: ``Não mataram os irmãozinho da Candelária? Eu tava lá!''. É o ``gancho'' necessário para que a narrativa do documentário retorne ao ano de chacina, em 1993. Depoimentos de Rogerinho e Claudete Beltrana, ex-garotos de rua, e da assistente social Yvonne Bezerra procuram contextualizar como era o dia-a-dia do grupo da Candelária e qual o comportamento de Sandro em meio a essa turma. Um vídeo caseiro realizado um dia antes do massacre é exibido, no qual todos celebram a festa de aniversário de uma assistente social. Depois, imagens de arquivo feitas após a chacina são projetadas. Então a narrativa volta ao ônibus 174 e à Sandro, que fecha o ``circuito'' e dá o seu complemento final: ``Eu estava na Candelária. Mataram os irmãozinho na maior judaria. Então, não tenho nada a perder mais não.''

A estrutura de ``vai e vem'' entre o fato e a vida pregressa de Sandro é sustentada, em larga medida, pelo encadeamento dos depoimentos dos personagens. A narração em off praticamente não existe, presente apenas como fim didático para a apresentação dos documentos prisionais de Sandro. Dessa forma, todo o texto é composto por seqüencializações de falas, que se relacionam e se contrapõem entre si formando um todo coeso. Melo cita que, nos documentários apoiados em entrevistas, é comum a presença de paráfrases - repetições de grande importância para o fluxo da narrativa.

Em documentários compostos por seqüencializações de depoimentos, é muito comum a existência de paráfrases sob a voz de sujeitos diversos. Temos um sujeito A que introduz uma informação e um sujeito B que, à sua maneira, irá repetir ou se contrapor à informação que já havia sido anunciada por A. Nesse contexto, observamos que os hetero e auto-parafraseamentos tornam-se indispensáveis para dar coesividade ao texto, criando um elo entre depoimentos isolados que ao serem postos em seqüência dão unidade à narrativa45.

Em Ônibus 174, um exemplo desse jogo parafrástico pode ser vislumbrado na abordagem do Instituto Padre Severino. Um narrador lê em off o documento sobre a internação de Sandro na entidade, aos 16 anos de idade, após um assalto mal sucedido. Imagens mostram os internos tomando sol e passando nus por uma revista dos funcionários. Julieta, tia de Sandro, diz que não há carinho com os adolescentes e crianças da instituição, pois elas apanham de cacetete e, por causa desses maus tratos, acabam saindo pior do que entraram. Ela conclui: ``O Padre Severino é um depósito de ser humano mirim''. Em seguida, Rogerinho, ex-colega de rua de Sandro, também dá o seu testemunho sobre a entidade, revelando que a única coisa que aprendeu ali foi ``ficar mais revoltado ainda'', e que os funcionários espancavam os internos com correntes. Enfim, um traficante encapuzado afirma que também esteve no Padre Severino, de onde já escapara diversas vezes. À respeito da misericórdia com as suas vítimas, ele diz: ``Se não mostrar onde está o dinheiro e as jóias, eu jogo álcool em cima''. Enfim, todos os três depoimentos são perpassados pela evidência de que o Instituto contribui para o aumento da violência social, pois os internos ficam mais revoltados depois de sofrerem maus tratos. Os discursos se completam em uma unidade de significado, fruto dos elos entre as paráfrases dos personagens.

O legado de Grierson

O produtor John Grierson, ícone dos anos 30 do documentarismo britânico, instituiu a função social nos documentários. Segundo Penafria, ``Grierson entendia que os documentários deviam ter uma função social e pedagógica; deviam ser, sobretudo, um instrumento de educação pública''46. Ele acreditava que as problemáticas sociais eram os temas ideais para a produção de documentários. Esse legado ``social'' de Grierson acabou por marginali-zar o gênero documentário ao longo dos anos, identificado pelos temas pesados, a estrutura narrativa maçante e enfadonha, o tom sério e a voz em off.

Ônibus 174 possui a temática genuinamente griersoniana, pois aborda o problema social brasileiro em seus múltiplos aspectos: desigualdades de classe, preconceito, exclusão social, despreparo policial, calamidade prisional, pobreza, omissão do Estado, entre outros. E não o faz de maneira pesada ou chata. Pelo contrário: a estrutura narrativa dialógica imprime movimento ao filme e permite o acesso ininterrupto a novas informações sobre o episódio e seu protagonista, dando à obra mais agilidade e atratividade.

O porta voz dessa temática social em Ônibus 174 é o sociólogo Luís Eduardo Soares, cujos depoimentos servem de referência para explicar as mazelas às quais os marginalizados estão sujeitos, entre eles o próprio Sandro do Nascimento. Ele cita o fenômeno da ``invisibilidade'' das crianças de rua, submetidas ao esquecimento pela sociedade que não os nota, não os fornece a identidade necessária para sobreviver e não os revolve de existência social. Bucci destaca o testemunho de Soares como a maior qualidade do filme.

À luz da tese de Luís Eduardo Soares, que acaba se convertendo num pilar ideológico do documentário, Sandro nada mais é que um ser invisível tentando alcançar um lugar passível de ser olhado. Munido de um revólver, ele procura anunciar que á alguém. (...) Sandro busca a visibilidade como quem busca o ar, como quem busca a vida47 .

O documentário apresenta relatos a respeito do massacre da Candelária, da superlotação de cadeias, da ``fábrica de revolta'' chamada Instituto Padre Severino, da vida nas ruas em meio ao preconceito social, da falta de oportunidades, dentre outros. E todos esses depoimentos e informações estão ligados, inexoravelmente, à trajetória de vida de Sandro do Nascimento. De certa forma, o filme apresenta os acontecimentos ocorridos ao longo da vida de Sandro para explicar a presença do seqüestrador no ônibus 174, na tarde de 12 de junho de 2000. Como o próprio diretor afirma, ``nossa preocupação [no filme] não é a de apontar culpados nem soluções, mas gerar discussão sobre o tema. Não podemos nos resumir ao ato do seqüestro, mas o que motiva uma sociedade a agir dessa forma''48 .

O caso 174 segundo o Jornal Nacional

``Enquanto o acontecimento cria a notícia, a notícia também cria o acontecimento.''

Nelson Traquina

O telejornalismo consiste, sumariamente, na prática jornalística exercida na televisão, respeitando as limitações e aproveitando as possibilidades técnicas do meio audiovisual, de acordo (ao menos teoricamente) com as regras deontológicas do segmento jornalístico. Como qualquer órgão de informação, o telejornal tem por objetivo divulgar notícias selecionadas segundo o interesse público, buscando retratar fatos e acontecimentos sob os ditames da verdade, da objetividade e da imparcialidade. Sua importância é refletida, ainda, na democratização da informação à população iletrada, ou não habituada à leitura, que tem no telejornalismo a sua grande fonte de ``novidades'' acerca do cotidiano nacional e internacional.

O telejornalismo cumpre uma função social e polí-tica tão relevante porque atinge um público, em grande parte iletrado ou pouco habituado à leitura, desinteressado pela notícia, mas que tem de vê-la, enquanto espera a novela. Em relação aos meios impressos, acontece o contrário: o leitor só lê o que lhe interessa. É justamente por causa desse telespectador passivo que o telejornalismo torna-se mais importante do que se imagina, a ponto de representar a principal forma de democratizar a informação. (REZENDE, 2000, p.24)

A notícia telejornalística, assim como a dos demais veículos comunicacionais, é o resultado do trabalho conjunto dos diversos profissionais que lidam com o fato, desde o repórter de rua e o cinegrafista, até o editor de texto, de imagens, entre outros. Antes de tudo, a notícia é uma construção da realidade, sobre a qual lança-se uma interpretação. Daí o problema: a transposição dos fatos de forma objetiva para o público, tal como um ``espelho do real'', torna-se insustentável pelo próprio mecanismo do fazer jornalístico, por natureza fragmentado e interpretativo. O próprio enquadramento da câmara que filma o acontecimento já assinala um recorte, sem a possibilidade de abrangê-lo na totalidade. José Arbex Jr., no livro Showrnalismo, pontua a relação entre o fato em si e a prática jornalística.

Fatos existem, mas não como eventos ``naturais''; eles se revelam ao observador - e são, eventualmente, por ele construídos -, segundo o acervo de conhecimentos e o instrumental psicológico e analítico que por ele podem ser mobilizados. Fatos existem, mas só podemos nos referir a eles como construções da linguagem. Descrever um fato é, ao mesmo tempo, interpretá-lo, estabelecer sua gênese, seu desenvolvimento e possíveis desdobramentos, isolá-lo, enfim, como um ato, uma unidade dramática. (ARBEX JR., 2001, p.107)

As definições simplistas sobre telejornalismo não são suficientes para abarcar a intrincada rede de nuances que conforma as rotinas produtivas dos noticiários televisivos. O fator ``tempo'', por exemplo, consiste em um eixo sobre o qual todo o trabalho telejornalístico se assenta. O deadline, ou ``hora de fecho'', representa o horário estipulado para que as matérias estejam prontas e aptas a serem transmitidas. A equipe trabalha sob a pressão do tempo, o que contribui para o pouco aprofundamento das reportagens, pois evita-se adentrar no cerne das problemáticas dos fatos. Como afirma Nelson Traquina, no ensaio As notícias, os jornalistas são seres dotados de uma ``cronomentalidade''49, pois lidam com ``uma atividade prática onde os profissionais lutam contra a tirania da hora de fecho. O ritmo de trabalho jornalístico exige uma ênfase sobre acontecimentos e não problemáticas'' (TRAQUINA, 1999, p.175).

Outro ponto comum ao jornalismo em geral, inclusive o televisivo, diz respeito aos constrangimentos organizacionais. Rotinas são impostas aos jornalistas no trabalho de produção das notícias, que devem estar alinhadas ao perfil editorial da organização ou empresa de comunicação. A autoridade dos chefes, as possibilidades de ascensão na carreira, os manuais de jornalismo para a adequada confecção das notícias, as sanções derivadas de erros de divulgação, entre outros artifícios, são ``ferramentas'' do dia-a-dia utilizadas para a integração dos profissionais à política da organização. O ``furo'', por exemplo, ocorre quando determinado veículo divulga uma notícia antes dos outros. Isso motiva repreensões nas redações que ``ficaram para trás'', sendo portanto uma forma de constrangimento organizacional ao trabalho jornalístico. Melhor do que informar o público, é fazê-lo primeiro.

A empresa de comunicação necessita de receitas financeiras para sobreviver na forte competição do mercado capitalista e, obviamente, ter lucro. A mais rentável fonte de recursos são os anúncios publicitários (ou propagandas), veiculados nos intervalos dos noticiários televisivos. Neste caso, há uma regra simples: quanto maior a audiência do telejornal, maior a concorrência por anúncios e, por conseguinte, maiores as possibilidades de arrecadar dinheiro. Esta lógica, porém, tem uma conseqüência nefasta para o telejornalismo, como explica João Canavilhas.

Melhor programação obriga a maiores investimentos. Mais investimento exige mais receitas publicitárias e estas são conseqüência do aumento das audiências. Para que as audiências aumentem é necessá-rio tornar a informação mais apelativa e o caminho mais fácil é o da opção pela informação-espetáculo50 .

A conceituação da informação-espetáculo, proposta por Canavilhas, aproxima-se da definição de informação-produto, apresentada por Jean-Jacques Jespers no seu livro Jornalismo Televisivo. Tal notícia é divulgada por causa do seu `valor' de mercado, ou seja, pelo ``seu caráter cativante, atractivo, empático, singular ou espetacular. Esta concepção predomina, por exemplo, nos canais comerciais de televisão, nas rádios privadas e nos jornais populares de grande tiragem'' (JESPERS, 1998, p.25). O objetivo da informação-produto ou espetáculo é angariar audiência junto ao público telespectador, de modo a elevar as receitas da emissora.

O telejornalismo, portanto, situa-se dentro desse contexto repleto de nuances, implicações e paradoxos, frutos das contraposições entre os objetivos da empresa de comunicação e os deveres deontológicos do jornalismo. No Brasil, a maior expressão do gênero telejornalístico é o Jornal Nacional (JN), noticiário transmitido em horário nobre pela Rede Globo de Televisão, com liderança absoluta na audiência51 .

O JN tem um modelo fundamentado nos telejornais americanos, dos quais adotou o estilo de linguagem e narrativa, e a presença do repórter no vídeo. Suas principais características são o refinamento formal (o famoso ``padrão Globo de qualidade''), a locução de frases curtas e simples, o cuidado extremo com o visual de cenários, repórteres e apresentadores, a qualidade das imagens e edições das matérias. Quanto ao perfil editorial, entretanto, o JN sempre foi alvo de críticas por seu alinhamento com o poder dominante, já evidenciado na própria fundação do telejornal.

Se o surgimento da TV Globo se vinculou à ques-tão da presença do capital estrangeiro na imprensa brasi-leira, o JN nasceu sob outro signo que marcou indelevelmente a emissora: suas ligações com a elite civil e militar que governou o país por mais de vinte anos, desde a década de 1960. A estréia do programa ocorreu justamente no dia em que se iniciava o período mais duro do regime militar. (...) Vigiado impiedosamente pela censura e depois vítima da auto-censura, sintoma da indisfarçável vinculação com o poder dominante, o JN atravessou todos esses anos com as marcas do refinamento formal e da limitação no conteúdo das notícias. (REZENDE, 2000, p.170).

Diversas passagens ilustram o viés político do JN, associado às classes reinantes do país. Entre elas, destacam-se a iniciativa de não informar o público sobre o movimento das Diretas-já, em 1984, por eleições diretas para presidente; a realização de uma cobertura desproporcional e favorável à candidatura de Fernando Collor de Mello, nas eleições presidenciais de 1989; e o favorecimento ao candidato Fernando Henrique Cardoso nos primeiros meses de campanha presidencial de 1994, concedendo-lhe mais tempo e enquadrando-o de maneira mais positiva.

Em 1996, especificamente no dia 1º de abril, os apresentadores do JN são substituídos por jornalistas. Os locutores Cid Moreira e Sérgio Chapelin dão lugar a William Bonner e Lilian Wite Fibe, que passam a comandar o telejornal. A mudança busca aumentar a credibilidade do noticiário junto ao público, após ter a imagem manchada em tantos episódios envolvendo coberturas parciais e pró-governistas. A iniciativa é fundamentada na prática telejornalística americana, que utiliza jornalistas na apresentação dos seus noticiários, e no exemplo bem sucedido de Boris Casoy à frente do TJ Brasil, telejornal do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), obtendo bons índices de audiência52 .

Mauro Porto, no estudo Novas estratégias políticas na Globo? O Jornal Nacional antes e depois da saída de Cid Moreira, faz uma análise de 24 edições do JN, captadas entre julho de 1995 e agosto de 1996. O objetivo da pesquisa consiste em avaliar os reflexos que a mudança dos apresentadores trouxe ao conteúdo do JN. Após a análise, Porto conclui que

o ``novo'' Jornal Nacional se caracteriza por um papel mais ativo e interpretativo dos apresentadores e por uma cobertura mais plural e menos baseada no governo federal, apesar de que os resultados sobre ``pluralidade'' não são estatisticamente significantes. A análise também demonstrou uma tendência no sentido de um tipo de jornalismo com menos cobertura de temas políticos e mais ênfase em criminalidade, violência e variedades. (...) A emissora pode estar diminuindo a cobertura de temas políticos para evitar os freqüentes conflitos com sua audiência devido à sua cobertura jornalística governista53.

As mudanças no JN receberam elogios por parte de críticos da TV. Alberto Dines, editor do Observatório da Imprensa, enaltece o telejornalismo da Rede Globo e o coloca na melhor fase de sua história, com ``matérias mais longas, mais esclarecimentos, mais reportagens, mais serviço público, mais defesa do consumidor, mais internacional, mais densidade, mais crítica (...) A verdade é que o Jornal Nacional mudou para melhor'' (DINES apud REZENDE, 2000, p.140). Apesar disso, o JN amarga uma queda de 50 para 30 pontos de audiência.

Em fevereiro de 1998, Lilian Wite Fibe deixa o Jornal Nacional, sendo substituída por Fátima Bernardes. Na perseguição dos índices de audiência, a política editorial também sofre mudanças, deixando de lado as notícias mais importantes para dar lugar a reportagens baseadas em emoções, curiosidades sobre o mundo animal e a vida das celebridades. Três exemplo de cobertura demonstram essa nova fase do JN:

A nova política editorial frutificou rapidamente: 1) dia 28 de julho, o nascimento da filha da apresentadora Xuxa teve uma cobertura duas vezes maior do que a privatização da Telebras; 2) dia 17 de agosto, o assalto ao ator Gérson Brenner ganhou um destaque seis vezes maior do que a declaração de moratória da Rússia; 3) dia 16 de setembro, o acidente com o ator Danton Melo ocupou um tempo dez vezes maior do que a matéria sobre cortes do orçamento do governo brasileiro. (idem, p.142)

O Jornal Nacional envereda na espetacularização das notícias, proporcionando ao público o repasse de infomações-produto, defi-nidas por Jespers e Canavilhas como ``ferramentas'' para a obtenção de maiores audiências. A fórmula fantasiosa e sensacionalista, que mistura ficção e realidade, logo dá resultados. Em setembro de 1998, só em São Paulo, o JN mantinha um público de 3 milhões e 200 mil telespectadores, o que corresponde a 40 pontos no Ibope (ibidem, p.143). Nas palavras do jornalista Paulo Henrique Amorim, o JN havia se transformado em mais um produto da linha de entretenimento da Rede Globo, identificando-o no papel de ``trânsito'' entre as novelas da emissora.

Ônibus 174 na mira do JN

O Jornal Nacional é o objeto de análise do presente capítulo, no qual se pretende identificar as principais características do noticiário na cobertura do episódio do ônibus 174, ocorrido em 12 de junho de 2000, no Rio de Janeiro. A contextualização acerca da prática telejornalística em geral e o papel histórico do JN, traçados anteriormente, são importantes para enriquecer a análise, pois muitas das nuances antes apresentadas vão surgir durante o estudo das edições do JN.

Para a análise, foram captadas todas as reportagens e notícias transmitidas pelo Jornal Nacional na data do episódio - 12 de junho, e nos quatro dias subseqüentes. Portanto, reuniu-se o material jornalístico de cinco edições, considerado suficiente para delinear as características da abordagem do caso 174, ainda mais por conter ``o calor dos acontecimentos''. O estudo será dividido nos tópicos a seguir: 1) Espetacularização do fato - emoção, entretenimento e pânico; 2) O poder das imagens; 3) ``Nossas'' personagens - reféns e homens do poder; 4) O pensamento único: a omissão da Candelária; 5) A perda do interesse; 6) Sandro deve morrer.

Espetacularização do fato - emoção, entretenimento e pâ-nico

A emoção é um elemento recorrentemente utilizado na constituição da informação-espetáculo, pois cria um laço afetivo entre o telespectador e a notícia. Imagens e discursos televisivos que remetam à afetividade, à violência, aos sentimentos e às sensações são mais atrativos e fáceis de serem assimilados do que argumentações profundas sobre determinado fato, propostas com o intuito de contextualizá-lo. Como afirma Jespers,

a multiplicação das imagens e aumento da competição pelas audiências levou os programadores a elevar o limiar da censura na escolha das imagens e a sobrevalorizar o registro do emocional: o sangue, o infanticídio, a decomposição dos corpos, a copulação, o desespero, a doença, a fealdade, o ódio deixa-ram de ser tabu. (...) É a tendência mais tentadora, porque não exige reflexão, nem trabalho jornalístico de imagem. (JESPERS, 1998, p.73)

A cobertura do JN no caso do ônibus 174 registra uma forte carga emocional, especialmente nas três primeiras edições, referentes aos dias 12, 13 e 14 de junho. O primeiro indício são os textos lidos pelos apresentadores antes da transmissão das reportagens sobre o fato, denominados no jargão telejornalístico de ``cabeças''. Além de apelarem para o emocional, eles demonstram uma insistente repetição:

``Desespero e morte na zona sul do Rio de Janeiro. Um homem armado seqüestrou um ônibus no bairro do Jardim Botânico.'' (12/06)

``Os tiros aumentam ainda mais o pânico entre os reféns que estavam dentro do ônibus.'' (12/06)

``Ainda nesta edição, você vai ver os depoimentos dos reféns que viveram momentos de pavor na mira do bandido.'' (12/06)

``Foram quatro horas de medo dentro do ônibus na zona sul do Rio. Você vai ver agora o fim do sofrimento das mulheres que ficaram sob a ameaça do assaltante.'' (12/06)

``Foram mais de quatro horas de desespero hoje no Rio, com o seqüestro do ônibus. Você vai ver agora o momento em que o bandido saiu do ônibus com a refém Geisa Firmo Gonçalves.'' (12/06)

``O pai de uma das reféns do ônibus acompanhou pela tevê o desespero da filha Janaína Lopes. Ele mora em Mato Grosso do Sul.'' (12/06)

``Agora há pouco, a estudante Janaína Lopes, de 23 anos, falou com o pai pelo telefone e contou detalhes do sofrimento que passou.'' (12/06)

``A Polícia Militar do Rio de Janeiro reconheceu hoje que foi um desastre o desfecho do assalto onde uma refém e o bandido morreram. O soldado mirou no assaltante, mas errou o alvo. A arma do seqüestra-dor disparou. A professora de 20 anos levou quatro tiros e morreu grávida.'' (13/06)

``Ainda nesta edição, você vai ouvir o relato de quem passou mais de quatro horas ameaçado pelo bandido. E a jovem que fingiu de morta reencontra o pai em Mato Grosso do Sul.'' (13/06)

``(...) A perícia revelou há pouco que, ao contrário do que diziam os amigos, Geisa não estava grávida.'' (13/06)

``O seqüestro do ônibus fez uma outra vítima, anônima. Alguém que não foi baleado. Um cidadão que está vivo, mas que teve a honra ferida.'' (14/06)

``Desespero'', ``pânico'', ``ameaça'', ``sofrimento'', ``honra ferida'' e ``pavor'' são palavras presentes nos textos introdutórios e que caracterizam o tom da cobertura do episódio, no qual a carga emocional foi o grande destaque. Reconstitui-se o cenário de pânico e desespero do episódio, de modo a conduzir o telespectador à mesma corrente de emoções pela qual passaram as reféns do ônibus. Um aspecto a ser observado diz respeito à informação lida por William Bonner, no início do Jornal Nacional de 13 de junho, revelando enfaticamente que a refém Geisa Firmo Gonçalves, morta durante o seqüestro, estaria grávida. A reporta-gem traz a sonora de uma amiga de Geisa, que confirma a gravidez. O drama tornava-se ainda maior. Ao final do noticiário, após a informação ter sido bastante utilizada ao longo da cobertura, Fátima Bernardes acaba por desmenti-la, dizendo que a perícia havia comprovado o contrário: Geisa não estava grávida. A ``sede'' pelo dramático, o espetaculoso e o novelesco fez com que se utilizasse a informação de uma fonte periférica, sem esperar pela confirmação da perícia em curso.

Outro destaque da cobertura é a reporta-gem de Ari Peixoto, feita logo após o desfecho do episódio e transmitida no dia 12 de junho. A emoção do jornalista sobressai à postura teoricamente impessoal de repórter. As imagens do ônibus e as falas de Peixoto trazem sensações imediatas do fato, captadas depois do seu término, com as reféns ainda dentro do veículo. O repórter está no local, observa a movimentação no ônibus, apresenta uma respiração ofegante e fala tudo o que vê. A narrativa coloca o telespectador no ``calor dos acontecimentos'', a partir do relato desesperado do repórter que, espremido na multidão, tenta informar sobre o estado de saúde das reféns e trazê-las ao microfone. O trecho a seguir demonstra o estado de excitação de Peixoto com o fim do seqüestro:

``Lá dentro a gente vê que alguns reféns estão se abraçando lá dentro, porque foi uma experiência, se a gente pode dizer, muito próxima da tortura. (...) Elas se abraçam agora, foram quatro horas de muita tensão, de terror... essas pessoas certamente passaram por uma experiência que elas jamais vão esquecer em toda vida... a gente não consegue ver se a pessoa que levou o tiro ou que aparentemente foi baleada... ela está dentro do ônibus, a gente não consegue... agora a gente recebe a informação de que na verdade... ela está viva! A refém que teria sido baleada pelo assaltante e seqüestrador, está viva... afinal, uma grande notícia. Lá dentro do ônibus, a delegada Marta Rocha também ajuda a consolar, a acalmar as pessoas que passaram quatro horas de puro terror dentro do ônibus. (...)'' (12/06)

Além da emoção do repórter Ari Peixoto, o JN também utiliza a relação entre a refém Janaína Lopes Neves que, durante o seqüestro, teria sido baleada por Sandro, com o pai Claudemir Neves, que acompanhava pela televisão o episódio, em Mato Grosso do Sul. A distância entre ambos, o amor do pai pela filha refém, entregue nas mãos de um bandido, o desespero de Claudemir ao acompanhar o desenlace do seqüestro pela TV, sem saber se a filha estava viva ou não, são os elementos utilizados pelo Jornal Nacional para construir o drama de Janaína, como uma novela do mais puro entretenimento.

No dia 12 de junho, o JN apresenta uma reportagem em que Claudemir fala sobre os instantes de preocupação pelos quais passou, aguardando para saber se a filha tinha sobrevivido à tragédia. Em um segundo momento, a matéria coloca no ecrã o rosto de Janaína, que conversa pelo celular com o pai. O som é ambiente e capta o diálogo da refém com Claudemir. Falando ao telefone, Janaína está cercada por microfones. Em um terceiro momento, após desligar o celular, ela responde às perguntas dos jornalistas. A repórter faz uma pergunta óbvia: ``Qual a sensação agora?'', que é respondida por Janaína da única maneira possível, ``de alívio''.

No dia seguinte, 13 de junho, é exibido o último capítulo da novela. A reportagem mostra o encontro do pai com a filha, no aeroporto de Campo Grande. O texto em off narra o momento do abraço entre ambos, exibido na tela: ``um encontro emocionado e de poucas palavras''. Em seguida, imagens mostram Janaína nos braços de amigos e parentes, enquanto a repórter enuncia um texto vazio: ``todos queriam abraçar e ter a certeza de que Janaína está realmente bem''. E, como reforço à carga dramática, a voz em off revela ser a segunda vez em que Janaína escapa da morte, pois fora a única sobrevivente de um acidente de carro que vitimara a mãe, a avó e a tia. Não bastasse ter sido refém por quatro horas no dia anterior, Janaína ainda é forçada a responder pela antiga tragédia: ``Nasci de novo. Duas vezes''. A novela chegava ao fim (ao menos, por enquanto).

A cobertura do ônibus 174, apresentado pelo JN sob o prisma da emoção, ainda invoca a sensação de pânico no telespectador. Ao mostrar a refém Geisa Firmo Gonçalves como uma pessoa comum, trabalhadora, gente do dia-a-dia, o JN expande a possibilidade da tragédia a todos. O sofrimento e o ``terror'' podem estar à espreita, na próxima esquina. Uma cena emblemática para a criação dessa sensação de pânico é apresentada numa reportagem do dia 13 de junho. A matéria traz a repercussão do fato pelas vozes dos reféns, que falam sobre o caso. Em determinado momento, é mostrada a cena em que Sandro faz uma contagem progressiva, com a arma apontada para a cabeça de Geisa, ameaçando atirar no ``dez''. A matéria exibe toda a seqüência, em meio aos gritos histéricos de Geisa. E mais: coloca uma legenda embaixo para que o telespectador acompanhe a contagem do seqüestrador. Sandro grita ``um'', de dentro do ônibus, ao mesmo tempo em que surge na parte de baixo da tela os caracteres indicando a palavra ``um''. E assim por diante, até o número 9, quando entra a voz em off do repórter com o seguinte texto: ``Era apenas um blefe. Parte da sessão de tortura que se arrastou por quatro horas e meia''. Torturados os reféns, torturados os telespectadores.

O poder das imagens

A imagem está sobrecarregada de significado na sociedade. Ela é colocada como uma representação ``objetiva'' do real, com a suposta possibilidade de retratar os fatos exatamente como aconteceram. Como afirma Rezende, a força da mensagem icônica é tão grande que,

para muitas pessoas, o que a tela mostra é o que acontece, é a realidade. Por isso, a TV ocupa um status tão elevado, o que faz com que os telespectadores, especialmente os pouco dotados de senso crítico, lhe dêem crédito total, considerando-a incapaz de mentir para milhões de pessoas. (REZENDE, 2000, p.76)

Entretanto, é preciso observar que a ``realidade'' projetada pela TV, por meio de imagens, sons e personagens, consiste em uma representação construída a partir da interferência de diversos atores na elaboração da mensagem audiovisual. No meio telejornalístico, esta constatação é ainda mais evidente. Nele, a realidade é condicionada pela interpretação do repórter, pelos ângulos em que a câmara filma o acontecimento, pela política editorial da organização, pela edição das imagens, pela importância do fato, entre outros aspectos.

A imagem televisiva é o resultado de uma série de escolhas e de modificações: para além dos processos já expostos de selecção, e de hierarquização da informação, o enquadramento da câmara, a montagem assim como o comentário são outras tantas intervenções sobre o real. (JESPERS, 1998, p.70)

O JN utiliza aspectos emocionais para relatar o caso ``174''. Parte dessa estratégia reside na exploração das imagens do fato, filmado desde o seu início até o desfecho fatal. O material é abundante, repleto de cenas fortes e violentas, gravadas em mais de 4 horas de seqüestro. A intenção do JN na exposição do fato vai de encontro à afirmação de Canavilhas: ``a decisão de mostrar umas imagens e ocultar outras, a distribuição das imagens ao longo da peça e a sua própria seqüência permitem uma infinidade de possibilidades para explorar a vertente espetacular da notícia''54.

No dia 12 de junho, por exemplo, a primeira reportagem exibida pelo Jornal Nacional reconstitui todo o drama vivido pelos reféns. É um resumo do seqüestro, realizado a partir de uma abordagem sensacionalista, espetacular, emotiva e chocante. E com um novo ``tempero'': o suspense! A matéria começa com as primeiras ações de Sandro dentro do ônibus, em que ele tenta arrancar o veículo, dá um tiro no vidro frontal e coloca Janaína para escrever, com um batom, mensagens nas vidraças. A esta altura, a narração em off reforça a cena: ``Uma das vítimas é forçada a escrever com batom, no vidro do ônibus, que o assaltante está possuído pelo diabo''. Em seguida, as imagens mostram dois reféns sendo liberados, uma delas carregada por policiais, aos prantos, e bastante debilitada. De repente, a matéria termina com o tiro dado por Sandro em direção ao chão do ônibus, onde ele havia deitado a refém Janaína. O texto em off para a cena é o seguinte: ``Pouco antes das seis horas, o assaltante atira para o chão''. Não são mostradas cenas de Janaína deitando no ônibus, e o texto em off também não revela este fato. O fim abrupto deixa a dúvida no ar: Sandro teria atirado em quem? O suspense está criado.

Após a exibição da reportagem, a imagem volta para o estúdio, onde William Bonner diz para as câmaras, em tom grave: ``Os tiros aumentaram ainda mais o pânico entre os reféns que estavam dentro do ônibus''. Em seguida, começa a segunda parte da matéria, com o desenrolar da história a partir do ponto em que ela havia parado: o tiro de Sandro. O que se vê é uma apoteose de sensacionalismo, com imagens de reféns se esgoelando aos gritos de socorro, e de Sandro enfiando o revólver na boca de Geisa, puxando os cabelos de Luana e fazendo discursos irados aos policiais, com a devida tradução destes em legendas ao pé da tela. O texto em off reforça as cenas: ``Depois do tiro, o desespero... O bandido não desistiu. Pegou outra refém. Ameaçou atirar de novo. Pôs o revólver na boca da mulher. Puxou os cabelos dela. E desafiou os policiais''. Adiante, a matéria mostra a imagem de Sandro saindo do ônibus com Geisa. A narração em off indica o que irá acontecer: ``Neste momento, a polícia agiu. Um PM se aproximou pelo lado e deu dois tiros no bandido''. Ao fim do trecho, é mostrada a execução dos disparos, com o som ambiente revelando toda a gritaria que envolveu a ação.

Para terminar o drama, a boa notícia trazida pelo texto em off: ``No meio da confusão, a jovem que teria sido baleada se levantou. Estava viva''. É exibida a imagem de Janaína, que sorri e indica o alívio pelo fim do pesadelo. O telespectador, enfim, é respondido quanto ao mistério deixado em aberto na primeira parte da reportagem: Sandro não atirara em Janaína, e ela não morrera.

Essa reportagem é emblemática no uso das imagens do episódio pelo JN. Além de revelar cenas violentas e estimular a agonia no telespectador com a gritaria das reféns, o JN ainda trabalha o material visual para criar uma narrativa de suspense, novamente ao estilo novelesco. O texto em off é fiel às imagens e aumenta a sensação de pânico com palavras impactantes. Em suma, um autêntico show.

Outro destaque da programação de 12 de junho começa com o semblante grave de William Bonner, que fala para a câmara: ``(...) Você vai rever agora o momento em que o bandido saiu do ônibus com a refém Geisa Firmo Gonçalves''. Em seguida, é exibida, em câmara lenta, a cena do policial atirando contra Sandro do Nascimento, quando este saía do veículo. O som é ambiente, trazendo os disparos e toda a gritaria aos ouvidos do telespectador. Não bastasse isso, é concedido o replay, a partir da voz enfática de Bonner: ``Veja de novo a cena''. E, uma vez mais, a seqüência é mostrada na tela. Para Jespers, a imagem de violência ``mostra-se como tal. Ela não significa nada, não permite compreender mais do que ela própria'' (idem, p.138). Ou seja, a exposição crua do alvejamento de Sandro atinge o máximo grau de sensacionalismo e de utilização ``espetacular'' das imagens.

O Jornal Nacional também revela predileção pelo sofrimento humano. No dia de 13 de junho, são exibidas imagens da irmã de Geisa, Maria Elisângela, chegando no aeroporto aos prantos, com a narração em off aumentando ainda mais o drama: ``Maria Elisângela caminhava amparada por um funcionário do aeroporto''. Outra seqüência traz a imagem da refém Damiana Nascimento, no dia seguinte ao episódio, sendo socorrida por homens e visivelmente emocionada. O texto em off acompanha a cena: ``Hoje, ainda traumatizada, não quis falar. Teve de ser socorrida novamente''55 . Essas imagens trazem a seguinte questão: até que ponto o sofrimento humano é uma informação de utilidade pública? Segundo Jespers, a utilização de imagens emotivas é fundamentada pela guerra das audiências e busca despertar o voyeurismo presente no telespectador: ``A competição pela audiência leva as cadeias de televisão a rivalizarem entre elas no registo do emocional do `vivido'. Esta rivalidade baseia-se no `voyeurismo' latente de cada ser humano'' (ibidem, p.138).

Há uma seqüência do JN que foge à regra geral da ``imagem como espetáculo''. No dia 13 de junho, a edição do JN é pautada pelas críticas à atuação da polícia no caso do ônibus 174. Em uma reportagem, discute-se os motivos pelos quais a polícia não atirara em Sandro nos momentos em que se afastara das reféns, ainda dentro do ônibus. À certa altura, o texto em off dá a seguinte informação: ``O governo do Estado diz que os policiais estavam treinados e tinham o equipamento correto''. Logo depois, as imagens mostram o contrário, revelando a precariedade instrumental dos policiais. Eles não tinham rádios para comunicarem entre si. O texto em off narra muito bem as cenas que, juntas, contrapõem-se à informação do governo acerca do aparelhamento da polícia: ``Quando o policial que atirou no assaltante foi para a frente do ônibus, o comandante falou com ele. Mandou o cabo aguardar ordens. O policial tentou espiar pela janela. Sem rádio para receber a ordem, se comunicava com os colegas por mímica.''

Na mesma edição, o desfecho do assalto é reconstruído com imagens fortes, porém fundamentadas no objetivo de explicar o ``desastre'' da ação policial. A imagem em câmara lenta mostra que o tiro do policial acerta Geisa, e não o seqüestrador. Em seguida, outra cena revela que Sandro é levado ileso para o camburão, onde os soldados se amontoam sobre ele para asfixiá-lo. Apesar destes exemplos, as imagens da cobertura, em geral, tenderam à sublimação da emoção e à espetacularização do fato.

``Nossas'' personagens - reféns e homens do poder

Uma reportagem é constituída, basicamente, por imagens do acontecimento, textos em off, repórteres no vídeo e depoimentos de personagens relacionados ao fato. Teoricamente, o objetivo da conjunção desses elementos seria o de proporcionar ao telespectador uma mensagem imparcial, neutra, contextualizada e que enriquecesse sua visão de mundo. A prática, porém, costuma revelar o inverso, como ficou evidente na cobertura do JN sobre o caso do ônibus 174. A observação das personagens ``que falam'' nas reportagens indica essa tendência do Jornal Nacional em apresentar uma realidade oblíqua, estigmatizada e maniqueísta.

Nas cinco edições analisadas, pode-se perceber a presença constante dos reféns do ônibus, que emprestam suas emoções à reportagem, e de homens do poder público, que discursam sobre os problemas da segurança e da violência no país, e sobre o caso em si. Os especialistas, por sua vez, tem um papel quase teatral: comprovam o que já é notório, contribuindo apenas com a credibilidade do seu nome e função.

No dia 12 de junho, pouco depois do desfecho do seqüestro, o JN apresentava uma cobertura paupérrima no que diz respeito à abrangência das personagens. A primeira reportagem reconstitui o fato, utilizando apenas as imagens gravadas ao longo do episódio. Ninguém dá testemunhos. Na segunda matéria, o repórter Ari Peixoto incorpora o papel de ``cidadão'' e, ofegante, vibra ao constatar que a refém Janaína Lopes está viva. Ele consegue o depoimento de uma das reféns, que faz um relato pessoal e emotivo, ainda de dentro do ônibus: ``Foi um horror. Eu tive que dar o meu dinheiro para ele não me matar no banco lá atrás. Ele disse que ia acabar com todo mundo, que matava todo mundo''. Ou seja, um testemunho realizado no ``calor dos acontecimentos'', o que revela uma certa tendência ao exagero. Adiante, mais dois personagens falam sobre o episódio: o presidente Fernando Henrique Cardoso, em pronunciamento oficial, e o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Reginaldo de Castro. Eles abordam o despreparo da polícia e a violência que ronda o país. São testemunhos comuns, que não trazem novidades. Trata-se apenas de apreender a repercussão do caso no primeiro escalão.

A última reportagem traz o pai Claudemir Neves e a filha Janaína Neves, distantes espacialmente e ``unidos na tragédia''. Os dois relatam o drama que viveram: ela dentro do ônibus, ele vendo a filha pela TV. Portanto, as personagens da edição de 12 de junho repercutem o fato, ainda sob forte emoção. Não trazem nada além do que as imagens apresentaram ao longo do dia.

No dia 13 de junho, a cobertura é mais ampla e diversificada. A pauta é a de criticar a atuação da Polícia Militar no desenlace do episódio. O Coronel Penteado explica, em entrevista coletiva, que a atuação do policial foi precipitada. Uma amiga de Geisa, por sua vez, conta que a vítima estaria grávida e não contara o fato ao marido: ``ela só queria ter certeza para falar com ele''. Mesmo assim, o JN utiliza amplamente essa informação, reforçando o aspecto emocional. Uma notícia que, diga-se, nem mesmo Geisa estava certa.

Na mesma edição, dois especialistas dão os seus depoimentos. O psicólogo, a partir das imagens de Sandro dentro do ônibus, declara: ``Esse quadro de agitação, de uma certa forma tende a caracterizar o uso de cocaína''. Sua participação se limita, portanto, a uma simples impressão do seqüestrador, avalizada por imagens. Depois, o coronel reformado Marcelo Roza critica a operação policial. Ele diz que as armas disponíveis não eram adequadas, e que muitas chances de matar o seqüestrador não foram aproveitadas. Ele utiliza as imagens do episódio para fazer tais afirmações. Em seguida, o coronel Penteado volta à cena para explicar porque Sandro não foi alvejado ainda dentro do ônibus, nos momentos em que ele se distanciou da vítima.

Na reportagem seguinte, o Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Josias Quintal, afirma que o desfecho trágico foi fruto de uma ``ação desastrada do policial'', quando ainda havia possibilidade de negociação. Depois, o governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho, revela sua indignação com a polícia:

``Como é que o isolamento da área não foi feito de forma adequada? Não havia necessidade daquele impulso do policial, que acabou provocando a morte da vítima. O bandido foi asfixiado! Ou seja, ele não levou tiro nenhum! Foi uma total falta de controle na operação. Eu determinei uma série de providências. A primeira delas, o afastamento do comandante da polícia militar. A polícia não tinha o direito de fazer o que fez.'' (13/06)

A próxima reportagem traz a repercussão do episódio em Bra-sília, com a preocupação do Governo Federal em apressar o anúncio do Plano Nacional de Segurança Pública. A repórter afirma, diante da câmara: ``todos concordam que é preciso agir rápido no combate à violência. Mas as opiniões divergem quanto à forma de enfrentar o problema''. Em seguida, são exibidos três depoimentos dignamente oficiais. Primeiro, o presidente da Câmara dos Deputados, Michael Tamer, defende a destinação de verbas para a construção de presídios, e aparelhamento e motivação dos policiais. Depois, o presidente do Senado Federal, Antônio Carlos Magalhães, afirma ser necessário colocar as forças armadas nas ruas, ``para dar segurança à população''. Enfim, o presidente FHC diz que o exército não resolverá a questão, pois os soldados não estão preparados para lidar com problemas como tráfico, drogas, assaltos e outros.

Na penúltima reportagem da edição de 13 de junho, os reféns do 174 falam dos momentos que passaram dentro do veículo, dando detalhes dos diálogos mantidos com o seqüestrador. O JN aproveita para mostrar mais cenas violentas do episódio. A última matéria, enfim, traz o encontro do pai Claudemir Neves com a filha Janaína, no aeroporto de Campo Grande. Ele faz um relato emocionado, dizendo que ``chorou tudo o que não chorava há muito tempo''. Janaína, por sua vez, afirma ter nascido pela segunda vez, pois escapara de um acidente automobilístico que vitimara a mãe, a avó e a tia.

A edição de 13 de junho é a mais completa dentre as cinco analisadas, no que diz respeito às personagens. Enquanto a polícia tenta explicar a tragédia, setores do governo começam a tomar as primeiras medidas em relação à segurança pública. Ainda assim, é notória a busca pela emoção no relato das reféns, o apoio em fontes oficiais do primeiro escalão e a utilização periférica de especialistas, que fazem suas análises por meio de imagens da própria TV.

No dia 14 de junho, a cobertura do episódio é menor. A primeira reportagem revela que a mãe adotiva de Sandro do Nascimento foi reconhecer o filho no Instituto Médico Legal, e que ela não quis dar entrevistas. E, também, é apresentada a denúncia de que policiais queriam invadir a emergência do hospital para atirar no corpo de Sandro, de modo a camuflar a causa real da sua morte. Estranhamente, ninguém foi ouvido pela reportagem, que se limitou a dizer que o Ministério Público e a Polícia Civil estavam investigando o caso. A matéria seguinte, a última do ``174'' nesta edição, traz o relato do pedreiro Carlos Leite Faria, refém do ônibus. Ele foi libertado por Sandro, mas acabou sendo preso pela polícia, que o qualificou de cúmplice do seqüestrador. Carlos descreve os momentos que passou na delegacia: ``Não queria para ninguém o que eu passei na segunda-feira.''

Nessa edição de 14 de junho, há uma inversão. A primeira matéria não traz nenhuma personagem para falar sobre um fato alarmante: a tentativa de invasão do hospital pela polícia. Testemunhas não são procuradas, nem mesmo médicos ou a direção da instituição de saúde. A segunda matéria, apesar da confusão absurda do refém por bandido, oferece uma abordagem profunda, longa, recheada de elementos dramáticos. A história é um prato cheio para a criação de mais uma ``novela'' do JN, ideal para o entretenimento dos telespectadores.

No dia 15 de junho, a única reportagem limita-se a registrar que os cinco policiais envolvidos na morte de Sandro estavam depondo há mais de 9 horas. A advogada Daniele Fraga diz, ao microfone, que os policiais agiram em legítima defesa, matando Sandro para defender suas vidas e a sociedade. Na edição de 16 de junho, é trazida a opinião do médico-legista Talvane de Moraes que, a partir do laudo oficial do IML, afirma que Sandro foi estrangulado durante 4 a 5 minutos.

O levantamento de todos os personagens ``que falam'' nas cinco edições não é em vão. Apesar de exaustiva, a tarefa tem um objetivo específico: mostrar que os entrevistados pelo Jornal Nacional são apenas aqueles que trazem a emoção ou aqueles que têm credibilidade e poder. Não há, nos cinco telejornais estudados, um depoimento sequer de familiares de Sandro, de cidadãos comuns e de representantes de entidades civis. O discurso fica preso às personagens oficiais, sem abertura para os demais agentes da sociedade. E o mais alarmante: nenhum entrevistado é procurado para falar sobre a questão social e como ela contribui para a produção de episódios como o do ônibus 174. Sociólogos, antropólogos, dirigentes de organizações não-governamentais, representantes de associações de favelas e bairros da periferia, e cidadãos comuns não tiveram espaço para dar suas opiniões e depoimentos.

Dessa forma, a escolha das personagens traz uma cobertura parcial e tendenciosa do JN, que promove ``as vozes'' de apenas um dos lados - policiais e autoridades - para repercutir e discutir o caso. Aos reféns, restou o papel de serem as atrizes e atores das reportagens emotivas e sensacionalistas produzidas pelo telejornal global.

O pensamento único: a omissão da Candelária

Jespers alerta que o telejornalismo, devido às suas próprias limitações, como a concisão (uso de poucas palavras para descrever o fato) e o imediatismo (menor tempo possível entre a ocorrência de um evento e a sua transmissão), acaba por divulgar uma visão simplista do mundo, sem nuances ou contrastes. Este relato linear e pretensiosamente ``unânime'' tem a intenção de promover o fato retratado pela TV como a representação fiel da realidade, que passa a ser vista como ``única''. Daí a formulação do termo ``pensamento único'', pois as audiências podem acreditar no real como algo estanque e objetivamente representado pelos jornalistas. Por trás dessa imagem indicial do mundo, entretanto, pode haver o intuito ideológico de manipular informações.

Este unanimismo e esta unidimensionalidade escondem um sério perigo de manipulação. Com efeito, a televisão transporta uma representação particular do real (que se pretende ``objectiva''), designando-a implicitamente como o próprio real, ou pelo menos como a sua única representação legítima. Ora, não é porque uma visão do real é ``unanimemente partilhada'' (ou pelo menos apresentada como tal pela televisão) que esta visão seja adequadamente representativa do real. A objetividade do olhar não existe. (JESPERS, 1998. P.83)

Na cobertura do Jornal Nacional sobre o caso do ônibus 174, a restrição das declarações aos reféns, homens do poder e especialistas já é, em si, uma evidência da intencionalidade de se produzir uma visão única do mundo e, especificamente, da realidade social brasileira. Um depoimento de um parente de Sandro que contasse os percalços de sua vida - desde o assassinato da mãe na infância até o massacre da Candelária - poderia trazer novas questões ao episódio e, dessa forma, ampliar o debate social. Porém, isso não é feito. Prefere-se a condenação de Sandro como ``possuído pelo diabo'', ``drogado'' e ``louco'', um pária a ser combatido pela polícia precária e mal preparada.

Mas o mais alarmante na abordagem do JN é a completa omissão à informação de que Sandro do Nascimento estava presente no massacre da Candelária, ocorrido em 1993, e que vitimou oito crianças de rua. Tal fato impunha uma pergunta à sociedade e à própria mídia: quais as causas que fizeram Sandro sair do papel de vítima para encarnar o de algoz? Porém, esta discussão foi ignorada nas primeiras cinco edições do JN. Os motivos pelos quais o telejornal não veiculou a informação encontram duas hipóteses: o JN não tinha essa informação; ou o noticiário preferiu omiti-la, manipulando o acesso do público à realidade e propiciando a noção de ``pensamento único''.

É demasiado inocente pensar que o JN, o mais popular e tradicional telejornal do país, não conhecia uma informação que já havia sido divulgada em outros veículos de comunicação na mesma semana da tragédia do ônibus. Além disso, nos seus discursos para os policiais, Sandro do Nascimento citou, por diversas vezes, a sua presença no massacre da Candelária, quando ``mataram os irmãozinho''.

Por exemplo, Lemos analisou a cobertura realizada pelo jornal carioca Extra na semana do ``174'', anotando suas conclusões ao longo da tese Seis questões sobre o jornalismo: uma leitura da imprensa brasileira nos anos 90 a partir de Ítalo Calvino. No dia 14 de junho, quarta-feira, dois dias após o fato, o impresso já trazia a informação de que Sandro presenciara o massacre da Candelária, ampliando o debate público sobre o acontecimento. Lemos coloca que, na edição de 14 de junho,

Sandro continua a ser tratado como ``o bandido''. Mas algumas revelações confundem o quadro assustador e tornam mais complexa sua apresentação e percepção. Descobre-se que os tiros da polícia acertaram a refém, e não o bandido. Descobre-se ainda que a polícia executou por asfixia o seqüestrador, preso no camburão. Mais: o seqüestrador do ônibus 174 era um dos sobreviventes do massacre de garotos na Praça da Candelária. (LEMOS, 2001, p.89)

Em seguida, a autora descreve como o jornal utilizou a informação para resgatar o episódio do massacre da Candelária e contextualizar o leitor.

O que muda nesse segundo dia de cobertura, a partir das descobertas feitas, é o papel relativo do ``bandido''. A página 6 relembra a chacina da Candelária, num tipo de boxe freqüente no jornal, identificado como ``memória''. O título é ``Um crime que chocou todo o Brasil''. Em outra retranca é lembrada a reportagem publicada pelo Extra em setembro de 1999, que ``mostrou a indiferença dos governantes com relação ao destino dos sobreviventes''. Sandro, agora, além de ser visto como bandido é tratado como sobrevivente de uma tragédia anterior, que pela men-ção entende-se estar ligada ao seu destino. (idem, p.91)

Portanto, a informação de que Sandro estivera na Candelária já era de domínio público no dia 14 de junho. O JN não a veiculou, preferindo a omissão. Guardadas as devidas proporções, adotou-se o mesmo procedimento da época das Diretas-já, quando o telejornal se esquivou dos comícios e da campanha realizados a favor das eleições diretas para presidente.

O telejornal utiliza as informações para que possa, diariamente, transmitir a sua visão ``única'' da realidade social brasileira para o Homer Simpson56 sentado diante da TV.

A perda do interesse

Os telejornais veiculam, diariamente, informações escolhidas segundo os critérios de noticiabilidade. Estes elementos ajudam os editores na definição do que pode ser, ou não, transmitido no telejornal, de acordo com a noção de ``valor'' da notícia. A partir da listagem dos critérios de noticiabilidade, realizada por Galtung e Ruge no artigo A estrutura do noticiário estrangeiro: A apresentação das crises do Congo, Cuba e Chipre em quatro jornais estrangeiros, pode-se eleger os seguintes critérios como preponderantes na escolha do caso ``174'' pelo JN:

F2: Quanto mais forte for o sinal e quanto maior a amplitude, mais provável será a audição dessa freqüência.

F6: Quanto mais inesperado for o sinal, mais pro-vável será a audição dessa freqüência.

F11: Quanto mais o acontecimento puder ser visto em termos pessoais, devido à acção de indivíduos específicos, mais provável será a sua transformação em notícia.

F12: Quanto mais negativo for o acontecimento nas suas conseqüências, mais provável será a sua transformação em notícia. (GALTUNG e RUGE, In: TRA-QUINA, 1999, p.63-67)

Em outras palavras, o caso do ônibus 174 tem interesse noticioso por se tratar de um evento de grande abrangência, sendo transmitido ao vivo pela TV (F2); pelo caráter inusitado e surpreendente, com um seqüestrador fazendo reféns dentro de um ônibus, na Zona Sul carioca, em plena luz do dia (F6); por envolver pessoas e seus diversos ``papéis'' no episódio, como refém, seqüestrador, policial e outros (F11); e o resultado negativo da operação, com as mortes de Geisa e Sandro (F12).

A repercussão do caso ``174'' foi tão ampla que o Plano Nacional de Segurança Pública acabou sendo anunciado pelo Governo Federal apenas oito dias depois do episódio, em 20 de junho. A perplexidade diante do fato pode ser creditada, em parte, à veiculação das imagens ``ao vivo'' do seqüestro, e às reportagens sensacionalistas do JN e outros meios de comunicação da mídia brasileira. Além, é claro, da própria gravidade do fato.

No espectro das cinco edições analisadas do JN, outro critério que salta aos olhos diz respeito à continuidade da notícia que, após atingir o ápice da sua veiculação, passa a receber um tratamento ``inercial''. Galtung e Ruge explicam que este critério abrange a idéia de que

logo que alguma coisa atinja os cabeçalhos e seja defi-nida como ``notícia'', então continuará a ser definida como notícia durante algum tempo, mesmo que a amplitude seja drasticamente reduzida. O canal foi aberto e fica parcialmente aberto para justificar, em primeiro lugar, o facto de estar aberto, em parte por causa da inércia no sistema e, em parte porque o que foi inesperado tornou-se agora familiar. (idem, p.66)

O primeiro indício desta cobertura contínua e decrescente é o tempo conjunto das reportagens e notícias veiculadas em cada uma das cinco edições do JN. No primeiro dia, 12 de junho, o material transmitido sobre o caso ``174'' ocupou 10min41seg do telejornal, numa abordagem pautada pelo emocional e o imediato, ainda no ``calor dos acontecimentos''. A edição seguinte, de 13 de junho, critica a operação policial, esclarece o desfecho do seqüestro, com o assassinato de Sandro do Nascimento, e repercute a tragédia entre os reféns, totalizando 15 minutos de cobertura - a maior dentre as edições analisadas. Em 14 de junho, uma reportagem atualiza o caso com as últimas novidades, já emprestando à notícia o aspecto inercial, e outra matéria de cunho emotivo traz o caso do refém que foi confundido como cúmplice do bandido. Neste dia, o material totaliza 2min40seg. Na edição de 15 de junho, a abordagem se limita às novidades do caso, com a veiculação de apenas uma reportagem, perfazendo o total de 1min20seg. Na última edição analisada, 16 de junho, a diferença em relação ao dia anterior reside apenas na crônica de Arnaldo Jabor sobre o episódio do ônibus 174 que, juntamente a uma reportagem que atualiza o fato, ocupa 2min30seg do Jornal Nacional.

O decréscimo do tempo dedicado pelo JN ao caso ``174'' revela a ``perda de interesse'' pela notícia, que é mantida apenas pelo critério de continuidade. Na análise das cinco edições, porém, outro elemento pode ser constatado: o ``perda do interesse'' pelo assunto está diretamente vinculado à diminuição das possibilidades emotivas do fato. Nos dois primeiros dias de cobertura, os reféns dão inúmeras declarações e as imagens do seqüestro são recorrentemente apresentadas na tela. De certa forma, pode-se dizer que há um esgotamento do caso, com a exploração dos seus aspectos emocionais, espetaculares e sensacionais. Nas três edições seguintes, o episódio do ``174'' recebe um tratamento mais formal e objetivo, relatando as novidades do caso. A emoção sai de cena, dando lugar a reportagens diretas, cruas e sintéticas. O resultado é a diminuição do tempo de cobertura do ``174'', pois já não há o interesse em estender o assunto devido à falta de ``petiscos'' sensacionais.

Sandro deve morrer

O JN promove, nas entrelinhas, uma clara separação entre ``nós'' - telespectadores do telejornal, e ``eles'' - os bandidos descar-táveis da periferia, sem história pregressa e prontos para a barbárie. Nas cinco edições analisadas, não há um personagem sequer para falar sobre o assassinato de Sandro do Nascimento, a não ser para explicá-lo tecnicamente. Nem mesmo um sociólogo ou antropólogo, que poderia trazer ao caso uma contextualização social mais profunda, teve ``voz'' no Jornal Nacional. E, ainda, o JN omitiu o fato de Sandro do Nascimento ser um dos sobreviventes do massacre da Candelária, encerrando aí qualquer possibilidade de extensão do assunto rumo a uma abordagem menos superficial e mais próxima à realidade do dia-a-dia brasileiro.

O artigo A produção social das notícias: O mugging nos media, elaborado por um grupo de autores, afirma que a veiculação de crimes pela mídia é uma oportunidade para impor uma moral teoricamente consensual na sociedade e, dessa forma, reforçá-la simbolicamente.

O crime é, então, ``notícia'' porque o seu tratamento evoca ameaças mas também reafirma a moralidade consensual da sociedade; desenrola-se perante nós uma peça de moralidade moderna na qual o ``demô-nio'' é expulso tanto simbólica como fisicamente da sociedade pelos seus guardiões - a polícia e a magistratura. (HALL, In: TRAQUINA, 1999, p.237-241)

O trecho traduz exatamente o que aconteceu ao protagonista Sandro do Nascimento. Primeiro, ele é banido pela polícia, que o asfixia dentro do camburão. Depois, a mídia o estigmatiza como ``diabo'' e ``louco'' e, sem lhe abordar o passado histórico, Sandro resta apenas como ameaça a ser eliminada também simbolicamente.

Algumas passagens ilustram esse distanciamento entre ``nós'' e ``eles'', veiculado pelo Jornal Nacional na abordagem do caso. No edição de 12 de junho, o JN exibe um trecho do pronunciamento do então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, sobre o episódio. À certa altura, ele declara:

``Uma violência que é absolutamente inaceitável...
E até certo ponto contristado por não ver uma ação mais rápida que fosse capaz de evitar o desenlace fatal de uma jovem absolutamente inocente. Isso impõe a todos nós, brasileiros, e sobretudo nós que temos responsabilidade de governo, a necessidade de uma ação conjunta, mais eficaz, para combater a violência, o crime, a droga. Por que estamos chegando a um ponto que é inaceitável.'' (12/06)

O discurso de FHC enfatiza que a morte de Geisa poderia ter sido evitada, sem fazer referência ao assassinato de Sandro que, sutilmente, é categorizado como acontecimento esperado e até aceitável. Depois, o presidente conclama a população para agir contra essa violência provocada pelo crime e a droga, partilhando sua visão com toda a sociedade, reforçando assim o simbolismo de ``nós'' contra ``eles''.

A declaração do pedreiro Carlos Leite Faria, refém do ônibus e confundido pela polícia como cúmplice de Sandro do Nascimento, veiculada em reportagem do dia 14 de junho, também contribui para dar ao episódio um tom maniqueísta. No início da reportagem, uma voz em off, em meio a imagens do pedreiro, afirma: ``Este homem retomou a rotina depois da tarde de terror. Só hoje pegou ônibus''. Em seguida, Carlos dá o seu depoimento: ``A gente entra com medo de acontecer tudo novamente. Aquele louco lá com a arma apontada para a cabeça da refém. Podia me pegar como podia pegar outro''.

A fala do pedreiro serve para reafirmar a identidade de Sandro, definido como ``louco''. Além disso, o texto em off destaca a volta de Carlos à rotina, que é algo comum à maioria dos cidadãos brasileiros. Daí nasce a identificação da personagem com o telespectador que, também trabalhador e possuidor de uma rotina, logo pensa: ``poderia ter sido comigo''. Este sentimento é confirmado pela declaração do pedreiro, que fala do medo de pegar um ônibus e que Sandro poderia ter escolhido qualquer um, até mesmo ele (ou o telespectador). Ou seja, constrói-se apenas dois lados para a questão, colocando-a entre ``o bem e o mal'': o trabalhador comum, em pânico, e o ``louco'' à procura do ``terror''.

Conclusão

O sociólogo Luís Eduardo Soares, no filme Ônibus 174, discorre sobre a ``invisibilidade'' dos menores de rua no dia-a-dia dos centros urbanos brasileiros. Eles estão em todos os lugares - praças, parques, calçadas, semáforos e outros - e recebem, ostensivamente, o desdém dos transeuntes que por eles passam. Meninos e meninas, de idades variadas, içadas às ruas pela violência familiar, a pobreza, a imposição dos pais ou o simples descrédito com a vida, não se relacionam com outras pessoas que não sejam os próprios colegas de rua. Ninguém lhes dirige a palavra. Os vidros dos carros sobem e pedestres até atravessam a rua ante a presença de um desses garotos. São ``invisíveis'' perante a sociedade que, devido à convivência diária com o problema, passou a encará-lo de forma habitual e a incorporá-lo à rotina.

Sandro do Nascimento saiu de casa cedo, após presenciar o assassinato da mãe. Nas ruas, a ``invisibilidade'' desaparecia quando realizava assaltos e roubos, pois o medo estampado no rosto da vítima indicava a influência da sua presença e que, de fato, ele existia e possuía uma identidade. Fora isso, era apenas mais um Sandro. Até que no dia 12 de junho, após o roubo frustrado de um ônibus da linha 174, Sandro tornou-se ``Sérgio'', nome dado a ele pela polícia para estabelecer a comunicação entre ambos. A TV logo apareceu e exibiu ``Sérgio'' para todo o país e o mundo. É o momento sublime da ``visibilidade'', pelo qual Sandro esperara a vida inteira. Ao final do episódio, longe dos holofotes, ``Sérgio'' dá lugar a Sandro e, novamente insignificante, é assassinado pelos policias dentro do camburão, por estrangulamento.

A inevitável comparação entre o documentário Ônibus 174 e as edições analisadas do Jornal Nacional, guardadas as devidas diferenças entre os gêneros, traz uma constatação evidente: Sandro é o personagem do filme; e ``Sérgio'', do telejornal. A intenção de José Padilha, diretor do documentário, é trazer à tona o período de ``invisibilidade'' de Sandro, com o objetivo de tirar o espectador da inércia e acordá-lo para o problema que está à sua volta. Sandro tinha família, passou por prisões imundas e subumanas, sobreviveu ao massacre da Candelária, tentou ``arrumar a vida'' e, sem conseguir emprego, terminou morto em um camburão. O Jornal Nacional, por sua vez, explora a personagem ``Sérgio'', que apresenta todos os ingredientes para reforçar o clima de pânico na sociedade: negro, drogado, favelado, foragido, ``pactuado com o diabo'', cruel e disposto a matar. O telejornal utiliza imagens e falas de ``Sérgio'', gravadas durante o episódio, até o esgotamento emocional do telespectador, numa espécie de catarse coletiva. O que interessa ao JN são apenas os momentos de ``visibilidade'' de Sandro, em que esteve sob a mira das câmaras. Ou seja, no papel de ``Sérgio''.

Ônibus 174 caracteriza-se por ser um documentário interativo, segundo a classificação proposta por Bill Nichols. Não há voz em off, ou seja, não apresenta um narrador, e o filme sustenta-se na realização de entrevistas. Ônibus 174 traz ainda o ponto de vista do diretor sobre o episódio, que é o de focalizar a vida de Sandro do Nascimento, de modo a lhe dar importância histórica e, de certa forma, explicar as razões pelas quais ele foi o protagonista da tragédia de 12 de junho de 2000. Outra característica é a utilização de imagens colhidas in loco (no local dos acontecimentos) para detalhar o episódio do ônibus 174 e relatar a trajetória pregressa de Sandro do Nascimento. O filme também apresenta um discurso montado por diversas vozes, a partir das entrevistas realizadas. Elas são classificadas em três níveis: os envolvidos na tragédia; os participantes da vida de Sandro; e os que opinam deliberadamente sobre o caso, sem vínculos diretos. A junção destes três grupos compõe a ``teia'' discursiva do filme, resultando no aprofundamento do episódio. Sandro do Nascimento, por sinal, integra esta ``teia'', a partir da inclusão de trechos dos seus discursos proferidos aos policias, durante o seqüestro.

A narrativa de Ônibus 174, por sua vez, dialoga entre o fato em si e a vida de Sandro, num processo de ``vai-e-vem'' em que um remete ao outro. Enfim, o filme aborda um tema social, herdando o legado da Escola de Grierson. A partir do episódio, coloca-se o problema social brasileiro em diversos aspectos, desde o sistema carcerário até a ``invisibilidade'' dos meninos de rua.

Por outro lado, as cinco edições analisadas do Jornal Nacional trazem um panorama diferente do apresentado pelo filme Ônibus 174. O tratamento do episódio prima por sua espetacularização, com forte recorrência a fatores emotivos e ``chocantes'', a partir da veiculação das imagens do seqüestro e da repercussão dos reféns após o desfecho fatal. O JN chega a utilizar a informação de que Geisa Firmo Gonçalves, vítima do seqüestro, estaria grávida, aumentando ainda mais a carga dramática da tragédia. Detalhe: ao invés de confirmar a informação com a conclusão do laudo médico, o JN preferiu apoiar-se na afirmação de uma fonte periférica. Por isso, teve que se retratar ao final da edição de 13 de junho, após ter explorado largamente a suposta informação privilegiada da gravidez da vítima.

O JN também extrapolou na veiculação das imagens do episódio, no qual os momentos mais violentos foram insistentemente exibidos, criando a sensação de pânico no telespectador, que se coloca no lugar dos reféns. O desfecho fatal, em que o policial atira contra Sandro do Nascimento, chega a ser mostrado em câmara lenta, com direito a replay, bem ao estilo das transmissões futebolísticas. Em relação às pessoas ``que falam'' no telejornal, há uma completa vinculação com as autoridades, revelando o forte apoio do noticiário nas fontes oficiais. Os reféns, por sua vez, surgem como figuras dramáticas e que emprestam suas emoções às reportagens. E aos especialistas, resta o papel de confirmar o que já foi dito pela matéria jornalística, servindo de marionete em prol da credibilidade do telejornal. Como o psicólogo que, através das imagens, identifica uma tendência do uso de cocaína por Sandro. Nada concreto, apenas um indício sustentado pelo ``nome'' do profissional.

A cobertura do Jornal Nacional tem a intenção de disseminar o ``pensamento único'', como se aquele mundo criado pelo telejornal representasse fielmente o ``real''. Para isso, o JN restringe as personagens, que se limitam a esclarecer o episódio e a repercuti-lo, sem entrar no contexto social da questão. A omissão da informação de que Sandro era um dos sobreviventes da Candelária consiste na evidência maior dessa manipulação da ``realidade'', abortando debates importantes para a sociedade. Ao longo das cinco edições há também uma crescente perda de interesse pelo assunto, após o esgotamento emocional do caso. O tempo conjunto das reportagens cai bruscamente do primeiro ao último dia, pois já não há fatores sensacionalistas a serem explorados. As matérias ficam mais objetivas por conseqüência da escassez de elementos emotivos, e não por mérito jornalístico. Por fim, diversas passagens do telejornal deixam nas entrelinhas uma clara separação entre ``nós'', os telespectadores, e ``eles'', os marginais drogados e violentos das favelas. A morte de Sandro é um desejo implícito, física e simbolicamente.

Após a análise do filme e das edições do telejornal, a palavra ``abismo'' vem à boca para descrever a distância entre a ``realidade'' apresentada por cada um deles. O JN revela uma impressionante superficialidade na abordagem do fato, explorando-o como se fosse uma novela. Em entrevista, Bonner afirma que a interpretação da notícia deve ser feita pelo telespectador, que assim formula sua opinião. Mas como construir algo a partir de elementos tão circunstanciais e emocionais? E, além do mais, a própria espetacularização do fato já é um elemento coercitivo neste processo de elaboração da ``opinião'' que, portanto, torna-se induzida.

O documentário Ônibus 174, ao contrário, vai a fundo na problemática brasileira, a partir da trajetória de vida de Sandro do Nascimento. O aprofundamento do filme é tal que, após assisti-lo, há uma sensação de choque da ``realidade'', um autêntico soco na boca do estômago. A narrativa perpassa o sistema prisional, o massacre da Candelária, os internatos mirins, a falta de perspectiva dos garotos da favela, o preconceito e a ``invisibilidade'' adquirida pelos alijados do convívio social. Ao invés da refeição fast food do Jornal Nacional, o documentário traz um banquete repleto de pratos que, juntos, alimentam o sentimento de ``realidade'' proposto pelo filme.

A comparação serve também para alertar sobre outro problema: o da amplitude. O entretenimento proposto pelo JN, ao ritmo do novelesco, do sensacional, do espetacular e do emocional, atinge 40 milhões de pessoas diariamente, levando às casas a superficialidade dos fatos e uma visão induzida e pobre da ``realidade''. O filme Ônibus 174, no entanto, teve um público total de aproximadamente 70 mil pessoas no Brasil, segundo o produtor Marcos Prado. Ou seja, em amplitude bem menor que a do Jornal Nacional.

É necessário, portanto, discutir o papel da mídia e, particularmente, o do telejornalismo - principal meio de informação da população. Caso contrário, corre-se o risco de termos uma geração de Homers Simpsons a babar diante da TV, trancafiada dentro de casa e prenhe de pânico.

Bibliografia



Notas de rodapé

... policiais1
O advogado dos policiais, Clóvis Sahione, defendeu que os militares não tinham a intenção de matar Nascimento, mas que precisaram dominá-lo dentro do camburão por estar muito agitado. Ele mostrou um vídeo do perito Roberto Blanco, da Universidade Cândido Mendes, em que ele apresenta a teoria de que uma pessoa pode se asfixiar sozinha caso esteja muito agitada. Após a absolvição dos policiais, Sahione declarou: ``Acreditava que a sociedade votaria pela absolvição deles, porque se fossem condenados a criminalidade é que estaria batendo palmas''. (Cf. PMs do 174 são absolvidos no Rio, Diário Online, 12/12/2002, capturado em www.diarioon.com.br)
...aria2
A ``chacina da Candelária'', como ficou conhecida internacionalmente, aconteceu na madrugada do dia 23 de julho de 1993, no Rio de Janeiro. Oito meninos de rua foram assassinados por seis homens, que agiram em represália ao apedrejamento de um carro de polícia, ocorrido na véspera. Três policiais foram julgados e condenados pelo crime.
... ``adotiva''3
É uma senhora que deu abrigo a Sandro, sem ter nenhum vínculo familiar com ele. Embora ela tenha afirmado, após o episódio, ser a mãe verdadeira do seqüestrador. Um exame de DNA comprovou o contrário.
... Padilha4
Nascido no Rio de janeiro, em 1967. Foi produtor e roteirista do premiado documentário Os carvoeiros (1999), de Nigel Noble, e diretor e produtor de Os boiadeiros, co-produção com a National Geographic Television.
... Record5
A TV Bandeirantes tinha 40 minutos de imagens gravadas do seqüestro; a Rede Record, 4 horas; e a TV Globo, 20 horas, pois deslocara quatro câmaras para a cobertura do episódio. Padilha comprou 50 minutos de imagens dessas emissoras para montar o filme. (Cf. Ônibus 174 dissertates against Brazilian destitution and the omission of the state, Gazeta Mercantil, 06/12/20002, capturado em www.bus174.com)
...is6
Cf. Ônibus 174, site Cinemando, 16/12/2002, capturado em www.cinemando.com.br
... argumentos7
Cf. Perspectivas de desenvolvimento para o documentarismo, Biblio-teca On-line de Ciências da Comunicação, 1999, capturado em www.bocc.ubi.pt
... problema8
Cf. Ônibus 174 dissertates against Brazilian destitution and the omission of the state, Gazeta Mercantil, 06/12/20002, capturado em www.bus174.com
... inicial9
Em janeiro de 2001, o diretor José Padilha encontrava-se no International Sundace Film Festival, nos Estados Unidos, onde pôde assistir ao documentário Um dia em setembro, de Kevin MacDonald, que retrata o assassinato de atletas israelenses em um quarto da Vila Olímpica, nas Olimpíadas de Munique. A idéia de fazer o filme Ônibus 174 veio daí, como o próprio diretor explica: ``Se foi possível para eles fazer um documentário sem ter imagens do rapto, eu teria a possibilidade de fazer um filme muito interessante sobre o seqüestro do ônibus no momento em que eu tivesse acesso às imagens de televisão. Assim que voltei dos Estados Unidos, comecei o filme com recursos financeiros próprios''. (Cf. Ônibus 174 dissertates against Brazilian destitution and the omission of the state, Gazeta Mercantil, 06/12/20002, capturado em www.bus174.com)
...ublico10
Jean-Jacques Jespers, no livro Jornalismo televisivo, define a informação-serviço, ou de caráter público, como aquela que ``tem por objetivo responder a necessidades sociais ou cívicas: ajudar à acção individual ou coletiva do homem no Mundo, esclarecer as suas opções''. Ele também conceitua a informação-produto, ou de caráter comercial, como aquela ``escolhida e divulgada em função do seu valor de mercado, quer dizer do seu carácter cativante, atractivo, empático, singular ou espetacular'' (1998, p.25).
... 196911
O programa foi transmitido simultaneamente, ao vivo, para as cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre e Brasília, o que era inédito, até então, na televisão brasileira.
... fatos12
À época, o então editor de jornalismo da Globo, Luís Fernando Mercadante, declarou: ``Lugar de conteúdo não é no telejornalismo. Telejornalismo, como eu compreendo, é superficial, impressionista, rapidíssimo e dá para as pessoas um blá-blá-blá'' (idem, pgs. 115-116)
...Diretas-já13
A TV Globo ignorou o movimento pelas Diretas-já, que levou multidões às praças das grandes cidades brasileiras. O comício da Praça da Sé, em São Paulo, no dia 25 de janeiro de 1984, espelhou muito bem esse boicote. A TV Cultura era a única a realizar a cobertura direta do comício. Pressionada pela opinião pública e pelos próprios funcionários, a Globo veiculou uma breve notícia sobre o evento no Jornal Nacional. Ainda assim, apontou o comício como parte integrante das comemorações dos 430 anos da capital paulista, retirando toda a conotação política da mobilização.
... presidente14
Armando Nogueira, à época diretor-geral do telejornalismo da Globo, foi afastado e, em seu lugar, assumiu Alberico Souza Cruz, que exercia o cargo de diretor de telejornais da emissora. Nogueira conta que a edição distorcida do debate foi realizada sem o seu conhecimento, e que a possibilidade de vitória do candidato petista Lula precipitou uma reação dos partidários de Collor dentro do próprio setor de jornalismo da emissora. Pesquisas de opinião revelaram que o apoio a Lula parou de crescer e começou a declinar após o debate e sua edição pelo Jornal Nacional.
... federal''15
Cf. Novas estratégias políticas na Globo? - O Jornal Nacional antes e depois da saída de Cid Moreira, Intercom, 1999, capturado em www.intercom.org.br
...encia''16
idem, p.4
... emissora''17
ibidem, p.10
... credibilidade18
Em um documento interno do SBT, de 1991, a emissora estabelece as características do projeto do novo telejornal: ``Queremos ter um jornal que seja tão bom quanto o Jornal Nacional, com ritmo, beleza plástica, grandes reportagens... Enfim, show e emoção. Só que queremos ter isso e mais a isenção'' (ver Porto, p.8). O SBT constituiu seu novo telejornal suprindo a principal debilidade do concorrente JN: a falta de neutralidade.
... variedades19
ibidem, p.20
...is20
Dados do IBOPE da primeira semana de 2002 indicam uma audiência de 34% para o Jornal Nacional, na grande São Paulo. O mais próximo dele é o Jornal da Record, da Rede Record, com apenas 8% de audiência.

... esquecer''21
Cf. Ônibus 174 não passa na Cidade de Deus, Observatório da Imprensa, 06/11/20002, capturado em www.observatorio.ultimosegundo.ig.com.br
...avel22
Cf. Santa TV, olhai por nós, Observatório da Imprensa, 18/12/20002, capturado em www.observatorio.ultimosegundo.ig.com.br
... Vertov23
Nanuk, o Esquimó centra-se ao redor do esquimó Nanuk, da sua mulher Nyla, dos seus dois filhos e do cão Comock. Flaherty foi até à Baía de Hudson, ao norte do Canadá, para filmar a vida cotidiana dos esquimós (povo inuit). O Homem da Câmara, por sua vez, traz imagens de um dia passado na cidade de Odessa, onde Vertov retrata a vida das pessoas em meio à espontaneidade de seus movimentos, gestos e atividades.
... Grierson24
John Grierson foi a figura mais importante do movimento documentarista britânico dos anos 30, do século passado. A escola de Grierson efetivou a produção de filmes documentários, então subsidiada pelo governo britânico, dando impulso ao desenvolvimento do gênero.
...documentário25
Grierson utilizou a palavra ``documentário'' em 1926, para se referir ao filme Moana, de Robert Flaherty, que trazia a força das imagens em seu conteúdo, revestindo-se de valor documental da realidade. A referência veio da palavra francesa documentaire.
... fato''26
Os filmes de fato ou factual films se caracterizam pela descrição e exposição crua dos fatos.
... loco27
Cf. Perspectivas de desenvolvimento para o documentarismo, Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação, 1999, capturado em www.bocc.ubi.pt
... me28
Roger and me conta a história do próprio diretor, Michael Moore, mostrando suas tentativas de se dirigir ao ``patrão'' da General Motors, na cidade de Flint, Estados Unidos. O objetivo de Moore é confrontá-lo sobre as demissões ocorridas na unidade da GM.
...ao29
A produção documental não possui uma fase de pré-produção, tão característica nos filmes ficcionais. ``Existe uma preparação que antecede as filmagens, mas a concretização do filme está em muito dependente do que o seu autor encontra in loco. Por assim ser, antecipar os acontecimentos é uma tarefa impossível, pois os mesmos são por natureza imprevisíveis. (...) Um documentário é construído ao longo do processo da sua produção. A sua preparação, consubstanciada pelo argumento, é não mais do que a definição clara das intenções do seu autor, da abordagem ao tema, da forma que pretende adoptar e dos locais e pessoas a filmar'' (ibidem, p.109).
...off30
A voz em off ocorre concomitantemente à exibição das imagens, procurando explicá-las. Consiste na narração de um texto, elaborado para descrever determinado acontecimento.
...icias''31
Cf. O processo de construção da notícia no jornalismo de televisão: a seleção do fato e a organização visual da reportagem, Intercom, 2001, capturado em www.intercom.org.br
...encia''32
Cf. Ônibus 174 investiga origem da violência do País, Observatório da Imprensa, 11/12/20002, capturada em www.observatorio.ultimosegundo.ig.com.br
... filme33
Cf. O documentário como gênero audiovisual, Intercom, 2002, capturado em www.intercom.org.br
... favelas34
Em 1965, o Jornal do Brasil lança o Festival do Cinema Amador. A favela continua sendo o local predileto, como pode ser observado nos filmes Escravos de Jó (1965), de Xavier de Oliveira, Infância (1965), de Antônio Calmon, Garoto de Calçada (1965), de Carlos Frederico Rodrigues, e outros (idem, p.38).
... jornal35
Cf. As favelas no cinema, site Reator.org, 2004, capturado em www.reator.org.br
... particular36
O documentário Ônibus 174 contém imagens originalmente filmadas e exibidas em Notícias de uma guerra particular, cedidas pelo diretor João Moreira Salles. Este fato consta nos agradecimentos finais, nos créditos de Ônibus 174.

... propaganda37
Segundo Yakhni, os primeiros documentários expositivos surgidos no Brasil coincidem com a produção dos cinejornais do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), criado em 1939 pelo governo Getúlio Vargas. (YAKHNI, 2003, p.11)
... possibilidades''38
Cf. Ônibus 174 dissertates against Brazilian destitution and the omission of the state, Gazeta Mercantil, 06/12/20002, capturado em www.bus174.com
... ver''39
Cf. O documentário como gênero audiovisual, Intercom, 2002, capturado em www.intercom.org.br
...uestro40
Cf. Ônibus 174 e o tribunal do júri, Revista Forum on-line, 2003, capturado em www.amaerj.org.br.
... fechada''41
Ônibus 174 dissertates against Brazilian destitution and the omission of the state, Gazeta Mercantil, 06/12/20002, capturado em www.bus174.com
... 17442
Muitas das características de Ônibus 174 podem ser encontradas na produção do documentarista americano Emile de Antonio (1920-1989). Ele foi pioneiro no uso de entrevistas e de filmes de arquivo provenientes de fontes como televisão, bibliotecas, arquivos governamentais e outros. Além disso, dispensava a figura do narrador em seus documentários. Como coloca Penafria, ``seus filmes são o resultado de muitas horas de pesquisa sobre os filmes de arquivo e entrevistas, a que ele dá uma estrutura. Essas obras produzem uma densa complexidade sobre o passado (...)''. (idem, p.68)
... transmitir43
Cf. O ponto de vista no filme documentário, Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação, 2001, capturado em www.bocc.ubi.pt
... desenvolvimento''44
Cf. Ônibus 174 dissertates against Brazilian destitution and the omission of the state, Gazeta Mercantil, 06/12/20002, capturado em www.bus174.com
... narrativa45
O documentário como gênero audiovisual, Intercom, 2002, capturado em www.intercom.org.br
...ublica''46
Cf. Perspectivas de desenvolvimento para o documentarismo, Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação, 1999, capturado em www.bocc.ubi.pt
... vida47
Cf. Santa TV, olhai por nós, Observatório da Imprensa, 18/12/20002, capturado em www.observatorio.ultimosegundo.ig.com.br
... forma''48
Cf. Ônibus 174 relembra tragédia carioca, site Terra, 06/12/2002, capturado em www.terra.com.br
... ``cronomentalidade''49
Traquina cita os próprios títulos de jornais e noticiários portugueses como referências claras a essa mentalidade conformada pela imposição do tempo: o Diário, o Dia, o Semanário, 24 horas, Sábado e Tempo (idem, p.174). No Brasil, o mesmo pode ser verificado: Em cima da hora (telejornal da GloboNews); O Tempo, impresso de Belo Horizonte; O Dia, do Rio de Janeiro; Zero Hora, de Porto Alegre; Jornal Hoje (telejornal da Rede Globo); entre outros.
...aculo50
Cf. O domínio da informação-espetáculo na televisão, Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação, 2001, capturado em www.bocc.ubi.pt
...encia51
A home page da Rede Globo indica um público estimado em 40 milhões de telespectadores. Em 1997, o diretor da Central Globo de Jornalismo, Evandro Carlos de Andrade, informava que o Jornal Nacional atingia, em média, 40% dos aparelhos ligados no país, cerca de 30 milhões de pessoas. (Ver REZENDE, p.170)
...encia52
Boris Casoy, à época, já era consagrado no jornalismo impresso, chegando ao cargo de editor-chefe da Folha de S. Paulo. Ele estava à frente do TJ Brasil no dia 4 de setembro de 1988, data em que o telejornal entrava no ar pelo SBT. O noticiário trazia as reportagens usuais sobre os principais fatos brasileiros, e inovava com a introdução de entrevistas ao vivo e a emissão de opiniões por parte de Casoy. O resultado foi imediato: o TJ transformou-se no segundo produto do SBT a atrair mais publicidade.
... governista53
Cf. ``Novas estratégias políticas na Globo? O Jornal Nacional antes e depois da saída de Cid Moreira'', Intercom, 1999, capturado em www.intercom.org.br
...icia''54
O domínio da informação-espetáculo na televisão, Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação, 2001, capturado em www.bocc.ubi.pt
... novamente''55
Após o seqüestro, Damiana do Nascimento perdeu a fala. Esta informação foi revelada no documentário Ônibus 174. Hoje, ela se comunica por meio de sinais, mímicas e frases escritas no papel.
... Simpson56
Na reportagem Jornal da Band desafia o ``modelo Homer'', Antônio Sampaio traz a palavra de William Bonner, apresentador e editor do Jornal Nacional. Bonner afirma que o consumidor médio do JN é denominado de ``Homer'' na emissora, numa referência explícita ao personagem do seriado animado Os Simpsons, cuja principal característica é o estado catatônico quando defronte à TV. O editor afirma que ``Homer só quer saber do fato e formar sua opinião própria''. (Cf. Jornal da Band desafia o ``modelo Homer'', site reator.org, capturado em www.reator.org.br)