Modernidade e indumentária: As mulheres islâmicas 1

Maria Johanna Schouten
Universidade da Beira Interior


Índice

Entre as condições impostas às mulheres afegãs, sob o regime dos talibãs, o uso obrigatório da burqa deu mais nas vistas, embora houvesse obrigações e proibições bem piores. As mulheres sem rosto, limitadas nos seus movimentos, representavam para os ocidentais a prática do Islão, tal como prescrita pelo regime: rigorosa, impiedosa, desprezando e oprimindo as mulheres.2

A burqa assumiu portanto uma função de símbolo, o que, aliás, é sempre o caso com a roupa, as jóias e o penteado, no seu uso fora da esfera privada. No entanto, cuidado com os símbolos! Estes podem ter significados distintos para vários grupos. Se o receptor da mensagem não entender bem a linguagem, ou seja a cultura, do emissor, a interpretação do símbolo será diferente da pretendida. Este tipo de malentendidos ocorre com frequência em relação ao vestuário das mulheres islâmicas.

O presente texto proporciona alguns dados e reflexões acerca da indumentária das mulheres muçulmanas e sobre as mudanças recentes neste tempo que é de modernidade. Propõe-se abordar, em especial, as razões por trás do uso do vestuário islâmico e o valor atribuído a este símbolo, dentro e fora da comunidade islâmica, pelas forças d poder e pelas mulheres.3

Prescrições acerca da roupa (as chamadas dress codes) estão em vigor em grande parte do mundo islâmico, variando conforme a zona geográfica e a camada social. Quanto ao véu, existe uma diversidade de modelos usados, quer por mulheres do Afeganistão, de Argel, de Ádem ou da Alemanha, e muitas vezes as diferenças estão presentes no seio dessas próprias sociedades. Por outro lado, assistimos hoje a uma certa uniformização do vestuário islâmico, que advém da tendência ao fundamentalismo4 no Islão e o desejo dos muçulmanos se afirmarem, frente aos ocidentais, reforçando a ideia de umma (comunidade global islâmica).

Será argumentado que austeridade na doutrina é apenas uma das motivações para o uso do véu. Muitas mulheres vestem um traje considerado islâmico simplesmente por ser tradição no seu ambiente. Outras adoptam-no sob pressão, quer do Estado, quer do meio social directo. Mas não são raras as mulheres islâmicas modernas que põem o véu por iniciativa própria, por razões práticas, como acto de auto-afirmação ou como uma forma de empowerment.5

No mundo ocidental, já há muito tempo, o véu tem sido considerado como uma pars pro toto do mundo islâmico, embora de modos diversos. Nos escritos orientalistas dos séculos XVIII e XIX, mormente até ao fim do Império Otomano, o véu apontava o eroticismo das cidades do Maghrebe e do Médio-oriente, com os seus haréns e os seus contos de mil e uma noites. "Sensualidade" foi uma das imagens mais poderosas que se criarem entre os ocidentais sobre o mundo islâmico, e para isso basta observar algumas das obras de arte mais famosas do século XIX.6 Hoje em dia, provavelmente, a primeira associação que os ocidentais fazem com o Islão é aquela de "opressão da mulher", que também se reflecte no uso do véu. São ideias reducionistas tanto sobre o Islão como sobre o véu.

O vestuário contém aspectos colectivos e individuais. Emite uma mensagem para decifrar, mas, ao mesmo tempo, esconde muito: (partes d)o corpo, e motivações individuais. O mesmo estilo de vestuário cobre as diferenças e acentua as convergências de um conjunto de indivíduos. As mulheres que usam o véu têm em comum a profissão da fé islâmica, mas de resto, entre elas, podem existir grandes diferenças.

Apesar da existência de diferenças individuais, as intervenções sobre o corpo estão estreitamente ligadas a normas sociais, de modo que a roupa já foi denominada o nosso "social and cultural skin".7 Em qualquer sociedade, a roupa reflecte a pertença a um grupo ou categoria e, assim, tem a capacidade de revelar, à distância, características de uma pessoa, por exemplo o género, a idade, o grupo étnico ou a religião. Manning Nash coloca o vestuário na mesma esteira com a língua e as características físicas relevantes, apelando-as de "surface pointers", porque, já num primeiro contacto, sugerem certas características da pessoa em questão.8

Assim, a multiculturalidade de uma sociedade reflecte-se numa diversidade de vestuário, nomeadamente no das mulheres. É verdade que o traje dos homens tem importância, nomeadamente quando estes são figuras de referência na sua sociedade. Na Indonésia, o peci (``bóina'' típica) preto foi introduzido pelo primeiro presidente, Soekarno, como símbolo do todo o povo da Indonésia e ficou associado ao nacionalismo.9 Outro grande líder foi o dos Muçulmanos na Índia britânica, M.A. Jinnah. Este, com a intensificação do movimento para um estatuto distinto da população islâmica, trocou os seus fatos ocidentais exclusivos por um traje mais idiossincrático. Deste modo, serviria como ponto de referência para Paquistão o casaco sherwani, as calças folgadas shalwar, e a ``bóina'' karakuli.10 Estes são personalidades prominentes, e não todos os homens seguiram; estes têm mais liberdade neste aspecto que as mulheres.

São as mulheres que são "the repositories of culture via their clothes".11 O provérbio da Índia ocidental "the burden of maintaining Hindu religion is on women's shoulders",12 deve ser interpretado tanto literalmente como de modo figurado. Lembremos as teses de Mary Douglas sobre o corpo das mulheres e as "fronteiras":13 É pelas mulheres que as comunidades demarcam o seu "território", a sua cultura, as suas normas. A indumentária das mulheres serviria para representar e sublinhar esta singularidade da cultura, para além de ser uma indicação importante da virtude da família ou da comunidade.

Vestuário e governos

Não é preciso ir muito longe para procurar exemplos da importância do vestuário feminino islâmico para muçulmanos e não muçulmanos. Na Europa ocidental, esta questão frequentemente tem sido tópico de debate. Um debate que não se tem realizado em Portugal, onde os muçulmanos são uma minoria minúscula e quase despercebida, contando menos de 40 000 pessoas.14

No entanto, noutros países da Europa Ocidental, os muçulmanos são mais numerosos, ultrapassando na sua totalidade largamente os 10 milhões.15 A presença islâmica num meio imbuído pela tradição cristã tem a potencialidade de gerir problemas. Sobre esta questão já houve alguma reflexão jurídica e sociológica e acesos debates públicos e políticos. Destes, provavelmente o mais conhecido e polémico é aquele que tem precisamente a ver com o guarda-roupa. Em França, em 1989 começou a polémica dos "foulards", dos véus. A grande questão que se colocava era se as raparigas, usando lenços na cabeça, podiam ser admitidas nas escolas públicas, onde a laicidade é um dos valores sagrados. Uma questão entretanto resolvida a favor dos defensores do véu, mas que, de vez em quando, surge de novo.16

Na Holanda, com uma população islâmica de 5 a 6 % (menos do que em França), verificam-se atitudes várias face ao véu. Para uma grande cadeia de supermercados é indiferente se é nos ombros ou na cabeça que as operadoras de caixa põem o lenço com o símbolo da empresa, parte da farda de trabalho. No entanto, outros empregadores têm despedido mulheres que insistiam em tapar a cabeça. No Verão de 2001, o tribunal da cidade de Zwolle não autorizou uma jovem muçulmana, candidata à função de escrivão-adjunto, a usar lenço durante as sessões públicas. O tribunal alegou qua tal situação poria por em causa, junto do público, o ideal de neutralidade do poder jurídico. A imagem de objectividade poderia ser afectada, se os elementos do tribunal mostrassem as suas convicções pessoais, por meio de "símbolos religiosos". Na argumentação do tribunal também se mencionava: crucifixos, turbantes e as kipas dos Judeus.17 No entanto, parece-me que nenhum destes atributos geraria tanta polémica como o véu.

Fora da Europa, muitos são os estados com grande população islâmica, que têm leis acerca da roupa feminina. Essas regras vão da obrigação até à proibição e estão relacionadas com a ideologia estatal. Por exemplo, na Turquia, um estado que desde Atatürk se declara laico, o uso do véu é condicionado, até proibido em estabelecimentos escolares, nomeadamente nas universidades públicas. Também as funcionárias públicas não podem usar lenço, uma regra que se estende até às representantes do povo nos órgãos legislativos. Recentemente, uma deputada perdeu o seu lugar no parlamento por esse facto. A deputada pretendia, com o seu guarda-roupa, chamar a atenção para as regras impostas que ela não considerava conforme a liberdade de expressão.

A Indonésia é outro país com regras limitativas. Desde a sua declaração de independência (1945), este Estado, com grande maioria islâmica, oficialmente tem valorizado a diversidade cultural e religiosa, assim como a tolerância.18 Nas escolas públicas as identidades religiosas não podiam ser acentuadas, e, por isso, não havia lugar para raparigas de cabeça tapada ou de saia comprida. No entanto, essas regras têm vindo a alterar-se, desde os finais dos anos setenta, com o aumento da pressão sobre o regime de Suharto dos poderosos grupos islâmicos, que defendiam a atribuição ao Islão de um papel mais influente e mais visível na sociedade.19

No mundo, em geral, nota-se uma influência crescente do fundamentalismo islâmico ou "islamismo22, segundo o qual o governo ou o Estado não pode ser separado da religião. Alguns estados deixam orientar-se por esse fundamentalismo, reflectindo-se nas leis acerca do vestuário. Entre esses países destacam-se: a Arábia Saudita e países vizinhos, o Irão e o Afeganistão dos talibãs. As regras em vigor também se aplicam aos não-muçulmanos que se encontram nesses países. Nos écrãs televisos do ano 2000, a repórter da CNN em Teerão, com um lenço elegante tapando os cabelos, era uma presença habitual. Durante as acções militares contra os talibãs, em 2001, recebemos imagens semelhantes do Paquistão, embora neste país não existam prescrições acerca do vestuário; as repórteres vestem-se assim, adaptando-se aos costumes gerais. Recentemente, a KLM, a companhia aérea holandesa, deu orientações ao seu pessoal acerca da guarda-roupa apropriado a usar durante as estadias em Teerão, facultando peças de roupa, com destaque para os lenços de cabeça para as mulheres. No Irão e noutros países, as praticantes de desporto não escapam às regras. Devem vestir a roupa prescrita, quando expostas aos olhares dos homens. Na prática, isso quer dizer que se organizam eventos desportivos com uma presença completamente feminina entre atletas, treinadores e público.20 Por outro lado, os prestigiosos eventos internacionais são, em grande parte, vedados às mulheres destes países, sendo apenas acessíveis certas modalidades como a canoagem e o tiro, nas quais a indumentária prescrita não parece incomodar demasiado. Os elementos femininos da delegação do Irão nos Jogos Olímpicos de Sydney participaram precisamente nessas modalidades. Quando não é o governo que coloca obstáculos, as atletas podem ser confrontadas com uma atitude hostil, por parte de certos grupos da população. Notório e triste é o destino da atleta argelina Hassiba Boulmerka, antiga campeã olímpica e mundial nos 1500 metros. Esta mulher é uma heroína nacional aos olhos do governo e de muitos dos seus conterrâneos, como ficou patente no pavilhão do Argel, na Expo 98. No entanto, para Boulmerka, é impossível viver no seu próprio país. O exílio foi a única opção viável, após ter sido ameaçada de morte, por grupos religiosos, já que alegadamente transgrediu as normas de decência.21 Acrescenta-se que, no país vizinho, Marrocos, as atletas (algumas das quais tiveram grandes sucessos nos anos 80 e 90) não encontraram dificuldades deste tipo.

Em defesa do hijab

Estudiosos islâmicos recorrem, para explicar e justificar as suas regras do vestuário feminino, às escrituras sagradas. Estas são o Alcorão e o hadith, os ditos, as acções e as decisões de Maomé.

O Alcorão contém várias passagens que se debruçam sobre a roupa e o adorno a serem empregues pelas mulheres, nomeadamente Sura XXIV, versículo 31 e Sura XXXIII, versículos 53 e 59, que seguem na íntegra, numa tradução portuguesa. 23

XXIV: 31 "Diz às crentes que baixem os olhos e observem a continência, que não mostrem os seus ornamentos (além dos que normalmente aparecem); que cubram o peito com seus véus e não mostram os seus atractivos, a não ser aos seus esposos, seus pais, seus sogros, seus filhos, seus enteados, seus irmãos, seus sobrinhos, às mulheres suas servas, ou aos escravos ou servos varões sem desejos carnais, ou às crianças que não ligam à nudez das mulheres; que não agitem os seus pés enquanto andam, para que não chamem à atenção sobre seus ornamentos ocultos.

XXXIII: 53 "E se pedirem às mulheres do profeta qualquer objecto, peçam-no por detrás duma cortina (de um véu). E isso será mais puro para os vossos corações e para os delas.

XXXIII: 59 'O Profeta, diz a tuas esposas, a tuas filhas e às mulheres dos crentes que se cubram com as suas mantas; isso é mais conveniente, para que distingam das demais e não sejam molestadas.

Estes textos oferecem várias interpretações. Há, por exemplo, divergência sobre o tipo exacto de roupa indicado no versículo XXXIII: 59. Encontrei traduções como: véu; manta; largo véu; ou, mesmo em árabe, duas palavras diferentes, jalabib ou khimar. Também as indicações sobre as circunstâncias em que se deve usar esta indumentária e acerca da sua obrigatoriedade, deixam margens para divergências de opinião, entre os muçulmanos.24 Aplicavam-se estas regras apenas às mulheres e familiares de Maomé? Apenas às primeiras gerações de muçulmanas, nas suas condições típicas de uma sociedade tribal e nómade, no meio do deserto? Ou são obrigatórias para todas as muçulmanas, não importa o tempo e a zona geográfica?

Seja como for, muitas das mulheres islâmicas tapam os cabelos, os braços e as pernas. Em casos mais extremos, o rosto é coberto (niqab) e usam-se luvas e meias. Até há pouco tempo, o modo específico de cumprir as regras corânicas revelava os costumes locais ou nacionais. Em vastas áreas do Paquistão, por exemplo, as mulheres usam calças largas (ghararas) e por cima dessas uma túnica (chemize) até aos joelhos. Um lenço, leve (duppata) ou mais pesado (chadar), cobre os cabelos e ombros. Nas zonas ocidentais e especialmente no noroeste do Paquistão, as mulheres vestem a burqa, a manta larga que esconde o rosto,25 quando se deslocam para fora do seu terreno "familiar".26 O tipo de indumentária depende, portanto, das circunstâncias e do espaço: privado, público ou um território intermédio.

Uma ideia sobre os vários estilos de roupa feminina agora comuns no mundo islâmico, pode tirar-se do catálogo on-line da empresa (provavelmente sediada nos EUA) Al Hannah (www.alhannah.com) que vende roupa nos estilos de Marrocos, Turquia, Jordânia, Arábia Saudita e Paquistão.

A diversidade de estilo tem diminuída recentemente, não estando alheio o reforço do movimento fundamentalista, segundo o qual a umma tem maior importância do que os estados e as regiões. Tem-se verificado um processo de estandardização, seguindo o suposto modo de vestir dos homens e das mulheres pertencentes ao círculo do profeta, ou, então, os costumes árabes. Por exemplo, no norte da Nigéria, a paisagem urbanística, que antes era pincelada com as cores vivas e diversas da roupa das mulheres-vendedoras, perde actualmente muito da sua alegria. Num movimento maciço, as mulheres têm adoptado um guarda-roupa considerado mais próprio do Islão, de cor toda branca.27

Outro tipo de estandardização verifica-se no hijab, o véu. Agora o modelo largo está a ganhar terreno, que tapa os cabelos, o pescoço e os ombros, ajusta-se por volta da face do rosto, passando por baixo do queixo. Esta invenção recente tem vindo a espalhar-se rapidamente no mundo islâmico. Na Indonésia e na Malásia, há onde uma geração atrás era uma raridade, mas agora é comum. Também num país como a Jordânia se tem verificado, desde os anos oitenta, um aumento enorme do uso desse véu.28 Pode ser acompanhado por roupa moderna (mas sempre decente), ou pelo jilbab (pl. jalabib), uma manta cumprida, folgada e sem recortes, com cores sóbrias.

Os motivos que os islâmicos adiantam para o uso do véu são vários. Um primeiro grupo de razões prende-se com a função simbólica e comunicativa da roupa. A mulher propriamente vestida mostraria ser uma muçulmana devota, portanto casta, e daria a entender que o seu marido e os seus parentes masculinos são homens de virtude (ver Alcorão Sura XXXIII, versículo 59). A roupa ajudaria a afastar o "pecado", dela e dos homens que vai encontrar. De acordo com este raciocínio, o lenço serve para evitar o assédio sexual e para ajudar a manter a castidade até o casamento. Protege contra o risco de transgressão de normas sexuais.

Outro conjunto de razões centra-se na chamada dignidade da mulher. Defende-se que o lenço faz com que a mulher seja valorizada pelas suas qualidades intelectuais e morais e não pela sua aparência. A mulher não suscitaria ciúmes às outras mulheres e não iria cometer o erro de vaidade.29 Nesta linha de raciocínio, o mal tem origem na mulher, já que estaria sujeita a pecar por vaidade e ciúmes. É no comportamento dela que se deve procurar as causas de assédio sexual e de actividade sexual ilícita.30 Implicitamente, assume-se uma fraqueza natural e por isso, menos condenável do homem, para quem os cabelos das mulheres proporcionam uma grande tentação.

O véu pode ser muito prático, diz-se, porque protege as mulheres dos olhares masculinos impertinentes. Tal como se afirma num anúncio de um véu que tapa o rosto, um "triple layered burqa for extra privacy: You can see out, and prying eyes can not see in.33 Um princípio salientado no Islão é a distância, ou mesmo a separação, entre os homens e as mulheres. Pode significar que cada um dos géneros tem o seu espaço, sendo o das mulheres fora do alcance dos homens.31 O conceito geral para este princípio é hijab ou (na Ásia) purdah, separação, muitas vezes realizada e simbolizada por um cortinado dentro da casa. A noção de purdah também pode ser concretizada pela roupa, quando usada por uma mulher para criar uma fronteira entre ela e os homens não-parentes. Assim, o véu dá às mulheres a possibilidade de se movimentar na esfera pública, demarcando um espaço inacessível aos homens. É neste sentido que o uso do véu é prático para muitas mulheres. Mesmo obedecendo às normas islâmicas de esferas separadas, é possível estudar e trabalhar, cruzando-se e interagindo com homens.

Uma outra motivação prática é a economia, tanto de dinheiro como de tempo, uma vez que a escolha da roupa não coloca problemas. Este argumento nem sempre é válido, já que o mundo islâmico também conhece uma moda sofisticada. A indústria de moda islâmica está a florescer e existem casas de haute couture especiais para as muçulmanas abastadas. Catálogos de moda estão disponíveis na internet e, regularmente, os hotéis mais luxuosos em Jacarta e Kuala Lumpur, por exemplo, acolhem desfiles que são grandes eventos sociais. Desafiando o mandamento de modéstia, as senhoras rivalizam entre elas pela coordenação de cores, a qualidade de material, os acessórios e as jóias.32 As revistas de moda islâmica são populares no Sudeste Asiático, enquanto que nas revistas religiosas também assuntos relacionados com a roupa são abordados. Existem inúmeros livros sobre assuntos práticos, tais como os cuidados a ter com o cabelo regularmente tapado com um véu. Num livro publicado na Indonésia, especialistas islâmicos debruçaram-se mesmo sobre a obrigatoriedade do uso do véu para travestis. "A resposta reconfortante era que os homens não são obrigados a pôr o véu; apenas quando um travesti se sente mais feminino do que masculino, ele/ ela deveria pôr.34

O véu e a modernidade

O uso do véu, hoje em dia, é um fenómeno espalhado especialmente nos meios urbanos e modernos caracterizados pela industrialização, urbanização, profissionalização, mobilidade social e o emprego das novas tecnologias. As mulheres tendem a salientar que esse vestuário é fruto da sua própria escolha e os seus antecedentes sugerem uma atitude consciente e assertiva. Na Malásia, por exemplo, não são poucas as mulheres vestidas a rigor que ocupam posições de quadro. Frequentaram universidades na Nova Zelândia ou nos Estados Unidos e muitas começaram usar o véu precisamente durante a estadia no estrangeiro. Para essas mulheres, o uso do véu coaduna-se bem com a modernidade. Senão vejamos.

Em primeiro lugar, indica que a mulher se orienta pelos escritos do Islão e pela sua doutrina original. Até há pouco tempo, a doutrina e a prática do Islão apresentava uma grande variedade no mundo. Nos meios rurais e populares, o Islão fazia parte integral das respectivas culturas locais, e as pessoas eram orientadas pelo contacto pessoal com um especialista da religião.

Mulheres modernas querem desligar-se dessas tradições locais e orais. Usando a sua literacia e o acesso aos meios de comunicação modernos, chegam a ideias mais "correctas" e uniformes sobre a prática do Islão, simbolizadas no uso do véu. Esta diferença entre a religião popular e a religião "escrituralista" no Islão foi descrita por vários autores, por exemplo Clifford Geertz em relação à ilha de Java.35 Ernest Gellner faz a distinção entre High Islam e Low Islam, e refere, também com o exemplo da Malásia: "... A mulher Muçulmana típica numa cidade malaia não usa o véu por a sua avó o ter usado, mas porque ela não o usou: a avó, na aldeia, estava ocupada demais no campo, e frequentava os locais de culto sem véu, e deixava o véu para os seus superiores. A neta está a celebrar o facto de se ter juntado aos superiores da avó, mais que a sua lealdade à sua avó.36

Uma segunda razão justificando o enquadramento do véu na "modernidade'e que o seu uso às vezes é o reflexo do desejo da mulher participar na vida pública, nomeadamente na vida profissional, entre os homens e ao mesmo nível com eles. O uso de véu é uma solução adequada para a conciliação desta ambição com as regras de separação (hijab ou purdah) que o Islão parece impor. Por outras palavras, o véu é um acessório indispensável para a mulher poder ser moderna, escapando à tradição.

E, em terceiro lugar, o véu como símbolo salienta a identidade religiosa e a distinção do mundo ocidental. Também isso se enquadra na modernidade e na chamada globalização. Uma das consequências da vaga recente da globalização (provocada pelas novas tecnologias de transporte, de informação e de comunicação) é o reforço das identidades regionais, tribais e religiosas. Largos grupos de muçulmanos aceitam aspectos da modernidade, nomeadamente a tecnologia, mas rejeitam a cultura chamada ocidental. Contra essa "westoxicação", recorrem às práticas dum Islão mais puro, manifestadas no véu; o véu que também podia simbolizar o nacionalismo e o anti-imperialismo. Entre os grupos urbanos em gerações anteriores a modernidade era simbolizada pela adopção da indumentária feminina do mundo ocidental, quer dizer sem véu. Este movimento tem encontrado um contra-movimento, pela reputação desfavorável que o ocidente tem vindo a adquirir. O fenómeno revelava-se já durante a Guerra da Independência no Argel. Se, sob influência francesa e com a modernização, houve uma tendência entre as mulheres, para renunciar ao véu, isso mudou quando, na sua luta pela nação, muitas delas começaram de novo a usá-lo.

Como já referido, a umma, a comunidade islâmica mundial, torna-se mais visível pela uniformização do vestuário. A noção desta comunidade tem ganho peso exactamente nestes últimos anos. Facilmente se estabelecem contactos entre Mauritânia e Mindanao e entre as diásporas muçulmanas da Argentina e da Austrália. Em sociedades multiculturais, o véu serve diariamente como afirmação religiosa em contactos com os outros. Aplica-se, por exemplo, à Malásia (como desenvolvi num outro texto), mas também a sociedades europeias. Durante o episódio dos "foulards" em França, o slogan dos muçulmanos envolvidos era "le voile est notre honneur". Cabe às mulheres, com a sua indumentária, serem as guardiãs da identidade e da virtude do seu grupo.

Conclusão

Será, então, o uso do véu um acto emancipatório? Parece que esta não é a terminologia adequada. Não esqueçamos as numerosas mulheres e os muitos homens islâmicos que precisamente em defesa dos direitos das mulheres, se opõem a essa prática ou não lhe dão importância. Para esses crentes, o Alcorão permite uma exegese flexível, atendendo ao contexto histórico e social do seu nascimento. Também invocam como argumento que as Suras que dão orientações acerca da roupa não devem ser referidas como frases soltas.37 No entanto, para os mais ortodoxos, a admissão da hipótese de uma interpretação metafórica de passagens do Alcorão é blasfémia. Opinião semelhante incide sobre as feministas islâmicas (das quais se destaca a marroquina Fatema Mernissi) que se pronunciam expressamente contra o véu, usando motivos religiosos. A voz delas (e deles) no mundo islâmico é raramente levada a sério, ou é classificada na esteira das "feministas ocidentais".38

Vários foram os motivos mencionados neste texto para o uso do véu. Alguns desses supõem que a iniciativa reside com as próprias mulheres e que as mulheres são as beneficiadas. Entre estes, encontram-se a motivação religiosa e piedosa das mulheres; razões económicas e práticas; a maior facilidade de se movimentar num espaço público. Segundo uma outra justificação, a indumentária das mulheres serve para marcar um grupo na sua totalidade. Representa o desejo de afirmar a identidade cultural, ou, por outras palavras, a distinção de outros. Numa atitude mais militante, é um manifesto contra os outros: o mundo ocidental, o colonialismo, o imperialismo e os regimes laicos. O véu, cada vez mais uniformizado, é uma expressão da globalização islâmica contrariando a globalização ocidental.

No entanto, frequentemente o uso do véu é imposto. Também no caso em que quando uma mulher se veste desse modo para se sentir mais à vontade fora do seu círculo de familiares, ela está a obedecer a regras estabelecidas por homens. Só criando (pela sua roupa) uma área bem delimitada para ela, pode ter um lugar no espaço público, dominado por homens. Assim, o uso do véu é inerente a um regime patriarcal.39 O Islão sublinha a diferença intrínseca dos homens e mulheres (que deve ser acentuada pela forma de vestir), e o desejo de uma certa separação entre os dois géneros. Segundo muitos Islamitas, a diferença não será em termos de superioridade e inferioridade. No entanto, os homens encontram-se numa posição de poder porque o espaço público é o terreno atribuído a eles.

Abordámos neste texto a multi-interpretabilidade e a multi-intencionalidade da indumentária islâmica. As intenções podem ser explícitas e portanto escolhas individuais, às vezes tomadas após muita reflexão.40 No entanto, frequentemente trata-se de uma questão de adaptação às práticas correntes no ambiente social. O próprio Abdurrahman Wahid, grande sábio islâmico (e Presidente da Indonésia de 1999 a 2001) afirmou que o véu não lhe revelava nada sobre os motivos da pessoa em questão.41 Neste caso, aplica-se a orientação que um provérbio indiano dá às mulheres: "Come conforme o teu gosto; veste-te conforme o gosto dos outros".42 Tem traços de opressão, para muitas mulheres e nomeadamente as islâmicas, esse gosto dos outros.

Bibliografia



Notas de rodapé

... islâmicas1
Este texto foi concebido, na sua primeira versão, no ano 2000; alterações e actualizações foram efectuadas em 2001. A temática faz parte de uma linha de pesquisa relativa a mulheres e transformações sociais no Sudeste Asiático. Agradeço a Fátima Salvado pela correcção do Português.
... mulheres.2
A burqa ou chadoree ("tenda"), como traje com uma tradição de várias gerações em vastas zonas do Afeganistão e do Paquistão, continua a ser usada por muitas mulheres, depois da derrota do regime talibã. A diferença é que agora não é uma imposição governamental.
... mulheres.3
O caso actual do Afeganistão não será tratado em pormenor, devido à falta de estudos aprofundados relativamente aos últimos anos. Para além disso, o regime dos talibãs é um caso extremo e é de lamentar que a noção que hoje muitos ocidentais têm do Islão tenha o carimbo desse regime.
... fundamentalismo4
Para os fundamentalistas, o Islão não é apenas uma doutrina religiosa mas um sistema total que deve orientar a vida em todos os seus aspectos: político, social, jurídico. É de notar que o fundamentalismo não é uma revitalização no sentido de maior espiritualidade, mas precisamente uma maior racionalização religiosa.
...empowerment.5
Ver Elias 1999: 107; Ask e Tjomsland 1998: 13.
... XIX.6
Ver Said 1995, pp. 166-167; Mernissi 2001: 43-129; Lewis 1996. Representativos são alguns quadros de Jean-Auguste-Dominique Ingres, nomeadamente "Le bain turque" (1862, no Museu do Louvre) e "A Odelisca e a escrava" (1842, em Baltimore); e de Jean Léon Gérôme, por exemplo "Le bain à Bursa".
... skin".7
Schulte Nordholt 1997: 1.
...ao.8
Nash 1989: 9-14. Os "identity markers" mas profundos são, segundo ele, a religião, a comensalidade e os laços de parentesco.
... nacionalismo.9
Van Dijk 1997: 69-71.
...karakuli.10
Ahmad 1997: 98-99.
... clothes".11
Rouse 1998: 58.
... shoulders",12
Citado por Joshi 1995: 228.
... "fronteiras":13
Douglas 1966: 137-153.
... pessoas.14
Ver Tiesler 2000. As pesquisas acerca da presença islâmica em Portugal são escassas, e foram na sua maior parte efectuadas por investigadores ligados à Faculdade das Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova em Lisboa. Em estudos sobre migrações e multiculturalidade, em Portugal, também se encontram referências aos muçulmanos. Ver, por exemplo, Bastos e Bastos 1999: 116-122, e a bibliografia em Bastos e Bastos 1999: 217-218. Um estudo português recente sobre mulheres e Islão num país islâmico (Marrocos) foi realizado por Maria Cardeira da Silva (1996; 1999).
...oes.15
Tozy 1999: 65.
... novo.16
Ver Baumard 2001.
... Judeus.17
Van Zeijl 2001: 62.
...ancia.18
Existe, no entanto, uma grande discrepância entre as regras e a prática.
... sociedade.19
Schwarz 1999: 162-193; Mulder 1980: 76-79.
...ublico.20
Em 2001, foram realizadas no Irão as "Olimpíadas das Mulheres Muçulmanas"; não consegui obter informações pormenorizadas.
...encia.21
Ver Segrave 2000: 277.
... "islamismo22
Em português, empregam-se as palavras "Islamismo" e "Islão" sem distinção. Prefiro o uso deste último, principalmente porque o inglês "Islamism" denota as versões fundamentalistas do Islão.
... portuguesa.23
Não dominando o árabe, apenas li algumas traduções do Alcorão em Inglês e em Neerlandês. Segue a tradução em Inglês de N.J. Dawood das Suras referidas: Sura XXIV: 31 "Enjoin believing women to turn their eyes away from temptation and to preserve their chastity; to cover their adornments (except such as are normally displayed); to draw their veils over their bosoms and not to reveal their finery except to their husbands, their fathers, their husbands' fathers, their sons, their step-sons, their brothers, their brothers' sons, their sisters' sons, their women-servants, and their slave-girls, male attendants lacking in natural vigour, and children who have no carnal knowledge of women. And let them not stamp their feet in walking so as to reveal their hidden trinkets." (Koran [1974], p. 216). Sura XXXIII: 53 "If you ask his wives for anything, speak to them from behind a curtain. This is more chaste for your hearts and their hearts." Sura XXXIII: 59 "Prophet, enjoin your wives, your daughters, and the wives of true believers to draw their veils close round them. That is more proper, so that they may be recognized and not molested..." (Koran [1974], p. 295).
...culmanos.24
Ver Rippin 1998 e Engineer 1992: 83-94, para uma interpretação liberal e contextualizada.
... rosto,25
A burqa, na sua origem, e ainda hoje em certos contextos, diz respeito ao véu que tapa apenas o rosto. É portanto semelhante ao niqab. A terminologia para as várias peças de roupa varia conforme o país. (Ver Herrera 2000 sobre Egipto; Jansen 1998 sobre a Jordânia; Rouse 1998 sobre o Paquistão; Ackerman 1991 e Lundstrom 1998 sobre a Malásia; Van Dijk 1997 sobre a Indonésia.).
... "familiar".26
Sobre o Paquistão, ver Rouse 1998: 57-58; Ask 1993: 213-220; Ahmed 1997; Dedebout 2001. O estilo de roupa recomendado sofreu várias vezes alterações, consoante o regime político.
... branca.27
O norte de Nigéria está dominado pelos fundamentalistas e nalguns estados a shariah, a lei islâmica, foi recentemente introduzida.
...eu.28
Jansen 1998: 90.
... vaidade.29
Estas razões são mencionadas, entre outras, na página www.geocities.com/Athens/Column/6138/hijab.html
... ilícita.30
Esta ideia pode provocar situações extremas. Desde 1978-9 no Paquistão, inúmeras mulheres foram presas, acusadas de violação, e isso porque, ao apresentar uma queixa de violaçãoo, elas próprias estão consideradas cúmplices, adúlteras. Curioso é o retrocesso que esta autora quase implicitamente assinala em comparação com a era colonial: "... under colonial rule, rape was recognized as a crime punishable for men only. ... marital rape was a recognized offense." (Rouse 1998: 63; itálico meu). Ver também Bose e Jalal 2001: 232-233.
... homens.31
Esta separação entre os géneros é aliada à ideia das diferenças intrínsecas, e não é, em primeiro lugar, uma questão de superioridade e de inferioridade. No entanto, a ideia geral é que no Islão os homens são superiores, com referência a Sura IV: 34. Especialistas do Islão, no entanto, geralmente alertam que este versículo não deve ser abordado em si, mas em relação aos versículos precedentes. Também se pode referir a versículos que manifestam o respeito para ou a equivalência de, até (alguns dizem) a superioridade da mulher: Suras XVI: 57-59; XLII: 49-50; IV:1; XXX: 21; XXXIII: 35; IV: 124. No entanto, as práticas islâmicas, nomeadamente aquelas que constam da lei islâmica (shariah), sugerem uma desigualdade: a possibilidade de poliginia; a regra que, em questões de herança, às mulheres cabe apenas metade da parte que cabe aos homens; a obrigação de obediência, de castidade, de modéstia em roupa; a tutela por homens para mulheres; o reduzido valor de depoimentos prestados por mulheres (ver Wazir Karim 1992: 224).
...oias.32
Exemplos da Indonésia são referidos por Van Leeuwen 1997: 340-345; Van Dijk 1997: 77-79.
... in.33
www.alhannah.com; Niqab collection.
...ôr.34
"The comforting answer was that men do not have to wear a jilbab; only when a transvestite feels more female than male should s/he do so." (Van Dijk 1997: 75).
... Java.35
Geertz 1960.
...ó.36
Gellner 1993, página (tradução do Prof. Armando Marques Guedes); Comparar Jansen (1998: 89): The new veil no longer refers to the respectful women secluded in the home, as previously, but rather to the young career women, working in offices and travel agencies.
... soltas.37
Ver Engineer 1992: 83-94.
... ocidentais".38
Roald 1998: 24-25.
... patriarcal.39
É evidente que a sociedade ocidental também é pensada e organizada segundo princípios patriarcais.
...ao.40
Lundstrom 1998.
...ao.41
Woodward 1996: 151.
... outros".42
Joshi 1995: 229.