Uma Teoria da Globalização Avant la Lettre. Tecnologias da Comunicação, Espaço e Tempo em Harold Innis1

Filipa Subtil
Escola Superior de Comunicação Social do Instituto Politécnico de Lisboa


Índice

Introdução

Na Europa e até no Continente Americano, as ciências da comunicação têm persistido em negligenciar um conjunto notável de pensadores canadianos que manifestaram um grande interesse pela comunicação. A investigação das relações entre comunicação, tecnologia e civilização, apresentada por autores como Graham Spry, George Grant, Northrop Frye, mas sobretudo por Harold Innis e Marshall McLuhan, entre outros, é um dos aspectos originais que talvez autorizem a referência a uma ``escola canadiana'' da comunicação. O relevo adquirido pelo último autor no mundo da cultura, da arte e dos media só episodicamente despertou curiosidade no universo académico sobre as origens e fontes da sua reflexão. Mas a corrente canadiana da comunicação não se resume, de forma alguma, a quem escreveu The Galaxy of Gutenberg (1997 [1962]). Pelo contrário, McLuhan prossegue várias das preocupações temáticas e das intuições desta tradição, embora as tenha desenvolvido de modo vincadamente próprio. Um modo tão característico e com tanto impacto que, porventura, terá contribuído, se bem que involuntariamente, para que permanecesse na penumbra uma das suas maiores influências - Harold Adams Innis (1864-1952), talvez o mais original autor norte-americano da sua geração, intelectual íntegro, precursor da análise crítica da comunicação, da sua relação com a tecnologia, o tempo e o espaço, assim como um teórico pioneiro dos processos que hoje são designados pela noção de globalização.

Ao enunciar, em 1964, o axioma ``o meio é a mensagem'', que constitui o sustentáculo da sua teoria dos meios ou media, McLuhan recuperou uma das mais incisivas reflexões de Innis, elaborada 41 anos antes, que tinha colocado os modos de comunicação, na sua vertente tecnológica, no centro do desenvolvimento das civilizações e da evolução histórica. Em The Galaxy of Gutenberg, o ensaísta canadiano não esconde a sua dívida: ``Harold Innis foi o primeiro a perceber que o processo de mudança estava implícito nas formas da tecnologia dos meios de comunicação. Este meu livro representa apenas notas de pé de página à sua obra, visando explicá-la''2 (1997 [1962]: 50). Em 1972, McLuhan volta a reconhecer a importância da obra de Innis no prefácio que propositadamente escreve ao estudo que aquele tinha publicado em 1950, Empire and Communications: ``Harold Innis, no espírito da nova era da informação, procurou modelos na profundidade da história e da existência. Viu tanto os novos como os velhos media não como meros vértices (ou pontos) para os quais devia dirigir o seu ponto de vista, mas como vórtices de poder que criam ambientes imperceptíveis que agem corrosiva e destrutivamente nas mais antigas formas de cultura''3 (1972 [1950]: v).

Harold Innis, economista e historiador da Universidade de Toronto, é um dos fundadores dessa tradição que marcou a geração seguinte. Em 1920, doutorou-se em Economia Política, na Universidade de Chicago, com uma tese sobre a história dos caminhos-de-ferro do Canadá, intitulada History of the Canadian Pacific Railway (1971 [1923]). Logo neste estudo, em algumas passagens, encontram-se enunciadas muitas das intuições e hipóteses teóricas originais que viria a investigar e a desenvolver nos últimos anos da sua vida, no âmbito de uma análise extensiva da comunicação humana. Nos anos 40, depois de uma vida de estudo dedicada à indústria canadiana (fábricas de curtumes, pesca do bacalhau, produtos florestais e caminhos-de-ferro), numa aparente deslocação do campo de estudo, na medida em que o interesse pelas comunicações não pode ser dissociado da preocupação com a história económica do Canadá, formula a ideia que servirá de fundamento à sua teoria dos meios. Segundo esta, a mudança no modo de comunicação é um elemento-chave do processo histórico com implicações profundas na organização social e cultural das civilizações. O seguinte excerto de Innis sintetiza bem o seu projecto: ``Tenho tentado sugerir que a civilização ocidental tem sido profundamente influenciada pela comunicação e que essas mudanças marcantes da comunicação têm tido implicações importantes''4 (1999 [1951]: 3).

Muita da originalidade e da profundidade do seu pensamento advém do facto de ter prolongado a análise dos modos de comunicação muito para além do que o mainstream dos estudos da comunicação promovia na época, integrando poderosamente na sua reflexão as implicações no espaço e tempo e demonstrando a indissociabilidade entre estas categorias e as tecnologias da comunicação. A orientação para o tempo desenvolvida por Innis merece uma consideração à parte, devido ao facto de - a par de Norbert Elias - ser um dos poucos expoentes das ciências sociais que não seguiram a tendência atemporal diagnosticada no mais conhecido ensaio de Hermínio Martins, ``Tempo e Teoria na Sociologia'' (1996: 87-164). Por sua vez, em trabalhos mais recentes, são vários os autores que estão unidos pela atenção temática à reestruturação tecnológica promovida pela informatização e suas implicações na transformação do espaço, do tempo e do futuro humano.

Meios, comunicação e monopólios de conhecimento em Innis

A tese de que as alterações nos modos e nas técnicas da comunicação dinamizam processos sociais de profundas repercussões históricas, embora ainda não formulada conceptualmente de forma explícita, encontrava-se já presente no primeiro livro de Innis dedicado ao caminho-de-ferro no Canadá. Ela foi uma fonte inspiradora do conceito de meios de comunicação que irá propor posteriormente e acabará por se transformar no aforismo central do pensamento mcluhaniano de que o conteúdo das mensagens se encontra nos media. Na verdade, através do estudo histórico do caminho-de-ferro canadiano, Innis desenvolve uma argumentação fértil e peculiar sobre a relevância dos equipamentos tecnológicos para o estudo das civilizações.

A tecnologia foi também um tópico importante em Thorstein Veblen, uma das influências mais manifestas de Innis para o qual o Estado e a economia deveriam ser organizados de acordo com princípios tecnológicos, em Oswald Spengler, primeiro teorizador da técnica como mera manifestação da ``vontade de poder'', e em Patrick Geddes, um sociólogo que se tornou activista das supostas virtudes descentralizadoras da electricidade, entre outros do mesmo período, que se destacaram por ver na tecnologia algum tipo de especificidade e potência para os processos de transformação social e civilizacional.

Innis defende duas ideias principais sobre a relação entre tecnologia e civilizações. A primeira afirma que as tecnologias, produto das civilizações, desvendam os modelos relacionais e de pensamento de um dado período e, por terem impacto na organização social, permitem fornecer a chave para compreender a evolução civilizacional. A segunda postula que as civilizações se expandem e estabelecem contactos entre si através de meios artefactuais e outros não produzidos pelo homem, devendo todos ser compreendidos como meios de comunicação. Nesta segunda linha de raciocínio, Innis propõe as bases de uma concepção original desses meios que não se confina ao discurso, à escrita, ao telégrafo, ao telefone, à rádio ou à televisão. Desenvolve uma noção muito mais abrangente, que engloba quer formas de transporte não construídas pelo homem, como rios, lagos, oceanos e cavalos, quer meios com origem na actividade humana, como canais, estradas, caminhos-de-ferro, navios a vapor ou, ainda, a extracção de recursos naturais. Na sua óptica, estes três meios afectam, por um lado, a organização social, porque são promotores de ambientes ou ecossistemas que medeiam as relações humanas e implicam o pensamento e a acção dos indivíduos, por outro, o comércio de tais recursos, ao permitir o contacto entre pessoas e civilizações até então isoladas5.

O caminho-de-ferro como meio de comunicação é um dos melhores exemplos desta intuição original de Innis. Na sua perspectiva, o carácter e o vigor da civilização europeia ocidental devem-se, em grande medida, à sua possibilidade de expansão no Continente Americano proporcionada pela direcção do comboio para norte. Este transportou consigo a industrialização, através do fornecimento de energia como o carvão ou construindo materiais como o ferro para a manufactura. Simultaneamente, o equipamento técnico da Canadian Pacific Railway contribuiu para a propagação da civilização europeia na América do Norte. Tê-lo-á feito, pelo menos, de duas formas. Desde logo, foi um medium que transportou por todo o Continente Norte-Americano pessoas e mercadorias oriundas da Europa, dando origem a mensageiros, como os emigrantes europeus com as suas culturas, línguas, prioridades e mensagens (tais como artefactos produzidos na Europa), para trocar entre os nativos e os emigrantes colonos. Depois, e mais decisivo, a companhia de caminhos-de-ferro canadiana foi a própria mensagem, na medida em que o potencial do seu equipamento se apresentou como uma manifestação técnica de tal modo poderosa de consumo massivo de energia, movimento rápido e capital intensivo, que irrompeu abruptamente no seio das culturas indígenas e provocou a disrupção e a destruição das suas formas de vida.

O extraordinário potencial heurístico desta conceptualização de Innis permite entender as viagens dos descobridores Portugueses e Espanhóis nos finais do século XV, no quadro de uma conjugação de forças que liga inovações tecnológicas, formas de energia, extensão do mercado e contracção espacial globalizante. As caravelas de Vasco da Gama e Colombo movidas pela energia eólica, neste tipo de visão, podem ser compreendidas como um meio de comunicação que introduziu a ``mensagem'' da civilização ocidental dos inícios da modernidade e inaugurou a colonização do Hemisfério sul e oriental do planeta (cf. Cipolla, 1976: 240-247). Na mesma linha de raciocínio, Wolfgang Schivelbush ilustra, de forma admirável, como o comboio e posteriormente o processo de electrificação, momentos cruciais da história da tecnologia, tiveram uma influência extraordinária nas nossas percepções de distância, tempo, autonomia, velocidade, risco, dia e noite. O ensaísta alemão mostra igualmente como aquele meio de transporte e aquela fonte de energia contribuíram para forjar a consciência moderna e industrializada (1986 [1977]; 1995 [1983]).

O significado do comboio como meio de comunicação surgirá completamente teorizado mais tarde em Empire and Communications (1972 [1950]). Nesta obra, Innis apresenta a teoria inovadora de que a natureza da tecnologia predominante dos meios de comunicação numa dada sociedade influencia o modo de pensar e agir dos seus membros, dando origem ao que o autor denomina ``monopólios de conhecimento'' tecnologicamente determinados. Admitindo a existência de diferentes tecnologias com distintos efeitos e estatuto ontológico, Innis considera que os meios tecnológicos da comunicação devem ser incluídos nos factores determinantes do processo de mudança social. Duas ordens de razões, uma lógica e outra histórica, estão inscritas no modelo interpretativo e crítico innisiano. O argumento lógico radica no princípio de que o homem estabelece uma relação simbiótica singular com a tecnologia. A razão histórica assenta no eixo estabelecido entre os avanços historicamente fundamentais da tecnologia e a sua aplicação primordial aos processos de comunicação - neste entendimento, a era mecânica surge com a imprensa, e a electrónica com o telégrafo.

O elemento central que permite compreender como as diversas etapas do desenvolvimento civilizacional estão implicadas na influência de um determinado meio de comunicação encontra-se no significado que os media adquirem como modos de difundir o raio de acção cognitiva do homem, tanto no sentido espacial como temporal. Nas palavras de Innis: ``Um meio de comunicação tem uma influência importante na disseminação do conhecimento através do tempo e do espaço e torna-se necessário estudar as suas características com o objectivo de avaliar a sua influência na consolidação cultural. De acordo com as suas propriedades, pode ajustar-se melhor à disseminação através do tempo do que através do espaço, particularmente se o medium é pesado e durável e difícil de transportar. A ênfase relativa no tempo ou no espaço sugere uma influência de significação na cultura na qual está incrustado. (...) O nosso conhecimento de outras civilizações depende em larga medida do carácter dos media utilizados por cada civilização ao ponto de ser capaz de ser preservada ou estar acessível à descoberta, como no caso dos resultados das expedições arqueológicas''6 (1999 [1951]: 33). A emergência e a queda das civilizações, assim como as transformações culturais no interior de uma dada civilização, devem ser entendidas na sua relação primordial com os meios de comunicação prevalecentes.

Innis, no entanto, não apresenta uma visão de mudança histórica exclusivamente dependente de um único factor, já que assinala por diversas vezes o papel dos elementos económicos, políticos, jurídicos, religiosos e ecológicos, para além das próprias alterações técnicas. O que é salientado na sua visão é a variável que terá sido negligenciada por outros teóricos: o papel dos meios de comunicação no controlo das áreas espaciais e nos intervalos de tempo. Os meios de comunicação devem ser analisados de acordo com o seu desempenho ao nível da territorialidade e da temporalidade. Neste sentido, os desafios que os diferentes ambientes colocam aos seres humanos obtêm destes uma resposta superadora da dependência da natureza que requer, segundo Innis, o cultivo do espaço e do tempo, numa acepção que tem afinidades com o conceito de ``colonização externa'' já proposto pelo primeiro grande filósofo da técnica, Ernst Kapp7. Na teoria innisiana, o nexo entre comunicação, espaço e tempo destaca-se como base teórica crucial e inextrincável.

A teoria dos meios desenvolvida por Innis postula que o factor central que distingue as sociedades é serem limitadas pelo tempo ou pelo espaço, e tal facto encontra-se intimamente ligado ao meio de comunicação predominante e à sua influência na estrutura cognitiva da mente humana. A contraposição entre os meios orais versus meios escritos proporciona um modelo para todos os media posteriores e uma base tipológica das sociedades. O avanço e o declínio das civilizações, em particular no caso dos impérios, são analisados como função da competição entre diferentes formas de monopolização do conhecimento que tem como base desvios espaciais e temporais. Como bem salienta Czitrom, os monopólios de conhecimento expandem-se e declinam, em parte, em relação ao medium a partir do qual foram erguidos. Implicam a nossa limitação a um determinado meio tecnológico de comunicação e a certas formas de conhecimento, assim como o domínio restrito por parte de um pequeno sector. Do ponto de vista cultural, o tempo está associado à história, à tradição, ao elemento religioso e a entidades hierarquizadas. O espaço enfatiza o crescimento do império, a expansão, a ligação ao presente e a regulação política secular. A fé, a cerimónia e a ordem moral caracterizam a cultura temporal. A secularização, a cientificidade, o materialismo e a ausência de limites definem a cultura espacial. Como é evidente, toda esta série de valores está presente em cada uma destas culturas, embora uns de forma dominante e outros de forma subordinada. Innis concebe o desenvolvimento e a queda das civilizações, em particular os impérios, no quadro de uma tensão competitiva entre monopólios de conhecimento baseados em desvios temporais ou espaciais (1982: 156).

Nesta visão, as sociedades pré-letradas e orais terão sido limitadas pelo tempo e baseadas em princípios de continuidade, adaptadas aos limites impostos pela capacidade mnemónica humana, único repositório da informação e do conhecimento desses grupos. Sendo necessário muito tempo e esforço de recitação e memorização para conservar o conhecimento que tende a ser fundamentalmente prático e direccionado para as questões quotidianas (estações do ano, sementeiras, colheitas, catástrofes naturais, etc.), a religião e a magia, fica invalidada ou pelo menos reduzida a capacidade cultural de produzir um novo conhecimento de cariz mais abstracto. O individualismo é quase inexistente, na medida em que é dado um grande valor à comunidade e à repartição do conhecimento. O discurso é partilhado, logo tendencialmente consensual. O tempo é, assim, algo que corre. A vida humana é um enorme fluxo onde o presente é apenas um momento. Os acontecimentos são uma sucessão de recorrências, um ciclo da vida, mesmo que cada instante possua um valor ou significado específico. O espaço é concebido como forma única e limitada destinada a proteger a comunidade e a cultura. Para estas culturas, o espaço é o local onde a comunidade vive, conserva as suas relações com o passado e o seu futuro revelado.

As sociedades limitadas pelo espaço são, por definição, já penetradas pelo sistema de preços e onde as instituições militares desempenham um papel fundamental na manutenção da ordem. São seculares nas relações entre si, materialistas nas interpretações e impessoais nas relações sociais. Concedem grande relevância ao conhecimento abstracto e exercem um grande controlo sobre o espaço, embora ao lugar se atribua relativamente pouco valor, mesmo que estejam em causa a tradição e a continuidade com o passado. O modo de pensar, comparativamente com as sociedades orais, é mais linear, racional e fragmentado, menos íntimo ou pessoal e pouco conforme com a tradição. Na visão de Innis, nestas culturas verifica-se uma tendência para `espacializar' o tempo, isto é, dividi-lo em pedaços discretos, uniformes e mensuráveis a que posteriormente pode ser atribuído um valor monetário8. Os conceitos de tempo e espaço tornam-se meras mercadorias onde o principal objectivo é conquistar novos territórios, criar e aumentar os mercados e organizar a terra sob configurações mais eficientes, através de fábricas, linhas de montagem, divisões territoriais do trabalho, etc.

Esta tipologia de sociedades orais e letradas foi posteriormente retomada e desenvolvida, embora de forma ampla e peculiar, por McLuhan, em The Galaxy of Gutenberg, onde se descreve a passagem do mundo acústico ``pré-gutenberguiano'' para o novo ambiente tecnológico decorrente da invenção da imprensa e dos princípios estruturantes de uniformidade e repetibilidade e que lhe são geralmente associados. O novo ambiente terá alterado profundamente as concepções de tempo e espaço, que deixam de estar associadas à experiência quotidiana pessoal e passam a ser concebidas como unidades uniformes e abstractas. Estas categorias, que antes se caracterizavam pelo seu carácter mítico e simultâneo, são, na ``era gutenberguiana'', sequências lineares, contínuas e uniformes onde as coisas se movem e acontecem em planos distintos e em ordens cronológicas sucessivas. O tempo e o espaço passam a ser pensados como ``receptáculos a serem preenchidos com objectos ou actividades''9 (1997 [1962]: 107), e a experiência imediata a estar condicionada pelos horários, as tarefas para cumprir, os pesos e as medidas e os cálculos10. O próprio processo histórico só tem sentido num tempo homogéneo, numa sequência ininterrupta de acontecimentos onde cada elemento ocupa um lugar específico. A percepção destas dimensões como meras quantidades contínuas e mensuráveis terá tido como efeito imediato, segundo McLuhan, a dessacralização do mundo da Natureza e do poder.

Meios-que-ligam-o-espaço e meios-que-ligam-o-tempo

Muito mais do que a caracterização tipológica de cada civilização, o interesse singular da teoria innisiana dos meios radica na tese de que o modo tecnológico de comunicação predominante exerce um condicionamento central na limitação espacio-temporal das sociedades. Categorizados como orais, escritos, impressos ou electrónicos, os media podem também ser descritos num contínuo de espaço e tempo. Na medida em que a oralidade destaca o sentido de continuidade e comunidade, a comunicação oral ``liga'' o tempo. Esta implica a construção local da organização social, ao promover a cooperação e desvalorizando a competição, direccionando a actividade para os interesses da comunidade. Nesta linha de raciocínio, as primeiras formas de escrita permaneceram ainda como modos de comunicação de ligação do tempo, tendo-se mesmo revelado fundamentais para a memória. Mas a sua crescente capacidade de alargar o universo do espaço e do tempo, para além do que é possível recordar e dos lugares conhecidos, implicou a substituição da memória colectiva, fazendo com que a palavra escrita se subvertesse enquanto autoridade de ligação de tempo.

As sucessivas inovações no domínio da escrita aumentaram as suas propriedades de ligação do espaço. Os media que ligam o espaço são relativamente flexíveis de trabalhar, mais fáceis de transportar e abundantes na capacidade de armazenar informação. Porém, são menos duráveis do que os media que ligam o tempo. Innis exemplifica através da comparação entre as propriedades do papiro ou do papel com a gravura na pedra. Devido às propriedades próprias dos meios que ligam o tempo, como a indestrutibilidade e a durabilidade, as mensagens codificadas são quase sempre de grande importância para a cultura em causa. Daí engendrarem um sentido de continuidade. A maior flexibilidade e capacidade de armazenamento fazem com que os que ligam o espaço não necessitem de carregar as mensagens que são duráveis. São comummente utilizados para transportar mensagens correntes, administrativas e de mercado, como que opondo-se aos assuntos da moral, da metafísica, da religião ou comunitários. As suas mensagens dirigem-se a populações dispersas geograficamente, para fins de administração ou para tirar vantagens das economias de escala.

Os media que ligam o espaço tendem, por consequência, a corroer as culturas locais e a alimentar a homogeneização cultural. Ao favorecerem a comunicação a longa distância e o controlo centralizado, contribuem, segundo Innis, para a privatização da comunicação e para o declínio da democracia como regime participativo. A este propósito, veja-se o que escreve Innis: ``Tenho tentado mostrar noutras publicações que, na civilização ocidental, a estabilidade de uma sociedade depende de um equilíbrio efectivo entre os conceitos de tempo e espaço. Estamos relacionados com o controlo não só em termos de vastas áreas de espaço, como também de vastos períodos de tempo. Devemos avaliar as civilizações levando em consideração a sua relação com o território e a duração. O carácter de um meio de comunicação tende a criar desvios nas civilizações favoráveis a uma sobreenfatização na categoria de tempo ou na de espaço, e só em intervalos muito raros os desvios são neutralizados pela influência de um outro medium, alcançando-se assim a estabilidade''11 (1999 [1951]: 64).

Escassos terão sido os períodos históricos que lograram atingir um equilíbrio entre os media enviesados pelo tempo e pelo espaço. A Grécia clássica, a Itália renascentista e a Inglaterra de Isabel I surgem como exemplos dessas épocas excepcionais. Devido à sua incapacidade de enfrentar os problemas da temporalização, a civilização ocidental corre o perigo do aniquilamento. ''A flexibilidade da tradição oral permitiu aos gregos alcançar um equilíbrio entre a procura de categorias de tempo e espaço nas cidades-estado. (...) Os resultados de uma sociedade equilibrada foram evidentes na derrota dos persas e no florescimento da cultura grega do século V. Esse balanço, porém, não se manteve por muito tempo''12 (ibid.: 68).

Quem primeiro chamou a atenção para a extraordinária importância e originalidade do pensamento de Innis, no que diz respeito ao processo de invasão e colonização do espaço e do tempo por parte dos media, foi James W. Carey que, além de figura proeminente dos estudos norte-americanos da comunicação, é também um dos mais atentos comentadores de McLuhan. Fê-lo através de artigos publicados a partir de 1968 e ao longo das quatro décadas seguintes, muito antes, portanto, da recente revalorização que tanto Innis como McLuhan têm merecido por parte de estudiosos como Elihu Katz e Serge Proulx. Em ``Culture, Geography and Communications: The Work of Harold Innis in an American Context'' (1981: 73-91), Carey debruça-se sobre o efeito que o crescimento da comunicação, no século XIX, teve na diminuição do espaço como critério diferenciador da actividade humana, a partir do argumento innisiano do sistema de preços, como estrutura que dá conta do consenso acerca do valor relativo dos bens e serviços. O desenvolvimento significativo das formas de comunicação terá sido crucial para o estabelecimento e expansão de um sistema de preços uniforme através do espaço. Para efeitos de comércio, todos os produtos passavam a estar no mesmo lugar, o que significou a descontextualização dos mercados até um limite tal que os preços praticados localmente deixaram de ter relação com factores de natureza local de oferta e procura, passando a corresponder a tendências nacionais e internacionais. Neste sentido, a expansão do sistema de preços foi parte de uma tentativa para colonizar o espaço. O correlativo à penetração do sistema de preços foi o que o compositor Stravinsky chamou ``mente estatística'': a transformação completa do universo mental em quantidade e o concomitante problema da sua distribuição, de tal modo que a relação entre coisas e pessoas se tornou só num problema de números. A estatística permite estender e tornar o mercado de todos os produtos mais uniforme e interdependente.

Naquele que é considerado o seu primeiro trabalho sobre a importância estratégica da comunicação e do jornalismo, ``The Newspaper in Economic Development'', publicado no Journal of Economic History, em Dezembro de 1942, Innis avalia o papel decisivo que a imprensa escrita teve para o aumento da velocidade na comunicação e no transporte no século XIX13. A velocidade teve expressão na acumulação, produção e difusão da informação, constituindo o aspecto fulcral da expansão do jornal. O telégrafo, através do incremento do fornecimento de notícias e da racionalização da sua compilação, reunia todas as condições para transformar a imprensa num medium de publicitação muito mais eficiente. Por sua vez, a impressão maquínica promoveu duas transformações de vulto: ampliou a capacidade espacial dos jornais e, em associação com a tentativa de atrair mais anunciantes, forçou a introdução nas máquinas impressoras de um novo material, a pasta de madeira para o fabrico de papel. Esta conversão forçada teve como principal consequência a corrida desenfreada por parte da indústria de papel e da imprensa americana à pasta de papel canadiana, bem como às respectivas fábricas, conduzindo à queda dos custos de produção (cf. Czitrom, 1982: 147-182, maxime 153).

A imprensa escrita passou a explorar um certo tipo de notícias e a estar dependente da publicidade, facto que contribuiu significativamente para a difusão do sistema de preços. Enquanto modelo de técnicas da produção de massa, distribuição e marketing, o jornal provou ser um precursor dos departamentos de vendas e da economia de consumo moderna. Num intervalo de tempo de meio século, entre 1875 e 1925, constata-se o aumento significativo do espaço dedicado à publicidade e a concomitante redução das notícias e da opinião. A publicidade na imprensa revela-se cada vez mais uma excelente forma de angariação de clientela para as grandes empresas, o que fará dos jornais um forte aliado do mundo dos negócios. As organizações em larga escala aliciaram os seus clientes através da publicidade na imprensa e a posição oligopolista desempenhada pelo jornal foi uma grande aliada das empresas comerciais.

Quando a colonização do espaço se efectivou nos mais diversos domínios do comércio e controlo, a atenção deslocou-se para o preenchimento do tempo, agora definido como um aspecto de espaço, uma continuação deste noutra dimensão. O tempo passou a ser a nova fronteira a conquistar. Uma vez mais, o exemplo do comércio facilita a compreensão do fenómeno. Quando os preços das mercadorias se tornaram equivalentes no espaço, em grande medida devido ao telégrafo, a especulação mudou-se da dimensão espacial para a temporal. Isto é, o esgotamento do espaço como arena de arbitragem deu origem a ``mercados de futuro'': a mudança da actividade do mercado de certos espaços para o tempo incerto. Mas esta terá sido provavelmente apenas a primeira tentativa prática para fazer do tempo uma nova fronteira, uma nova área definida de incerteza, e penetrá-la através do sistema de preços.

A segunda dimensão de tempo a ser penetrada, a partir do momento em que o espaço ficou esgotado, foi o tempo sagrado, em particular o sabbath (utilizado em sentido secular). O sabbath, inventado pelos antigos hebreus, tinha como principal objectivo criar uma esfera livre do controlo do Estado e do comércio onde outras dimensões da vida pudessem ser experienciadas e onde outras formas de relação social pudessem ter lugar. Assim se constituiu uma das maiores resistências ao poder de Estado e de mercado. No entanto, e mais uma vez para ``melhorar'' e ``aumentar'' a comunicação, a penetração efectiva do sabbath veio a ocorrer, em 1880, com a invenção do jornal de domingo. Foi Hearst, com o seu New York Sunday World, que popularizou a ideia da leitura de um jornal de domingo e criou, de facto, um mercado onde até então ainda nada tinha existido - um mercado de sabbath.

Finalmente, quando a fronteira do espaço ficou oficialmente encerrada em 1893, a ``nova fronteira'' tornou-se a noite, e a partir desse momento passou a assistir-se a um aumento constante da actividade comercial neste período. Carey apoia-se num artigo de Murray Melbin, ``Night as Frontier'', publicado na American Sociological Review, em 1978, onde este procura caracterizar a ``noite como uma fronteira''. Em termos de comunicação, a expansão regular da rádio e da televisão comerciais durante a noite são dois bons exemplos. Melbin mostrara que, entre 1918 e 1954, não existiam, em Boston, estações de rádio que emitissem durante 24 horas. No início dos anos 80 do século XX, metade das estações e canais operavam ao longo de todo o período nocturno. Também as emissões de televisão passaram a ter início cada vez mais cedo e a expandir-se lentamente pela noite até ocuparem as 24 horas do dia, situação que caracteriza hodiernamente o mercado dos media. A noção da noite como fronteira, uma nova fronteira de tempo que se abre quando a do espaço está completa, é mais do que uma simples metáfora. Melbin ilustrará também, com detalhe, algumas das características comuns às fronteiras temporais e espaciais. Ambas avançam em estádios, a população está dispersamente fixada e homogénea, há mais isolamento, uma ausência de constrangimentos sociais e menos perseguição, as decisões são isoladas, o governo está descentralizado, a ausência de lei e violência, tal como a amizade e a entreajuda/utilidade, aumentam e novos estilos comportamentais emergem. Ou seja, a mesma dialéctica entre centralização e descentralização ocorre tanto na fronteira temporal como na espacial. Por um lado, a comunicação é ainda mais privatizada à noite, por outro, as pessoas estão menos controladas pela comunicação por causa da ausência de autoridade.

Comunicação e Império

Afirmámos, anteriormente, que a colonização do espaço e o controlo centralizado implicam para Innis o declínio das formas participativas de democracia. O seu interesse pela natureza da tradição oral e pela vida da Grécia antiga encontra-se relacionado com o relevo da oralidade e da esfera pública para a vida democrática14. Innis pugnou pelo pluralismo cívico em termos de discurso contraposto à constituição de ``monopólios de conhecimento''. Sublinhou, inclusivamente, o importante papel dos novos media na II Guerra Mundial: ``Os efeitos evidentes dos novos media na eclosão da II Guerra Mundial foram intensificados durante o prosseguimento da guerra. Foram usados pelas forças armadas na imediata persecução da guerra e na propaganda dentro de portas e contra o inimigo. Na Alemanha, as fotografias das batalhas eram tiradas e mostradas nos teatros quase imediatamente a seguir. Aos alemães foi dada uma impressão de realismo que os levou a acreditar na superioridade das suas armas; o realismo tornou-se não só mais convincente mas também, com o colapso da frente alemã, mais desastroso. No mesmo sentido, o problema dos alemães é o problema da civilização ocidental. Tal como os modernos desenvolvimentos na comunicação fizeram muito pelo realismo, também têm feito muito para aumentar as possibilidades de ilusão''15 (1999 [1951]: 81-82).

Neste domínio, a influência do ``organicismo'' e do projecto reformista democrático, associado à escola de Chicago e a John Dewey, revela-se de grande importância no seu pensamento. No quadro desta tradição, o desenvolvimento de laços de proximidade exerce um condicionamento formativo da experiência democrática. Dewey e a escola de Chicago depositaram grande esperança no papel dos novos meios de comunicação para transformar a Great Society, criada pelos meios de transporte e pela comunicação, numa Great Community (expressões utilizadas por Dewey). Dewey acreditava que os jornais e as revistas poderiam potenciar o discurso e a discussão, trazendo à vida local maior intensidade.

Num outro texto publicado mais recentemente numa colectânea de homenagem a Innis, ``Innis `in' Chicago: Hope as the Sire of Discovery'' (1999), Carey apresenta um quadro das circunstâncias que permite compreender a génese do pensamento de Innis, a sua relação com o mundo académico norte-americano e ênfase nos problemas do espaço e do tempo. Na segunda metade do século XIX, dois importantes acontecimentos de natureza distinta marcam decisivamente a consciência dos habitantes de Chicago de que, mais do que numa cidade, viviam numa rede. A notícia da deflagração do grande incêndio de 1871, que devastou a cidade, irradiou de forma imperceptível pelas linhas do telégrafo e pelo caminho-de-ferro para toda a comunidade nacional e internacional, que respondeu com expressões de solidariedade e simpatia. O mesmo ocorreu com a depressão económica de 1893, em que a população se deu conta de que Chicago se tinha integrado silenciosamente num sistema nacional e internacional de mercado cujo crescimento e queda estavam dependentes da distância e de forças invisíveis e desconhecidas. O tempo e o espaço, sem que ninguém tivesse dado conta, tinham-se eclipsado, tal como era vaticinado pelos românticos, provocando consequências imprevisíveis.

Os novos factos descritos foram dificilmente compreendidos quer pelos meios intelectuais, quer pela população. Mas o seu impacto foi de tal forma grande e com consequências para o próprio sistema político que a comunicação e o papel dos media acabaram por se tornar um tema de reflexão importante para os teóricos de Chicago e do ``interaccionismo simbólico''. Para estes, a comunicação jogou um verdadeiro papel fundacional de criação de um sentido de comunidade e sua preservação. Num país novo, carecido de uma memória cultural comum, coube à comunicação o papel de promover a criação social e a integração, processos que em qualquer outra nação decorriam da tradição. Na ausência de um sentimento cultural partilhado, a unidade destas comunidades foi sendo alcançada paulatinamente através da discussão, do debate e da negociação. Nos Estados Unidos da América (EUA), a comunicação substitui a tradição. O estabelecimento de uma ordem social foi alcançado através da reunião das pessoas que assim iam construindo uma cultura partilhada comum, processo que simultaneamente se tentava incorporar na elaboração das ainda incipientes instituições sociais fundamentais para o republicanismo cívico. O carácter simbólico das coisas, das relações sociais e das instituições, mais do que resultado da memória cognitiva e cultural (do passado), estava a cada momento a ser activamente criado. É neste sentido que o conceito de comunicação de Dewey se refere à actividade de criação e imaginação e não meramente à transmissão e ao controlo do conhecimento e da cultura. Para este autor, o crucial da experiência norte-americana foi a capacidade de pessoas desconhecidas entre si criarem a partir do nada comunidades, instituições e formas sociais. Innis distanciou-se desta expectativa através da concepção que tinha das implicações dos monopólios de conhecimento e enfatizou a necessidade de manter a tradição oral como contraponto aos meios de comunicação impressos. No seu ponto de vista, o sistema de comunicação e transporte norte-americano tinha como único e principal imperativo que o processo comunicacional produzido nacionalmente, assim como o comércio que promovia, ocupasse ou colonizasse todo o tempo e espaço social. Desta forma, ninguém escaparia do alcance do ouvido ou do alcance da visão dos media nacionais. O imperialismo das imagens daqui decorrente teria a capacidade de espalhar a representação nacional para todos os tempos e espaços geográficos e culturais.

A função fundamental do tremendo investimento realizado em infra-estruturas de transporte e comunicação nos EUA (caminhos-de-ferro, canais, diques, barragens, estradas e auto-estradas) foi conquistar grandes mercados aos mais baixos custos operativos. Ao ser possível operar, pela primeira vez, independentemente do clima, estes meios tecnológicos acabaram por homogeneizar as condições naturais (como a temperatura atmosférica, a exposição solar e a precipitação) que controlavam, até então, o crescimento e a queda dos ciclos económicos. A regularidade do tempo mecânico substituiu a incerteza do tempo sazonal, fundiu a noite e o dia, o Inverno e o Verão, as temperaturas. O acesso ao transporte ferroviário e ao sistema telegráfico foi a entrada num novo ambiente separado do mundo exterior com uma concepção de tempo própria. À medida que estes meios se estenderam cada vez mais, a fronteira deslocou-se para o hinterland, levando a que os indivíduos que prosperaram no interior se tornassem cada vez mais dependentes de instituições anónimas e invisíveis a quem cabia a tarefa de distribuir e vender os seus produtos. As fronteiras, mas também as relações entre o campo e a cidade, tornam-se cada vez mais ténues, extinguindo-se as diferenças fundamentais que as caracterizavam. Esta invisibilidade foi, segundo Innis, perpetrada por um intenso trabalho ideológico que difundia a necessidade imperiosa de a paisagem natural se transformar numa economia espacial (cf.ibid.: 95).

Devido a esta visão, Innis deu grande importância à reacção conflitual das regiões e localidades perante a influência uniformizadora da política da comunicação tecnológica e do poder penetrante do sistema de preços, baseados na colonização do espaço, através da resistência à estandardização do tempo, do correio e do serviço de encomendas postais. A disseminação do sistema de comunicação espacialmente influenciado foi o resultado de um complexo jogo de resistência e aceitação que se reproduziu em cada cidade e condado. Segundo Innis, a força do sistema de preços, e não a extensão da democracia, foi o factor de expansão nacional dos EUA.

Neste tópico, é importante sublinhar que Innis se afastou igualmente da atitude de Dewey sobre a tecnologia, para quem esta representava essencialmente um valor a ser integrado com outros valores na cultura, por via de um planeamento pluralista que deveria ter como objectivo a transformação social em prol da justiça. A oposição entre tecnologia e valores, característica da crítica cultural ``antitecnológica'' (a tecnologia opõe-se à democracia, à ética, etc.), e a concepção instrumental e neutral da tecnologia, tal como é vista pelos cientistas e pela tecnocracia, foi contrariada por Dewey (cf. Mitcham, 1994). A este respeito, é importante também realçar que, quanto à relação entre modos de comunicação, tecnologia e democracia, McLuhan, apesar de influenciado pela pista de Innis sobre a importância dos meios e das tecnologias da comunicação para as culturas e civilizações, não prosseguiu a visão deste último de que os modernos modos de comunicação tecnológicos, que ligam o espaço privatizando-o, tornam a comunicação muito mais problemática. O autor de Understanding Media. The Extensions of Man (1997 [1964]), pelo contrário, como veremos seguidamente, a defesa da tradição democrática e liberal é-lhe completamente alheia, fazendo-se sentir sobretudo a insistência num projecto escatológico e transcendentalista que, aliás, se encontrava já no cientista religioso Teilhard de Chardin e que hoje tem ressonância directa no filósofo cristão Pierre Lévy (e igualmente no sacerdote e teórico dos media Pierre Babin). Na revolução electrónica, e na suposta multiplicação infinita das possibilidades abertas por esta no domínio sensorial e espiritual, estes autores vislumbram sinais de uma transformação radical do homem, ligando-o ao cosmos e rumo a uma consciência universal.

Em ``Culture, Geography and Communications: The Work of Harold Innis in an American Context'' (1981), Carey tinha salientado que o processo de colonização do espaço pela comunicação, tal como Innis o concebeu, é definidor de uma ``política de alta comunicação'' dos EUA. Desenvolvida a todos os níveis da estrutura social, Innis foi o primeiro a analisá-la como um fenómeno encerrado numa estrita lógica de espaço, enquanto expansão de mercado e de poder. Ao conceder-se um relevo exclusivo à associação entre difusão a longa distância dos conteúdos e procura do preço mais reduzido, o que se desvalorizou foi toda a orientação favorável à interacção humana e cultural. O conceito de Innis para este processo, em que a comunicação está completamente fechada no invólucro do espaço e do poder, é o de exploração da influência espacial da comunicação moderna. As instituições modernas, a economia, a ciência política, o planeamento urbano, a sociologia, as próprias ciências físicas e até a universidade terão sido meticulosamente contaminadas pela ideia de espaço. Os indivíduos passaram a estar directamente ligados às grandes estruturas da organização social, deixando de ter necessidade de recorrer às estruturas intermédias, locais e próximas (e que, como assinalou Tocqueville, constituia a força da acção cívica dos EUA).

Exemplificativo da perspectiva de Innis e da ousadia da sua atitude política é a análise extremamente heterodoxa que fez à primeira emenda da Constituição americana. Mais do que garantir a liberdade de expressão e de imprensa, a primeira emenda oferece protecção constitucional à tecnologia e, mais do que expandir, restringe a liberdade. A cláusula da livre imprensa contribuiu para a consolidação da imprensa escrita comercial enquanto ``monopólio de conhecimento'', que desapossou do direito de as pessoas se informarem através do diálogo oral. Desta forma, a constituição substituiu o direito mais abstracto da conversação em co-presença por outros direitos especializados tecnicamente, profissionalizados e mercantilizados. Na sua perspectiva, a primeira emenda não assegurou a permanência da vida pública, antes pelo contrário, actuou contra ela ao colocar a responsabilidade da educação nestas formas de escrita, destruindo sistematicamente a actividade cultural. Os meios de comunicação modernos, reféns dos propósitos comerciais, criaram um sistema de comunicação essencialmente privado. A leitura em privado e a audiência dos que lêem substituiu o público leitor, a discussão e a argumentação pública. O sistema de comunicação americano, através do enviesamento influente que as tecnologias lhe introduzem, passou a basear-se nos desvios espaciais de descentralização e recentralização privatizada. O estabelecimento constitucional da liberdade de imprensa foi um enorme contributo para o reforço do monopólio de conhecimento dos jornais, do mundo especializado da tecnologia da comunicação impressa, dos anunciantes e do comércio: ``Ao garantir a liberdade de imprensa, a constituição sacrificou (...) o direito das pessoas a falarem umas com as outras e a informarem-se mutuamente. A constituição substitui estes direitos pelo direito mais abstracto de ser falado e informado por outros, especialmente por especialistas e classes profissionais''16 (Carey, 1989: 163). As mudanças sociotecnológicas do mundo ocidental, entre os finais do século XV e o século XIX, operaram-se através do desenvolvimento simultâneo do comércio, da industrialização e da informação. O consumo da informação passou a ser semelhante ao consumo de outras mercadorias, tal como se tornaram semelhantes a industrialização dos bens materiais e culturais17.

O próprio declínio da censura ter-se-á ficado a dever mais à privatização do sistema de comunicação do que à Bill of Rights. Foi desta forma que o público se tornou um simples artefacto estatístico, e o gosto público uma medida de opinião privada. Tanto um como outro têm sido desenvolvidos e objectivados mas não concretizados ou realizados no discurso, provocando o ocaso da esfera pública. O público foi oprimido na sua dimensão de acto de fala e discurso racional. Innis terá sido um dos poucos autores a compreender o alcance e a dificuldade de manter esses hábitos, bem como de estar cônscio de como a existência privada inibe o desenvolvimento desse tipo de discurso18. O tipo de esclarecimento precoce sobre a tecnologia, enquanto indutora de mediações que abrem novas direcções e reformulam os valores e o mundo social, avançado por Innis e corroborado por Carey no artigo cuja leitura agora encerramos, encontrou-o também José Luís Garcia no pensamento pioneiro de Georg Simmel, um autor que teve uma influência decisiva no período formativo da sociologia americana e da escola de Chicago: ``essencial, (...), é ultrapassar a visão ingénua da tese da neutralidade dos instrumentos e perceber que parte dos efeitos das técnicas escapam às intenções do homem, devido à sua capacidade de criação de habitats e de conformação. É bem conhecida a história de John Donne de que estava convencido que, com a invenção das armas de fogo, devido à sua efectividade mortífera, se encurtaria a duração das guerras. Como mostrou Simmel sobre o poder dos instrumentos, na sua obra magistral Filosofia do Dinheiro, a introdução deste não apenas acelerou o comércio, como alterou profundamente o aspecto da civilização'' (2002: 137).

O resgate da tradição da comunicação de proximidade na América ressurge, na década de 90 do século XX, através da emergência de um novo e controverso movimento. Este foi lançado simultaneamente na universidade e na imprensa norte-americana que defende um ``novo jornalismo'', cuja designação não é ainda consensual: ``jornalismo público'' (public journalism), ``jornalismo dos cidadãos'' (citizen journalism), ``jornalismo da comunidade'' ou ``comunitário'' (community or communitarian journalism) e ``jornalismo cívico''. A teorização em redor desta tendência que, para além de um programa doutrinário (de intervenção pública/política de apelo à participação cívica), envolve também uma crítica reformista às práticas e rotinas profissionais, tem como objectivo principal revitalizar e intensificar a ligação entre o jornalismo e os cidadãos no sentido de desenvolver um diálogo profícuo com o público. Deste modo, as práticas desta nova forma de fazer jornalismo devem responder ao objectivo principal que é a dinamização da participação e da cultura cívicas19.

Merece a pena também recordar que a importância concedida à tríade meios de comunicação, espaço e tempo, desenvolvida pelo pensamento de Innis, tivera já uma aproximação pioneira no criminologista, magistrado, psicólogo social, sociólogo, novelista e um dos principais investigadores sobre a opinião pública e comunicação no dealbar do século XX, Gabriel Tarde (1843-1904). Evidentemente, este tipo de questionamento surge num período que começa a ser marcado pela proliferação de processos de comunicação à distância. O cerne do argumento de Tarde é o de que nas sociedades contemporâneas, atravessadas por meios tecnológicos de comunicação de massas, a variável da proximidade física deixa de ser condição sine qua non para o ``contacto espiritual'' e consequente formação de correntes de opinião. Perante as novas condições dos processos de comunicação, as correntes de opinião, o público, forma-se através da crença, paixão ou consciência que cada indivíduo possui de que uma ideia ou vontade é partilhada em simultâneo por um grande número de outros homens. Na proposta de Tarde, a ``impressão à distância'' é viável na medida em que é possível o contágio sem contacto. Esse contágio invisível do público não se cinge apenas ao que acaba de acontecer (e que, por essa razão, tem actualidade), mas a tudo o que no tempo presente suscita a sensação de que partilhamos o interesse por algo, mesmo que seja um assunto antigo. Nesta acepção, a paixão pela actualidade progride com a sociabilidade, sendo os media produtores de processos de solidariedade mecânica (fenómenos de imitação).

Aparentemente, estas ideias de Tarde parecem contrariar as hipóteses de Innis. No entanto, uma leitura mais atenta mostra que a constatação das possibilidades de conversação impelidas pelos media à distância não faz com que Tarde desvalorize a importância da ``impressão na proximidade'' (1981 [1901]: 9-14). Sem a experiência prévia da ``impressão na proximidade'' não é possível que a impressão à distância possa constituir um público. Radica precisamente nessa experiência directa e no que ela implica de elaboração mental, a diferença entre público e multidão. Segundo Tarde, depois de afirmar que a impressão à distância dos indivíduos que compõem o mesmo público só é possível desde que tenham praticado por muito tempo (graças aos hábitos da vida social intensa e da vida urbana) a impressão na proximidade, ``a formação de um público supõe (...) uma evolução mental e social bastante mais elaborada do que a formação de uma multidão'' (ibid.: 14).

É de notar ainda que a perspectiva de Tarde é também extremamente útil como aproximação ao problema das relações entre as alterações no modo de comunicação e as mudanças em certos domínios da sensibilidade humana, que já ocupara Innis, de forma marginal, e que se tornará central em McLuhan. O contágio sem contacto, implicado na passagem do livro para a imprensa escrita de massas, é o conceito que define dois tipos de implicações de tipo sensorial: por um lado, a sensação de uma ligação feita à distância, por outro, o sentimento de partilha de uma opinião, ao invés da afirmação de uma razão (cf. ibid. 14, 15).

De Innis a McLuhan: da Globalização à Hipersensorialidade e ao Trans- Humanismo

Innis foi, quase seguramente, o primeiro teórico e estudioso responsável para que se tornasse visível a acção exercida pelas tecnologias da comunicação, como parte dos meios tecnológicos mais vastos utilizados pelo homem na história. O conjunto da sua investigação deve ser considerado como precursor e formulador de uma série de conceitos de grande alcance do papel das tecnologias da comunicação no processo globalizante que marca a mudança verificada com a deslocalização das formas de produção, a tendência para a oligopolização do mercado, a subordinação da comunicação política aos imperativos de expansão tecnológica e bélica, para além da sua insistência na construção de um tempo comercial como resultado de um processo de colonização temporal. Fê-lo precisamente num período em que, com as representações vindas da cibernética e com a incapacidade de questionamento revelada a este nível pela sociologia empírica dos ``efeitos da comunicação'', a acção daquelas tecnologias da comunicação na civilização começou a tornar-se tanto mais pregnante quanto sintomaticamente invisível.

Onde Innis refere as implicações do telégrafo e do comboio, temos hoje decerto que citar a aviação, os sistemas informáticos, a internet. Onde alude às metrópoles, como Chicago, devemos agora destacar as cidades globais, como Nova Iorque, Londres, Frankfurt. Onde se refere as ligações à escala nacional, temos agora de distinguir as ligações planetárias. Neste sentido, os aviões são os herdeiros das caravelas e, tal como estas iam em busca de novos produtos e contribuíram para o estabelecimento de uma rede comercial, também o telégrafo, o comboio, em conjugação com a imprensa, e depois com a rádio, a televisão e a Internet, contribuíram poderosamente para a expansão comercial e o processo globalizante. Este tipo de interpretação salienta que as modificações no espaço e no tempo, e até o mundo comercial e global em que se vive hoje, são largamente tributários do ponto de vista causal das implicações dos meios de comunicação tecnológicos (no seu sentido mais abrangente). Ao mesmo tempo, só quem acreditasse que estes meios são pura e simplesmente inventados com o propósito explícito de construir este mundo interconectado e comercial em que vivemos é que poderia postular (erroneamente) que todas as consequências das tecnologias são previsíveis. Parece evidente que na base da inovação dos meios de comunicação existe a vontade de obter novas ligações no espaço e no tempo, mas tal não significa que as repercussões desses meios possam ser prévia e completamente calculadas em toda a sua dimensão. Antes pelo contrário, quanto mais interconexão do mundo, maior complexidade tecnológica é requerida para a sua gestão. Do mesmo modo, a sofisticação e ampliação dos recursos tecnológicos se resolve situações, acaba por originar problemas cada vez mais complicados e imprevisíveis, dado também lugar a fontes de poder invisíveis e impessoais, num conceito, burocráticas. A ambivalência posta em marcha pelo desenvolvimento dos meios tecnológicos de comunicação, por um lado, promovendo o contacto intercultural, por outro, dando lugar ao surgimento de `jaulas de ferro', fica patente na teoria innisiana.

Manuel Castells segue este tipo de raciocínio na conhecida trilogia The Information Age: Economy, Society and Culture (1996), provavelmente sem tirar todas as consequências que poderia, aplicando-o às novas tecnologias da informação e da informatização sem as quais, segundo a sua argumentação, não teria ocorrido o conjunto de transformações económicas, sociais e culturais que acompanham o suposto surgimento de uma ``sociedade em rede''. Mas, ao contrário de Innis, que tinha um pensamento atento e complexo sobre as consequências múltiplas e ambivalentes das tecnologias, Castells apresenta uma visão da sociedade tecno-globalizada desligada da problematização de questões chave para o futuro como a biotecnologia industrial e a biomedicina. No mesmo sentido, Castells esquece a importância da emergência dos poderes burocráticos e das inúmeras fronteiras que provocam, partilhando também da irreversibilidade histórica do modelo tecnológico vigente.

Foi a partir da tradição innisiana de estudo da tecnologia, fixada nos meios de comunicação e nas implicações culturais e sociais que impelem persuasiva e estruturalmente, que McLuhan construiu o célebre aforismo de que o significado principal da mensagem se encontra no meio. O seu impacto na investigação da comunicação abalou as orientações dominantes até aos anos 60, centradas na análise dos conteúdos e dos processos de comunicação e recepção. De Innis a McLuhan, e deste à aceitação, por parte das correntes de investigação recentes, da relevância do ``impacto da forma'' e da pertinência cognitiva ou epistémica dos media na sua qualidade de suportes técnicos que condicionam as formas sensoriais da percepção, decorreram mais de três quartos de século. É, em parte, devido a este novo entendimento que é possível retirar da obscuridade a reflexão de Innis e colocar as propostas de McLuhan no debate académico, tarefa que tem sido conduzida por autores tão diferentes como Arthur Kroker (1984), no domínio das novas sensibilidades associadas à expansão tecnológica actual, Elihu Katz (1998; 2002) e Serge Proulx (1999), no âmbito sociológico da comunicação, algo que, como vimos, só James W. Carey tinha feito nos EUA, desde finais dos anos 60, seguido - é justo não o esquecer - por Francis Balle em França, nos começos da década de 70, e David Czyrom, nos inícios de 80.

Elihu Katz numa conferência intitulada ``One Hundred Years of Communication Research'' (2002)20, após prestar tributo a Gabriel Tarde, que considerou o antepassado da investigação sobre opinião pública e comunicação, e de mencionar a importância de Innis e McLuhan para a visão dos media ``mais como tecnologias do que como mensagens'', teve a virtude de cruzar a visão do autor francês com a de Innis e de prestar tributo à tradição canadiana: ``Os macroprocessos da escola de Toronto e a sua ênfase nas tecnologias dos media como `locus' dos efeitos teriam parecido familiares a Tarde. Notaria o paralelo entre as análises de Innis de como `os media do espaço', como o papiro e os barcos de rio, consolidaram o poder centralizado dos antigos reis do Egipto, da mesma forma como o seu próprio medium do espaço, o jornal, enfraqueceu pouco a pouco o poder do rei francês''21 (2002: 26).

De modo similar, também Serge Proulx, que escreveu $A$ Explosão da Comunicação em co-autoria com Philippe Breton, um dos mais argutos investigadores contemporâneos das relações entre comunicação, cibernética e informática, num número recente da revista francesa Quaderni - La Revue de la Communication (1998-1999: 133-142) dedicado a McLuhan, se inseriu neste movimento de revalorização do legado das ciências da comunicação do Canadá: ``A difusão do seu pensamento [de McLuhan] provocou uma reconstrução relativa da agenda dos investigadores da comunicação ao colocar em cena a problemática do impacto da forma, que se substituiu, em parte, à análise dos conteúdos que era uma perspectiva até então dominante entre os investigadores universitários. (...) Tornou-se assim muito frutuoso comparar entre os modos de comunicação como a oralidade, a escrita, o audiovisual e a informática, do ponto de vista do que estes diferentes meios permitem enquanto meios técnicos abrindo possibilidades novas para pensar de outra forma''22 (ibid.: 136). A importância destes testemunhos evidencia a vontade de destacar a obra de Harold Innis e a tendência para retirar McLuhan das extravagâncias do pensamento por parte da academia.

É correcto afirmar que McLuhan adopta e desenvolve duas das linhas de raciocínio de Innis: por um lado, as revoluções nos meios de comunicação implicam mudanças invisíveis nos sistemas de conhecimento e na cultura e, por outro, a compreensão civilizacional do significado da perda da cultura oral na sociedade ocidental enquanto processo de literacia, erosão da consciência poética e triunfo da palavra escrita. A este respeito, Arthur Kroker, na década de 80, e Judith Stamps, onze anos depois, em Unthinking Modernity. Innis, McLuhan and the Frankfurt School (1995), defendem a tese de que Innis e McLuhan se situam ambos de forma muito próxima na análise da crise da sociedade moderna, em conjunto com os teóricos críticos da escola de Frankfurt, num período em que realmente as contradições da racionalização moderna se encontravam em debate e se enfrentavam com os primeiros sinais de afastamento das expectativas da ideologia do progresso do século XIX. Em rigor, porém, no que diz respeito a Innis, diferentemente dos teóricos de Frankfurt e de outros críticos fáusticos da tecnologia, nunca a aversão aos valores, à tradição e às instituições liberais e democráticas foi brandida, antes pelo contrário.

De forma distinta à interpretação de Kroker e Stamps, existem evidências suficientes de que McLuhan, sendo certo que a partir de algumas intuições pioneiras de Harold Innis, traçou directrizes muito próprias e específicas que se inscrevem numa corrente de pensadores e cientistas que tornaram o tema antropogenético da tecnologia numa das referências do pensamento contemporâneo. Para McLuhan, as tecnologias da comunicação estão não só no fulcro de uma revolução na cultura e na organização social, como sobretudo do sensorium e no sistema nervoso, entendendo a importância destes dois aspectos do humano numa perspectiva que lembra as teses do tradicionalismo sensualista e espiritualista - que foram uma reacção violenta contra o Iluminismo francês - de Destut de Tracy e Pierre Cabanis, redutoras do poder espiritual à sensibilidade e desta ao sistema nervoso23. De acordo com a visão mcluhaniana, uma visão distanciada do que concebia ser o pensamento ``geométrico'' e ``sequencial'' da racionalidade moderna, a revolução computacional tende a aniquilar a natureza tal como era conhecida e a máquina e a biologia começam a fundir-se. A era Gutenberg teria sido um período da experiência humana conduzida pela razão tipográfica, uma razão homogénea e uniforme, e a era electrónica será a época de uma experiência colectiva e unificada, baseada na restauração das sinergias entre todos os sentidos, toda a humanidade e rumo à nooesfera sonhada pelo teólogo Teilhard de Chardin, a paritr da noção de bioesfera de um seu professor e também visionário, o geoquímico Vladimir Vernadski. Quando colocado perante a herança innisiana, McLuhan só pode ser considerado herético. Diferentemente do que Kroker e Stamps tendem a negligenciar, nem Innis encontra em McLuhan um verdadeiro discípulo, nem a este último pode ser recusado o papel de uma das principais fontes - de temas e problemas fundamentais - da reflexão sobre as tecnologias da comunicação na segunda metade do século XX. Edmund Carpenter, multifacetado antropólogo, um dos amigos mais próximos de McLuhan e com quem fundou os seminários interdisciplinares sobre Cultura e Comunicação24 que tiveram lugar na Universidade de Toronto a partir de 1953, corrobora cabalmente, em ``That Not-So-Silent Sea'', texto editado como apêndice por Donald Theall, o primeiro estudante de doutoramento de McLuhan, a perspectiva que aqui se avança: ``Innis nunca foi mentor de Marshall. Marshall não seguiu ninguém. A distância entre eles era enorme...''25 (in Theall, 2001: 249).

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Notas de rodapé

... Innis1
O presente texto é uma versão reduzida de um estudo mais longo que põe em relação o pensamento de Harold Adams Innis e Marshall McLuhan. Agradeço ao José Bragança de Miranda ter-me sugerido a pista da escola de Toronto e pelos seus inúmeros conselhos eruditos e amigos. Esta reflexão é muito devedora das propostas teóricas, ideias e discussões que tenho vindo a manter com José Luis Garcia e Hermínio Martins, para quem todos os agradecimentos me surgem como insuficientes. Contei, ainda, com a ajuda dos comentários de Joan Martinez-Alier que tiveram a virtude de me confirmar a intuição que fui tendo da importância de Harold Innis para o pensamento, a teoria da comunicação e a problemática da globalização. in Hermínio Martins e José Luís Garcia (org.), Dilemas da Civilização Tecnológica, Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2003 (no prelo).
...a-la''2
``In short, Harold Innis was the first person to hit upon the process of change as implicit in the forms of media technology. The present book is a footnote of explanation to his work.''
... cultura''3
``Harold Innis, in the spirit of the new age of information, sought for patterns in the very ground of history and existence. He saw media, old and new, not as mere vertices at which to direct his point of view, but as living vortices of power creating hidden environments that act abrasively and destructively on older forms of culture.''
... importantes''4
``I have attempted to suggest that Western civilization has been profoundly influenced by communication and that marked changes in communications have had important implications.''
... isoladas5
No destaque do pensamento de Innis para uma teorização dos meios, sigo em alguns passos a recente interpretação de Babe (2000: 72-76).
...ogicas''6
``A medium of communication has an important influence on the dissemination of knowledge over space and over time and it becomes necessary to study its characteristics in order to appraise its influence in its cultural setting. According to its characteristics it may be better suited to the dissemination of knowledge over time than over space, particularly if the medium is heavy and durable and not suited to transportation, or to the dissemination of knowledge over space than over time, particularly if the medium is light and easily transported. The relative emphasis on time or space will imply a bias of significance to the culture in which it is imbedded. (...) Our knowledge of other civilizations depends in large part on the character of the media used by each civilization in so far as it is capable of being preserved or of being made accessible by discovery as in the case of the results of archaeological expeditions.''
... Kapp7
Para Kapp (1808-1896), hegeliano de esquerda, tal como Marx, a história não é o desenvolvimento necessário da Ideia Absoluta, mas o registo das intenções humanas para enfrentar os desafios dos vários ambientes - para superar a dependência da natureza. É autor do primeiro tratado sobre filosofia da tecnologia, publicado em 1877 - Grundlinien einer Philosophie der Technik (cf. Mitcham, 1994: 21-23; Martins, 1996: 167-175).
...ario8
Innis, inspirado em Lewis Mumford, reconhece que o relógio mecânico foi essencial para alcançar esse tipo de visão. Através dos relógios, os trabalhadores são chamados para a fábrica e são recompensados pelo `tempo' que lá passam.
... actividades''9
``containers to be filled with objects or activities.''
...alculos10
No caso específico das formas espaciais, McLuhan contrapõe a concepção de espaço, que caracteriza a era Gutenberg, à que era vigente na era pré-Gutenberg, onde aquela não era ainda considerada um receptáculo visual graças à relação próxima entre a visão e o audiotáctil. Exemplifica com Siegfried Giedion que, em Mechanization Takes Command, afirma: ``And yet there was a medieval comfort. But it must be sought in another dimension, for it cannot be measured on the material scale. The satisfaction and delight that were medieval comfort have their source in the configuration of space. Comfort is the atmosphere with which man surrounds himself and in which he lives. Like the medieval Kingdom of God, it is something that eludes the grasp of hands. Medieval comfort is the comfort of space. / A medieval room seems finished even when it contains no furniture. It is never bare. Whether a cathedral, refectory, or a burgher chamber, it lives in its proportions, its materials, its form'' (1997 [1962]: 107).
... estabilidade''11
``I have attempted to show elsewhere that in Western civilization a stable society is dependent on an appreciation of a proper balance between the concepts of space and time. We are concerned with control not only over vast areas of space but also over vast stretches of time. We must appraise civilization in relation to its territory and in relation to its duration. The character of the medium of communication tends to create a bias in civilization favourable to an overemphasis on the time concept or on the space concept and only at rare intervals are the biases offset by the influence of another medium and stability achieved.''
... tempo''12
``The flexibility of an oral tradition enabled the Greeks to work out a balance between the demands of concepts of space and time in a city state. (...) The results of a balanced society were evident in the defeat of the Persians and the flowering of Greek culture in the fifth century. But such balance was not long maintained.''
... XIX13
Um excelente esclarecimento da visão global de Innis a este respeito encontra-se noutro atento estudioso da sua obra, David Czitrom, autor já referenciado anteriormente, que publicou Media and the American Mind. From Morse to McLuhan, em 1982, apenas um ano após o ensaio de James Carey ``Culture, Geography and Communications; The Work of Harold Innis in an American Context'' (1981).
...atica14
Trata-se de um tópico que também mereceu a atenção de Hannah Arendt, em A Condição Humana (2001 [1958]).
...ao''15
``The effects of new media of communication evident in the outbreak of the Second World War were intensified during the progress of the war. They were used by the armed forces in the immediate prosecution of the war and in propaganda both at home and against the enemy. In Germany moving pictures of battles were taken and shown in theatres almost immediately afterwards. The German people were given an impression of realism which compelled them to believe in the superiority of German arms; realism became not only most convincing but also with the collapse of the German front most disastrous. In the some sense the problem of the German people is the problem of Western civilization. As modern developments in communication have made for greater realism they have made for greater possibilities of delusion.''
... profissionais''16
``In granting freedom of press, the Constitution sacrificed (...) the right of people to speak to one another and to inform themselves. For such rights the Constitution substituted the more abstract right to be spoken to and to be informed by others, especially specialist, profissional classes.''
... culturais17
Na verdade, associada na primeira emenda à da imprensa, a liberdade de expressão limita-se à imprensa escrita nos primeiros anos da républica americana. Também é correcto afirmar que a protecção constitucional da liberdade de expressão tem seguido os progresso técnicos, tendo sido alargada aos meios audiovisuais e, desde Junho de 1997, através de uma decisão do Supremo Tribunal, à internet. A regulamentação do jornalismo é inexistente, não necessitando os jornalistas de carteira profissional e os proprietários de licença de exploração, ao contrário do que ocorre em muitos países europeus. Desde que possua capital para publicar um jornal, qualquer pessoa nos EUA pode fazê-lo.
... discurso18
O desenvolvimento empresarial dos mass media é concomitante à expansão do comércio e da industrialização, como muito bem assinala Sorlin (1997).
...ivicas19
Para Jay Rosen, professor na Universidade de Nova Iorque e um dos precursores do movimento, o jornalismo pode e deve ter como função contribuir para o reforço da cidadania (citizenship), através da melhoria do debate público, fundamental para a revitalização da democracia. Como o próprio afirma, ``o `jornalismo cívico' [é] uma teoria e uma prática que reconhece a suprema importância que tem melhorar a vida pública'' (2000 [1993]: 149). Seja como for, esta corrente de pensamento recupera claramente a memória organicista da filosofia dos assuntos públicos no âmbito da política da comunicação nos EUA, num período profundamente marcado pelo descrédito da política e do jornalismo na sociedade.
... (2002)20
Conferência proferida na abertura do primeiro congresso da SOPCOM - Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação, em Março de 1999.
...es''21
``The macro-processes of the Toronto School, and its emphasis on media technologies as the locus of effect, would also have seemed familiar to Tarde. He would note the parallel between Innis's analysis of how `media of space' like papyrus and riverboats consolidated the centralized power of the ancient kings of Egypt, just as his own medium of space, the newspaper, undermined the power of the French king.''
... forma''22
``La diffusion de sa pensée a provoqué une reconstruction relative de l'agenda des chercheurs en communication, en mettant au devant de la scène une problématique de l'impact de la forme, qui s'est substituée en partie à l'analyse des contenus qui était une perspective jusque là dominante chez les chercheurs universitaires. (...) Il devient ainsi très fructueux de comparer entre eux des modes de communication comme l'oralité, l'écriture, l'audiovisuel et l'informatique, du point de vue de ce que ces différents moyens permettent en tant que moyen technique ouvrant des possibilities nouvelles pour penser autrement.''
... nervoso23
Francis Balle terá sido, porventura, o primeiro a estabelecer relações de proximidade entre os esquemas de explicação sensualistas de McLuhan e as teorias de Étienne de Condillac e de Stuart Mill (1972: 44-46). Destut de Tracy e Pierre Cabanis foram, como é referido, extremamente influenciados pelo sensualismo de Condillac.
...ao24
O projecto destes seminários foi financiado pela Fundação Ford e os resultados foram publicados a partir de Dezembro do mesmo ano no jornal Explorations, do qual Carpenter foi editor fundador com McLuhan, assim como co-editor de Explorations in Communication (1960). Na biografia de McLuhan da autoria de W. Terence Gordon, este relata que o grupo do seminário reuniu-se pela primeira vez em Junho de 1953. Para além dos impulsionadores, McLuhan e Carpenter, estiveram ainda presentes o psicólogo Carl Williams, o economista Tom Easterbrook e a urbanista Jacqueline Tyrwhitt. Durante esse Verão, as discussões versaram as conexões entre os seus campos de saber e interesses, nomeadamente no que respeita a métodos e pontos de vista. Este tipo de diálogo interdisciplinar encorajou o grupo a procurar uma perspectiva unificada sobre o impacto cultural dos media. Em Dezembro do mesmo ano, a publicação Explorations veio dar ao seminário um perfil mais elevado. Esta publicação era transversal às ciências sociais e às humanidades, reflectindo o espírito do seminário, que se propunha tratar todas as disciplinas como um continuum (cf. 1997: 159-163). Carpenter, no entanto, fez um balanço céptico daqueles encontros: ``The seminar started with great enthusiasm, but instantly got nowhere'' (in Theall, 2001: 240).
... enorme...''25
``Innis was never Marshall's mentor, not really. Marshall followed no one. (...) The gap between them was wide, ... ''