O filme documentário em debate:
John Grierson e o movimento documentarista britânico1

Manuela Penafria

Universidade da Beira Interior


``Documentary is a clumsy description, but let it stand.''
(John Grierson, ``First Principles of documentary'', 1932-34)

Este texto foi construído tendo em conta a nossa experiência pessoal enquanto espectadores de cinema. Corremos o risco de esta ser apenas uma abordagem limitada. Mas, este risco pode, também, ser uma vantagem, pois tratando-se de uma experiência pessoal podemos partilhá-la e discuti-la.

O visionamento de filmes, sejam eles documentário, ficção, animação, experimental ou outra, lançam sobre nós uma perturbação: surpreendem-nos pela sua semelhança com o mundo em que vivemos e o enquadramento, composição e articulação entre as imagens faz parte de um outro mundo, o mundo do cinema. Entendemos pois que o cinema não é ``uma janela aberta'' para o mundo. Esta posição não é tanto um descrédito sobre as imagens, mas uma suspeita saudável que não impede as ligações possíveis entre esses dois mundos.

O filme documentário é o objecto de estudo que nos ocupa. Ao longo deste texto não pretendemos discutir as suas diferentes definições, nem propor nenhuma nova definição. Pretendemos provar que propor uma definição para o filme documentário é pensá-lo enquanto género e esta classificação de género é uma abordagem que é necessário ultrapassar. Assim, a questão essencial que nos preocupa é o modo como podemos pensar o filme documentário. Que lugar ocupa no cinema? Ou, onde o podemos colocar dentro do vasto conjunto de filmes e de diferentes concepções de cinema? Entendemos que o documentário não é tanto um género, mas mais um projecto de cinema. Os filmes que se designam de documentário conterão em si um projecto de cinema que permite pensá-los em relação aos restantes filmes e em relação ao mundo em que vivemos.

Na edição de 8 de Fevereiro de 1926 de The New York Sun, John Grierson (1898-1972), fundador do movimento documentarista britânico dos anos 30, publicou um texto sobre o filme Moana (1926), de Robert Flaherty intitulado ``Flaherty's Poetic Moana''. Foi neste texto que, pela primeira vez, usou o termo ``documentário'':

``Of course Moana, being a visual account of events in the daily life of a Polynesian youth and his family, has documentary value.'' (Grierson, 1926:25)

Esse valor documental resulta da relação que a imagem estabelece com o que tem existência fora dela. ``Documentário'' é aqui usado enquanto adjectivo, só mais tarde, foi utilizado enquanto nome.2 Logo a seguir Grierson escreve:

``But that, I believe, is secondary to its value as a soft breath from a sunlit island washed by a marvelous sea as warm as the balmy air. Moana is first of all beautiful as nature is beautiful. (...) And, therefore, I think Moana achieves greatness primarily through its poetic feeling for natural elements.'' (ibid.)

Para Grierson, Moana não é apenas um registo ou uma descrição da vida de uma família polinésia. Esse seu ``valor documental'' ou (dizemos nós) o ``valor fotográfico'' é secundário em relação à sua poética, à sua capacidade em transmitir a beleza e harmonia da relação que o homem estabelece com a natureza circundante. Essa sua capacidade só é possível pelo manuseamento das técnicas cinematográficas:

``Moana, which was photographed over a period of some twenty months, reveals a far greater mastery of cinema technique than Mr. Flaherty's previous photoplay, Nanook of the North. In the first place, it follows a better natural outline - that of Moana's daily pursuits, which culminate in the tattooing episode, and, in the second, its camera angle, its composition, the design of almost every scene, are superb. The new panchromatic film used gives tonal values, lights and shadings that have never been equaled.'' (ibid.:26)

Em 1922, data do filme Nanook, o esquimó, Flaherty tinha já ido muito para além da mera descrição de modos de vida ou apresentação de hábitos estranhos, que eram as marcas dos ``filmes de viagem''. Ao contrário destes, Flaherty coloca a ênfase em quem é filmado mostrando que o ``Eu'' não é assim tão diferente do ``Outro'', ainda que esse ``Outro'' viva num local distante e quase inacessível. O ``Outro'' é apresentado na sua condição condição humana, condição que é a mesma do ``Eu''.

Ainda propósito de Moana escreve Grierson:

``And if we regard the tatooing as a cruel procedure to which the Polynesians subject their young men - before they may take their place beside manhood - let us reflect that perhaps it summons a bravery that is healthful for the race.'' (ibid.:26)

A capacidade fotográfica do medium é, pois, para Grierson secundária, o que facilmente se percebe se tivermos em conta o trabalho que desenvolveu nas diferentes Film Units.3 Grierson colocou a estética ao serviço de uma educação nacional, o seu interesse era o papel que o cinema podia desempenhar na sociedade.

``It is worth recalling that the British documentary group began not so much in affection for film per se as in affection for national education. If I am to be counted as the founder and leader of the movement, its origins certainly lay in sociological rather than aesthetic aims.'' (Grierson, 1937:207).

Em entrevista a Ian Aitken, Basil Wright (1907-1987) - um dos realizadores da Escola de Grierson - deixa clara a ideia de que estética e educação são partes interligadas nos filmes que faziam:

``...I don't quite understand the distinction you are making between aesthetics and didactic films. A film must be made well in order to tell a story or express a message, and I think that the aesthetic and educational parts of the documentaries are integrated. Some of the documentary films were more aesthetic than others, but I don't accept the distinction you are trying to make. '' (Ian Aitken,1998:246)

Para Grierson, ao contrário de Flaherty, o documentário deve abordar os problemas sociais e económicos e a solução para esses mesmos problemas. Embora admirador de Flaherty, Grierson questiona os seus filmes por não apresentarem soluções para os problemas dos povos que filma. Grierson encontrou no documentário princípios que lhe permitiram explorá-lo como instrumento de utilidade pública.

No texto ``First principles of documentary'', a partir de onde se tornou famosa a definição de documentário como o ``tratamento criativo da realidade''4 pode ler-se:

``First Principles. (1) We believe that the cinema's capacity for getting around, for observing and selecting from life itself, can be exploited in a new and vital art form. The studio films largely ignore this possibility of opening up the screen on the real world. They photograph acted stories against artificial backgrounds. Documentary would photograph the living scene and the living story. (2) We believe that the original (or native) actor, and the original (or native) scene, are better guides to a screen interpretation of the modern world. They give cinema a greater fund of material. They give it power over a million and one images. They give it power of interpretation over more complex and astonishing happenings in the real world than the studio mind can conjure or the studio machanician recreate. (3) We believe that the materials and the stories thus taken from the raw can be finer (more real in the philosophic sense) than the acted article. Spontaneous gesture has a special value on the screen. Cinema has a sensational capacity for enhancing the movement which tradition has formed or time worn smooth. Its arbitrary rectangle specially reveals movement; it gives it maximum pattern in space and time. Add to this that documentary can achieve an intimacy of knowledge and effect impossible to the shimsham mechanics of the studio, and the lily-fingered interpretations of the metropolitan actors. (...).'' (Grierson, 1932:146-7).

O documentário assume-se não apenas como uma arte nova, mas, também, vital. A capacidade do cinema em se movimentar e fazer selecções a partir da própria vida tem sido esquecida pelos estúdios; interpretar o mundo através do ecrã só poderá ser feito a partir dos gestos do actor original ou nativo e, finalmente, as histórias desta arte nova, denominada documentário, são mais reais que as representadas e criadas em estúdio, pelo que assumem um valor especial e insubstituível, intimamente ligadas que estão com o conhecimento e capazes de provocarem um efeito que as histórias dos estúdios nunca poderão atingir. Em suma, Grierson enfatisa a capacidade do documentário em captar a vida mas, o que mais ressalta desses seus princípios é a tónica colocada na capacidade do documentário agir sobre a sociedade, de ser um instrumento ao serviço de ideais, no caso, de educação nacional numa Grã-Bretanha em recuperação e transformação. Para que o documentário se assuma verdadeiramente como a melhor forma de interpelar o mundo, Grierson defende que um cineasta não pode dedicar-se simultaneamente ao documentário e ao filme de estúdio. ``(...) the young director cannot, in nature, go documentary and go studio both.'' (Grierson,1932:147) E, como já vimos acima (com Basil Wright), o documentarista tem a possibilidade - à semelhança dos filmes de estúdio (de ficção) - de exercer um trabalho criativo, ainda que ligado a um tom didáctico.

Drifters (1929), que julgamos ser o único filme realizado e montado por Grierson - a partir dessa data foi sempre produtor - tem como tema a pesca do arenque no Mar do Norte. Uma pequena vila em Shetlands é o local de onde as suas personagens partem para a pesca. Não podemos dizer que se trata de um filme apenas sobre os pescadores o seu trabalho é, também, um filme sobre o mar. Neste filme que podemos dividir em 3 partes (ou sequências): partida para o mar; pesca e tempestade no mar; regresso e venda do peixe, a maior parte dos seus planos são grandes planos ou planos aproximados, esta intimididade com o trabalho dos pescadores (apenas alguns planos de rosto surgem em todo o filme, em especial quando se aproxima a tempestade e na venda de peixe) não serve apenas para mostrar as dificuldades e a dureza da pescaria, consegue colocar o trabalho enquanto valor maior desses homens. Depois de lançarem as redes, cai a noite. O que em muitos filmes seria a simples passagem da noite para o dia, aqui, enquanto os pescadores descansam, vemos o que se passa debaixo de água. Os peixes-cão e congros rondam as redes para caçar outros peixes. Ao longo desta cena, Grierson dá especial destaque às redes, o recurso a um plano anterior é sintomático: à superfície da água a rede tem um comprimento que se confunde com o próprio horizonte, as redes serão pois quase infinitas, pelo que se garante boa pescaria, para além disso fomos informados anteriormente que foram lançadas ao mar 2 milhas de rede. A sobreposição de imagens é um recurso que se destaca. Logo no início, ao sobrepor planos das máquinas do navio com o homem que lança carvão na fornalha, interligados com planos do navio a avançar em direcção ao mar alto, fica claro que o esforço e a determinação (e o uso da maquinaria, da ``industrialização'') conseguem romper a força do mar. Num outro momento, quase no final do filme é tocante a sobreposição das ondas do mar com as pessoas que circulam no Porto de Yarmouth para comprar peixe. Apesar da força das ondas, o mercado de venda de peixe faz a sua função enviando a mercadoria para o resto do mundo. Uma montagem a vários ritmos (planos mais longos no início e planos de menor duração no momento da tempestade; muito em consonância com o ritmo da montagem soviética dos anos 20) e inter-títulos5 que informam sobre a pesca em curso salientando os principais momentos desse trabalho ou pormenores relacionados com a pesca (por exemplo, após o inter-título 12 - nota de rodapé 4 - surge um plano em que a linha da rede balança à superfície da água serpenteando o seu caminho em direcção ao horizonte), não poderão deixar o espectador indiferente. O espectador é guiado pelas imagens e, em especial, pelos inter-títulos, desde uma pequena vila até ao resto do mundo. O trabalho de uma pequena vila, a pesca de arenque, é colocada numa posição de superioridade ficando implícitos os benefícios de ser produtora e o resto do mundo necessitar dessa sua produção.

A partir desse seu filme, Grierson defendeu duplamente o documentário: enquanto produtor e impulsionador do chamado ``movimento documentarista britânico'' e através de textos em que proclamava as potencialidades do documentário. Com estas duas frentes, Grierson criou um conjunto de pressupostos estáveis. Ainda assim, este movimento teve o mérito de não ter promovido um certo desleixo estético para daí reclamar uma maior proximidade com a realidade.

O conjunto de normas estéticas (no caso, nos filmes deste movimento o uso da voz off ou voice over é um dos recursos marcantes) têm uma ligação directa com o modo como cada autor entende a função das suas obras6. O movimento documentarista britânico pretendia registar o presente e não o passado e dirigir-se directamente ao espectador. A Escola de Grierson sentia que a história estava a acontecer ``aqui e agora'' e os seus filmes faziam parte da situação social, económica, cultural e política da época.

Por outro lado, as características que Grierson exaltou em Flaherty, no seu texto ``Flaherty's Poetic Moana'': a consciência artística (``a man with artistic conscience'') e intenso sentimento poético (``and an intense poetic feeling'') são, de algum modo, as características que Grierson refere como necessárias para o documentarista, num dos seus textos mais citados: ``First principles of documentary'' (Grierson, 1932) O documentarista não deve limitar-se ao registo da vida das pessoas, ele é responsável pela diferença entre os ``filmes de actualidade'' (e outras formas que utilizam o registo in loco), e o filme documentário, este será um filme superior. Os outros filmes são apenas um relato de acontecimentos; ao documentário (e documentarista) compete ser mais que isso, compete-lhe fazer um ``tratamento criativo da realidade'', o que em Grierson é o mesmo que construir um filme apresentando determinado problema e a solução governamental para esse mesmo problema. Se necessário, esse ``tratamento criativo'' inclui a re-construção7 de determinado acontecimento, uma vez que estava em causa um ideal maior de educação nacional.

Em Grierson a preocupação estética ía a par da função social e pedagógica dos filmes. A ênfase colocada na instrumentalidade dos filmes cujas temáticas são os problemas sócio-económicos da Grã-Bretanha dos anos 30, assenta numa estética em que predomina a voz off e, de um ponto de vista narrativo, a estrutura do ``problem-moment'' (cada um dos problemas socio-económicos é apresentado como apenas um momento de dificuldade que será superado pela intervenção governamental permitindo que a Grã-Bretanha regresse ao seu glorioso caminho em direcção ao pleno desenvolvimento).

O movimento documentarista britânico é um movimento coerente e consistente nas suas propostas onde a ideia de documentário é inseparável da de género. A teoria de géneros inclui nas suas definições aspectos temáticos, narrativos e estéticos. O projecto de Grierson não descurou nenhuma dessas virtudes. A obrigatoriedade em repetir-se é o garante da sobrevivência de um género. E foi neste ponto que Grierson mais incidiu o seu trabalho, promovendo a produção de documentários. E essa produção não podia ser feita sem a definição do género que coloca cineastas e espectadores num território diferente do restante cinema.

Grierson teve a capacidade de estabilizar um conjunto de pressupostos de produção, conseguiu financiamento regular para essa produção o que levou, inevitavelmente, à constituição de uma comunidade de espectadores que reconhecem e, ao mesmo tempo, garantem a sobrevivência (a manutenção) dos filmes. Toda esta organização permite considerar este período como a constituição do documentário enquanto género e um período marcante na história do filme documentário.

``Genre'', palavra francesa que significa ``categoria'', é um termo utilizado para uma classificação (muito eficaz) que facilita a produção, distribuição e exibição de filmes.8 Na teoria de géneros, impera mais a permanência de determinados pressupostos que o carácter único dos filmes e o estilo exemplar do seu autor.9 Francesco Casetti refere un ``acuerdo de fondo'' que une quem realiza um filme e quem o contempla, o primeiro utiliza formas comunicativas estabelecidas e, o segundo, um sistema próprio de expectativas. (Cf. Casetti,1993: 304).

A constituição de qualquer género é (como em Grierson) mais autoritária que libertadora, pois implica que os filmes partilhem características.

``Pegar num genre com o `Western', analisá-lo e listar as suas características é supor que temos de isolar o conjunto de filmes que são `Westerns'. Mas eles só podem ser isolados com base nas `características principais' que só podem ser descobertas a partir dos próprios filmes depois de terem sido isolados. Isto é, estamos apanhados num círculo que exige primeiro que os filmes sejam isolados, para o que é necessário um critério, mas por sua vez supõe-se que o critério deve emergir das características comuns dos filmes estabelecidos empiricamente. Este `dilema empírico' tem duas soluções. Uma é classificar os filmes segundo critérios escolhidos a priori dependendo das finalidades críticas. Isto leva de novo à posição anterior em que o genre especial é redundante. A segunda é apoiar-se num consenso cultural comum sobre aquilo que constitui um `Western' e depois analisá-lo detalhadamente. Esta última é sem dúvida a raiz da maioria das utilizações de genre. É esta utilização que leva, por exemplo, à noção de convenções num genre. (...) falar de `Westerns' é (definições arbitrárias à parte) apelar a um conjunto comuns de significados na nossa cultura.'' (Andrew Tudor, 1973:142/143).

No mínimo, para preservar a sanidade mental é necessário ultrapassar o ``círculo'' referido no texto, ou dito de outro modo, ultrapassar o ciclo vicioso; ciclo esse que implica pensar o cinema separado por géneros. Embora os géneros não sejam um registo absolutamente estável, se deixarmos de lado essa concepção podemos encontrar para o documentário um outro lugar dentro do cinema, liberto das amarras de pressupostos a seguir e de ideias dependentes de financiamento. A concepção de género traz consigo exclusões. Uma informação relevante é-nos dada na entrevista de Ian Aitken a Basil Wright quando este último se refere a Alberto Cavalcanti (1897-1982) - que realizou filmes na GPO Film Unit. Cavalcanti tinha um entendimento com Grierson, no mínimo, conturbado, em especial no que dizia respeito ao desenvolvimento do documentário:

``B.W. - Cavalcanti believed that the documentary should become more integrated into feature film, so that the distinction between the two became less clear cut. But I don't think that Grierson really understood feature films, and so he argued the two should remain quite separate.'' (Ian Aitken, 1998:252)

A separação que Grierson propõe é coerente com as suas ideias.Embora reconhecesse que o termo documentário pudesse abarcar diferentes filmes10, Grierson prefere separar, o que implica pensar em termos de géneros. Estabilizar uma práxis foi o maior contributo de Grierson com a evidente vantagem de, também, estabilizar uma comunidade de espectadores.11

Em Claiming the real (1995) Brian Winston critica severamente Grierson e a sua Escola. Entende que é necessário abandonar de vez a herança griersoniana que apenas contribuiu para que o documentário fosse considerado um filme sério com responsabilidades sociais na educação de todos; em resumo, filmes aborrecidos que ninguém está interessado em ver. À data da sua publicação (e talvez ainda hoje) o livro de Winston foi uma ``lufada de ar fresco'' no estudo do documentário.

Da nossa parte, entendemos que a abordagem de Grierson permite-nos concluir que procurar ou divulgar uma definição para o filme documentário ou estabilizar-lhe pressupostos implica entendê-lo como um género, implica que perante a diversidade temática, estética, narrativa (ou não-narrativa) se procurem traços comuns que o demarquem da restante produção de imagens em movimento.

Michael Renov (1993) considera a tentativa do documentário em representar a realidade altamente improvável, se não mesmo inviável, Renov entende o documentário como uma ficção. Por seu lado, a definição griersoniana de documentário (``tratamento criativo da realidade'') é considerada por Carl R. Plantinga (1997) demasiado alargada - Plantinga prefere o termo não-ficção; e considerada por Noël Carroll (1997) demasiado restrita, por não incluir registos como, por exemplo, o famoso ``videotape of the Rodney King beating''12.

O trabalho destes autores que aqui não aprofundamos, mantém a postura de uma procura da sua definição, o que implica separar, incluir ou excluir registos.

Em entrevista, no filme Cinema verité, Defining the moment, de Peter Wintonick (1999), Jean Rouch (1917-2004), disse ter visto pela primeira vez Nanook, o esquimó quando tinha 5 ou 6 anos de idade e perguntou ao seu pai se era verdade, o pai respondeu-lhe que sim, ``mas que tinha sido representado diante de uma câmara''. Desde esse dia, percebeu a diferença entre documentário e ficção. Jean Rouch, entre um registo e outro escolheu os dois (como já firmou em entrevista). Dito de outro modo, escolheu o cinema.

Hélio Godoy, no seu livro Documentário, Realidade e Semiose: os sistemas audiovisuais como fontes de conhecimento (2002) recusa o discurso ``deconstrutivista'' (que defende a impossibilidade do documentário ser um instrumento de conhecimento da realidade) e constrói uma fundamentação para uma teoria realista do documentário. A Semiótica de Peirce, a Teoria do Umwelt de Jacob von Uexküll e a Teoria da amostragem, no âmbito da Teoria Matemática da Comunicação de Shannon e Weaver são a sua base de apoio para defender que ``o documentário contribui para o conhecimento da realidade, principalmente por abordar a Realidade através da existência concreta das coisas no mundo.'' Este livro inspira-nos a definir melhor e com clareza a seguinte questão: há a possibilidade de uma teoria realista do cinema construída a partir do filme documentário?13

Há cada vez mais produção de filmes onde as convenções de género se misturam o que remete o trabalho científico sobre o filme documentário, para uma outra questão que não a sua definição. Definir o objecto de estudo que se está a trabalhar é o primeiro passo de uma investigação14, mas a investigação também se faz colocando outras questões. A constante interferência entre ficção e documentário, contrária ao desenvolvimento pretendido por Grierson, levanta outra questão, não menos importante que a sua definição, a saber, que lugar ocupa o documentário no cinema? Documentário e ficção têm a mesma natureza, ambos são cinema, entre eles poderá haver uma diferença de grau. O estudo sobre o filme documentário necessita de uma abordagem que esclareça melhor a posição/lugar que ocupa no cinema, para a partir daí fazermos investigação específica sobre determinados filmes ou movimentos, que existem um pouco por todo o mundo e para os quais o registo da realidade - o registo in loco - é um elemento aglutinador e absolutamente essencial.

O que pretendemos é, então, ir além de uma história do impacto e utilidade social do cinema griersoniana; interrogar o cinema a partir do filme documentário de modo a procurar se não respostas, indicações que nos permitam transcender o registo de género.

Os filmes que ultrapassam o registo de género são filmes que nos mostram que o documentário não é um género, é um projecto de cinema. Entrar no cinema ``pela mão'' do documentário, tendo em conta que este é tão cinema como a ficção e tendo, também, em conta que o espectador reserva-se o direito de lhe exigir um compromisso com a realidade, então poderemos pensar na possibilidade de, a partir do filme documentário, ser possível uma teoria realista para o cinema que seja capaz de dar conta do universo fílmico. A primeira ou uma das primeiras tarefas para verificar essa hipótese será discutir aprofundadamente e com rigor as ligações entre as teorias realistas do cinema de Kracauer e Bazin e o documentário. Assim, o tema em questão é a relação mundo-cinema.

O filme que imediatamente chama a atenção a respeito desta questão e que enquanto espectadores nos interroga sobre as relações complexas entre o cinema e o nosso mundo é O homem da câmara de filmar (1929) de Dziga Vertov.

``Man with the movie camera is the only documentary film I know that is an explanation of a theory.'' Jay Ruby, 2000:xi)

Para Vertov não só o conteúdo, mas a organização e ritmo das imagens projectadas no ecrã podem constituir uma genuína visão cinematográfica da realidade15; ou seja, o mundo mostrado no ecrã será mais que um mero documento fotográfico. Petric diz que este filme representa uma brilhante transposição cinematográfica dos ``factos da vida'' (``life facts'') por dar prioridade à expressividade estética sobre o registo fotográfico da realidade; ainda que tenha características formais evidentes, cada plano per se é visto como ``a vida tal qual'' (``life-as-it-is''). Para Vertov, o objectivo mais importante do filme documentário seria unir o autêntico com o abstracto. (Cf. Petric, 1996:271/2). Ainda para Vertov, o cineasta tem como função revelar a verdadeira realidade. Essa realidade encontra-se nos planos e só através de um uso criativo da linguagem cinematográfica, mesmo no momento de registar, é possível revelar a verdadeira realidade. Por um lado, Vertov não pretendia interferir na realidade a registar (de preferência as pessoas não deviam aperceber-se que estavam a ser filmadas) e o cineasta (o kinok, para usar o termo de Vertov) devia ter presente a estrutura de todo o filme sempre que registava um plano; por outro lado, a relação entre os planos a diversos níveis é absolutamente necessária para que a realidade seja revelada. Em O homem da câmara de filmar, inspirado no Construtivismo que não separa forma de conteúdo (a forma é também conteúdo), a autenticidade ontológica de cada plano não é comprometida. Como consequência, os filmes causam impacto no espectador, afectando a percepção convencional que têm do mundo.16

O cinema permite-nos aceder a aspectos da realidade aos quais não teríamos acesso sem a câmara de filmar. Um dos últimos planos de O homem da câmara de filmar mostra uma multidão e acima dessa multidão encontram-se duas câmaras de filmar, uma delas com o operador de câmara. Este plano é exemplar por tornar clara a ideia de que a câmara de filmar faz parte do nosso mundo, mas ao mesmo tempo tem a capacidade de o transcender. Permite-nos ver mais e melhor.

Há uma realidade fílmica e uma realidade mais real, se assim a podemos chamar. O cinema não tem a capacidade de nos dar a ver o nosso mundo ``tal qual'', mas de um modo que só o cinema, com a sua capacidade de enquadrar, compor, interligar, o pode fazer.

Duas alternativas. 1) todo o filme é um documentário - todo e qualquer filme documenta algo; 2) todo o filme é uma ficção por ser uma representação e não a própria realidade, por representar ideias e por todos os filmes partilharem dos mesmos recursos cinematográficos.

Uma posição mais equilibrada e (talvez) mais ajustada seria considerar que em todo o filme é, ao mesmo tempo, ficção e documentário. Mas, isso implicaria ter bem claras as definições de ficção e de documentário, o que não é possível.

Definimos assim a nossa posição: ficção e documentário são formas de documentarismo, um filme não é um documentário, mas possui um carácter documental. Em alguns filmes esse grau de ``carácter documental'' é menos problemáticos que noutros. Deixamos o termo documentário para os movimentos fílmicos que assumem que este mesmo termo é o ideal para designá-los, há que compreender o porquê e de que modos o utilizam. O carácter documental que entendemos que todos os filmes possuem resulta da nossa certeza de que todo o filme é uma construção de pessoas cultural, social e politicamente situadas. Por isso, o documentário não ocupa um lugar específico dentro do cinema. Está presente, em diferentes graus, em todo o cinema.

Um termo que já utilizámos, o de ``documentarismo'', realça as variações de maior ou menor proximidade, entre o que vemos no cinema e no mundo. Enquanto teoria, o documentarismo só poderá afirmar-se se for capaz de compreender o cinema a partir do filme documentário, dando conta da sua natureza cinematográfica e das variações que os espectadores experimentam ao visionar filmes como En construcción (2000), do espanhol José Luís Guerín ou, no caso português, filmes paradigmáticos como Jaime (1974) de António Reis e Trás-os-Montes (1976) de António Reis e Margarida Cordeiro, ou ainda o filme Histórias selvagens (1978) de António Campos.

Há filmes que não são problemáticos quanto a designarem-se de documentários, mas outros, impelem-nos a pensá-los como mais que um género, são um projecto de cinema. O projecto de cinema dos filmes será documentar algo, são modos de ser no mundo.

Bibliografia



Notas de rodapé

...anico1
Comunicação apresentada no III SOPCOM, VI LUSOCOM, UBI, Abril 2004.
... nome.2
Nas palavras do próprio Grierson: ``When I used the term ``documentary'' of Bob Flaherty's Moana, I was merely using it as an adjective. Then I got to using it as a noun: ``the documentary''; this is documentary''. The word ``documentary'' became associated with my talking about this kind of film, and with me and a lot of people round me.'' (in Elisabeth Sussex, 1975:3)
... Units.3
A EMB-Empire Marketing Board Film Unit, de 1927 a 1933; GPO-General Post Office Film Unit, de 1933 a 1936. Em 1936 Grierson fundou o Film Centre que tinha realizava e produzia filmes para patrocinadores. A partir de 1939 Grierson foi para o Canadá onde se tornou Film commissioner da recém criada National Film Board of Canada e a partir de 1946 foi Head of Information na UNESCO. (Fonte: Ian Aitken, Film and reform John Grierson and the documentary film movement, Routledge, 1990)
... realidade''4
Nesse texto, Grierson não diz claramente que o documentário é ``o tratamento criativo da realidade''. O que de mais aproximado encontrámos foi: ``...beyond the newsmen and the magazine men and the lectures (comic or interesting or exciting or only rhetorical) one begins to wander into the world of documentary proper, into the only world in which documentary can hope to achieve the ordinary virtues of an art. Here we pass from the plain (or fancy) descriptions of natural material, to arrangements, rearrangements, and creative shapings of it.'' (Grierson, 1932:146)
...itulos5
Por não serem demasiado longos, a seguir transcrevemos todos os inter-títulos do filme Drifters. Apenas uma nota, entre os dois primeiros inter-títulos não existem imagens a separá-los. 1) ``The herring fishing has changed. Its story was once an idyll of brown sails and village harbours - its story is now an epic of steam and steel.''; 2) ``Fishermen still have their houses in the old villages - But they go for each season to the labour of a modern industry.''; 3) ``Out past the head land - to open water and the North sea''; 4) ``The log-line tells the miles''; 5) ``Far to seaward swim the herring shoals.''; 6) ``The skipper keeps a look-out for `appearances'.''; 7) ``While down below'' (nota: planos de preparação de comida na cave do barco); 8) ``Forty miles by the log and dark patches of water mark the shoals below''; 9) ``There are two miles of nets to cast - and work goes'on into evening.'';10) ``Then an extra float for the end of the line'';11) ``And the mizzen is set for the night''; 12) ``With the ship made fast to the end of the line the nets go drifting through the darkness.''; 13) ``Dog fish and conger - the destroyers of the deep - gather for the killing.'';14) ``One man keeps the watch.'';15) ``In and out work the dog fish.'';16) ``Dawn breaks with heavy swell over land and sea.''17) ``Out in the waste of waters the men are called to the labour of hauling.'';18) ``The storm gathers the labour becomes heavier still.'';19) ``Despite the winch's help every foot has to be fought for.'';20) ``More steam for the straining winch.''21) ``A hundred and fifty crans - a thousand herring to the cran. After eight hours' labour the hauling is done.'';22) ``The rolling ship turns her head for harbour.''23) ``The full speed through a head-sea for the earliest possible market.'';24) ``One sea in the hold and a catch is ruined'';25) ``On the quayside the auctioneers's bell calls the buyers together.'';26) ``In quick succession the ships ride through''.;27) ``The heaviest laden come last of all.'';28) ``And the sound of the sea and the people of the sea are lost in the chatter and chaffer of a market for the world.'';29) ``So to the ends of the earth goes the harvest of the sea.''
... obras6
``Não é possível construir um sistema estético num vazio. No mínimo, um conjunto de normas estéticas tem uma relação qualquer com a forma como o seu autor concebe o seu mundo, a sua vida social e o papel desempenhado pelo cinema neste contexto mais alargado.'' (Andrew Tudor, 1973:66)
...re-construção7
Re-construção é um termo utilizado para designar o registo de um acontecimento em estúdio quando, por qualquer motivo, a câmara de filmar não o captou no momento em que ocorreu.
... filmes.8
Estudos sobre géneros: E. Buscombe,''The ideia of genre in the american cinema'' in Screen, vol. 11, nº 2, 1970; C. MacArthur, Underworld USA, London,Secker and Warburg, 1972; Robert Altman, Film/Genre, London, BFI, 1999; Barry K. Grant (Ed.), Film genre, Theory and Criticism, Metuchen, Scarecrow Press, 1977; Barry K. Grant (Ed.), Film genre reader, Austin, Texas, University of Texas University Press, 1896; idem, Film genre reader II, 1995; T. Grodal, Moving pictures: a new theory of genres, feelings and cognition, Oxford, Clarendon Press, 1997; T. Schatz, Hollywood genres, NY, Random House, 1981; Pam Cook, ``Genre'' in The cinema book, London, BFI, 1985, Steve Neale, Genre, London, BFI, 1980; idem, ``Questions of genre'' in Screen vol.31, nº 1, 1990.
... autor.9
O termo ``género'' adequa-se, mais facilmente, ao cinema clássico. A indústria cinematográfica para ser rentável, necessita de dividir claramente as suas fases e especificar tarefas de produção, distribuição e exibição. Cada uma delas permite a rentabilidade de um conjunto de filmes, desde que os mesmos obedeçam a um conjunto de ``leis'' temáticas e formais. Economizar meios e tornar a comunicação eficaz pelo recurso aos clichés são as ideias subjacentes a este modo de fazer cinema. A repetição dessas ``leis'' permite estabelecer entre a produção e a recepção laços seguros.
... filmes10
``Documentary is a clumsy description, but let it stand. (...) From shimmmying exoticism it has gone on to include dramatic films like Moana, Earth and Turksib. And in time it will include other kinds as different in form and intention from Moana, as Moana was from Voyage au Congo.'' (Grierson, 1932-34, p.145)
... espectadores.11
Em geral, o contributo de Grierson é visto como uma página negra na história do filme documentário. (ver, por exemplo, o livro de Brian Winston, 1995) Se Grierson deixou uma pesada herança ao documentário por imediatamente o remeter para a confusão entre documentário e reportagem, lançando o documentário para a televisão e não para as salas de cinema, propostas posteriores, como os movimentos de cinema directo, também o colocam numa posição pouco confortável. O cinema directo prometeu o que é impossível cumprir: ``apresentar a realidade tal qual''. Entendemos que esta abordagem remete para o voyeurismo. O espectador é estimulado a olhar o Outro (apresentado no ecrã) como um agente de acções estranhas que dificilmente compreende. Sem envolvimento não há compreensão. A observação que tem como base: ``façam de conta que não estamos aqui a filmar'' é meramente voyeurista.
... beating''12
Registo em vídeo de Rodney King a ser violentamente espancado pela polícia de Los Angeles,Março de 1991.
...ario?13
Embora não de modo tão explicíto esta questão já foi por nós abordada no texto: ``O documentarismo do cinema''. O livro de Hélio Godoy ajudou-nos a clarificá-la. Da nossa parte interessa-nos trabalhar as teorias especificamente cinematográficas.
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A questão da definição do filme documentário e sua identidade já foi por nós trabalhada em O filme documentário.História, Identidade, Tecnologia, Edições Cosmos, 1999.
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Percebe-se o porquê da constestação aos filmes de Vertov em especial, Três canções para Lenine (1934), que representa mais a esperança do povo por uma vida melhor que Lenine enquanto homem ou político. Este filme poético ía contra o Realismo Socialista que defendia a subordinação da forma ao conteúdo. (Cf. Petric, 1996)
... mundo.16
``... Vertov strove to observe both the `Film-Truth' (the ontological authenticity of the shot) and the `Film-Eye' (the montage structure of the associated shots). By accomplishing this, he made The man with the movie camera able to function on both levels, presenting reality `as it is', and generating, through the kinesthesia, a new vision of the world.'' (Petric, 1996:293)