A Função Retórica da Crítica de Cinema:
análise das resenhas de Central do Brasil.

Regina Gomes1

Universidade Católica de Salvador


Índice


Resumo: Parece-nos claro que a crítica de cinema possui uma função retórica. Como gênero discursivo jornalístico, a crítica comum de cinema veiculada pelos meios de comunicação de massa, dispõe de estratégias argumentativas a fim de validar suas premissas e conseguir o apoio dos leitores.

Propomos, neste artigo, revelar certos aspectos desta retórica consagrada dos críticos de cinema, em particular aqueles que direcionam suas críticas aos filmes brasileiros exibidos em Portugal na década de noventa, nomeadamente ao filme Central do Brasil de Walter Salles.


``Nunca confies no contador, confia no conto''.
T. E. Lawrence.

Comecemos este texto abordando a rica relação entre retórica e comunicação.Trata-se de uma relação constituída de um diálogo partilhado entre um produtor e um receptor, ou seja, aquele que argumenta sempre, por princípio, dirigi seu discurso a alguém. Conforme observa Phillipe Breton (2001:12) um traço peculiar ao argumento ``é o facto de se desenvolver numa situação de inter-relação'', reconhecendo a evidente natureza comunicativa da retórica. Este processo dialético entre representação e público que é, de fato, a retórica, interessa-se, pois, por situações de comunicação intrínsecas à vida em sociedade, embora convém lembrar que o domínio do conhecimento desses processos comunicacionais é o do verossímil e não o da verdade.

Não poderíamos deixar de citar aqui o nome de Chaim Perelman. O teórico fundador da Escola de Bruxelas inscreve seu famoso Tratado da argumentação: a nova retórica (Perelman, 1996:6) sob uma perspectiva comunicacional seja quando sublinha o fato de que é ``em função de auditório que qualquer argumentação se desenvolve'' seja quando reconhece que ``o objetivo de uma argumentação não é deduzir as conseqüências de certas premissas, mas provocar e reforçar a adesão de um auditório às teses que são apresentadas ao seu assentimento''. Com efeito, a idéia de adesão aos espíritos de Perelman ratifica as trocas circulares entre texto e leitor, em desacordo a uma visão mecanicista dos processos comunicacionais.

O mesmo pode ser dito à ênfase dada por Stephen Toulmin (2001) em The uses of argument à lógica comunicativa da retórica. Além de ser persuasivo, o discurso argumentativo deve ser suficientemente forte na sua da justificação, caso contrário o alvo de toda intencionalidade deste discurso (auditório) não estará satisfeito. Sem este alvo, o discurso perde, portanto, toda a sua finalidade.

A comunicação também se vê presente quando pensamos que os mecanismos argumentativos compõem-se de elementos persuasivos prontos para provocar a aceitação da audiência. Afora as questões morais, levantadas desde há muito tempo por Sócrates e Platão em relação aos sofistas, sobretudo no que diz respeito ao aspecto da manipulação, o interesse pela persuasão tem aqui um traço específico quando o debate é transferido para o exame da retórica daquilo a que denominamos de crítica cinematográfica.

Parece-nos claro que a crítica de cinema possui uma função retórica. Como gênero discursivo jornalístico, a crítica comum de cinema veiculada em jornais, semanários e revistas, dispõe de estratégias argumentativas a fim de validar suas premissas e conseguir o apoio dos leitores. Como afirma Perelman (1993:172): ``Desde que uma comunicação tenda a influenciar uma ou várias pessoas, a orientar os seus pensamentos, a excitar ou apaziguar as emoções, a dirigir uma acção, ela é do domínio da retórica''. O discurso da crítica comum de cinema é também um discurso sobre valores e como tal ``obriga a uma argumentação fundamentada e persuasiva, fundamentada para ser persuasiva, e justificada de valor, nomeadamente estético, da obra fílmica'' (Cardoso e Cunha, 1996: 189).

Contemporaneamente, a crítica de filmes tem respondido a um tipo de jornalismo massivo, com limitações de espaço cada vez maior e falta de tempo para a análise mais atenciosa das películas. Este tipo de texto mais acelerado, portanto, já faz parte do discurso retórico dos críticos atuais que sofrem com a intolerância à exegese fomentada pelos editores de jornais e revistas de grande circulação.

Alinhados a convenções ditadas pela própria instituição que os consagra, esses escritos críticos obedecem a regras e convenções retóricas próprias de qualquer discurso persuasivo. Com efeito, reclamar um pathos para evocar um discurso emocionado sobre um filme, faz parte desta rede comunicativa entre críticos e leitores. O discurso da crítica de filmes, enfim, remete a um tipo de comunicação persuasiva, recheado de elementos prontos para provocar a aceitação ``tanto intelectual como emotiva'', nas palavras de Perelman, das audiências.

Pensar, portanto, nesta prática discursiva é saber levar em conta essas estratégias argumentativas que mediam este processo comunicacional. Propomos, desta forma, revelar certos aspectos desta retórica consagrada dos críticos de cinema, em particular aqueles que direcionam suas críticas aos filmes brasileiros exibidos em Portugal na década de noventa, nomeadamente ao filme Central do Brasil.

O trabalho do teórico de cinema americano David Bordwell, Making Meaning: inference and rhetoric in the interpretation of cinema, propõe uma leitura atenciosa dos métodos de pensamento e escritura dos críticos de cinema. Embora nesta obra o autor focalize suas análises para as críticas produzidas em formatos acadêmicos, o chamado film criticism, Bordwell não deixa de revelar a importância das convenções retóricas utilizadas pelos críticos de cinema também em resenhas jornalísticas. A crítica de cinema, para Bordwell (1991) é uma prática discursiva cognitiva e retórica que se molda pelas instituições que a albergam, seja ela um ensaio acadêmico ou um resenha de jornal. Hoje, ela estaria mais longe do ideal de interpretação tornando-se uma atividade essencialmente rotineira, sem invenção ou criatividade.

Importante pelo apuro metodológico, pouco usual neste campo de debates, a obra de Bordwell pode ser considerada como uma das pioneiras na discussão sobre os métodos de interpretação da crítica de filmes. Chamar a atenção à análise desta prática discursiva já é um mérito, mesmo correndo-se o risco de ser mal interpretado pelos seus pares que, por vezes, não vêm com bons olhos a crítica da prática crítica.

Bordwell (1991:34-40) está preocupado em analisar a lógica da justificação do discurso da crítica cinematográfica. Um crítico, diferente de um leitor comum, baseia-se em convenções estipuladas por instituições interpretativas (como o jornal, por exemplo) e emprega habilidades na resolução de problemas para chegar a uma interpretação do filme. Para o crítico, não é suficiente construir os significados no filme mas também justificar a escolha deles através de um discurso argumentativo público.

Assumindo seu diálogo com a retórica clássica de Aristóteles, Bordwell (1991) define a retórica crítica como um mecanismo argumentativo de atração para as audiências. Surpreende o fato de Bordwell não utilizar referências da Nova Retórica de Perelman, já que este, entre outras contribuições, atualiza a discussão aristotélica, sobretudo quando retoma a relação de convivência entre a dialética e a retórica ou entre o raciocínio dialético e o raciocínio argumentativo. Pode-se argumentar que talvez, não estivesse no horizonte de Bordwell uma discussão mais aprofundada sobre a retórica em si. Contudo, tratando-se a crítica cinematográfica como um discurso que tem na função retórica uma de suas principais funções, a obra de Perelman revela uma contribuição que não se deve desconsiderar.

Bordwell irá reafirmar a importância da retórica para a prática da crítica de cinema revelando como as categorias aristotélicas clássicas da retórica inventio, dispositio e elocutio estão presentes no discurso institucional interpretativo dos críticos de cinema. A invenção trata de como os críticos elaboram os argumentos de sustentação e inclui provas baseadas no ethos que se fundamenta na credibilidade do autor ou ``os aspectos atrativos da atitude do crítico servirão como garantia de seus juízos sobre o filme'' (Bordwell, 1991:35), no pathos motivado num apelo a emoções do auditório, ou o discurso argumentativo deve ``excitar as paixões, emocionar seus ouvintes, de modo que se determine uma adesão suficientemente intensa'' (Perelman, 1996:52) e por fim no logos ou a capacidade do discurso de aceitar ou construir determinadas visões.

A disposição do discurso crítico também é muito importante uma vez que este deve estar organizado de maneira atrativa para o leitor. Com efeito, Bordwell (1991:37-38) afirma que a crítica cinematográfica veiculada pelos jornais compõe-se de quatro elementos básicos: ``uma sinopse condensada, destacando os momentos mais intensos, porém sem revelar o final do filme; um corpo de informações sobre o filme (gênero, origem, diretor ou estrelas, anedotas sobre a produção ou a recepção); uma série de argumentos abreviados e um juízo a modo de resumo (bom/mau, boa tentativa/pretencioso desastre, de uma a quatro estrelas, escala de um a dez) ou uma recomendação (polegar para cima/polegar para baixo, veja/nem se aproxime)''. A ordem 2 pode variar mas, de um modo geral, abre-se o texto com um juízo rápido, depois uma sinopse e uma série de argumentos sobre as interpretações, lógica da trama, etc, conectar isto com as informações sobre o filme e, finalmente, uma crítica reiterando seu juízo. Não é preciso ser um expert no assunto para rapidamente concordar com Bordwell quanto às limitações que este modelo impõe, sobretudo porque, ratificando a afirmativa de Perelman (1993: 159), ``a ordem de apresentação dos argumentos modifica as condições de sua aceitação''. Deste modo, a construção de um texto que fuja a linearidade da narrativa ao adotar, por exemplo, um padrão de escrita desordenado, não linear, pode evocar um estranhamento ou até mesmo um corte na identificação do leitor com o texto. O ``lugar'' e a força dos argumentos extremamente importantes e dependem da maneira como são recebidos.

Alguns poucos profissionais conseguem fugir desta rotina elaborando textos que escapam ao padrão convencional descrito por Bordwell. Na maioria das vezes, os que conseguem resistir a este modelo acabam por acentuar seu estilo criando textos que marcam a sua personalidade e se destacam dos mais comuns 3. Naturalmente não queremos dizer que os outros escritos não tenham estilo. Dizer tudo em poucas linhas ou produzir uma escrita telegráfica e ágil já faz parte do estilo deste gênero cujo leitor já se habituou a ler. Mas alguns críticos se utilizam de ironias, excessos de adjetivos, alguns são tempestuosos, outros irascíveis, acentuando seu carimbo caligráfico reconhecível e, por vezes, cultuado por diversos leitores. Enfim, a crítica de cinema tem um discurso altamente estilizado baseado em convenções que definem as fronteiras, tanto para criação, como para a recepção do discurso. Ou seja, o crítico deve saber que tipo de comentário é aceitável para o leitor de modo a seduzi-lo.

A crítica direcionada aos filmes brasileiros

Aproximadamente 87 filmes brasileiros foram exibidos em Portugal na década de 90. Não é um número muito grande dada à amplitude do período e especialmente ao fato de a maioria deles, terem sido exibidos no chamado circuito não comercial, ou seja, na Cinemateca Portuguesa, e nos Festivais de Cinema Luso-brasileiro, Tróia e Figueira da Foz 4. A presença da cinematografia brasileira em Portugal passou por períodos de grande divulgação e aceitação (época do Cinema Novo) e por ocasiões de quase total desconhecimento (anos 90), com alguns êxitos pontuais já no final da década.

Não convém, neste espaço, revelar de forma mais detalhada, as razões que levaram a tal estatuto periférico das recentes produções brasileiras, estatuto certamente recíproco em relação ao cinema português exibido no Brasil, antes apontar alguns vetores à constituição de uma prática discursiva que tem no cinema seu foco interpretativo.

Em fins dos anos 90, filmes como Amor&Cia de Helvécio Ratton e, principalmente, Central do Brasil, de Walter Salles, conseguem furar o cerco das distribuidoras e são exibidos em diversas salas comerciais de Lisboa. Aliado a uma forte campanha publicitária, Central de Brasil, tinha a seu favor o fato de já ter ganhado vários prêmios em festivais internacionais 5 e ter sido nomeado ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Entretanto, observa-se uma dimensão excessivamente negativa na apreciação desta película por boa parte da crítica cinematográfica portuguesa. De um modo geral, Central do Brasil fora visto com reservas pelos críticos por dois motivos expressos em suas estratégias argumentativas: primeiro uma ``inevitável'' comparação ao saudoso Cinema Novo e, por conseguinte, à figura de Glauber Rocha. O segundo motivo estaria ligado ao fato do filme apresentar características da telenovela.

Comecemos, então, traçando um painel da arquitetura dessas resenhas críticas. Embora a maioria delas adote o modelo descrito por Bordwell, com variações de ordem aqui e ali, notamos em sua organização textual traços já reveladores para a sustentação dos argumentos. Num desses textos, seu autor, já na abertura da resenha e após uma breve sinopse do filme, avança com um juízo clamando aos leitores: ``Mas o filme é apenas um produto para exportar num dilúvio de falsas emoções, impregnadas de lágrima fácil, muito, muito longe da pretendida reencarnação do Cinema Novo'' 6. Uma das características da estrutura organizativa da interpretação destes discursos retóricos é a convicção na afirmação dos juízos logo no início do discurso. É claro que o leitor, já quase convencido, gostaria de saber o porquê da ``fragilidade'' do filme mas isto só será visto mais adiante no ``corpo'' do texto. É neste espaço que os componentes narrativos do sistema referencial retórico constitui elementos para a justificação de seus julgamentos. Deste modo, o filme é frágil porque ``evita as implicações políticas [inerentes] ao tema'', ``é muito sentimental'' ou ``não há nada do universo glauberiano no filme'' e outras estratégias que veremos constituídas mais adiante.

Ainda em relação à disposição dos argumentos, percebemos que alguns autores optaram por criar uma estrutura comparativa entre filmes: ``Quando o filme [Central do Brasil] está na cidade evita aflorar a aspereza da realidade, ao contrário de Pixote de Hector Babenco'' 7, ou ``O segredo de Central do Brasil é apenas a de uma exploração muito pouco hábil (valha-nos isso!) do miserabilismo que tem seu modelo acabado em O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte'' 8. Estas táticas comparativas são utilizadas como sustentação das alegações propostas pelos críticos e como reforço para a crença dos leitores e por isso elas devem estar organizadas naquilo a que Bordwell chama de ``uma série de argumentos condensados acerca das interpretações'' (1991:38). É neste quadrante também onde se pode notar que a maioria dessas críticas centra seus argumentos e alegações nos pontos aos quais nos referimos anteriormente seja na inconcebível comparação com o diretor baiano, seja a tez telenovelesca da película.

Ao final desses escritos geralmente recorre-se a uma conclusão que reafirma o juízo dado na abertura do texto. Mais uma convenção retórica que grande parte das críticas analisadas segue, ao emitir um rápido julgamento seja à base das famosas estrelas ou de uma apelação mais emotiva.

Por fim, é importante salientar que a arquitetura do texto depende, em boa medida, do hábito e da familiaridade que o crítico tem para constituí-lo e que isto, sobretudo, é mais um elemento de ligação comunicativa entre leitor e crítico uma vez que o leitor rapidamente percebe as preferências do crítico e tende a seguir aquelas cujo gosto ele confia como se fosse o seu próprio (Bordwell, 2001:14).

Outra questão a destacar são os recursos estilísticos verificados nessas práticas. Identificamos discursos eloqüentes e persuasivos que buscam, sobretudo, conquistar o público leitor através de um texto ágil, acelerado e, por vezes, nem um pouco preocupado com a clarificação dos conteúdos. O ataque por meio do uso abusivo de adjetivos, contudo, faz-nos pensar em questões éticas prementes hoje no exercício da crítica quando se sabe que a opinião persuasiva de um crítico pode ser decisiva na carreira de alguns realizadores, particularmente os que estão se iniciando na profissão ou mesmo aqueles desconhecidos do público onde o filme está sendo exibido.

Num texto pertinente a essa discussão, Cinema, crítica e argumentação, Tito Cardoso e Cunha (1996:190) descreve como centrais e inevitáveis três noções que permeiam o exercício da discursividade crítica no cinema: Valor, Contexto e Significado que solicita os atos de julgar, informar e interpretar, respectivamente. O ideal seria que na crítica fosse visível a utilização dos três atos e que o trabalho do crítico fosse o de assumir uma posição avaliadora do filme, e que ao mesmo tempo, recorresse à informação num processo descritivo, analítico e interpretativo. Mas, sabemos que isto nem sempre ocorre, especialmente no jornalismo diário.

Dois paradigmas invariáveis: o Cinema Novo e as telenovelas

Como nós já havíamos referido, é necessário reconhecer as manobras argumentativas, estilísticas e organizativas deste tipo de discurso. A referência ao nome de Glauber Rocha e a escola cinemanovista, são constantes em quase todas as críticas ao filme em questão. Estas reiteradas remissões funcionam como entimemas de apelação a autoridade, importantes provas retóricas baseadas em crenças tácitas, premissas já conhecidas do público de que o crítico dispõe para compor seus argumentos. Assim, citar Glauber Rocha, Manoel Oliveira, Godard ou Rosselini já evoca erudição, capacidade do crítico em promover associações com teorias respeitadas, mesmo que brevemente, dada as limitações de espaço do texto. Citando Aristóteles nos Tópicos, Bordwell (1991, p.37) observa que os entimemas são também argumentos baseados em estereótipos em que muitas vezes o público aceita sem questionar. Na crítica cinematográfica o entimema modelo opera geralmente desta forma:

``Um bom filme tem a propriedade p.

Este filme tem (ou carece de) propriedade p.

Este filme é bom (ou mau)''.

Em nosso caso específico, vejamos alguns exemplos concretos dessa comparação entre Central do Brasil e o Cinema Novo brasileiro:

O cinema brasileiro conseguiu com este filme um sucesso internacional marcado, nomeadamente com nomeações para os globos de ouro e os oscares americanos e uma exploração comercial em todo o mundo incluindo o habitualmente fechado mercado americano, e é, aliás, por essa via que chega até nós.

(...) Mas o período de grande prestígio do cinema brasileiro continua a ser o dos anos sessenta, o que mesmo internacionalmente foi designado por ``cinema novo'', e onde pontificam nomes como Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra e muito principalmente Glauber Rocha, que defendeu num ensaio o que ele designou por estética da fome. Esse período caracterizou-se por uma contribuição estética mais significativa, mas principalmente por um evidente empenhamento político revolucionário 9.

(...) Isto não está já em qualquer telenovela brasileira? É por isso que se evoca o ``Cinema Novo'' da década de 70 e o sacrossanto nome de Glauber Rocha? Por causa do miserabilismo feito bilhete exótico?10.

(...) é também preciso ter o sentido das proporções e não desatar a evocar o ``Cinema Novo'' dos anos 60 e 70. Nem Walter Salles é a reencarnação de um Glauber Rocha, nem Central do Brasil é uma pedrada revolucionária na vitrina do ramerrão cinematográfico brasileiro 11

(...) Ora, o espanto abate-se sobre o espectador incauto, quando se apercebe que ``Central do Brasil'' não passa de um melodramazinho delicodoce, recheado de boas intenções e de possidónias soluções cinematográficas. Não há chavão de vida suburbana, nem bilhete postal de Nordeste folclórico e devoto a que sejamos poupados. Da força telúrica do universo de Glauber nem sombra 12.

Apesar da indignação geral visível nos textos, pela injustificada recepção internacional favorável ao filme e por levantar suspeitas na associação ao ``sacrossanto'' nome de Glauber Rocha, não há uma preocupação em esclarecer para o leitor as causas dessa ``infundada'' e ``absurda'' comparação entre Glauber Rocha e Walter Salles ou entre Central do Brasil e o Cinema Novo. Pressupõe-se, portanto, que o público leitor já saiba as razões via seus conhecimentos acumulados. Os discursos recheados de adjetivos apelam aos sentimentos do leitor e confirma a estratégia argumentativa para conseguir o apoio do público. Mas, fica claro que nem todos podem produzir tais discursos. Apelações centradas no ethos destinam-se apenas aqueles especialistas autorizados pelas instituições que podem assumir o papel de juiz, analista e aplicar seus critérios com rigor e erudição.

Sendo sua prática legitimada, as alegações da crítica podem estar relacionadas a aspectos formais do filme, aspectos, digamos, estilísticos da linguagem cinematográfica, como os movimentos de câmera, a montagem, a trilha sonora, a mise-en-cène, etc, ou invocam-se aspectos de conteúdo, éticos, ideológicos, religiosos, o ponto de vista narrativo, etc. A valoração negativa dada pelos críticos portugueses ao filme em questão deve-se a suposta estetização da miséria no nordeste brasileiro, este por demais folclorizado e exótico onde o realizador explora a miséria humana em forma de ``um arremedo de neo-realismo, sem nervo nem intervenção social''. Notamos que a narrativa foi um referente constante nestes discursos em detrimento dos elementos estéticos, apesar das alusões comparativas à estética televisiva. Quanto ao desempenho dos atores, a recepção foi bastante favorável especialmente para a protagonista Fernando Montenegro ainda que num desses discursos seu autor tenha achado injustificada sua nomeação ao Oscar de melhor atriz 13.

Poderíamos, ainda que provisoriamente, refletir sobre o porquê deste juízo desfavorável ao filme. Para a maioria dos críticos portugueses (sobretudo os herdeiros da tradição dos Cahiers du Cinéma), o Cinema Novo foi um modelo de uma cinematografia nacional arrojada política e esteticamente e tornou-se um referencial de qualidade para todo o cinema brasileiro desde então. Este referencial cinemanovista passa, assim, a ser principal objeto de comparação para com os filmes brasileiros mais recentes que, de um modo geral, vêm recebendo uma apreciação negativa uma vez que estes não preservaram a ``magia'' do movimento precedente. Curiosamente, este fenômeno também pode ser verificado em França como demonstra Alexandre Figueirôa (2003: 189) ao observar comparações similares feita pela crítica de cinema francesa: ``Nessas comparações era em geral possível se perceber de maneira clara uma desvalorização dos filmes desta nova geração em relação aos critérios de avaliação crítica estabelecidos a partir das obras clássicas do Cinema Novo. O conhecimento prévio e consagrado do movimento impunha restrições aos novos filmes pela não observação desses critérios e faziam ver a existência de uma diferenciação que terminava por dar ao Cinema Novo o papel de modelo de referência a ser respeitado e mesmo a ser seguido''. Este fato é especialmente importante quando pensamos que todo discurso retórico é ele mesmo situado historicamente o que nos ajuda na compreensão de determinados juízos críticos. Neste caso, os anos 60 e 70 foram marcantes para afirmação de cinematografias que rompessem com o padrão hollywoodiano de fazer cinema, este por demais comercializado e com poucas marcas de autoria que, para os críticos europeus, eram fundamentais na concepção do cinema como arte. O Cinema Novo, a Nouvelle Vague, o Neo-Realismo italiano, o Novo Cinema português, foram movimentos determinantes para o estabelecimento de critérios de julgamento estéticos e políticos utilizados pela crítica, nostalgicamente em vigor até hoje.

Mas foi o enquadramento ``telenovelesco'' do filme o que mais incomodou a crítica portuguesa. Sobre este assunto reservamos uma atenção especial. Expressões recolhidas nas críticas como ``É uma telenovela, realizada com um maquinismo cinematográfico pronto-a-filmar, árido e previsível'' ou ``trata-se de uma fita que combina os valores narrativos e dramáticos da telenovela'' ou ainda ``Walter Salles atualiza o modelo [de exploração da miséria exótica] com métodos da telenovela'' ou ``Este filme está longe de ser uma telenovela, mas partilha os mesmos compromissos daquela: ser um objecto raso que possa espreitar todos os mercados'', revelam um traço peculiar à cultura portuguesa contemporânea com a `invasão' de narrativas seriadas brasileiras que, mesmo presentes em Portugal desde 1977 com a exibição de Gabriela, a partir do início da década de 1990 tem um crescimento vertiginoso, através da entrada de redes privadas de televisão no país 14.

Se pensarmos neste argumento como o mais apelativo aos leitores, pensamos também na sua justificação. Está claro que na comparação subentende-se um juízo de valor. A televisão, e a telenovela em particular, são vistas pela maioria dos críticos 15, como o lugar da não-arte, do excessivamente comercial, um ambiente de subprodutos culturais. Este juízo é dado, por extensão, também ao cinema brasileiro que vive reproduzindo clichês televisivos. Ora, sem querer entrar na discussão sobre a boa ou má qualidade da teledramaturgia ou do cinema brasileiro, observa-se uma dimensão importante no entorno do problema retórico que é o seu contexto. Sem sombra de dúvida, é impossível revelar certos aspectos argumentativos desta prática discursiva sem contextualizá-los.

Chegando a Portugal em doses abusivas, as telenovelas traduziram um modelo de dramaturgia próprio da linguagem televisiva com seus planos fechados e a redefinição do conceito de enquadramento, ``estes determinados pelo jogo de convenções da lógica dialogal, sem fora-de-campo nem perspectiva'' como observa Francisco Rui Cádima (1996:176). Isto trouxe conseqüências à produção audiovisual portuguesa que se por um lado, através da leitura diária de um produto simbólico revelou um pouco da cultura (muitas vezes estereotipada) brasileira, por outro vai traduzir-se como modelo paradigmático de produção audiovisual daquele país, que fica internacionalmente conhecido através de sua teledramaturgia. A imagem do Brasil hoje em Portugal é pouco nítida como nota Eneida Leal Cunha (2003:125): ``Conhece-se o Brasil hoje, em Portugal, não mais através das suas altas construções literárias, mas através da mídia televisiva e da chamada cultura popular e massiva'' 16. Com efeito, talvez este breve painel histórico seja necessário para a compreensão das razões de um juízo acentuadamente negativo das obras cinematográficas brasileiras. Além disso, não podemos deixar de sublinhar que a imagem dos atores brasileiros também está fortemente associada às telenovelas já que a grande maioria provém dessas narrativas seriadas e suas caras tornaram-se familiares aos espectadores portugueses. Vê-las no cinema, no mínimo, causa um certo ar doméstico de interpretação.

Dos textos consultados, apenas dois apresentavam um perfil mais positivo de Central do Brasil. Um deles, sintomaticamente aborda as alegações acima descritas e merece ser citado:

``Central do Brasil'' tem como principal qualidade assumir as suas características muito próprias, o que o afasta do cinema que vemos correntemente. Mas não haja ilusões; tal não corresponde, felizmente, a qualquer aproximação à telenovela, fenômeno que mais contribuiu para aniquilar o cinema brasileiro em Portugal 17.

Ora, em Central do Brasil os personagens têm uma forte carga dramática o que lhes confere a apresentação de um perfil psicológico bastante definido. Além disso, trata-se, sobretudo, de estéticas diferenciadas, os planos abertos e longos de Central do Brasil, evocando a dimensão espacial característica do nordeste brasileiro em nada se compara aos cortes excessivos e aos planos mais cerrados da estética televisiva. As alegações destes discursos, portanto, pretendem garantir o assentimento de seus interlocutores à custa de uma visão certamente contextual e emblemática da televisão e do cinema brasileiro.

Finalizando, resta refletirmos se estes discursos estariam utilizando uma estratégia retórica de subordinar o filme a argumentos mais globais, uma espécie de sinédoque, um emblema da parte-pelo-todo, aqui representados com duas premissas básicas: não há nada igual à genialidade do Cinema Novo ou o cinema brasileiro atual é uma mera repetição dos clichês televisivos. Essas noções de expressões fixas e monossêmicas submetem Central do Brasil e, por conseguinte, o cinema brasileiro a uma imagem invariável e compacta, imagem seguramente mediatizada pela cultura, mas que expressa desconhecimento da contemporânea cinematografia brasileira 18.

Bibliografia



Notas de rodapé

... Gomes1
Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA, doutoranda em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa com projeto financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia e professora da Universidade Católica de Salvador.
... ordem2
Segundo Perelman, três ordens dos argumentos foram preconizadas pela retórica clássica: ``a ordem da força crescente, a ordem da força decrescente e a ordem nestoriana, em que se começa e acaba com os argumentos mais fortes, deixando os restantes no meio''. In PERELMAN, Chaim. O império retórico: retórica e argumentação. Lisboa : edições Asa, 1993. p.161.
... comuns3
Em Portugal, o crítico Eurico de Barros, editor do caderno de Artes e Multimedia do Diário de Notícias, parece ser o mais politicamente incorreto de todos e, por isso mesmo, possui um estilo que o consagra como, talvez, o mais ácido dos críticos de filmes de Lisboa.
... Foz4
Dados provisórios colhidos para a pesquisa ainda em curso. Dentre os filmes, 87% deles foram exibidos em salas alternativas sendo que a maioria, 45%, na Cinemateca Portuguesa. Entre outros fatores, estes números revelam o problema do monopólio na distribuição de filmes estrangeiros em Portugal.
... internacionais5
Urso de Ouro (melhor filme) Festival de Berlim - Alemanha - 1998. Globo de Ouro - Melhor Filme Estrangeiro - Hollywood Foreign Press Association - USA - 1998.
... Novo''6
TORRES, Mário Jorge. Vidas Molhadas. Público. 14/05/99, p. 6.
... Babenco''7
FERREIRA, Francisco. Expresso. 29/05/1999 p. 17.
... Duarte''8
FERREIRA, Manuel Cintra. Expresso. 22/05/1999, p.10.
...ario 9
TORRES, A. Roma. Cinema: crítica de filmes. Disponível em: www.terravista.pt/Enseada/1014/cinema.htm. Acesso em: outubro 2002.
...otico?10
CÂMARA, Vasco. Disponível em: www.cinema2000.pt. Acesso em: outubro 2002.
... brasileiro11
BARROS, Eurico de. Do Brasil para o mundo. Diário de Notícias. 14/05/1999, p.46.
... sombra12
TORRES, Mário Jorge. Vidas Molhadas. Público. 14/05/99, p. 6.
... atriz13
Refiro-me à crítica de Manuel Cintra Ferreira publicada no jornal Expresso de 22/05/1999, p.10: ``E a muito celebrada Fernanda Montenegro (candidata ao Oscar? - não admira que Gwyneth Paltrow tenha ganho!) surge como uma versão terceiro-mundista de Anna Magnani''.
...is 14
As telenovelas brasileiras chegaram a Portugal na década de 70 quando foram exibidas na rede pública de televisão, RTP. Em 1995 o canal estatal fica impedido de adquirir novelas da Globo graças ao acordo assinado entre a rede privada SIC e a emissora brasileira. Já em 1996 a telenovela ``A Próxima vítima'' é vista por 3.324 mil espectadores portugueses na SIC. In Expresso. Revista, 05/10/2002, p. 43-62.
...iticos 15
Recentemente, em crônica (A telenovela é o fascismo) publicada no expresso online, o crítico de cinema Jorge Leitão Ramos dizia: ``A telenovela é o desdém pelo espectador enquanto ser pensante - tudo está digerido. A telenovela é o anátema a tudo o que saia a nível rasteiro - a música de Mozart está proibida, a poesia é-lhe estranha, qualquer movimento de câmera significante é posto no índex. A telenovela é a expressão acabada do desprezo - do desprezo que eles, os que mandam, sentem por nós''. Disponível em: www.expresso.pt. Acesso em: 08.06.2004.
... massiva''16
CUNHA, Eneida Leal. Familiaridade lusófona. In: Revista Bahia análise e dados. Bahia: Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia. V.13, n.1, Junho de 2003, p.125. A autora faz esta referência em comparação aos anos 50 e 60 quando o interesse pela ``comunidade luso-brasileira'' estava no centro da política cultural portuguesa.
... Portugal17
PERESTRELLO, Francisco. Central enfim em Portugal. A Capital. 14/05/1999, p.33. O autor num parágrafo posterior curiosamente ressalta: ``Em Portugal, pelo que se vai ouvindo, o filme arrisca-se a levar uma grande ``sova'' de boa parte da crítica, o que parece injusto ao autor destas linhas e fruto da desabituação de ver cinema de diferente culturas. Vai longe o tempo das grandes obras de Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha e tantos outros, que fizeram as delícias dos jovens cineclubistas... que são hoje sexagenários''.
... brasileira18
Nosso repertório foi composto por um universo de dez críticas sendo que sete publicadas em jornais de grande circulação (Expresso, Público, Diário de Notícias, Correio da Manhã e A Capital) e três extraídas de documentos eletrônicos (www. cinema2000.pt e www.terravista.pt/enseada).