Deodoro José Moreira


11 de setembro de 2001:
Construção de uma catástrofe nas primeiras páginas de jornais impressos



(Dissertação de Mestrado)


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


Índice









Resumo

Esta pesquisa de mestrado analisa a construção mediática do ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos a partir da análise discursiva das capas de jornais de várias partes do mundo, nas edições do dia 12 de setembro. A mídia impressa não somente retrata eventos da realidade, como também constrói e interpreta os ``fatos''. Para afirmar suas escolhas, utiliza estratégias comunicativas e/ou discursivas específicas. O exame discursivo dessa pesquisa incide sobre as estratégias comunicativas dos veículos, por meio dos percursos estabelecidos na primeira página. Iniciamos a dissertação contextualizando o evento e discutindo o seu tratamento como media event globalizado. O enfoque na narrativização e na discursivização examinadas em grupos categorizados de capas permitiu a estruturação desta pesquisa.

Palavras-chave: jornais, mídia, terrorismo, discurso, primeira página, World Trade Center.

Introdução

Passados quase três anos do evento de 11 de setembro de 2001, caracterizado pela série de ataques aéreos em território norte-americano, ainda continuamos a sentir o impacto da data, que se transformou, por meio de diversos discursos, em marco histórico redefinidor das relações sempre conflituosas entre Ocidente e Oriente. Faz-se constantemente referências ao acontecimento que marcou o início da chamada ``guerra ao terrorismo'', caracterizada, principalmente, pela decisão unilateral dos Estados Unidos de invadir o Afeganistão para expulsar os Talibãs, acusados pelos norte-americanos de dar guarida a ``terroristas'', especialmente a Osama Bin Laden, apontado como mentor das ações de 11 de setembro, juntamente com os membros de seu grupo, a Al Qaeda. Posteriormente, a ``guerra ao terrorismo'' prosseguiu com a invasão do Iraque, baseada na justificativa de que Saddam Hussein teria armas químicas de destruição em massa. Ou seja, o governo norte-americano resolveu dividir o mundo em duas partes, a do Bem, composta por países que estão ao seu lado, e a do Mal, por países que promovem ou incentivam ações terroristas. Fazem parte da lista maligna Irã e Coréia do Norte, entre outros.

Os ataques aéreos de 11 de setembro, apesar de até agora não terem sido reivindicados por qualquer grupo, tinham, ao que tudo indica, um objetivo definido: atingir os principais símbolos do país, o World Trade Center, em Nova York, que representava o poderio econômico, e o Pentágono, em Washington, que figurativizava o poderio militar. Esses ataques destruíram completamente as torres gêmeas e parte do Pentágono, provocando a morte de 2.749 pessoas, segundo números oficiais.

Dizer que os eventos de 11 de setembro abalaram o planeta tornou-se senso comum. Para não sermos ingênuos e optarmos pelo caminho mais fácil, é importante que aprofundemos a questão. Primeiramente, é necessário analisar detalhadamente o conceito de terrorismo. Após os ataques, essa palavra adquiriu uma outra conotação. A maneira como se escreve hoje na mídia impressa sobre terrorismo tornou-se banal e, por vezes, desprovida de qualquer sentido. Os responsáveis pelas ações são apresentados como se fossem seres extraterrestres e qualquer tipo de ação é qualificada como terrorista, mesmo sem saber quem são seus autores. O jornalista José Arbex, em artigo publicado na revista eletrônica Pangea, sintetiza:

O século 20, em particular, banalizou o terror (isto é, o uso da violência sistemática, com objetivos políticos, contra civis ou alvos militares que não estejam em operação de guerra). Também multiplicou as suas formas. Existem terroristas que agem em nome de Deus (como os grupos extremistas islâmicos); os mercenários (milicianos franceses e norte-americanos que lutam na África; os nacionalistas (como o IRA e o ETA); e, ainda, os ideólogos (como o grupo de Tim McVeigh, responsável pela destruição do prédio de Oklahoma, em 1995). Existe também o terrorismo de Estado - a prática de eliminar populações e alvos civis (como os Estados Unidos em Hiroshima e no Vietnã, ou Pol Pot, no Camboja), ou a segregação e chacina de minorias (caso do antigo regime de apartheid na África do Sul, e o de Israel contra os palestinos), ou ainda a prática de torturar e assassinar os que pensam diferente (ditaduras latino-americanas, nos anos 60 e 70) (Arbex, Terrorismo, um legado da história. Disponível em http://www.clubemundo.com.br/revistapangea. Acessado em 20/10/2003).

O assunto é tão complexo que nem a ONU (Organização das Nações Unidas) conseguiu chegar a um consenso sobre quem é efetivamente terrorista. Matéria da agência internacional Associated Press distribuída pela Agência Estado, publicada no dia 2 de outubro de 2001 -portanto, 21 dias após os ataques aéreos de 11 de setembro- apresentava a discussão:

Por anos, os 189 membros das Nações Unidas têm se debruçado sobre uma questão crítica: Quem é terrorista? A controvérsia tem postergado a adoção de uma nova convenção sobre terrorismo que iria incorporar elementos-chave de uma dúzia de instrumentos legais existentes, permitindo que as nações busquem um tratado internacional para a luta contra o terrorismo. No centro da disputa, existe um campo politicamente minado - muitas vezes, quem, para uma nação, é terrorista, para outra é um lutador da liberdade. Mas, em vista dos ataques de 11 de setembro, o secretário-geral Kofi Annan e vários Estados membros exortaram a Assembléia Geral, na segunda-feira, a chegar a um acordo e adotar uma ampla convenção. Diplomatas de muitas nações, como Grã-Bretanha, Mongólia e Burkina Fasso, apoiaram imediatamente seu pedido para que a Assembléia Geral rompa o impasse da definição. Segundo o advogado-chefe da ONU, Hans Corell, o problema é diferenciar entre terrorismo e o direito a autodeterminação e ao combate à ocupação estrangeira (Agência Estado, 2/10/2001).

A discussão, portanto, envolve a diferenciação entre terrorismo e o direito à autodeterminação e ao combate à ocupação estrangeira. Muitas vezes, quem, para uma nação, é terrorista, para outra, é um lutador da liberdade. É o caso de Yasser Arafat, que, por muitos anos, esteve à frente da OLP (Organização para a Libertação da Palestina) e era considerado terrorista, principalmente pelo Ocidente e por Israel. Entretanto, para os palestinos, povo pelo qual ainda luta hoje, agora sem o uso de armas, Arafat é considerado um herói. Ou seja, qualquer análise responsável de determinado fato tem de ser feita sob as perspectivas histórica, social e econômica.

Para Slavoj Zizek, a única maneira de entender os ataques de 11 de setembro é contextualizá-los sob a perspectiva político-econômica. ``(...) o único meio de conceber o que ocorreu no dia 11 de setembro é localizá-lo no contexto dos antagonismos do capitalismo global'' (Zizek, 2003: 65). No entanto, não foi isso o que se viu na mídia. ``A própria mídia encarregou-se de sufocar qualquer tentativa de reflexão sobre o ocorrido em 11 de setembro, criando e explorando um clima de total histeria'' (Arbex, 2002: 55).

A necessidade de compreender a construção do evento de 11 de setembro na mídia impressa, mais especificamente nas primeiras páginas dos jornais do dia 12 de setembro, levou-nos a realizar esta pesquisa. Tendo como foco de análise o jornalismo impresso, utilizamos como perspectiva teórica a semiótica discursiva. Para chegarmos ao objetivo proposto, optamos por estudar as estratégias persuasivas utilizadas pelos veículos selecionados na construção desse acontecimento, a partir da semiótica, campo de estudo que se insere ``no quadro das teorias que se (pre)ocupam com o texto'' (Barros, 2001: 5).

É importante ressaltar, como explica Diana Barros (2001: 7), que o texto só existe quando é concebido como objeto de significação e objeto de comunicação.

(...) dessa forma, o estudo do texto com vistas à construção de seu ou de seus sentidos só pode ser entrevisto como o exame tanto dos mecanismos internos quanto dos fatores contextuais ou sócio-históricos de fabricação do sentido (Barros, 2001: 7 e 8).

O jornalista Nilton Hernandes em sua dissertação de mestrado ``A revista Veja e o discurso do emprego na globalização'' (2001) também ressalta a importância da utilização da semiótica discursiva na análise da mídia impressa:

A teoria permite examinar o texto como objeto de comunicação entre sujeitos e também o objeto de significação. Torna possível, em outras palavras, uma análise interna, ou estrutural, e uma externa, que examina o texto como objeto cultural, inserido numa sociedade de classes e construído em função de uma série de coerções, tanto ideológicas como de formato da própria mídia (Hernandes, 2001: 11).

Para construir o sentido do texto, a semiótica concebe o seu plano de conteúdo sob a forma de um percurso gerativo. E este percurso gerativo do sentido vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto. São estabelecidos três níveis, o fundamental, o narrativo e o discursivo. As estratégias de persuasão são encontradas nesses níveis. É necessário ressaltar que essa segmentação é utilizada somente para efeito de análise, pois, concretamente, no objeto de estudo, os níveis estão juntos e relacionam-se entre si. Mas o que é uma estratégia para a semiótica? Gianfranco Marrone, no artigo ``Da opinião pública ao corpo político'', publicado na revista Galáxia, define:

Noção de origem eminentemente bélica, a estratégia recebe da semiótica uma redefinição no interior da teoria da narratividade. A racionalidade estratégica (grifo do autor), podemos dizer, é definível semioticamente como um tipo particular de inteligência narrativa, ou melhor, um certo grau de aprofundamento na gestão da competência narrativa (Marrone: 2001: 61, 62).

No nível narrativo, trabalhamos com as modalizações (que modificam a relação do sujeito com os valores) e as paixões (efeito de sentido de qualificação modal). No nível discursivo, analisamos os efeitos de realidade, proximidade e distanciamento, tematização (procedimento semântico do discurso) e figurativização (procedimento semântico pelo qual conteúdos mais concretos recobrem os percursos temáticos). Portanto, este trabalho pretende estudar as estratégias comunicativas e/ou discursivas empregadas na construção do evento de 11/9 nas primeiras páginas dos jornais.

Universo mediático

O ataque de 11 de setembro já rendeu centenas de publicações em diversas áreas. A lista de autores vai de jornalistas que cobriram o atentado a escritores que nele se inspiraram, passando por bombeiros e policiais que participaram dos resgates, parentes dos que morreram naquele dia e mesmo historiadores que tentam dar base acadêmica à compreensão do evento. Entre as obras, podemos destacar Running Toward Danger (Newseum, 2002), que reúne imagens e depoimentos de jornalistas norte-americanos que fizeram a cobertura daquele dia. O conteúdo é disposto cronologicamente, hora a hora, sempre ressaltando o lado pessoal e as dificuldades técnicas e éticas enfrentadas na cobertura. É organizado por Cathy Trost, ex-repórter do jornal econômico The Wall Street Journal, e pela crítica de mídia Alicia Shepard. Fireboat, de Maira Kalman, e New York's Braves, de Mary Pope Osborne, são obras que privilegiam as imagens, ou seja, o pictórico é predominante em relação ao texto. Entre os da linha ``estive lá e vi tudo'', está Report From Ground Zero, escrito pelo bombeiro (e escritor) veterano Dennis Smith, que trabalhou nos resgates. Smith já havia lançado um best-seller nos anos 70, Report >From Engine Co. 82, de 1972, que conta como foi sua entrada para o Corpo de Bombeiros. The New York Times, A Nation Challenged, que reúne a cobertura feita pelo mais influente jornal norte-americano, e A Book of Help - Authors Respond to the Tragedy trazem textos de diversos escritores. 11 de setembro reúne uma série de entrevistas concedidas por Noam Chomsky a jornalistas estrangeiros, feitas nos 30 dias que se seguiram aos ataques. Autores brasileiros também escreveram sobre o tema. É o caso de Depois do atentado - A crise internacional e o Brasil, de Carlos Lessa, Darc Costa e Fábio Sá Earp, que tenta esclarecer o complexo ``jogo de xadrez'' das relações internacionais depois do ataque de 11 de setembro.

Um acontecimento de tamanha repercussão dominou completamente o universo mediático no dia 11 de setembro, data do evento. No dia 12, a mídia impressa repercutiu o fato. Se fizermos um retrospecto do que ocorreu desde as primeiras horas da manhã do dia 11, quando a CNN começou a transmitir as primeiras imagens dos ataques, perceberemos que a repercussão do fato provocou fortes mudanças em todas as mídias. A começar pela TV, que teve de alterar sua programação para transmitir ao vivo. Os menos avisados, ao ligarem o aparelho, poderiam achar que estava sendo exibido um filme-catástrofe. Durante todo o dia, os telespectadores ficaram expostos às imagens dos choques dos aviões nas torres do World Trade Center. Nunca antes as emissoras precisaram avisar aos telespectadores, a intervalos regulares, de que o que estava sendo transmitido não era um filme. Já a internet, também, entrou no circuito e se tornou fonte de informações para milhões de pessoas em todo o mundo, pois permitia o acompanhamento dos fatos minuto a minuto. Naquele momento, os blogs chegavam à maioridade. Enquanto os servidores dos jornais e dos grandes portais ``congestionavam'' com a intensidade do tráfego, os blogs (páginas individuais, em geral criadas e mantidas por uma única pessoa) transmitiam fatos, algumas fotos e muitos rumores, ecoando a perplexidade geral, algumas fotos e muitos rumores, ecoando a perplexidade geral.

A mídia impressa jornalística, mais especificamente o jornal diário que não dispõe da velocidade de informação comum aos meios eletrônicos, criou estratégias para cobrir o evento já antes explorado pela TV e pela internet. Contudo, teve de fazer alterações em sua programação, ou seja, redefinir cadernos, redistribuir equipes de reportagem e elaborar pautas específicas sobre o acontecimento. Alguns periódicos ousaram mais que a maioria e levaram edições extras às bancas (no período da tarde daquele mesmo dia), numa tentativa de concorrer com as outras duas mídias, contudo, sem ter a maleabilidade daquelas. Ou seja, em caso de erro, a correção não pode ser feita imediatamente. Outros optaram por noticiar o acontecimento e suas repercussões somente na edição do dia 12 de setembro de 2001.

No campo da comunicação, é de suma importância realizar uma pesquisa sobre as estratégias midiáticas de cobertura de um evento de tal magnitude. Um dos únicos trabalhos publicados nessa área no Brasil é A incompreensão das diferenças: 11 de setembro em Nova York, organizado por Sérgio Dayrell Porto. O professor destaca a importância do tema como:

(...) fato discursivo capaz de inaugurar uma nova episteme e, portanto, uma nova ordem discursiva, caracterizada não só pelas batalhas e bravatas econômicas, políticas e bélicas, mas também pela beligerância midiática, retórica e ritualística (Porto, 2002, 13).

Centraremos nossa análise nas capas dos jornais de 12 de setembro que repercutiram o evento. Jornais de várias partes do mundo trataram o assunto como único em suas capas. Na verdade, tal estratégia não é comum, pois as primeiras páginas sempre trazem, em sua maioria, os principais fatos do dia anterior, compondo um mosaico temático. Isso não quer dizer que em todos os veículos as notícias mais importantes sempre sejam das mesmas temáticas. Comparando-se as capas a seguir, pode-se perceber qual é a estrutura de uma primeira página em dias normais, sem a predominância de um fato que as torne praticamente monotemáticas. Nas figuras 1 e 3, apresentamos capas de edições ``normais'', ou seja, onde não há a menção a apenas um único acontecimento. Já as figuras 2 e 4 trazem duas primeiras páginas do dia 12 de setembro, que são monotemáticas.

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O objetivo principal que norteia esta pesquisa é o exame das estratégias comunicativas e/ou discursivas, em geral, utilizadas pela mídia impressa jornalística na construção do atentado terrorista. Tal propósito foi alcançado por meio da semiótica discursiva. Isso implicou uma análise das manchetes, dos textos escritos e das imagens (fotos, infográficos etc.).

Considerando-se a capa de jornal como um texto sincrético, pois incorpora imagens e textos verbais, é possível identificar o caminho do olhar, ou seja, o percurso de leitura na página, e examinar as estratégias comunicativas e/ou discursivas utilizadas pelos veículos.

Notícia: produto de consumo

Diversos autores trabalham a conceituação de notícia, enfatizando diferentes aspectos. Ciro Marcondes Filho propõe a seguinte definição:

Notícia é a informação transformada em mercadoria com todos os seus apelos estéticos, emocionais e sensacionais; para isso, a informação sofre um tratamento que a adapta às normas mercadológicas de generalização, padronização, simplificação e negação do subjetivismo (Marcondes Filho, 1988: 13).

Mauro Wolf acredita que notícia seja o produto de um processo.

É o produto de um processo organizado que implica uma perspectiva prática dos acontecimentos, com o objetivo de reuni-los, avaliar suas relações a partir da factibilidade, isto é, da descontextualização do acontecimento do contexto em que se originou para o poder recontextualizador do discurso informativo. A seleção do acontecimento ocorre pela escolha dos valores-notícia intrínsecos, capazes, pela sua relevância, de transformá-lo num fato notável de ser registrado discursivamente (Wolf, 1994: 169, 170).

Para Nelson Traquina, as notícias não podem ser vistas como emergindo naturalmente do mundo real: ``As notícias acontecem na conjunção de acontecimentos e de textos. Enquanto o acontecimento cria a notícia, a notícia também cria o acontecimento'' (Traquina, 1993: 168). Para que a notícia seja veiculada e aceita ou recusada pelo leitor, há um longo caminho a ser percorrido. O produto final nunca será o fato como ele realmente aconteceu, um ``fato puro''. Os jornais mais constroem os acontecimentos que, propriamente, os retratam, pois a notícia não é, exclusivamente, uma descrição do evento ocorrido no mundo, e sim um evento interpretado, um conjunto de significações construídas no texto. Para Bill Kovach e Tom Rosenstiel, no jornalismo, ``toda verdade é uma realidade interpretada'' (Kovack e Rosenstiel, 2003: 467). Além disso, uma série de fatores pode interferir na produção da notícia, como o tempo, a falta de dados e a obrigação de produzir o texto não importa em que condições, pois o concorrente também está fazendo o mesmo. Zélia Leal Adghirni apresenta vários aspectos:

Alvo da ação estratégica de múltiplos agentes sociais, os jornalistas são freqüentemente obrigados a elaborar a notícia, a escrever a ``estória'' em situações de grande incerteza, com falta de elementos, confrontados com terríveis limitações temporais, pressionados pela concorrência de outros órgãos de informação. Ainda mais, precisam selecionar certos acontecimentos dentro de uma avalanche de múltiplos acontecimentos, fazendo escolhas quase imediatas, sem grande tempo para refletir sobre o significado e o alcance histórico do que acabou de acontecer e que precisa ser informado imediatamente (in Porto e Mouillaud, 2002: 464).

Para que uma notícia seja consumida pelo enunciatário, é preciso que ela tenha um certo apelo, ou seja, de alguma forma, toque ou choque o leitor. Em outras palavras, é preciso que o leitor aceite o contrato de leitura proposto pelo jornal. E o título é uma das principais armas utilizadas para essa ``captura''. Para Cremilda Medina, em Notícia, um produto à venda, o título chega a ser tratado como anúncio publicitário:

A mensagem-consumo exige um título de apelo forte, bem nutrido de emoções, surpresas lúdicas, jogos visuais, artifícios lingüísticos. O título ganha vida de consumo como qualquer anúncio publicitário e a edição trabalha com cuidados especiais: criam-se os ``tituleiros'' hábeis, verdadeiros mitos de sala de redação (Medina, 1988: 119).

Nas capas, a manchete é essencial em uma edição. Os manuais de redação procuram oferecer regras básicas para a confecção desse tipo de título e são genéricos em sua definição. Juarez Bahia assinala que a confecção de qualquer título é uma arte:

O título faz parte da técnica de redação, mas é cada vez mais uma arte. Ele é inconfessadamente a primeira linha, a primeira oração ou a primeira frase de uma notícia, de uma reportagem, de uma análise ou de um editorial. Mas, por razões visuais, o título tem uma estrutura própria, independente do texto (Bahia, 1990: 46).

Para a semiótica, o jornal é um sujeito semiótico e a edição de uma primeira página e do veículo como um todo envolve mais do que somente técnica. O jornalismo trabalha com efeitos de sentido, o que envolve procedimentos como colocações de palavras, escolhas de advérbios, adjetivos, substantivos, utili-zação ou não de aspas, lugar em que são colocadas as figuras em relação aos textos verbais, escritura das legendas, distri-buição de textos na configuração total da página etc., com a finalidade de envolver seus enunciatários.

Todos os leitores o sentem e muitas equipes redacionais trabalham nesse sentido: cada jornal tem seu estilo, um tom, um ``perfil'' que o define e que, por vias cuja análise ainda está apenas esboçada, dele fazem uma figura social (grifo do autor) capaz de cristalizar duradouramente atitudes de atração ou de repulsão (Landowski, 1992: 118).

A investigação desse objeto reveste-se, no campo da Comunicação, de grande importância, ainda mais quando se afirma, sem exagerar, que o ataque às torres marcou o início de um novo capítulo na história das relações entre as nações. A presente pesquisa soma-se a outras (em relação à análise de capas de veículos, mas com temáticas diferentes) já realizadas e/ou em andamento, e procura, criticamente, avaliar, descrever e explicar os modos de produção da mídia impressa jornalística a partir do estudo desse caso concreto.

Corpus

A escolha do corpus foi realizada a partir de uma análise do farto material à disposição em sites especializados e de uma coletânea de capas do Instituto Poynter (EUA) cuja sede fica em St. Petersburg e reúne jornalistas norte-americanos que discutem design gráfico, fotojornalismo, ética e edição. Procuramos selecionar um corpus que trouxesse representantes de vários países. O maior número de veículos norte-americanos é explicado pela abundância de capas que tínhamos à disposição e pelo fato de que a repercussão americana era a que nos interessava diretamente, pela proximidade cultural e política em relação aos ataques. No final, 58 primeiras páginas foram escolhidas.

Título do jornal e país de que é originário:
Arizona Daily Star (Arizona) - EUA
The Sun (Califórnia) - EUA
Los Angeles Times (Califórnia) - EUA
The Examiner (Califórnia) - EUA
Greeley Tribune (Colorado) - EUA
Hartford Courant (Connecticut) - EUA
The Washington Post (Dist. Columbia) - EUA
Washington Times (Dist. Columbia) - EUA
The Miami Herald (Flórida) - EUA
Sun-Sentinel (Flórida) - EUA
Florida Today (Flórida) - EUA
The Atlanta Constitution (Geórgia) - EUA
The Times (Indiana) - EUA
Indiana Daily Student (Indiana) - EUA
College Heights Herald (Kentucky) - EUA
The Diamondback (Maryland) - EUA
Pioneer Press (Minnesota) - EUA
The Flint Journal (Michigan) - EUA
Asbury Park Press (New Jersey) - EUA
The Star-Ledger (New Jersey) - EUA
Daily News (Nova York) - EUA
Staten Island Advance (Nova York) - EUA
The Journal News (Nova York) - EUA
The New York Times (Nova York) - EUA
The Morning Call (Pensilvânia) - EUA
The Patriot-News (Pensilvânia) - EUA
The City Paper (Tennessee) - EUA
The Commercial Appeal (Tennessee) - EUA
Abilene Report News (Texas) - EUA
Richmond Times-Dispatch (Virgínia) - EUA
Sun (Washington) - EUA
USA Today (nacional) - EUA
Die Welt (Berlim) - Alemanha
Clarín (Buenos Aires) - Argentina
Sydney Morning Herald (Sydney) - Austrália
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) - Brasil
Folha de S. Paulo (São Paulo) - Brasil
O Estado de S. Paulo (São Paulo) - Brasil
O Globo (Rio de Janeiro) - Brasil
Jornal da Tarde (São Paulo) - Brasil
Zero Hora (Rio Grande do Sul) - Brasil
Ottawa Citizen (Ottawa) - Canadá
The Globe and Mail (Toronto) - Canadá
Canadá - Canadá
El Mercurio (Santiago) - Chile
El Pais (Madrid) - Espanha
Sun Star (Cebu City) - Filipinas
Le Monde (Paris) - França
The Hindu (nacional) - Índia
The Guardian (Londres) - Inglaterra
The Independent (Londres) - Inglaterra
Al Hayat (nacional) - Líbano
El Universal (Cidade do México) - México
Reforma (Cidade do México) - México
La Industria (Trujillo) - Peru
Zycie Warszawy (Varsóvia) - Polônia
Público (Lisboa) - Portugal

Além de jornais norte-americanos, procuramos, também, selecionar representantes de outros países, o que permitiu chegar a uma visão a mais ampla possível dos modos de construção do evento em vários contextos culturais e políticos. A composição da amostra é suficiente para atingir o objetivo proposto por esta pesquisa, pois nosso interesse não é focar a análise no design dos diferentes jornais, mas sim nos modos de enunciação, ou seja, em como dizem o que dizem.

Evento de mídia

Não é possível haver guerra contra pessoas desconhecidas, sem pátria. Nos primeiros dias posteriores ao ataque, só havia hipóteses e nenhuma certeza da autoria dos atentados. Para haver guerra, é necessário que o inimigo seja conhecido, tenha bandeira, pátria, o que não acontecia com os autores do atentado. Quem eram? Representavam algum país?

Desde o início, porém, o acontecimento foi tratado pelo presidente norte-americano, George W. Bush, em seus discursos, e pelo governo em geral, como um ato de guerra contra os EUA. Mais tarde, foi possível concluir que essa postura fazia parte da estratégia do governo para justificar as medidas que seriam tomadas a seguir, como a invasão do Afeganistão.

Desde o instante em que a rede de televisão CNN passou a transmitir ao vivo as imagens da primeira torre do World Trade Center em chamas, os olhos do mundo se voltaram para os Estados Unidos. Um país tido como impenetrável, inatacável mostrou toda a sua vulnerabilidade ao ter quatro aviões seqüestrados em seu próprio solo.

Grandes acontecimentos, como a Primeira e a Segunda Guerras, a Guerra do Golfo e, mais recentemente, a invasão do Iraque pela coalizão anglo/americana, entre outros, sempre foram tratados com destaque na mídia impressa jornalística. O atentados não fugiram à regra. A cobertura se estendeu por meses. Walter Menon, em seu artigo ``Poética do Terror'', que faz parte de uma coletânea publicada no livro A Incompreensão das Diferenças (2002), sintetiza a importância do evento:

O 11 de setembro, à primeira vista, surge - isso (sic) é, simplesmente produzido nas telas de TV com todo o peso da gratuidade de um gesto estético sem autor - desvinculado de toda relação visível com as esferas estruturais da sociedade. Essa relação só mais tarde será construída, à medida que as informações forem se acumulando. Tal acumulação, porém, não diminuirá a densidade fantástica das imagens do dia do atentado: elas se perpetuam como objeto de exposição, como algo preparado, organizado para nosso prazer visual, mas desprovido de intencionalidade, ou seja, como um evento natural (in Porto, 2002: 223).

A cobertura do acontecimento e suas repercussões se constituíram em um media event, conceituação defendida por Elihu Katz e Daniel Dayan para a mídia televisiva, que, segundo entendemos, também pode ser estendida para a mídia impressa, meio que é objeto de nosso estudo. Para eles, a transmissão pela TV do funeral do presidente Kennedy e o casamento do príncipe Charles e Diana são exemplos de media event, ou seja, foram eventos previamente programados, ao vivo, e que buscaram atrair a atenção de milhares de teles-pectadores em todo o mundo. Estes eventos interferiram na programação normal, pois alteraram a grade das emissoras, provocando efeitos diferentes nas diversas culturas, depen-dendo das características de cada um deles.

Dessa forma, propomos deslocar o conceito de media event para a mídia impressa jornalística. A partir do momento em que as imagens do primeiro ataque a uma das torres gêmeas do World Trade Center foram ao ar ao vivo, logo pela manhã do dia 11 de setembro, o acontecimento pôde ser enquadrado como media event, pois a cobertura e as repercussões do mesmo passaram a fazer parte de uma programação contínua pelas emissoras de TV mundiais. Além disso, a cobertura mobilizou milhões de pessoas em todo o mundo e interveio no fluxo normal da programação.

A diferença mais óbvia entre acontecimentos mediáticos e outras fórmulas ou gêneros de emissão reside no fato de aqueles serem, por definição, não rotineiros. São, mesmo, interrupções da rotina; intervêm no fluxo normal das emissões e na nossa vida (Katz e Dayan, 1999: 20).

O fato de o acontecimento ter se dado em um país que é hegemônico e a todo instante procura reafirmar a sua posição de liderança frente a outros países, seja nos planos econômico, militar ou político, resultou em um posicionamento consen-sual da mídia impressa jornalística: o atentado transformou-se em assunto único das capas de jornais do mundo inteiro nas edições do dia seguinte (12/9/2001), tanto do Ocidente quanto do Oriente, com raras exceções.

O ataque de 11 de setembro provocou mudanças nas relações internacionais, pois acendeu o sinal de alerta em todo o mundo quanto à possibilidade de novas ações do mesmo porte acontecerem a qualquer momento. Isso fez com que as normas de segurança passassem a ser mais rígidas, principalmente, nos Estados Unidos e Europa.

Após os ataques, os norte-americanos se deram conta de que a sensação de segurança total era falsa. Veio à tona uma ``nova'' realidade. Segundo Elihu Katz e Daniel Dayan:

Os acontecimentos mediáticos de natureza transformadora também afetam o sentido do lugar de uma sociedade. Os membros da sociedade como que renascem para um mundo diferente. Claro que permanecem onde estavam, mas o mundo alterou-se à sua volta. Os acontecimentos mediáticos transformadores afetam a geografia simbólica (Katz e Dayan, 1999: 160 e 161).

Se Katz e Dayan defendem essa conceituação de evento de mídia, Daniel Boorstin vai pelo caminho inverso. Ele trabalha com o conceito de pseudo-eventos, ou seja, eventos criados pela mídia. Sylvia Moretzsohn, em sua dissertação de mestrado ``A velocidade como fetiche - o discurso jornalístico na era do `tempo real''' (2000), define-os como ``os famosos factóides da recente política brasileira, feitos apenas para serem cobertos, e que, por isso mesmo, segundo o autor, não deveriam merecer a atenção da imprensa'' (Moretzsohn, 2000: 55).

Fato mundial

O espetáculo que se produziu na mídia impressa jornalística no dia 12/9 pode ser enquadrado como globalização da notícia. No dia do acontecimento, alguns jornais publicaram edições extras na tentativa de abocanhar parte do mercado, que, no dia anterior, foi dominado pela instantaneidade das imagens televisivas, que foram transmitidas ininterruptamente para o mundo todo e pela internet.

Globalização e exclusão

A palavra globalização entrou no vocabulário cotidiano das pessoas pela porta econômica; os países emergentes conhecem a sua face mais cruel. Mesmo estando associada mais à movimentação instantânea de recursos financeiros nas Bolsas de Valores do mundo capitalista, ela não é exclusiva dos mercados. Jean Baudrillard afirma: ``A globalização refere-se à tecnologia, ao mercado, ao turismo, à informação'' (Baudrillard, 2003: 51). Zygmunt Bauman define-a como ``uma encantação mágica, uma senha capaz de abrir as portas de todos os mistérios presentes e futuros'' (Bauman, 1999: 7). Até agora, a globa-lização não conseguiu mostrar seus efeitos benéficos, deixando, ao contrário, milhões e milhões de pessoas marginalizadas.

Para Baudrillard, a discriminação e a exclusão, que decorrem da ``própria lógica da globalização'' (Baudrillard, 2003: 53), são fatores pertinentes à ação terrorista contra os EUA. Os autores do ataque vêm de nações discriminadas e excluídas do círculo de ``amigos'' dos norte-americanos. Trata-se de uma insurreição, de uma humilhação contra a humilhação. A colocação refere-se à análise de Baudrillard sobre o acontecimento. Segundo ele, os Estados Unidos foram humilhados com as ações de 11 de setembro. Os autores dessas mesmas ações também sofrem humilhação, pois as nações a que pertencem são tratadas como de segunda classe.

Aqui cabe uma reflexão acerca da conceituação de ``Império'', defendida por Michael Hardt e Antonio Negri. Ela se faz necessária em função da ligação umbilical entre Império e Globalização. O conceito de imperialismo, que era relacionado à Inglaterra e aos Estados Unidos, países hegemônicos, principalmente pela esquerda, segundo Hardt e Negri, está sendo substituído pelo de Império.

``O imperialismo acabou. Nenhum país ocupará a posição de liderança mundial que as avançadas nações européias um dia ocuparam. (...) O conceito de império caracteriza-se fundamentalmente pela ausência de fronteiras: o poder exercido pelo Império não tem limites (Hardt e Negri, 2000:14).

Não é de hoje que os Estados Unidos se autodeclaram os guardiões da democracia mundial. Onde houver qualquer arranhão à liberdade, lá estarão os autoproclamados ``paladinos da paz'' para restabelecer a ``normalidade''. Isso acontece, é claro, quando está em questão o interesse norte-americano, ou seja, serve aos seus objetivos de intervir. A invasão do Iraque é o marco mais recente e liga-se aos interesses relacionados ao petróleo.

Ataque global

Este preâmbulo se fez necessário para localizarmos e justificarmos a análise que será feita a seguir sobre os modos pelos quais a mídia impressa jornalística globalizou e ideologizou a notícia do ataque contra as torres gêmeas e o Pentágono.

Antes, é importante pontuar como ocorreu o acontecimento no dia 11 de setembro. Em primeiro lugar, deu-se o choque e a explosão do primeiro avião seqüestrado em uma das torres gêmeas do World Trade Center. A partir daí, as imagens da CNN começaram a se espalhar pelos quatro cantos do mundo e a internet começou a disponibilizar informações. Os jornais do dia, no entanto, já haviam sido distribuídos antes do evento.

Nesse momento, a mídia impressa jornalística iniciou sua cobertura. Redações do mundo inteiro passaram a buscar informações e material para produzir suas matérias. As agências noticiosas, principalmente, as norte-americanas, tiveram papel fundamental na disseminação dessas informações. É preciso lembrar que nem todos os veículos mantêm correspondentes nos Estados Unidos.

Quando se planeja a cobertura de um acontecimento dessa magnitude, o imponderável é componente constante, e as fontes detentoras das informações são oficiais, apesar de civis terem conseguido gravar algumas imagens. Foi o que ocorreu. A cobertura estampada no dia seguinte mostrou claramente que o tema já nascera globalizado. Além de ser um evento de mídia, foi um evento globalizado, da mídia global. O ato de humilhação foi pensado, planejado, para se tornar visível a todo o mundo. É essa visibilidade que é o tema de nossa pesquisa: o evento de mídia global nas primeiras páginas de jornais de vários países. Não diríamos que diante da repercussão mundial e da proporção que o fato assumiu, não havia outra alternativa a não ser todas as capas estamparem o acontecimento. Diríamos o contrário: diante a definição do evento já em seu planejamento original pelos terroristas, diante de sua gênese como evento de mídia global, as capas teriam de varrer todo o resto, o comum do cotidiano, a pluralidade de notícias que misturam os eventos locais, regionais e globais, para construir e dar visibilidade ao evento mediático global. Não foi a repercussão que tornou o evento global, mas foi o evento, construído como global em sua realidade, de ``fato do mundo global'', que criou a repercussão global. Mesmo resultando apenas em danos internos, ou seja, mesmo os prejuízos ficando restritos aos Estados Unidos, as imagens do evento, suas análises políticas, suas conseqüências etc. espalharam-se pelo mundo e provocaram reações diferenciadas e em vários níveis. Entretanto, isso só ocorreu porque tratava-se de um evento mediático global.

Ideologia hegemônica

O governo norte-americano colocou-se na posição de vítima e ``costurou'' seu discurso a partir dessa atitude. Ao sofrerem tamanha humilhação (ao serem atacados daquela forma), a posição evidente para o governo dos Estados Unidos foi a de vítima. Baudrillard caminha nessa direção em sua análise. Para ele, a ``humilhação'' aconteceu no momento em que os principais símbolos de poder dos norte-americanos foram atingidos. É importante ressaltar que os EUA nunca admitiram que foram humilhados. Para a semiótica, o anti-sujeito (os terroristas) teve competência para realizar a performance a que se propôs (a do evento mediático globalizado) e o sujeito (norte-americanos) ficou em disjunção com o seu objeto de valor (a segurança, a força, a potência de maior e mais forte país do mundo). Dizemos que os enunciadores de veículos impressos norte-americanos e de alguns outros países ideologizam o discurso na medida em que falam a partir da posição de vítimas que precisam da retaliação. O país da luz e da razão, o centro do Ocidente democrático, foi atingido covardemente pelo centro do Mal, o muçulmano do terror. É claro que não se afirma com ênfase que foram os EUA quem financiaram Osama Bin Laden décadas antes no Afeganistão para defender interesses norte-americanos. Milton José Pinto traz luz à discussão:

Uma ideologia pode ser nomeada (p.ex. fascismo, sexismo, racismo, neoliberalismo), mas nunca totalmente descrita, pois só temos acesso a alguns fragmentos dela, os ideológicos ativados em cada evento comunicacional (Pinto, 1999: 42).

Portanto, o ideológico é apenas uma parte da ideologia, uma dimensão necessária de todos os discursos, responsável pela produção de qualquer sentido social. Já ideologia seria a junção dos fragmentos ideológicos, definida como um repertório de opiniões, atitudes ou representações.

Terry Eagleton apresenta nada menos do que seis maneiras para definir ideologia, dada a complexidade do termo. Uma pode ser aplicada à situação que estamos tratando: ``(...) ideologia significa as idéias e crenças que ajudam a legitimar os interesses de um grupo ou classe dominante, mediante, sobretudo, a distorção e a dissimulação'' (Eagleton, 1997: 39).

José Romildo de Oliveira Lima discute isso em seu artigo publicado na coletânea A Incompreensão das diferenças. Para ele:

Os ataques aos Estados Unidos em 11 de setembro de 2001 (...) reativaram na imprensa o embate de discursos antagônicos como luz contra trevas, certo contra errado, direita contra esquerda e paz contra guerra (in Porto, 2002:46).

Zizek reforça o componente ideológico do discurso norte - americano e a conveniência dos EUA estarem na posição de vítima:

Aqui, a ironia última é que, a fim de restaurar a inocência do patriotismo americano, o establishment conservador americano mobilizou o principal ingrediente da ideologia politicamente correta que ele oficialmente despreza: a lógica da vitimização (Zizek, 2003: 13 e 14).

A referência a um novo ``dia de infâmia'' ajuda a reforçar a posição de vítima adotada pelo governo norte-americano. O ataque japonês contra Pearl Harbor no dia 7 de dezembro de 1941, acontecimento que provocou a entrada dos EUA na Segunda Guerra, foi chamado, na época, de ``Dia da Infâmia''. Por isso, alguns jornais utilizaram como manchete ``Um novo dia de infâmia'', tentando estabelecer um paralelo entre os dois acontecimentos, pois o de 1941 foi um ataque de surpresa, como ocorreu em 11/9, mas com uma diferença: o inimigo tinha uma face e uma bandeira.

Simplificação pelo maniqueísmo

O ato em si foi condenado em todo o mundo. Entretanto, isso não quer dizer que se concorde com o posicionamento adotado pelos EUA e com a sua intenção em separar o mundo em duas partes: a do Bem e a do Mal. Baudrillard é implacável em sua análise:

Faltava aos americanos uma ferida como essa (em Pearl Harbor, eles foram atacados em termos de guerra e não de agressão simbólica). Revés ideal para uma nação enfim atingida no coração e livre para, por tê-la expiado, exercer toda a sua boa consciência. Situação sonhada desde sempre na ficção científica: uma força obscura que os aniquilaria, até agora só existindo no inconsciente deles (ou em algum outro desvão mental). Eis que de repente ela se materializa graças ao terrorismo! Eis que o eixo do Mal se apossa do inconsciente dos Estados Unidos e realiza pela violência o que não passava de uma fantasia e de um sonho! (Baudrillard, 2003:33).

A referência à agressão simbólica diz respeito aos dois alvos dos ataques: o World Trade Center e o Pentágono. Ao contrário de todos os que não consideram os atentados como uma mudança no curso da história, Baudrillard analisa os atentados como fundamentais. Para ele, o evento colocou fim à teoria do fim da história, à greve dos acontecimentos. Em artigo sobre a guerra do Iraque, Baudrillard acentua:

Deve-se, antes de tudo, saber o que ela mascara, o que realiza e o que exorciza. Não é preciso gastar muito tempo para se chegar à conclusão: o acontecimento ao qual se contrapõe o não-acontecimento desta guerra é o 11 de setembro (Baudrillard, 2003: 67,68).

Baudrillard caracteriza a Guerra do Iraque como um não - acontecimento, pois ela não tem finalidade ou necessidade próprias, nem inimigo verdadeiro, pois, segundo ele, Saddam é apenas um fantoche. A globalização do evento, em um primeiro momento, pode ter levado parte da mídia impressa jornalística a aceitar a versão maniqueísta do governo norte-americano. Baudrillard fala em uma coalizão de todos os tipos de poderes contra um só inimigo: o Mal.

(...) o 11 de setembro que coroou o processo de globalização - não o do mercado, dos fluxos de capitais, mas aquele, simbólico, bem mais importante, fundamental, da dominação mundial- provocando uma coalizão de todos os poderes, democráticos, liberais, fascistas ou totalitários, espontaneamente cúmplices e solidários na defesa da ordem mundial. Todos os poderes contra um só alien. E todas as racionalizações contra a asserção do Mal (Baudrillard, 2003:72).

Agrupamento das primeiras páginas

A capa de um jornal é um texto sincrético. Nela, encontramos o texto verbal (escrito) e o não-verbal (imagens e tipos gráficos) e estamos diante de diferentes linguagens (gráfica e fotográfica, entre outras), que, unidas, formam um único texto, um todo de sentido. Para analisar esse todo de sentido é preciso examinar dois planos: o de conteúdo e o de expressão. Antes de analisarmos os planos de conteúdo e de expressão, é importante que façamos algumas considerações sobre a primeira página do jornal impresso.

José Ferreira Junior define capa como ``expressão imagética que primeiro impacta o leitor'' (2003:15). Na verdade, é a primeira página que atrai ou não o leitor. Sua decisão de ler depende do grau de atratividade da capa.

Como veremos adiante, ao analisarmos o plano de expressão das capas selecionadas, há dois tipos de capas: as que apresentam uma divisão proporcional entre verbal e visual (figura 5), em que os recursos visuais somam cerca de 60% da mancha gráfica, e as chamadas capas-pôster (figura 6), em que o não-verbal chega a atingir 90% da mancha gráfica.

Visualizando-se as capas de jornais, esboça-se a caracterização de dois tipos de páginas: uma mais ordenada, com uma distribuição equilibrada do texto verbal e dos recursos visuais, e outra mais orgânica, na qual, às vezes, somente um (ou pouco mais de um) elemento gráfico toma conta da página, assemelhando-se aos cartazes (Ferreira Junior, 2003:79).

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A capa-pôster provoca maior impacto, ou seja, seu apelo é essencialmente visual, o verbal funciona apenas como complemento. Além disso, a publicação de uma foto que ocupa quase a página toda proporciona uma visão ampliada do acontecimento. Há um escancaramento do assunto principal.

Esses efeitos estéticos parecem mais contundentes nas manifestações imagéticas das capas-pôster, gramaticalmente mais orgânicas, do que nas primeiras páginas mais convencionais que tendem a um ordenamento e, conseqüentemente, a um nível maior de redundância (Ferreira Junior, 2003:19).

Estratégias e edição

As estratégias de produção e de edição final da capa de um jornal são inúmeras e envolvem uma série de procedimentos. É preciso descrevê-los, antes de tudo, para entendermos a construção da primeira página. Um jornal impresso diário é usualmente dividido em editoriais (política, cotidiano, esportes, cultura, por exemplo), que, por sua vez, são agrupadas em cadernos. Cada uma das editorias elabora as suas pautas específicas.

Ao final de cada dia, os editores, de posse do material apurado, reúnem-se e determinam o que merecerá chamada de capa (primeira página) e, conseqüentemente, manchete e submanchete da edição. Com estas decisões tomadas, os próximos passos são o planejamento visual e a diagramação da capa. Para isso, aspectos importantes devem ser observados, como considerar a dobra do jornal, corpo (tamanho) das letras a serem utilizadas, fotografias (cortes verticais ou horizontais) e número de chamadas. No entanto, é essencial que a padronização gráfica adotada pelo veículo seja seguida.

Na padronização gráfica, a primeira página é a que detém os maiores recursos persuasivos para a posterior leitura de todo o jornal. Para tal, é necessário que essa padronização gráfica seja personalizada, para que o leitor a identifique imediatamente. Ela representa a própria imagem do jornal (Silva, 1985:50).

Em primeiro lugar, é necessário mapear os elementos que constituem uma primeira página de jornal impresso. Há dois tipos de elementos a serem considerados na organização de uma capa: os fixos e os móveis (figura 7), como define Isaac Antonio Camargo:

Estamos nomeando elementos fixos aqueles que ocorrem em toda edição e promovem a identificação do periódico como o nome e a logomarca, como também aqueles que situam a geografia e a cronologia do periódico. Como elementos móveis estamos nomeando aqueles que variam de acordo com a edição como: imagens em geral (diagramação), manchetes, rubricas, títulos, as chamadas para as matérias e noticias...(Camargo, 2002: 77).

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A diagramação de uma página não visa somente embe-ezar a edição, mas propõe a funcionalidade e a intencionalidade do veículo. A hierarquização das notícias (edição) é uma forma de o jornal apontar o que considera mais importante em determinado dia, em que o tamanho da letra define a importância do assunto. Ricardo Jorge de Lucena Lucas na dissertação de mestrado ``A construção discursiva do personagem Fernando Henrique Cardoso nos jornais impressos brasileiros'' (1996) define diagramação como:

(...) a arte de distribuir os elementos gráficos do discurso no espaço da página, de tal modo que ao final, eles se conjuguem para uma concepção gráfica atraente, com equilíbrio, proporção e eficiência discursiva, ou seja, que produza com beleza o sentido a que se propõe. Aqui se incluem, entre os componentes do segundo plano, as cores e os contrastes (Lucas, 1996: 115).

Essa hierarquização ou disposição espacial dos elementos e linguagens verbais e não-verbais servem como isca para ``fisgar'' o leitor, ou seja, a diagramação impõe caminhos para o olhar. Do ponto de vista semiótico, a diagramação maneja relações entre o plano de expressão e o plano de conteúdo. A partir de agora, iniciamos a análise do plano de conteúdo das capas dos jornais selecionados.

Percurso do leitor

Na construção de sentido do texto, a semiótica define o plano de conteúdo na forma de um percurso gerativo. Ou, como acentua Hernandes, o plano de conteúdo é o ``lugar dos conceitos'' (Hernandes, 2001: 32). No percurso gerativo de sentido, são estabelecidas três etapas. O sentido do texto é estabelecido pela relação entre elas, pois ``relação é a palavra-chave em qualquer estudo semiótico'' (Hernandes, 2001: 30). Vejamos agora quais são essas etapas:

  1. Nível fundamental, o mais abstrato, no qual acontece a oposição semântica. Por exemplo, vida X morte;

  2. Nível narrativo, que trata da organização da narrativa, ou seja, como a história é contada do ponto de vista de um sujeito;

  3. Nível discursivo, em que a narrativa é assumida pelo sujeito da enunciação.

A narrativa é concebida, segundo Floch, ``como uma circulação de objetos'' (Floch, 2001: 22). Para entendê-la ou identificar sua organização, é preciso examinar como são contadas as histórias, apresentar os atores e o papel desempenhado por eles, como define Barros: ``Para entender a organização narrativa de um texto, é preciso, portanto, descrever o espetáculo, determinar seus participantes e o papel que representam na historiazinha simulada'' (Barros, 2001: 17).

Hernandes acentua que ``para chegar à narrativa, uma técnica é buscar a ação mostrada. Ou, em termos semióticos, perguntar: de que perfomance trata o texto?'' (Hernandes, 2001: 74). Para Barros:

O estudo da narrativa deixou de restringir-se ao exame da ação, para ocupar-se da manipulação, da sanção e da determinação da competência do sujeito e sua existência passional (Barros, 2001: 37, 38).

O plano de conteúdo é fundamental para explicar os sentidos do texto. Para esta pesquisa, isso se torna de extrema importância, pois é por meio do exame das diferentes abstrações visuais, gestuais, verbais ou sincréticas que chegaremos aos objetivos propostos no início deste trabalho. Não se pode esquecer, entretanto, que as especificidades do plano de expressão e sua relação com o plano de conteúdo serão tratadas mais adiante.

Já o nível discursivo, como foi salientado anteriormente, é o patamar mais superficial deste percurso, o mais próximo da manifestação textual. Para Barros, ''pelo exame da sintaxe e da semântica do discurso, serão explicadas a complexidade das organizações discursivas'' (Barros, 2001: 53). As estruturas narrativas convertem-se em estruturas discursivas quando assumidas pelo sujeito da enunciação.

No momento da produção de um enunciado, segundo José Luiz Fiorin, estabelece-se uma convenção fiduciária entre enunciador e enunciatário, a qual determina o estatuto veridictório do texto. O acordo fiduciário entre enunciador e enunciatário apresenta os seguintes aspectos:

a) como o texto deve ser considerado do ponto de vista da verdade e da realidade;

b) como devem ser entendidos os enunciados: da maneira como foram ditos ou ao contrário ( Fiorin, 2001: 35).

Enunciador e enunciatário ``interpretam'' os papéis de destinador e destinatário do discurso, respectivamente. ``O enunciador define-se como o destinador-manipulador responsável pelos valores do discurso e capaz de levar o enunciatário a crer e a fazer'' (Barros, 2001: 62). Dessa forma, o enunciador impõe ao enunciatário a sua construção (versão) sobre determinado acontecimento. ``Em outras palavras, deve-se examinar os recursos empregados pelo enunciador para dotar o discurso das marcas de veridicção e para fazer o enunciatário bem reconhecê-las'' (Barros, 2001: 66).

As primeiras páginas dos jornais expõem o que o enun-ciador elege como importante. Cabe ao enunciatário aceitar ou não. É importante ressaltar mais uma vez que a capa é um objeto de estudo sincrético. ``Os efeitos gerais manejados pela enunciação devem ser apreendidos pela soma dos efeitos gerais das diversas partes do texto'' (Hernandes, 2001: 77).

Divisão em grupos

As primeiras páginas dos jornais de 12 de setembro de 2001, selecionadas para este trabalho, apresentam grande variedade de estratégias comunicativas e/ou discursivas. Para que a análise salientasse tais estratégias de modo claro, agrupamos as capas em grandes conjuntos, denominados a partir do apelo da manchete em conjugação com a apresentação sincrética.

Basicamente, consideramos os seguintes parâmetros para promover essa classificação: -Do ponto de vista da chamada principal, na manchete, o apelo está no agente da ação, ou nas conseqüências do evento na população local, na América e no mundo, na identificação passional com o sentimento da população, ou, finalmente, na colocação dos EUA como vítimas de uma ação desmesurada e com direito a retaliação;

-Do ponto de vista da configuração da página, envolvendo o sincretismo imagem-texto, há uma tendência de ampliar as imagens em relação às edições diárias, estabelecendo um impacto conjugado à manchete. Para a tipificação dos grupos, consideramos esse efeito imagem-texto em suas várias formas, além da foto escolhida (do solo, da população sofrida, dos prédios em chamas).

Para empreender essa configuração em conjuntos, observamos, inicialmente, que as capas se propunham a interpretar o acontecimento ou o pós-acontecimento.Ou seja, elas narravam como ocorreu a série de ataques aéreos do dia anterior (11 de setembro) ou as suas conseqüências. No entanto, um aprofundamento maior fez-se necessário. Para isso, consideramos o sincretismo que ocorre na mídia impressa jornalística, mais precisamente, o diálogo entre as linguagens verbal e visual. Fazem parte da linguagem visual as fotografias, as ilustrações e os elementos gráficos. A relação entre as duas linguagens não só permite veicular o conteúdo, como também atrair e monopolizar a atenção do leitor. Ao considerarmos a capa como um texto sincrético, não podemos analisar as fotos como elementos isolados, nem tampouco somente o sentido da frase. É necessário inter-relacionar todos os elementos constituintes da primeira página. A ação que promove a articulação entre os elementos das linguagens verbal e visual na mídia impressa jornalística é a diagramação.

Considerando-se que nas capas selecionadas para este trabalho as fotos (em função de sua carga de informação e de apelo visual inquestionável) e as manchetes (que conduzem o leitor para um determinado percurso da página) destacam-se como elementos principais de atração do leitor, optamos por utilizá-los como parâmetros para a configuração dos grupos e subgrupos.

Como já destacamos anteriormente, o passo inicial para a configuração dos grupos e, conseqüentemente, dos subgrupos, foi a constatação de diferentes estratégias comunicativas-discursivas nas primeiras páginas selecionadas.

Partimos, portanto, do evento de 11 de setembro, repercutido nas edições dos jornais do dia 12 de setembro. Tal acontecimento foi retratado de formas diferentes na mídia impressa jornalística. Centralizando nossa análise nas capas de jornais diários de alguns países, constatamos que há estratégias comunicativas/discursivas que privilegiam a ação do anti-sujeito (Grupo 1), ou seja, o destinador quer fazer-crer ao destinatário que os agentes da ação eram terroristas, apesar de não haver provas concretas sobre os autores até aquele momento. É o caso do Los Angeles Times que traz a manchete ``Terroristas atacam Nova York e Pentágono''. A gravidade do ato levou a estratégias em que a ênfase sobre a situação do sujeito-vítima (EUA) prevaleceu sobre a posição do agente (Grupo 5). Neste caso, o sujeito é, explicitamente, citado nas manchetes, ato lingüístico que reforça a opção por este tipo de estratégia. O destinatário é informado de imediato sobre o foco da notícia. É o que se depreende, por exemplo, da manchete do The New York Times: ``EUA atacados''.

Já no Grupo 2, o destinador opta, também, pela estratégia que privilegia a posição do paciente, ou sujeito que sofre a ação, em detrimento do agente, o anti-sujeito. Só que há um diferencial: neste caso, as vítimas do ataque aéreo são destacadas. Neste grupo, as estratégias se subdividem. Há as capas que tratam, especificamente, da situação dos sobreviventes (subgrupo 1). Cada capa constrói esse ponto de vista, de formas específicas, citando números gerais de vítimas fatais e o ``grito'' dos atingidos: ``Bastardos'' (The Examiner).

O Grupo 3 privilegia o aspecto político do acontecimento, nomeando o evento como declaração de guerra contra os EUA. É o caso, por exemplo, do USA Today, que traz a manchete ``Ato de Guerra'' (``Act of war''). Já o Grupo 4 mobiliza estratégias passionais ao qualificar o evento de formas variadas. É o caso das manchetes ``Ultraje'' (The Atlanta Constitution) e ``Infâmia'' (The Washington Times), em que os veículos encarnam a paixão da cólera.

Em resumo, os grupos são os seguintes: 1) terroristas como agentes da ação; 2) efeitos na população; 3) efeitos na América e no mundo; 4) qualificação do acontecimento; 5) EUA como vítima da ação. Em função da diversidade de estratégias comunicativas é que subdividimos esses grupos.

É necessário ressaltar novamente que nas estratégias comunicativas explanadas acima o sincretismo não é abandonado em nenhum momento. A inter-relação entre as linguagens verbal e visual é fundamental para a análise desse objeto. A seguir, destacamos os grupos e os subgrupos configurados com as capas selecionadas que compõem o nosso corpus.

Grupo 1 - Terroristas como agentes da ação

Neste grupo, o destinador quer fazer-crer ao destinatário que terroristas atacam os EUA. Os autores da série de ataques aéreos contra os Estados Unidos, mesmo sem haver até aquele momento nenhuma pista concreta, são nomeados terroristas ou suicidas. As fotos têm como foco as torres gêmeas do World Trade Center, um dos alvos. Elas são apresentadas em chamas e com angulações e cortes variados.

Grupo 2 - Efeitos na população

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Este grupo relaciona os veículos que falam dos efeitos variados que o ataque provocou na população. Apesar de a maioria dos veículos ser norte-americana, há alguns de outros países que incorporam a dor vivida pelos estadunidenses; o destinador chama a atenção para as vítimas e quer fazer-crer ao destinatário que o acontecimento atingiu a todos os norte-americanos, mesmo os que não estavam diretamente envolvidos.

Subgrupo 1 - Evento como choque

Os sobreviventes são o fio condutor da ação narrada. Neste caso, manchete e fotos apresentam uma ligação importante, pois uma se relaciona com a outra.

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Subgrupo 2 - Referência às mortes

Neste subgrupo, o destinador foca a manchete nas vítimas fatais dos ataques. A ação narrada apresenta o ataque e o seu pior efeito, a perda de vidas humanas. As fotos apresentam os escombros que restaram do desabamento das torres gêmeas.

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Subgrupo 3 - ``Grito'' contra os agentes

O destinador ``grita'' contra os agentes da ação, buscando identificação com a mágoa, a ira, a cólera da população; apesar de a palavra terrorista não estar na manchete, o destinador-manipulador deixa claro quem é o alvo da ira. É como se o grito fosse emitido pelas vítimas e pela população em geral. O lamento e a dor pela perda de vidas são substituídos pelo grito. As fotos trazem as duas torres em chamas.

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Grupo 3 - Efeitos na América e no mundo

Neste conjunto, o destinador repercute o acontecimento na América e no mundo, ressaltando seus efeitos. Mesmo com a diversidade de subgrupos, as fotos com as imagens dos prédios são predominantes.

Subgrupo 1 - Promessa de retaliação dos EUA

O destinador quer fazer-crer ao destinatário que há a possibilidade de reação da vítima do evento, os Estados Unidos. Neste subgrupo, há uma variação no uso das fotos. Há os prédios em chamas, indiscutivelmente, o foco da maioria dos jornais, os escombros e até a silhueta dos prédios atingidos.

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Subgrupo 2 - Conseqüências no mundo

O destinador quer fazer-crer ao destinatário que o ataque não apenas paralisou os Estados Unidos, como também o mundo todo. As fotos principais apresentam os prédios em chamas.

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Subgrupo 3 - Declaração de guerra

O destinador interpreta o ato como uma declaração de guerra contra os Estados Unidos. O evento não é encarado como uma reação à política de dominação norte-americana, e sim como uma atitude de guerra. As fotos apresentam os prédios em chamas e os escombros que restaram das duas torres.

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Subgrupo 4 - Nação paralisada

A incredulidade diante do evento e a conseqüente reação de choque dos EUA são o ponto de partida do destinador-manipulador para fazer-crer ao destinatário que a série de ataques deixou a nação paralisada.

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Grupo 4 - Qualificação do acontecimento

Aqui o destinador qualifica o acontecimento: o dia da ação foi um dia negro, de terror, de horror, o pior dos dias. As imagens dos prédios em chamas predominam nas fotos.

Subgrupo 1 - Dia de Terror

Terror, horror e juízo são algumas das formas que o destinador-manipulador utilizou para qualificar o evento. Com isso, tenta fazer-crer ao destinatário que o dia 11 de setembro de 2001 ficou marcado de forma trágica e que suas conseqüências foram terríveis para os norte-americanos. O inglês The Independent (Figura 44) chega a classificar o acontecimento como ``Dia do juízo final na América''.

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Subgrupo 2 - Infâmia

O destinador qualifica a ação como infame, relacionando o ato ao ataque surpresa que os japoneses impuseram aos Estados Unidos. Fato que ficou conhecido como Dia da Infâmia e levou os norte-americanos a entrarem na Segunda Guerra Mundial. As fotos apresentam os prédios em chamas, com um diferencial: o The Journal News (Figura 47) retrata os bombeiros hasteando uma bandeira dos EUA, com os escombros das torres ao fundo.

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Subgrupo 3 - Dimensão impensável

O destinador quer fazer-crer ao destinatário que o evento foi uma ação inacreditável, tamanha a ousadia dos agentes e a conseqüente destruição. Os quatro jornais que fazem parte deste subgrupo são norte-americanos. As fotos retratam os prédios em chamas e os escombros.

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Subgrupo 4 - Ato maligno

A referência ao mal remete à fala do presidente norte-americano, George W. Bush, que qualificou alguns países como pertencentes ao eixo do mal. Daí, a relação que o destinador faz ao referir-se ao acontecimento como ``ato do mal''. As fotos aludem aos outros subgrupos: prédios em chamas e os seus escombros.

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Grupo 5 - EUA como vítima da ação

Neste grupo, o destinador apresenta os EUA como vítimas da ação. ``América sob ataque'' e ``A própria liberdade foi atacada'' são as referências mais comuns nas manchetes. As fotos repetem os subgrupos anteriores: retratam os prédios em chamas e os escombros.

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Análise de cada grupo

Após a configuração de grupos e subgrupos, iniciamos a análise de cada um dos conjuntos, considerando aspectos dos níveis narrativos e discursivos. Além disso, faremos comparações entre eles (grupos e subgrupos).

Terroristas como agentes

Como já foi dito, neste grupo, o destinador quer fazer-crer ao destinatário que terroristas atacaram os EUA. Os autores da série de ataques aéreos contra os Estados Unidos, mesmo sem haver até aquele momento nenhuma pista concreta, são nomeados terroristas ou suicidas. As fotos têm como foco as torres gêmeas do World Trade Center, um dos alvos. Elas são apresentadas em chamas e com angulações e cortes variados. Os sete veículos que pertencem a este grupo, Los Angeles Times (Figura 8), The Washington Post (Figura 9), The Wall Street Journal (Figura 10), Die Welt (Figura 11), Zero Hora (Figura 12), Al Hayat (Figura 13) e Reforma (Figura 14) têm como estratégia comunicativa comum determinar, a partir da manchete, quem são os agentes da ação. Todos fazem-crer ao destinatário que eles (os agentes) são terroristas. Na verdade, o que se conclui é que há posicionamento político desses veículos, pois, naquele momento, no dia seguinte à série de ataques aéreos contra os Estados Unidos, havia apenas suposições sobre quem seriam os autores do ato. Ou seja, o destinador-manipulador estabelece um contrato de fidúcia com o destinatário apoiando-se nesta afirmação.

É importante ressaltar que a primeira página de um jornal impresso funciona como um ``cartão de visita''. Ela estabelece de antemão para o leitor o que há de importante em determinada edição. Não é possível somente com a capa termos uma radiografia completa sobre determinado acontecimento. É o que ocorre em nosso caso. Como já foi analisado anteriormente, as capas, que são nosso objeto de estudo, são, em sua maioria, monotemáticas; mesmo assim, não é possível saber como o evento é construído na sua totalidade. É possível, sim, por meio das manchetes, chamadas (textos) e imagens, estabelecer um indicativo seguro sobre como o destinador-manipulador vai estabelecer o contrato com o destinatário.

A narrativa dos principais momentos do acontecimento não difere muito entre um veículo e outro, observando-se, é claro, o desenho de cada uma das capas. Em algumas primeiras páginas, há mais textos verbais, em outras, menos. O anti-sujeito, representado pelos terroristas, é um agente poderoso que tomou de assalto um país que investe bilhões de dólares em segurança e que provocou uma tragédia, classificada como a ``mais trágica onda de atentados da História'' pelo Zero Hora. As adjetivações ganham destaque nas narrativas das primeiras páginas deste grupo. Eis algumas delas: ``olho da tempestade'', ``uma jornada por meio do desespero e do caos'', hora do horror, ataques devastadores (The Wall Street Journal); tragédia nacional, provocação (Die Welt); dia de medo, caos impetuoso (Los Angeles Times).

Logo nos primeiros parágrafos, o enunciador onisciente justifica a opção de nomear os agentes do ato. Isso acontece sempre na terceira pessoa, como comenta Barros, para criar distanciamento. É o que vemos, por exemplo, no Los Angeles Times: ``Terroristas golpearam os símbolos proeminentes de riquezas e poder da América, terça-feira, com aviões seqüestrados, o World Trade Center e o Pentágono, matando e ferindo milhares de pessoas''; e no Reforma: ``Três atentados terroristas em série contra os centros nevrálgicos do poder político, econômico e militar em Nova York e Washington desnudaram a fragilidade de praticamente todos os sistemas de segurança de aeroportos e instalações militares e civis norte-americanas''.

Como afirmamos anteriormente, a configuração sincrética foi um dos parâmetros utilizados na classificação dos grupos. A tendência de ampliar a utilização da imagem em relação às edições diárias não é unânime neste grupo. A exceção é o Zero Hora, que traz uma foto de uma perspectiva interessante: o fotógrafo está posicionado no solo, o que projeta imponência às torres do World Trade Center. No entanto, é uma falsa imponência, pois elas estão em chamas. O ataque dos terroristas aparece figurativizado por meio de dois movimentos horizontais: as chamas da torre à esquerda se movem da esquerda para a direita e a fumaça na torre à direita se move da direita para a esquerda, sugerindo que foram dois ataques em tempos diferentes, como é explicado na legenda, que, também, esclarece que, no momento seguin-te à foto, as torres desabaram.

É interessante notar que em geral as fotos permitem, tal qual a um filme, estabelecer uma seqüência cronológica dos fatos; só não vemos o desfecho final, a queda das duas torres. No Zero Hora, esse efeito foi conseguido somente com a escolha de uma foto e da legenda.

Só conferimos as explosões nas torres e o momento subseqüente a elas (quando a nuvem de fumaça encobre toda a paisagem ao redor) por meio das imagens do Reforma, que figurativiza o ataque terrorista, destacando os seus principais momentos. A foto principal apresenta um panorama do local da tragédia: percebe-se que uma das torres está em pé, envolta em uma nuvem de fumaça que vai da direita para a esquerda, e, em volta, onde há edifícios menores, uma outra nuvem de poeira encobre toda a paisagem. Isto demonstra que uma das torres acabou de desabar. Além disso, a foto sugere momentos diferentes e o enunciador deixa claro ao enunciatário que a torre em chamas também irá cair, pois afirma na legenda que os 110 andares de cada uma das torres gêmeas vieram abaixo. Logo abaixo, o enunciador recorre a um ``cineminha'' para reproduzir um dos choques dos aviões contra uma das torres. Em três imagens, apresenta primeiro um avião dirigindo-se contra a torre, logo depois, a explosão e, a seguir, a explosão maior. Além disso, uma quinta imagem figurativiza o ataque ao Pentágono, pouco lembrado em imagens nas primeiras páginas pertencentes a este corpus. A razão parece óbvia: não provocou o mesmo efeito espetacular e o mesmo nível de comoção. No Los Angeles Times, assim como no Reforma, o efeito temporal foi conseguido por meio do uso de várias fotos, em especial uma primeira com o avião se aproximando do prédio e uma seguinte já com a explosão. Nesse sentido, o efeito do Zero Hora é mais impactante, ao não fazer recurso ao modelo dos dispositivos eletrônicos e ao cinema.

O libanês Al Hayat merece uma atenção especial, a começar pela manchete: ``Aviões suicidas atacam o Pentágono e destroem as torres do World Trade Center em Nova York; a América declara alerta máximo e aponta a marca de Bin Laden nos ataques''. O enunciador não utiliza a palavra terrorista, mas suicida. Certamente, é uma referência aos homens/mulheres-bomba, comuns em grupos extremistas palestinos, alguns abrigados no próprio Líbano. A narrativa apresenta um outro aspecto interessante, o destinador-manipulador caracteriza o ataque como uma vingança contra diversos atos cometidos pelos norte-americanos e chega a citar a bomba atômica em Hiroshima: ``O ataque deixou milhares de vítimas e muita fumaça como a que deixou a primeira bomba atômica em Hiroshima''.

Entretanto, neste grupo e também em outros que serão analisados a seguir, alguns pontos coincidentes na ``encenação do espetáculo'' chamam a atenção, como a insistência em relacionar o ataque aéreo com Pearl Harbor. Essa comparação ocorre em seis dos sete veículos deste grupo, exceto o brasileiro Zero Hora. Como já afirmamos no primeiro capítulo, um ataque aéreo japonês, de surpresa, contra norte-americanos, na base de Pearl Harbor marcou a entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial. A conseqüência dessa ação foi a retaliação norte-americana contra o Japão, despejando bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki. Essa comparação não é gratuita: reforça a intenção do destinador-manipulador em fazer-crer ao destinatário que a retaliação, justa, em resposta a um ataque infame, poderá vir a qualquer momento, com uma declaração de guerra aos agressores. O The Wall Street Journal chega a dizer que os locais dos ataques são ``zonas de guerra''.

Efeitos na população

Neste segundo grupo, há uma mudança total de foco. Ao invés de centrarmos a análise no agente da ação (anti-sujeito), os terroristas, estudaremos o fato de os enunciadores voltarem-se para a vítima (sujeito), os sobreviventes. Cabe acrescentar que este conjunto foi subdivido em três grupos. Primeiramente, vamos destacar os veículos que pertencem ao subgrupo 1, denominado ``Evento como choque''. São eles: The Star-Ledger (Figura 15), Staten Island Advance (Figura 16), The Diamondback (Figura 17), Abilene Reporter-News (Figura 18) e The Globe and Mail (Figura 19). A estratégia comunicativa principal que une esses jornais é não apenas a referência textual aos sobreviventes do acontecimento, como também a ênfase visual dada à tragédia vivida no solo. A narrativa constrói-se sobre relatos de pessoas que sobreviveram ao pesadelo, como acentua a manchete do Abilene Reporter-News. A perplexidade que cercou o acontecimento deixou todos os norte-americanos desnorteados, principalmente os que estavam no local da ação. É importante salientar que nem todas as capas deste subgrupo vão se preocupar com o aspecto constatativo, ou seja, em narrar o acontecimento. A referência a Pearl Harbor é freqüente. Na verdade, a comparação de um acontecimento atual com algo do passado é quase uma necessidade da mídia impressa jornalística. ``Devastação lembra muito o ataque de surpresa a Pearl Harbor'' é o olho que antecede o texto principal do Abilene Reporter-News. O The Star-Ledger traz no texto de sua chamada: ``O mais audacioso ato de terrorismo''. O Staten Island Advance já na linha fina apresenta: ``América treme e ferve após os ataques terroristas em Nova York e Washington.

O destinador-manipulador deixa claro ao destinatário que todos os norte-americanos são vítimas ao não concentrar-se apenas em casos isolados de sobreviventes. Para que o leitor aceite essa visão, as imagens desempenham papel de fundamental importância. O jornal The Diamondback no olho colocado logo abaixo da manchete, ``Tragédia americana'', traz:

O terror golpeia a pátria em um ataque sem precedentes em solo americano, enquanto milhares sucumbem na extravagância de uma facção sem rosto. Tristeza e ira varrem o país, na medida em que nossa cultura e modo de vida foram ameaçados (The Diamondback, 12/09/2001: 1).

A foto, sem legenda, traz várias pessoas saindo de uma nuvem de poeira, que se formou após a queda das duas torres. São pessoas anônimas, cujos rostos estão, parcialmente, cobertos por lenços. No Staten Island Advance, o cenário é o mesmo. Pessoas coberta de fuligem dos pés à cabeça caminham sobre papéis. A legenda as retrata como ``pessoas''. A imagem, um tanto fantasmagórica, não possui um ponto principal de observação: várias pessoas preenchem o quadro, algumas vindo para frente, outras de costas, parecendo não saber para onde ir. A foto é em preto e branco e o enunciador explica na legenda quese trata de uma opção do fotógrafo. O canadense The Globe and Mail radicaliza e preenche a totalidade de sua capa com a seguinte foto: um homem, sem nome, todo coberto de fuligem, caminha em meio à poeira, sozinho, cabisbaixo, com o rosto parcialmente encoberto. A manchete: ``Somos sobreviventes'', aliada à foto, deixa transparecer a dupla intenção do enunciador: a primeira é esclarecer que o homem retratado na foto é um sobrevivente e a segunda é que todos os norte-americanos sobreviverão a essa tragédia. A nuvem de fuligem volta a dominar a cena, também, na imagem do Abilene Reporter-News. A cena retrata um sobrevivente sendo atendido no chão por bombeiros e voluntários em meio a um cenário de destruição, onde todos parecem não saber para onde ir. Uma segunda foto já mostra dois sobreviventes caminhando. Sabe-se que as duas torres já desabaram, o que é comprovado pela legenda: ``Um homem e uma mulher ferida caminham logo após a queda das torres do World Trade Center''. É interessante notar que as fotos são todas anguladas do solo, apesar de haver variações nos enquadramentos.

Os veículos The Sun (Figura 20) e Sun Star (Figura 21), pertencentes ao subgrupo 3, apesar de trazerem manchetes que fazem referência às vítimas fatais, ``Nós lamentamos'' (The Sun) e ``Milhares de mortos, feridos'' (Sun Star), têm uma diferença fundamental, que é proporcionada pelas fotos. Enquanto o Sun Star apresenta uma montagem com o que restou das torres gêmeas após o desabamento, num cenário sombrio, e uma foto recortada de Gerge W. Bush, cabixbaixo, sobreposta à foto principal, o The Sun traz, em primeiro plano, três bombeiros hasteando uma bandeira norte-americana, tendo, ao fundo, a montanha de ferros retorcidos das duas torres. O fundo da foto é em tom azul desbotado (disfórico), o que projeta a figura dos bombeiros e da bandeira norte-americana, que têm cores mais definidas (eufórico). Com isso, o destinador-manipulador mostra que a vítima (EUA), apesar de chocada, não se deixou abater e tem competência para reagir. Isso fica evidente nas chamadas. O The Sun informa que Bush promete reagir aos ataques contra o World Trade Center e ao Pentágono; o Sun Star escreve que Bush não fará distinção entre os terroristas e quem os abriga. Além disso, na linha fina, afirma que os EUA têm 90% de certeza de que Bin Laden está por trás dos ataques. Nestes subgrupos, a grande diferença está na forma como o enunciador dirige-se ao enunciatário: o clima de depressão e resignação predomina em todas as capas, exceto no Sun, no qual a imagem dos bombeiros hasteando uma bandeira aponta para o oposto.

O The Examiner (Figura 22) e o La Industria (Figura 23), pertencentes ao subgrupo 3, emitem o grito dos atingidos e, em conseqüência, da população norte-americana. Aqui, a referência aos agentes da ação é implícita. Podemos entender assim: (terroristas) ``Bastardos!'' e (terroristas) ``Não têm o perdão de Deus''. Em ambas as capas, quase não há narrativa, apenas um destinador-manipulador encolerizado com o acontecimento. O enunciador do The Examiner grita ``Bastardos!'' aos agentes da ação. A foto, que vem logo abaixo da manchete, figurativiza o momento da explosão de um dos aviões contra uma das torres do World Trade Center. A nuvem de fogo e fumaça domina quase um terço da foto. A temporalidade é determinada pela fumaça negra que sai da torre detrás, o que indica que a explosão retratada é conseqüência de um segundo ataque. A torre aparece em sua imponência simbólica, mas dominada pelas chamas, pela destruição. Com a linha fina ``Uma América mudada'', o destinador-manipulador faz-crer ao destinatário que os EUA nunca mais serão os mesmos depois daquele acontecimento. O destinador-manipulador do La Industria apela para a ira divina com a manchete ``Não têm o perdão de Deus''. A foto apresenta um plano geral da visão de quem está do outro lado da baía de Manhattan e mostra o instante em que uma das torres, a primeira, começa a desabar. A nuvem de fumaça e fuligem tem a predominância vertical. O enunciador classifica o ato como ``feroz ataque terrorista'' e apresenta a cifra de 10 mil mortos. Um detalhe importante a ser observado na capa do La Industria é a sua opção por não noticiar apenas o ataque contra os EUA. No rodapé da página, há duas chamadas que não têm relação alguma com o acontecimento.

Efeitos na América e no mundo

Depois de analisarmos os grupos que destacam os agentes (grupo 1) e as vítimas (grupo 2) da ação, passamos, agora, ao grupo 3, que tem como fio condutor os efeitos dos ataques aéreos na América e no mundo. Este conjunto é subdividido em quatro. O subgrupo 1 tem como estratégia comunicativa a enunciação da promessa de retaliação dos Estados Unidos aos agentes da ação. Público (Figura 27), El Pais (Figura 25), Jornal do Brasil (Figura 24) e El Universal (Figura 26) são os veículos pertencentes a este subgrupo. O português Público quase não apresenta narrativa em sua primeira página. O destinador-manipulador leva o destinatário a acreditar que realmente haverá retaliação. A manchete ``América promete vingança'' é incisiva e está ancorada por uma foto que cobre toda a superfície da capa. A imagem é uma silhueta do cenário do acontecimento. Uma nuvem densa de fumaça praticamente encobre toda a paisagem que circunda o local onde ficavam as duas torres gêmeas. A fumaça é tão escura que se assemelha a uma grande mancha negra, que resulta no efeito de figurativizar o terror, o resultado terrível do terror. É interessante assinalar que o destinador-manipulador quer conduzir o destinatário por um caminho que aponta a imprensa norte-americana como foco de pressão que levou o presidente George W. Bush a prometer a retaliação contra os autores do ato. A chamada que vem logo abaixo da manchete diz: ``Imprensa americana empurra Bush para retaliações''. Já o respeitado jornal espanhol El Pais inicia o percurso gerativo de sentido pela manchete, afirmando que o ``O mundo está em vigília à espera das represálias de Bush''. O El Pais não diz quais seriam essas represálias. No texto da chamada, o destinador complementa a manchete: ``À espera da proporção e das conseqüências desse castigo, o mundo inteiro contém a respiração diante da pior crise desde a Segunda Guerra Mundial''. Assim, o destinador aponta a gravidade do acontecimento e coloca o leitor como participante dessa vigília angustiante. O enunciador do El Pais não se arrisca a informar um número exato de mortos, apenas afirma no olho: ``Teme-se que haja milhares de mortos entre os escombros''. A foto é uma reprodução da imagem da TV e mostra, num plano geral, a antiga magnitude das torres do World Trade Center frente aos outros edifícios, mas agora tomadas pela fumaça e destruição, retratando o momento em que uma das torres gêmeas cai. A verticalidade da torre desloca o ponto de visão para a direita do quadro, mas a nuvem de fumaça tem o sentido direita-esquerda. O enunciador do El Pais, já na chamada, aponta para a complexidade histórica que envolve o ataque. O enunciatário é levado a crer que o ato tem ligações com o conflito árabe-israelense e que uma guerra pode eclodir a qualquer momento. ``O ataque não reivindicado por nenhum grupo, mas com a marca inconfundível do conflito árabe-israelense, foi realizado com quatro aviões de passageiros seqüestrados...'' Uma das exigências de Bin Laden para acabar com os atos terroristas é a de que Israel deixe os territórios ocupados na Palestina. Daí a ligação do acontecimento, segundo o enunciador do El Pais, com o conflito entre Israel e Palestina, que tem o apoio da maioria dos países árabes.

O Jornal do Brasil estabelece um percurso semelhante ao do El Pais. Apesar de o leitor ser introduzido na página pelas fotos, o enunciador afirma, pela manchete, que os EUA armam resposta ao terror. Na linha fina, o destinador-manipulador apresenta a causa dessa resposta: ``Bush garante que vai `caçar e punir' os responsáveis pelos atentados em Nova York e Washington''. Já no primeiro parágrafo do texto da chamada, o enunciador apresenta-se melodramático:

O pranto pelas vítimas ainda não contadas, o lamento de centenas de feridos, a retórica indignada dos políticos e até o hino nacional transformado em canto de guerra fizeram do 11 de setembro de 2001 um dia tragicamente histórico na saga dos Estados Unidos. Os sons, conjugados, lembravam uma nação pronta para o combate, seja quem for o inimigo, estejam onde estiverem os que espalharam morte e destruição pelas duas cidades-símbolo da América. Desde o ataque japonês a Pearl Harbor, que jogou o país na Segunda Guerra, não se via clima parecido (Jornal do Brasil: 12/09/2001: 1).

A foto principal parece justificar o uso da palavra terror na manchete: retrata de um plano geral a partir do solo a pequenez de um homem frente a uma montanha de escombros e que não acredita no que vê. O destinador lê a cena como ``Cena inimaginável'', expressão que inicia a legenda da foto. Outras três fotos constatam momentos dos ataques. As duas primeiras retratam o segundo avião atingindo a segunda torre do World Trade Center. Isto é evidente pelo fato de que uma das torres já está em chamas. A terceira foto detalha pessoas nas janelas do edifício atingido em meio àquela fumaça. Os `fatos' são corroborados pela legenda: ``Após o impacto do primeiro avião, o segundo Boeing choca-se contra o World Trade Center e condena à morte milhares de pessoas''. O enunciador procura apresentar outras visões do ato ao publicar chamadas sobre artigos como ``Império alimentou o ódio dos inimigos'' e ``Como reagirão os EUA? Contra quem?'' Essas perguntas vêm exatamente da dúvida em saber quem são os verdadeiros responsáveis pelo ato. Poucas capas destacam essa dúvida. O libanês Al Hayat é o outro que coloca essa pergunta no ar: ``(...) nesse conflito (os EUA) parecem perdidos e confusos: quem é o inimigo? Como reagir contra ele?''

O mexicano El Universal afirma que o evento provocou alerta no mundo inteiro. Não foge muito da abordagem dos outros. Na linha fina, a explicação da manchete: ``Milhares morreram; caçaremos os culpados: Bush''. A frase atribuída ao presidente norte-americano soa como promessa de retaliação. A foto, muito utilizada por outros jornais e já analisada neste trabalho, mostra uma vista, a partir do solo, das torres em chamas, antes do desabamento. A temporalidade é determinada pela nuvem de fumaça cinza que vai da direita para a esquerda, como sendo a primeira torre a ser atingida; a bola de fogo, que tem sentido contrário, é resultado da explosão do segundo avião contra a segunda torre. A legenda explica: ``Bolas de fogo, poeira e fumaça saem da torre sul do World Trade Center depois que um avião chocou-se contra o edifício''. Uma segunda foto, colocada acima do logotipo do jornal, em toda a extensão da página, mostra, na horizontal, o que o Jornal do Brasil retratou na vertical: o desespero das pessoas que se encontravam nos andares superiores do World Trade Center e ansiavam por algum tipo de ajuda. A opção pelo corte horizontal propor-ciona uma visão mais panorâmica da cena. Já o corte vertical detalha apenas uma parte dela.

Apenas dois veículos, Le Monde (Figura 29) e O Globo (Figura 28) (subgrupo 2), alertaram para as conseqüências do atentado no mundo todo. Com fotos coladas umas às outras, numa seqüência, o destinador-manipulador de O Globo atrai o leitor. A primeira foto retrata a explosão em uma das torres, a segunda, num corte vertical tal qual o edifício, mostra a queda de uma pessoa, talvez um suicídio. A terceira imagem, com plano posicionado a partir do solo, mostra um grupo de pessoas numa correria desenfreada, fugindo dos destroços que caem das torres. É o único jornal do corpus a apresentar um possível suicídio na capa. E a manchete que resume as cenas: ``Terror suicida pára o mundo''. O destinador-manipulador recorre a Bush para afirmar o número de mortos na submanchete: ``Bush fala em milhares de mortos''. No rodapé, há uma outra foto que faz uma panorâmica da região onde ocorreu o ataque ao World Trade Center. Uma nuvem espessa de fumaça cobre a paisagem, com uma legenda em que o enunciador carregou de ironia: ``O novo cartão-postal...''. Além disso, há uma charge na qual se lê ``The End'' (o fim), com as letras representando os prédios atingidos, produzindo uma fumaça de cores variadas. Logo à direita, um avião se aproxima. Duas outras imagens, colocadas lado a lado, mostram os escombros que restaram da parte atingida do Pentágono. Com todas essas informações, o enunciador quer fazer com que o enunciatário sinta o horror dos ataques.

O sério e respeitado Le Monde, em sua manchete, relata que o medo toma conta do mundo. Um plano geral, em que uma fumaça densa encobre todos os edifícios que circundam o local da tragédia, enquadra a estátua da Liberdade logo à frente. Diferente das fotos mais usadas pelos outros veículos em que as chamas vermelhas dominam a cena. Aqui, a figurativização chama a atenção para o fato de que a liberdade norte-americana foi ameaçada. Em chamadas curtas, logo abaixo da manchete, o enunciador resume o acontecimento. Além do trecho do editorial, o enunciador apresenta algumas análises, nas quais trata da vulnera-bilidade do sistema de segurança dos EUA.

No subgrupo 3, os veículos Daily News (Figura 31), Hartford Courant (Figura 32), USA Today (Figura 30), Clarín (Figura 34), The Sydney Morning Herald (Figura 33), O Estado de S. Paulo (Figura 35) e The Guardian (Figura 36) assumem um posicionamento político: classificam o acontecimento como ato de guerra ou, simplesmente, guerra. A expressão ``ato de guerra'' foi usada por Bush em um de seus pronunciamentos; tanto que o USA Today a traz entre aspas. Um detalhe importante é que a maioria das capas deste subgrupo relaciona a guerra aos terroristas, não nos títulos, mas nas linhas finas, nos olhos e nos textos das chamadas. O USA Today, por exemplo, traz na linha fina: ``choque terrorista''; o Hartford Courant apresenta em seu olho de abertura: ``Com precisão milimétrica, terroristas trazem a morte...''

O destinador-manipulador utiliza as fotos para reforçar a idéia da transformação do local em zona de guerra. Fotos da bola de fogo que se formou após a colisão do avião com uma das torres são utilizadas no USA Today (close da explosão), no Daily News (reprodução de imagem de TV), no The Sydney Morning Herald, no O Estado de S. Paulo e no The Guardian. Os jornais Clarín e Hartford Courant mostram do solo os escombros que restaram das duas torres.

O USA Today figurativiza o ato de guerra com um close na parte superior das torres. Sob fundo azul, a segunda torre é atingida pelo avião. O impacto resultante faz aparecer uma bola de fogo que contrasta com um prédio escuro, à esquer-da, que, pela angulação da foto, provoca a impressão de que está quase colado a uma das torres do World Trade Center. Há um antagonismo (claro/escuro) na imagem, em que o claro significa a destruição e o escuro, o que não foi destruído.

O The Sydney Morning Herald apresenta uma perspectiva semelhante. Em um ângulo mais aberto, as duas torres já foram atingidas, uma, momentos antes, e a outra, no instante em que a foto foi batida. O prédio escuro, que aparece quase colado na foto do USA Today, figura na capa em questão como um anão frente à imponência das duas torres. No lado direito da foto, uma placa indica sentido único à direita. A angulação permitiu que o poste onde a placa está presa atingisse uma altura maior que a das duas torres. O Daily News figurativiza a guerra com o corte aproximado em uma reprodução de imagem de TV. Em tal imagem, a temporalidade é definida pela legenda que diz que um segundo avião vai atingir a torre sul do World Trade Center. A legenda esclarece um ``defeito'' da foto: a impressão que fica é que há apenas uma única torre.

O brasileiro O Estado de S. Paulo fala em ``terrorismo'' e ``guerra''. O enunciador deixa claro já na manchete: ``Terrorismo declara guerra aos EUA''. Essa afirmativa é complementada pela referência a Pearl Harbor logo no início do texto da chamada: ``Desde o ataque japonês de 1941 à base de Pearl Harbor, na 2ª Guerra, os norte-americanos não se viam desafiados assim (...)''. O alemão Die Welt classifica o evento como ``Pearl Harbor em 2001''. A figura-tivização do cenário de guerra é construída por três fotos: a maior representa a conseqüência das duas fotos anteriores, isto é, a queda das duas torres, que espalhou fuligem e poeira na ilha de Manhattan. As outras duas, em seqüência, retratam o instante em que o segundo Boeing atinge uma das torres do World Trade Center. A temporalidade é esclarecida pela legenda:

Bombardeio - O segundo Boeing atinge o World Trade Center e logo depois as duas torres cairiam, espalhando fuligem e uma nuvem de poeira que encobriria a ilha de Manhattan (foto maior). Nas proximidades, sem telefone, sem luz, sem ônibus e sem metrô, milhares de pessoas corriam assustadas de um lado para outro, dificilmente acreditando na vulnerabilidade do país ao terror (O Estado de S. Paulo, 12/09/2001: 1).

O inglês The Guardian, na quase ausência de narrativa, traz uma imagem que cobre praticamente toda a superfície de sua capa. Uma nuvem negra, espessa, atinge as duas torres, no mesmo instante em que ocorre a segunda explosão. Percebe-se, ao fundo, o céu azul daquela manhã. A manchete ``Uma declaração de guerra'' é colocada acima da foto.

O Hartford Courant traz um aspecto novo em sua narrativa não analisado até o momento. O enunciador busca um diálogo com os agentes do ato em tom ameaçador: ``Se você pode fazer isso para os EUA, destruir dois símbolos da força da América, isso diz a você essencialmente que nós estamos em guerra''. O enunciador, além de onisciente, adota também a função de justiceiro. O Hartford Courant e o Clarín trazem um cenário de terra arrasada. Ambos figurativizam a guerra com fotos dos destroços que restaram das duas torres. A impressão que se tem é de que o local foi atingido por foguetes ou bombas, tamanha a destruição.

O City Paper (Figura 37), representante do subgrupo 4, quase não apresenta narrativa. No entanto, a foto horizontal retrata o desespero de várias pessoas que carregam uma das vítimas do ataque e parecem não saber que caminho tomar. Uma delas aponta para frente, tentando identificar ou visualizar algo.

Qualificação do acontecimento

O grupo 4 reúne veículos em que o destinador procura qualificar o acontecimento. Os primeiros exemplos vamos encontrar no subgrupo 1: os jornais The Times (Figura 39), Asbury Park Press (Figura 38), Richmond Times-Dispatch (Figura 43), Jornal da Tarde (Figura 40), La Tercera (Figura 42), The Independent (Figura 44) e Indiana Daily Student (Figura 41) exibem uma série de adjetivos para qualificar o dia 11 de setembro. É importante ressaltar que a maioria dos veículos que fazem parte desse subgrupo apresenta as chamadas capas-pôster, já comentadas neste trabalho. São fotos em tamanho ampliado que, aliadas às manchetes, são utilizadas pelo destinador-manipulador para que o leitor sinta-se também na posição de vítima. A exceção fica por conta do Indiana Daily Student. As imagens repetem aquelas utilizadas por outros veículos e que já foram objeto de análise. Já o Jornal da Tarde apresenta a palavra `Terror' como manchete e traz a seguinte foto: uma das torres em chamas (que está em segundo plano) e um outro edifício, posicionado à frente, que, em função da angulação e do enquadramento parece ser maior. O destinador-manipulador quer fazer-crer ao destinatário que o ataque aéreo destruiu símbolos do presente, mas não apagou a história, pois o edifício que aparece imponente, deixando o World Trade Center em segundo plano, é o Empire State, um dos cartões-postais de Nova York. O Richmond Times-Dispatch apresenta uma foto idêntica à usada pelo USA Today, mas com uma manchete diferente, o que lhe confere um outro sentido. No caso do USA Today, a foto figurativiza o ``Ato de guerra'', já no Richmond Times-Dispatch, figurativiza o ``Dia negro da América. É o caso do Asbury Park Press. A foto é a mesma, só que o corte é horizontal, o (corte) dos outros dois jornais citados acima é vertical. A verticalidade confere maior dinamismo à página. O The Independent também apresenta coincidência na escolha da foto com o também inglês The Guardian. Contudo, para o The Independent a foto figura-tiviza o Dia do Juízo final na América. Já para o The Guardian é ``Uma declaração de guerra''. O La Tercera também apre-senta a mesma foto dos dois anteriores, só que com um corte diferente. Isto possibilita uma interpretação diferente: como não há legenda, a temporalidade é marcada pela manchete. E a situação retratada na foto parece indicar que houve somente uma explosão, pois a nuvem preta e a bola de fogo resultante da explosão de um avião se juntaram e se transfor-maram numa coisa só, de modo que não há possibilidade de dizer o que aconteceu primeiro. O The Times traz um cenário de terror. Uma foto com corte vertical mostra os destroços que restaram da queda das duas torres. Uma linha fina dá a dimensão da catástrofe: ``Incontáveis mortes em um segundo `Pearl Harbor'''. O Indiana Daily Student aponta o quão desastrosos foram os ataques. O enunciador figurativiza-os em três fotos: a maior é a mesma utilizada por USA Today e Richmond Times-Dispatch. Uma outra, de um tamanho um pouco menor, mostra os estragos que um avião provocou no Pentágono. A terceira, um pouco menor ainda, retrata os sobreviventes, a mesma foto utilizada pelo Staten Island Advance. É importante salientar que, ao colocar o ataque ao Pentágono também, o veículo está mostrando o desastre norte-americano.

O subgrupo 2, com os veículos The Journal News (Figura 47), The Atlanta Constitution (Figura 45) e The Washington Times (Figura 46), apresenta estratégia passional. O destinador, ao gritar `infâmia' e `ultraje', o faz construindo a paixão da cólera; um enunciador encolerizado que grita ao anti-sujeito, os agentes da ação. A paixão da cólera é considerada complexa e se explica como uma configuração modal sustentada pela organização narrativa. Ou seja, o sujeito, para chegar à cólera, passou por outros estados como decepção e rancor. A decepção seria a constatação de que os EUA não são um país tão seguro quanto se pensava em função dos ataques sofridos. A maneira humilhante como foram atacados causou-lhes rancor (contra os agentes do ato), que se transformou em cólera, ira. No trecho do TheAtlanta Constitution (``A retaliação, quando vir, terá que ser calculada tão friamente quanto o alvo do ataque de terça-feira. A memória de nossos mortos não merece menos''), percebe-se, claramente, a mistura de rancor e ira. O trecho mostra um enunciador irado com os agentes da ação e desejoso de que a retaliação, quando vir, seja no mesmo nível dos ataques.

A infâmia do The Washington Times é figurativizada nas duas imagens apresentadas: a primeira, com a panorâmica da situação que envolveu a região do ataque ao World Trade Center. A temporalidade é definida na legenda, que aponta qual foi a seqüência em que as torres caíram; a segunda retrata os destroços que resultaram do ataque ao Pentágono. O enunciador deixa claro que vai haver retaliação contra os agentes da ação. O The Atlanta Constitution ``grita'' ultraje e figurativiza o momento do desmoronamento das torres. A nuvem densa encobre toda a paisagem e não é possível identificar qual das torres está caindo. A legenda também não esclarece. O enunciador refere-se aos agentes do ato como terroristas e informa que um outro ataque atingiu o Pentágono. O The Washington Times constrói o efeito passional narrando os principais momentos dos ataques e as promessas de retaliação do presidente norte-americano. Já o The Atlanta Constitution apresenta um texto carregado de ressentimento com o acontecimento, como bem traduz a manchete: ``Ultraje''.

Uma capa com uma configuração diferente é a do The Journal News. Em meio aos escombros, três bombeiros hasteiam uma bandeira norte-americana. O destinador-manipulador estabelece que, mesmo com toda a destruição, a nação está de pé, disposta a reagir. A foto é uma continuação da utilizada pelo Sun. Neste, a bandeira ainda não estava totalmente hasteada. Na imagem utilizada pelo The Journal News, a bandeira está tremulando no mastro.

The Patriot-News (Figura 48), Pioneer Press (Figura 50), College Heights Herald (Figura 51) e Arizona Daily Star (Figura 49), pertencentes ao subgrupo 3, trazem como estratégia a reação de incredulidade diante do acontecimento. O sujeito custa a crer que aquilo seja real. A sensação de segurança total jamais permitiria que houvesse um acontecimento como o do dia 11 de setembro, daí o sentimento de descrédito, ao reconhecer que aquela segurança era ilusória. O Arizona Daily Star chega explorar um detalhe lembrado por poucos: os terroristas estavam armados de facas.

As fotos ajudam a corroborar essa incredulidade. A primeira congela o instante em que o segundo avião está prestes a se chocar contra a segunda torre do World Trade Center; atrás, no sentido vertical, vemos uma nuvem negra de fumaça que encobre parte da outra torre. Numa foto menor, abaixo, há os escombros que restaram da queda das duas torres. O The Patriot-News também utiliza a imagem da explosão de um dos aviões numa das torres do World Trade Center. Contudo, o azul do céu, que era claro em outras imagens, neste caso, aparece carregado, manchado pela nuvem negra que sai da torre atingida. Três fotos menores detalham o ataque ao Pentágono, o local onde caiu um quarto avião, e os sobreviventes do ataque ao World Trade Center. O enunciador do Pioneer Press também não acredita que no que houve, mas as imagens materializam o improvável. A foto maior registra os destroços das duas torres do World Trade Center; em detalhe, o segundo avião se aproxima de uma das torres. Já o College Heights Herald traz na manchete apenas a data do acontecimento. O enunciador mostra-se abalado e incapaz de definir o que houve, mas a foto diz o indizível da manchete, causando um interessante efeito de apontar, justamente, para o inominável. Nas demais manchetes analisadas, sempre, o leitor é dirigido para a foto a partir de uma nominação dada pela manchete, pelas legendas e pelo texto: a destruição é o efeito do terrorismo, precisamos retaliar etc.

O subgrupo 4, que fecha o grupo 4, traz os veículos Ottawa Citizen (Figura 55), The Commercial Appeal (Figura 53), The Miami Herald (Figura 52) e Greeley Tribune (Figura 54). Todos referem-se ao mal. Portanto, o destinador-manipulador apropria-se de um trecho do discurso de Bush. O presidente norte-americano investindo-se de ``poderes celestiais'' dividiu o mundo em dois lados: o do Bem, com países que estão alinhados aos EUA, e o do Mal, formado por países que abrigam terroristas, segundo ele, como é o caso do Irã. O Iraque, antes da invasão anglo-americana, também fazia parte da lista. Dessa forma, o destinador-manipulador apresenta ao destinatário uma única opção de percurso: as cenas retratadas foram um ato do mal, ou seja, de autoria dos que fazem parte do bloco contrário aos interesses norte-americanos. O enunciador do Greeley Tribune vai buscar ajuda no livro dos Salmos para definir o mal e coloca como como linha fina acima da manchete: ``Mesmo que eu ande pelo vale da sombra da morte, eu não temerei nenhum mal...'' O mal é apresentado a partir da imagem da destruição, dos escombros que resultaram da queda das duas torres. O The Miami Herald, a exemplo do The Commercial Appeal, figurativiza o mal na explosão das duas torres. O The Miami Herald congela o instante em que o segundo avião está prestes a atingir uma das torres; a outra já havia sido atingida. O mal resulta encarnado na figura do avião que destruirá a torre. O enunciador afirma que o ataque não ficará impune, pois Bush prometeu retaliar. A foto de um dos sobreviventes, a mesma utilizada pelo The Globe and Mail, ameniza a página. O The Commercial Appeal apresenta o instante em que o segundo avião explode contra uma das torres. Já o Ottawa Citizen quase não apresenta narrativa. O ato do mal é figurativizado por meio da nuvem de poeira que se projeta contra as pessoas que correm desabaladas.

Vítimas da ação

No grupo 5, conjunto que fecha as análises, o sujeito (EUA) é apresentado como vítima da ação. Os veículos The Flint Journal (Figura 64), The Morning Call (Figura 60), The New York Times (Figura 57), Folha de S. Paulo (Figura 61), The Sun (Figura 59), Sun-Sentinel (Figura 58), Florida Today (Figura 56), Zycie Warszawy (Figura 65), El Mercurio (Figura 62) e The Hindu (Figura 63) privilegiam o ataque. As imagens relacionadas às manchetes repetem-se em relação às outras capas já analisadas. O destinador-manipulador acentua a posição de vítima dos EUA e justifica a prometida punição, de acordo com o The New York Times, ou retaliação, segundo o The Morning Call.

O The New York Times apresenta como imagem principal a explosão das duas torres, com a primeira emanando uma espessa nuvem negra em direção à esquerda e a segunda, no momento da explosão do último avião. Outras imagens menores mostram os escombros que restaram da queda das duas torres, uma panorâmica da situação do Pentágono, os sobreviventes e um detalhe do momento em que o segundo avião se dirige contra uma das torres gêmeas. A Folha de S. Paulo e o El Mercurio trazem imagens parecidas, apenas os cortes são diferentes. A foto é a mais utilizada pela maioria dos jornais: o instante da explosão do segundo avião contra uma das torres, enquanto a outra já havia sido atingida. A Folha projeta sua manchete na imagem das duas torres atingidas, mas não deixa de mostrar sobreviventes, numa foto que já foi utilizada pelo Staten Island Advance. O Sun-Sentinel traz a mesma imagem utilizada pelo The New York Times. A manchete é ``Atacado'' e, já na linha fina, são apresentados os responsáveis: ``Terroristas destroem World Trade Center. O Florida Today enfatiza que a liberdade foi atacada, frase atribuída a George W. Bush. A imagem mostra o ataque às torres gêmeas. Ao contrário do céu azul que predomina na maioria das fotos que retratam o ataque às torres gêmeas, o The Flint Journal apresenta esses edifícios já em momentos posteriores às explosões, produzindo nuvens negras de fumaça. O enunciador credita os ataques aos terroristas. O The Sun apresenta imagem idêntica à veiculada pelo Ottawa Citizen e busca figurativizar o ataque retratando o momento da queda das torres. O The Morning Call traz a imagem dos destroços das duas torres. A imagem é prova material da manchete: ``Alvo: América'', ou seja, o alvo foi alcançado em cheio. O Zycie Warszawy faz uma colagem em sua capa. Como foto principal que cobre a superfície toda da capa, traz o momento posterior ao choque dos aviões contra as torres, no qual a fumaça negra serve de fundo para a manchete. Apresenta outras duas fotos, uma de sobreviventes e outra do ataque ao Pentágono. Já o The Hindu apresenta uma variedade de imagens relacionadas ao ataque contra as torres gêmeas, que figurativizam a manchete ``América sob ataque''. Uma das imagens retrata o instante em que uma das torres começa a desabar, uma outra, reprodução de imagem de TV, faz uma panorâmica do desabamento das torres; outras três menores formam uma seqüência do choque do segundo avião contra uma das torres. No pé da página, traz imagem de pessoas que viam as cenas de horror.

Comparações

Os grupos, apesar de tratarem de temas diferenciados apresentam fortes relações. O que se pode depreender das análises realizadas até agora é que os enunciadores utilizam as mesmas fotos em situações diferentes, construindo diferentes sub-temáticas e figurativizações. Senão vejamos: a imagem da explosão resultante do choque do segundo avião contra uma das torres, sendo que a primeira já havia sido atingida, é, praticamente, reproduzida em todos os grupos. No entanto, a manchete sempre constrói uma utilização particular da figura. É impossível não relacionar os grupos entre si. O grupo 1, que trata dos agentes da ação, os terroristas, mantém íntima relação com o grupo 3, que trata das conseqüências do ataque, que, por sua vez, pode ser relacionado com o grupo 5, que trata das vítimas. Os grupos 2 e 4 também podem ser relacionados, os que qualificam o acontecimento e tratam dos efeitos na população. Dessa forma, há uma interdependência entre os grupos, quando comparados uns com os outros. Em todo o caso, preferimos ressaltar as diferenças, pois, deste modo, pudemos deixar claras as diferentes estratégias comunicativas utilizadas pelos jornais em suas capas.

Análise da primeira página

Após as análises dos grupos e subgrupos que reúnem as capas selecionadas para este corpus, passamos agora ao estudo das capas isoladamente. Selecionamos uma capa para cada grupo ou subgrupo. Para eleger a capa representante de grupos ou subgrupos, foi levada em consideração a abrangência dentro do próprio grupo, ou seja, ela deve contemplar todas as características do grupo que representa, de modo típico. Além disso, procuramos escolher capas que representem países variados, para que a amostra seja o mais abrangente possível.

Reforma (México)

A referência aos terroristas como agentes da ação é a temática predominante no grupo 1, descrito no capítulo anterior. O mexicano Reforma (Figura 66) fornece pistas da qualificação dos agentes da ação já na manchete: ``Estarrecem os EUA''. Os terroristas não são citados textualmente, mas sua participação fica implícita. O título poderia ser o seguinte: Terroristas estarrecem os Estados Unidos. A linha fina, colocada acima da manchete, especifica qual foi a ação empreendida pelo anti-sujeito e as conseqüências. O enunciador afirma que ``três ataques em Nova York e Washington deixam milhares de mortos''. O contrato oferecido pelo enunciador é estabelecido logo de início. O enunciador pretende fazer-crer ao enunciatário que o anti-sujeito praticou uma ação monstruosa a ponto de provocar a morte de milhares de pessoas. Além disso, outra informação colocada no olho que antecede ao texto da chamada principal dá conta do suspeito número 1 dos Estados Unidos: Osama Bin Laden.

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Nos dois primeiros parágrafos da chamada, o enunciador qualifica os agentes da ação e expõe dois pontos que são comuns à maioria dos veículos selecionados: estabelece a relação terrorismo-guerra, além de buscar comparação do ataque aéreo sofrido no dia anterior com o de Pearl Harbor, que também foi um ataque-surpresa e resultou na entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial:

Os norte-americanos amanheceram, ontem, aterrorizados com uma guerra não-declarada em suas próprias ruas, enquanto o pesadelo do ataque-surpresa japonês contra Pearl Harbor, ocorrido 60 anos atrás, se apoderava do coração da nação mais poderosa do mundo.Três atentados terroristas em série contra os centros nevrálgicos do poder político, econômico e militar em Nova York e Washington desnudaram a fragilidade de praticamente todos os sistemas de segurança de aeroportos e instalações militares e civis norte-americanas (Reforma, 12/09/2001: 1).

A narrativa busca colocar o destinatário no centro dos acontecimentos e estabelece, desde o início, que o sujeito (Estados Unidos) está na posição de vítima fragilizada. Apesar de todo o seu poderio, a nação mostrou-se incompetente para evitar um ataque desse tipo. O enunciador pretende fazer com que o enunciatário aceite tal fragilidade, a ponto de afirmar que esses ataques serviram para mostrar que os sistemas de segurança dos aeroportos e instalações militares e civis são ineficazes. O enunciador volta a apontar essa fragilidade no último parágrafo da chamada, apesar de reconhecer que os EUA são uma potência:

Em Nova York, desde a baía de Manhattan, o perfil da cidade iluminada era diferente da noite anterior: havia um enorme vazio, faltavam as milhares de luzes das torres gêmeas. Os Estados Unidos são, desde ontem, uma potência ferida e vulnerável (Reforma, 12/09/2001: 1).

O enunciador não utiliza a palavra humilhação, mas a deixa implícita. É como se houvesse uma segunda camada de texto. Os alvos dos ataques simbolizavam para a população norte-americana e para o mundo o poderio econômico, no caso das torres gêmeas do World Trade Center, que reinavam imponentes no coração de Manhattan, e a supremacia militar, o Pentágono. A humilhação reside aí, fato que mereceu análise de Baudrillard, comentada no primeiro capítulo deste trabalho. Os trechos ``A agonia do símbolo por excelência do capitalismo norte-americano durou pouco mais de uma hora'' e ``O estandarte indestrutível do poderio militar norte-americano também estava ferido'' deixam clara a intenção do enunciatário em mostrar que os EUA foram humilhados ao terem atingidos dois de seus principais símbolos de liderança mundial.

A posição de vítima humilhada do sujeito não o impede, porém, de mostrar que tem competência para reagir, pois, apesar da aparente vulnerabilidade de seus sistemas de segurança, possui arsenal bélico suficiente para enfrentar e derrotar qualquer inimigo que se apresente. O enunciador deixa essa posição clara ao enunciatário ao referir-se a declarações do presidente norte-americano, George W. Bush: ``(...), prometeu `caçar e castigar exemplarmente' os culpados dos ataques, advertência que repetiu em uma mensagem ao regressar à Casa Branca''.

O enunciador também deixa claro ao enunciatário que o ataque não deve ser considerado apenas como um ato interno, pois, em uma chamada, aponta as conseqüências que o ato teve nos EUA e no mundo: ``Estados Unidos e o resto do mundo tomam medidas adicionais de segurança''.

Nesta primeira página, podemos identificar a presença de um dos efeitos básicos produzidos pelo discurso com a finalidade de convencer quanto a sua verdade, o efeito de proximidade ou distanciamento da enunciação. O enunciador de Reforma ao apresentar o discurso em terceira pessoa busca demonstrar distanciamento, objetividade, o que, em tese, garantiria a sua imparcialidade.

Entretanto, podemos observar também que o enunciador de Reforma produz discurso em primeira pessoa, o que qualifica proximidade da enunciação e torna o discursivo sem objetividade. Trata-se do depoimento de um dos repórteres do jornal:

Pearl Harbor no Rio Hudson. Um arranha-céu ardia em chamas. Aquí? Perguntei. Sim, aqui. Ao vivo, vimos voar sobre o Hudson o segundo avião e incrustar-se na parte superior da segunda torre. Era óbvio que se tratava de um ataque terrorista.

Saí à rua, cheguei à região do Lincoln Center e vi caravanas de pessoas em direção ao norte. Com os telefones públicos sem funcionar, as pessoas tentavam comunicar-se com suas famílias pelos celulares. As ambulâncias vêm e vão, não havia táxis em Nova York. Caminho um trecho contra a corrente, vejo os cartazes cinematográficos. O primeiro, previsivelmente, teria que ser `Apocalypse Now Redux'.

Chamo o meu amigo Pete Hamill, que esteve na linha de fogo. Vejo uma pessoa atirar-se do 80º andar, a vejo desaparecer no horizonte: preferia morrer no vazio do que no fogo. Hamill sustenta que este é o maior desastre da história de Nova York: `O pior é a sensação de que a tragédia de morte apenas começa''' (Reforma, 12/09/2001: 1)

As imagens têm importância fundamental na configuração da primeira página. O Reforma reúne fotos que retratam três momentos dos ataques aéreos. A imagem principal, colocada logo abaixo da manchete, é uma panorâmica que situa as torres gêmeas e os outros edifícios que as circundam. Uma das torres permanece em pé e uma nuvem espessa de fumaça sai de sua parte superior. O posicionamento do fotógrafo permite observar a imponência do edifício em relação aos outros. No entanto, é uma falsa imponência, pois o símbolo do poderio econômico foi atingido e a legenda informa que as duas torres desabaram: ``Os 110 andares vieram abaixo''. Uma delas já havia caído, pois uma outra nuvem de fumaça se espalha horizontalmente pelos prédios próximos ao World Trade Center.

Logo abaixo da foto principal, outras três imagens apre-sentam, numa seqüência, o ``cineminha'', com fotos seqüenciais do ataque a uma das torres. Acima, há o título ``Pearl Harbor Novaiorquino'', mais uma vez, o enunciador faz referência ao ataque-surpresa contra os Estados Unidos, que marcou a entrada do país na Segunda Guerra Mundial. Pode-se inferir que o instante retratado é o segundo ataque, pois uma fumaça negra sai da torre da esquerda, quando, na primeira foto, o avião se aproxima. A legenda apenas descreve o ataque, mas não informa se é o segundo ataque.

Uma quarta foto mostra o desabamento da parte atingida no Pentágono, o símbolo do poderio militar norte-americano. Por ter sido menos espetacular do que os dois ataques contra as torres gêmeas, poucas capas trazem imagens desse ataque. A quinta e última foto mostra um idoso sendo auxiliado por várias pessoas.

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O Reforma, ao invés de optar por uma ou duas fotos, preferiu ser mais informativo e menos espetaculoso. A seqüência de três fotos que retratam o ataque a uma das torres, por exemplo, não causa impacto no leitor (Figura 67). O tamanho reduzido, praticamente, anulou a dimensão do ataque.

A utilização da fonte em preto na manchete é mais um efeito que potencializa a dimensão do acontecimento. O enunciador enfatiza o luto e a tristeza diante da tragédia. Ao mesmo tempo, na linha fina, é utilizado o vermelho para acentuar as palavras ``três'' (ataques), ``Nova York e Washington'' e ``milhares'' (mortos). Há um duplo sentimento, o respeito diante da enormidade da catástrofe e, numa escala menor, a ira.

The Diamondback, Sun e The Examiner (Estados Unidos)

O Grupo 2 tem como tema os sobreviventes da tragédia. Como já vimos, houve a necessidade de dividirmos este conjunto em subgrupos. O norte-americano The Diamondback (Figura 69) representa o subgrupo 1, que mostra o choque causado na população como principal efeito do acontecimento. Numa narrativa rápida, o enunciador do The Diamondback, no início do pequeno texto colocado acima da foto, faz referência ao estado da população norte-americana: ``Aproximadamente às 8:45 da manhã de ontem, os americanos ficaram chocados quando um avião de passageiros passou pela torre norte do World Trade Center em Nova York''. O enunciador afirma, ainda, que a natureza do ato tinha uma causa desconhecida: ``uma missão camicase para uma causa desconhecida''. Além disso, afirma que o choque foi tamanho que o ato jamais será esquecido: ``As imagens, sons e histórias da segunda terça-feira de setembro de 2001 ficarão marcadas para sempre na memória da nação''.

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A imagem utilizada pelo The Diamondback retrata várias pessoas fugindo da nuvem de fuligem que se formou após o desabamento das torres. Elas escondem parcialmente o rosto com lenços, evitando aspirar aquele pó. Contrastando com a palidez do cenário, uma mulher, em primeiro plano, é o foco de atração da imagem; ela, como as outras pessoas que vêm atrás, não corre desesperadamente, apenas caminha, cabisbaixa, resignada. O posicionamento da câmera, no solo, permite uma visão de infinito ao fundo. A palidez da foto, associada ao uso do preto na manchete ``Tragédia americana'', toda em caixa alta (letras maiúsculas), acentua a tristeza e o luto. Além disso, o diagramação da página, com espaços brancos simétricos à esquerda e à direita da página propõe uma verticalização (Figura 70), uma referência às torres gêmeas do World Trade Center.

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O norte-americano Sun (Figura 71), representante do subgrupo 2 do grupo 2, ao contrário do The Diamondback, foca as vítimas fatais. A manchete ``Nós lamentamos'' expressa a consternação e o luto do enunciador, que contabiliza milhares de mortos no World Trade Center e centenas no Pentágono, além de afirmar que cerca de 300 bombeiros perderam a vida no trabalho de resgate das vítimas dos ataques nas torres gêmeas. O efeito de proximidade da enunciação fica patente com a manchete, construída na primeira pessoa do plural, e no depoimento de um sobre-vivente, que narra, em primeira pessoa, os horrores que presenciou. Isso não impede, porém, de o enunciador produzir o discurso, também, em terceira pessoa, na mesma página, para tentar provocar o efeito de distanciamento. A imagem procura atenuar o sofrimento e o luto, reforçados pela estratégia de utilizar o preto na manchete. Num corte vertical, a imagem retrata o momento em que três bombeiros hasteiam a bandeira norte-americana em meio aos escombros do World Trade Center. A representação aponta para dois caminhos: o respeito aos mortos da tragédia e a necessidade de mostrar que a nação vai se recuperar, pois tem capacidade e meios para reagir, fato que o enunciador deixa claro em uma das pequenas chamadas: ``Bush promete vingar-se dos ataques contra o World Trade Center e o Pentágono''.

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O que o Reforma, do grupo 1, minimizou com a publicação de fotos de tamanho reduzido, o The Examiner (Figura 72), representante do subgrupo 3, põe à luz, fazendo exatamente o contrário, em termos de estratégia comunicativa. Um contrato de leitura (proposto pelo Reforma) parece apelar para a necessidade de respeito diante da catástrofe, enquanto o outro (The Examiner) apela para a explicitação da enormidade do evento, seu horror desmesurado, sem tamanho. A capa-pôster do jornal ampliou a dimensão do acontecimento. Praticamente sem narrativa, a linguagem visual predomina.

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A imagem é um close da explosão após o segundo avião ter se chocado contra uma das torres do World Trade Center. As chamas vivas dominam a parte superior da imagem. Atrás, uma fumaça negra, que sai do topo da outra torre, contrasta. A manchete, em preto, em tamanho garrafal, grita contra o anti-sujeito: ``Bastardos!'' (Figura 73). É um grito revoltado, de quem acusa os covardes que destruíram as torres. Segundo o Dicionário Aurélio, bastardo quer dizer aquele que nasceu fora do matrimônio e/ou degenerado da espécie a que pertence. Uma linha fina logo abaixo da foto diz ``Uma América mudada''. Duas tarjas pretas que cercam a linha fina enfatizam o luto e a tristeza pelo acontecimento.

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El Pais (Espanha),O Globo (Brasil), USA Today e City Paper (EUA)

O grupo 3 tem como tema os efeitos do ataque na América e no mundo. O subgrupo 1, representado pelo espanhol El Pais (Figura 74) aponta para as promessas de retaliação dos Estados Unidos. Tal qual uma novela, em que o telespectador espera pelo próximo capítulo para saber como se desenrolará a cena do dia anterior, o enunciador do jornal espanhol posiciona-se diante do leitor, ressaltando a expectativa após o evento. A manchete ``O Mundo em vigília à espera das represálias de Bush'' garante isso. Além disso, o enunciador deixa entrever que será grave a resposta, pois a linha fina colocada acima da manchete informa ao leitor que os ataques aéreos do dia anterior foram os piores sofridos pelos Estados Unidos em toda a sua história.

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A narrativa mantém a expectativa de represália iniciada com a manchete. Um trecho do texto único da chamada traz: ``À espera da proporção e das conseqüências desse castigo, o mundo contém a respiração ante a pior crise desde a Segunda Guerra Mundial''. Ou seja, o enunciador sempre recorre à história para justificar a gravidade do momento. A história é, novamente, utilizada pelo enunciador para demonstrar a enormidade do evento diante de outros acontecimentos históricos anteriores. É importante ressaltar que o El Pais é o único veículo que faz essa referência histórica em sua capa. O enunciador relaciona o ataque ao conflito árabe-israelense em um trecho: ``O ataque, não reivindicado, entretanto, por nenhum grupo, mas com a marca inconfundível do conflito árabe-israelense (...)''.Essa afirmação marca um posicionamento firme do veículo, pois interpreta o acontecimento sem permitir que a emoção se sobreponha à razão. Para o enunciador, houve uma tragédia, sim, mas como conseqüência do posicionamento dos EUA em dar apoio total às ações de Israel, principalmente em relação aos palestinos.

Se compararmos a tragédia de 11 de setembro de 2001 com a de 11 de março de 2004, que matou cerca de 200 pessoas e deixou milhares de feridos na Espanha, consta-taremos que o enunciador do El País, por estar próximo ao evento, sobrepôs a emoção à razão (Figura 75). A manchete do dia seguinte às explosões nos trens (12 de março de 2004) foi: ``Inferno terrorista em Madrid: 192 mortos e 1.400 feridos''. Na linha fina, logo abaixo da manchete, o enunciador aponta os principais suspeitos: ``Interior investiga a pista da Al Qaeda sem descartar a ETA''. A concepção gráfica-visual da capa é semelhante a da edição do dia 12 de setembro de 2001.

A imagem utilizada pelo El Pais (Figura 76) dá suporte ao texto verbal e segue a mesma linha adotada pela narrativa, ou seja, a opção do enunciador em focar o pós-acontecimento. A foto não mostra o ataque ao World Trade Center, mas a sua conseqüência: a queda das torres.

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Uma nuvem de poeira branca cobre, no tempo pós-acontecimento, todos os edifícios que estão em volta do World Trade Center. Só vemos uma torre em pé, da qual sai uma nuvem de fumaça cinza, o que é reforçado pela legenda: ``Momento em que cai uma das torres gêmeas de Nova York. Posteriormente, desabou também a segunda em conseqüência dos ataques aéreos''.

O título em preto, a tarja preta colocada abaixo da linha fina e a tonalidade cinza da foto (Figura 76) mostram ao enunciatário que o El Pais está de luto e solidário com o povo norte-americano. Topologicamente, o jornal abandona as colunas e apresenta uma disposição gráfica-visual ordenada, na qual a horizontalidade traz organicidade à capa.

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O Globo (Figura 77), representante do subgrupo 2, amplia os efeitos do acontecimento para o mundo e sai com a manchete ``Terror suicida pára o mundo''. Há, ainda, uma submanchete ``Bush fala em milhares de mortos''. A pequena diferença do tamanho da fonte entre manchete e submanchete provoca quase uma divisão na capa.

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Logo abaixo da manchete, não há texto verbal, mas três fotos em cortes verticais. A primeira delas retrata o momento exato do choque do segundo avião contra uma das torres gêmeas do World Trade Center. A figurativização desse segundo ataque é possível, pois da outra torre, à direita, sai uma nuvem de fumaça. Depreende-se que essa torre já havia sido atingida, o que é reforçado pela legenda que diz tratar-se de um segundo ataque. A imagem seguinte apresenta uma cena dramática, mais afeita a jornais sensacionalistas, que retrata um homem em queda livre de uma das torres. Uma cena extremamente chocante, dramatizada, ainda mais, pela legenda: ``Homem se joga para a morte''. A terceira imagem retrata a correria que se formou após o desabamento das torres. Uma gigantesca nuvem de poeira parece perseguir as pessoas, que fogem desesperadas. O posicionamento do fotógrafo no solo distorce a verticalidade dos prédios e o efeito é o de que parece que todos irão tombar devido à inclinação produzida pela angulação da câmera.

Na segunda parte da capa, separada pela submanchete, O Globo traz outras quatro imagens. Nesse caso, já há texto verbal, que resume o que foi o acontecimento. Além disso, o enunciador busca fazer-crer ao enunciatário que o ataque terrorista extrapolou as fronteiras norte-americanas e contaminou o mundo de duas formas: economicamente e politicamente. Trata-se da queda generalizada das bolsas de valores em todo o mundo e do temor de uma guerra mundial, após afirmar que se trata do maior atentado terrorista da história. Outros jornais, como a Folha de S. Paulo, não chegaram a tamanho exagero. Afirmaram, sim, tratar-se do maior atentado da história dos EUA. O enunciador de O Globo mostra-se propenso a comparações para defender a sua versão. Em outro trecho, lembra que o dia 11 de setembro ``foi comparado pelos americanos ao ataque contra Pearl Harbor, em 1941''. O enunciador também salienta que o presidente norte-americano prometeu caçar e punir os responsáveis pelo ato, mas não faz menções a possíveis nomes. Duas fotos menores detalham as conseqüências do ataque no Pentágono. Uma delas, que mostra veículos explodidos, é comparada pelo enunciador a um cenário de guerra.

No rodapé, utilizando toda a extensão da página, uma imagem fecha a ``encenação'' de O Globo. Uma panorâmica retrata a situação da região próxima ao local dos ataques contra o World Trade Center. Uma nuvem de poeira domina a paisagem (o fotógrafo estava posicionado do outro lado da baía). Na legenda, o enunciador, usando de ironia, anuncia a transformação do local: ``um novo cartão-postal''. Uma charge é colada sobre o horizonte da foto (Figura 78). Nela, vê-se escrito The End (o fim). As letras são produzidas com cores variadas; na extrema direita, percebe-se um avião aproximando-se da letra ``d''. O chargista interpreta o acontecimento como o final de um filme de catástrofe.

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Logo abaixo da foto, separadas por um fio, há várias chamadas de artigos produzidos por articulistas do próprio jornal (Figura 79), o mesmo expediente usado pelo Jornal do Brasil (Figura 80). Uma das chamadas aponta: ``A guerra do Oriente Médio chega aos Estados Unidos''; a do artigo de Élio Gaspari: ``Os EUA não serão mais os mesmos''.

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O subgrupo 3, representado pelo jornal norte-americano USA Today, aponta para um posicionamento político do destinador-manipulador. Ele quer fazer-crer ao destinatário que o acontecimento se tratou de um ``Ato de guerra''. A manchete vem entre aspas, pois a expressão `ato de guerra' foi utilizada por Bush em um de seus discursos. Ocorre que, quando há uma guerra, os combatentes se conhecem, sabem a que país pertencem. No entanto, neste caso, o enunciador afirma apenas que são terroristas, ou seja, falta explicitar quem é o inimigo. Como em O Globo, detectamos uma divisão na concepção da capa. O USA Today pode ser enquadrado na qualificação de capa-pôster, pois a foto, que ocupa cerca de 80% da superfície da capa, serve de fundo para chamadas e manchetes. Uma pequena parte que está fora da área da foto é preenchida apenas com texto verbal.

A área do foto é preenchida com chamadas curtas. Uma das chamadas é utilizada pelo enunciador para justificar a manchete: ``86% dizem que ataques são atos de guerra''. O enunciador apóia-se em uma pesquisa para afirmar que o acontecimento é um ato de guerra. Uma outra traz mais um excerto de um discurso do presidente norte-americano: ``Bush para a nação: EUA `viram o mal'''. Trata-se do eixo do mal, expressão utilizada por Bush para identificar os que não se alinham com os EUA e sua política.

Na segunda parte da capa, o enunciador anuncia no título: ``Minuto a minuto, o medo toma conta do país''. É interessante ressaltar que o enunciador demonstra confusão em suas afirmações, o que, fatalmente, prejudica o julgamento do enunciatário. Na primeira parte da capa, o enunciador afirma em letras garrafais que o acontecimento é um ato de guerra. No entanto, no texto do pé da página, ele (enunciador) aparenta indecisão:

Os americanos falam de um segundo Pearl Harbor e um ato de guerra, mas as comparações são vacilantes. Agora foram civis que morreram nos centros político e financeiro da nação, não soldados e marinheiros em um distante território do Pacífico. Desta vez, os alvos não foram cruzadores de batalha antiquados, mas edifícios familiares a qualquer estudante (USA Today, 12/09/2001: 1).

Ao contrário de O Globo e de outros jornais, o enunciador também está em dúvida se o 11 de setembro foi o mais sangrento da história: ``Pode ter sido o dia mais sangrento na história dos Estados Unidos''.

A imagem traz para o foco da página o centro da explosão do segundo avião contra uma das torres do World Trade Center. A nuvem de fumaça da torre à direita fica em segundo plano, pois o logotipo e algumas chamadas estão sobre ela. Um prédio escuro, no lado esquerdo da torre em chamas, funciona como uma tarja preta em sinal de luto. Ao fundo, vê-se o azul do céu daquela manhã, o que contrasta com a tristeza da tragédia. A utilização do branco na manchete e chamadas diminui um pouco a atmosfera de luto e resignação. A diagramação (Figura 81) traz uma composição assimétrica. Podemos dividir a capa em dois blocos: o primeiro (vertical), no qual a foto é utilizada como pano de fundo que ocupa cerca de 80% da superfície, segue as linhas dos edifícios; já no segundo bloco, com predomínio do verbal, há uma horizontalidade, o que dá dinamicidade à página.

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O norte-americano City Paper, único componente do subgrupo 4, fecha este grupo 3. É mais um veículo que podemos classificar como exemplo de capa-pôster dentro do corpus, ou seja, a superfície da capa é dominada pela linguagem visual. Quase sem narrativa, apresenta como texto verbal a manchete ``América em choque''. É a reação imediata da população frente à incredulidade do acon-tecimento. A foto traz bombeiros e voluntários carregando o corpo de uma vítima. É impossível saber se está viva ou morta, pois não há legenda que explique a cena. Todos olham para uma única direção. O ponto de atração da imagem é deslocado para a esquerda, onde um homem aponta para algo também não-identificável.

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Topologicamente (Figura 82), podemos dividir a superfície da capa em três blocos, dois retangulares e um quadrado, o que confere simetria e organicidade à capa. Uma harmonia contrastante com a qual o enunciador do City Paper quer fazer-crer ao enunciatário que a nação está paralisada, em estado de choque. Acrescentando-se o preto utilizado na fonte da manchete, incorpora-se o luto e a tristeza pelo acontecimento.

Richmond Times-Dispatch, Washington Times, College Heights Herald, Commercial Appeal (EUA)

Neste grupo 4 , o destinador qualifica o acontecimento. O Richmond Times-Dispatch, representante do subgrupo 1, é mais uma capa-pôster. A manchete ``Dia Negro da América'' está figurativizada na imagem, já utilizada por outros veículos, como o USA Today, do instante da explosão resultante do choque do segundo avião contra uma das torres (esquerda). A torre da direita já havia sido atingida, pois uma nuvem de fumaça cinza confere a temporalidade. Acima da manchete, a vinheta ``Ataque nos EUA'' funciona como um complemento ao título principal. O Richmond Times-Dispatch traz um diferencial em relação às outras capas-pôster deste corpus. Apresenta uma segunda imagem acima do logotipo, que retrata o ``novo cartão-postal'' de Manhattan, como foi definido por O Globo. Uma panorâmica mostra a fumaça que domina a área mais próxima do ataque. A foto tem um corte horizontal na altura dos edifícios. A estátua da liberdade, apesar de ser mais um detalhe nessa paisagem, dá um novo sentido à imagem. Mesmo com toda a destruição, com a liberdade posta em xeque, como definiu Bush em um de seus discursos logo após os ataques, os Estados Unidos se levantarão e não serão derrotados. A liberdade ainda está de pé. O corte vertical da foto principal (Figura 83) confere movimento à página e segue a verticalidade dos edifícios. O preto utilizado na manchete, em letras garrafais e em caixa alta (maiúscula), e uma tarja preta, no pé da foto, com texto vazado em branco, conferem luto, tristeza e resignação pelo acontecimento.

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O Washington Times, do subgrupo 2, apresenta a manchete ``Infâmia''. O destinador grita: infâmia! Além disso, faz referência ao episódio que marcou a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. Marcado como o Dia da Infâmia, o ataque surpresa de bombardeiros japoneses, em 1941, causou a morte de soldados e foi, posteriormente, vingado com a decisão de atacar duas cidades japonesas, Hiroshima e Nagasaki, com bombas atômicas. O enunciador explica o título somente em uma chamada pequena, localizada quase no pé da página: ``Dia da Infâmia? Os americanos recordam o dia da infâmia japonês, de 7 de dezembro de 1941, o ataque sorrateiro a Pearl Harbor''. Três outras chamadas completam o verbal da capa. No título de uma delas, o enunciador garante ao enunciatário que a infâmia terá uma revanche. ``Bush promete enfrentar o `mal, atos desprezíveis'''. Nesta chamada, o enunciador se apóia em declarações de Bush para construir o texto, ou seja, constrói o texto em terceira pessoa para criar distanciamento e objetividade. Em um trecho, explica o título: ``'Nós não faremos distinção entre os terroristas que praticaram os ataques e aqueles que os abrigam', disse Bush''. Além disso, o enunciador informa ao leitor que há um suspeito dos ataques aéreos sofridos pelos Estados: ``Especulações veiculadas em Washington dizem que Osama Bin Laden, que se acredita estar no Afeganistão, está por trás dos ataques de ontem''.

Em outra chamada, o enunciador informa, no título, que uma área de Washington está mergulhada no caos. Na terceira e última chamada, com o título ``Aviões seqüestrados destroem World Trade Center, atingem Pentágono'', o enunciador ``encena'' como foram os ataques aéreos. No texto da chamada, um quadro destaca outra informação. O enunciador volta a insistir na culpabilidade de Bin Laden: ``Relatórios apontam para Bin Laden'' é o título do box. O enunciador credita à inteligência americana a informação: ``Relatórios da inteligência americana indicam que o extremista saudita Osama Bin Laden e seus associados estão por trás dos ataques no World Trade Center e Pentágono''. O enunciador refere-se aos agentes do ataque como terroristas suicidas, além disso, faz-crer ao enunciatário que o acontecimento ``é o pior ataque terrorista em solo americano''.

As imagens utilizadas detalham os dois ataques aéreos sofridos pelos Estados Unidos, o do World Trade Center e do Pentágono. Como já foi comentado em outras análises, o ataque ao Pentágono foi pouco mostrado nas primeiras páginas dos jornais que fazem parte deste corpus, pois foi menos espetacular. O The Washington Times é uma exceção, tanto pela edição das fotos quanto por mostrar os alvos atacados. A foto do ataque ao World Trade Center é uma reprodução de imagem de TV, o que é facilmente perceptível dada a sua péssima qualidade. Retrata o momento em que uma das torres desaba; a outra ainda está em pé, de onde sai uma fumaça cinza. Na legenda da foto, o enunciador complementa o visual, informando qual torre desabou primeiro e o espaço de tempo até a queda da segunda torre. A segunda imagem, bem menor, retrata a cena de uma correria desenfreada de pessoas que trabalham no resgate de vítimas na parte atingida do Pentágono. Ao fundo, vê-se os escombros. No entanto, a legenda, em duas linhas, além de explicar a cena, ressalta que a correria resultou de um alarme falso. A topologia (Figura 84) da capa revela organicidade e movimento. Há a junção de movimentos horizontais e verticais. A manchete e a foto principal mostram horizontalidade, já o bloco, quase um rodapé, é trabalhado verticalmente. A utilização de colunas com tamanhos diferenciados também ajuda na movimentação.

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O enunciador do College Heights Herald, representante do subgrupo 3, tem um posicionamento diferente em relação às demais capas. Mesmo com a capa-pôster, na qual o visual é predominante sobre o verbal, a nominação ou qualificação parte da manchete. No caso do College Heights Herald (Figura 85), acontece o mesmo. No entanto, a manchete é apenas uma data, ``11.9.01''. O enunciador faz crer ao enunciatário que o acontecimento chocou tanto que não pôde ser nominado. Cabe ao enunciatário fazer sua qualificação. A imagem, num corte vertical, figurativiza o momento da explosão do segundo avião contra uma das torres do World Trade Center. O enunciatário conclui ser a segunda, pois, da outra (direita), sai uma fumaça negra da parte superior.

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O close é frontal e não há outros edifícios enquadrados na cena.

A cromaticidade, com predomínio do preto na manchete, indica que o acontecimento inominável provoca luto e tristeza. A topologia apresenta um movimento vertical, onde há referência nítida ao World Trade Center. Nesta capa, cada detalhe deve ser juntado pelo leitor para que ele aceite a ``encenação'' do enunciador.

Já o enunciador do Commercial Appeal (Figura 86), integrante do subgrupo 4, qualifica o ato como maligno, com a manchete ``Atos do mal''. A manchete vem entre aspas, pois é uma referência a um trecho de um dos discursos pronunciados pelo presidente Bush após os ataques. No entanto, o enunciador não apresenta essa informação ao leitor, que é inexplicável e deixa sem sentido a utilização das aspas, pois o seu uso indica que alguém disse aquilo, não o enunciador. O olho, que vem logo abaixo da manchete, informa sobre os agentes da ação e os alvos atingidos, além de apontar o temor de milhares de pessoas: ``Seqüestradores destroem torres de Nova York, atingem Pentágono; milhares temem a morte na guerra da América''. O enunciador afirma, ainda em outra chamada, que uma bela manhã em Nova York transformou-se num inferno. A imagem utilizada é a mesma da maioria dos jornais que fazem parte deste corpus. Retrata o momento da explosão do segundo avião contra uma das torres do World Trade Center. O céu azul daquela manhã contrasta com as cenas trágicas da imagem. Uma segunda foto, em menor tamanho e sem legenda, a exemplo da imagem principal, retrata duas mulheres desesperadas com o acontecimento. O preto utilizado na manchete, toda em caixa alta (maiúscula), produz o efeito de luto, tristeza. A topologia tem a verticalidade como principal linha da diagramação, que caminha na mesma direção dos prédios retratados na imagem principal. O dinamismo é a principal característica desse tipo de paginação.

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Folha de S. Paulo (Brasil)

O tema principal do grupo 5 enfoca a vítima da ação, os EUA. A Folha de S. Paulo (Figura 87), que representa o grupo, traz a manchete ``EUA sofrem maior ataque da história''. Acima, uma tarja vermelha com as letras vazadas em branco traz: ``Guerra na América''. Com isto, o enunciador quer fazer-crer ao leitor que o ataque, que se transformou no maior já sofrido pelos EUA, causou uma guerra na América. Nos três olhos que antecedem o texto da chamada principal, o enunciador dá ao enunciatário uma visão do acontecimento e das suas conseqüências na economia mundial: ``Torres do World Trade Center e parte do Pentágono são destruídas; Milhares de pessoas morrem em atentados de autoria desconhecida; Bolsas param, petróleo dispara e aumenta temor de recessão global''.

O texto da chamada principal traz uma narrativa do acontecimento. O destinador posiciona ao destinatário os principais momentos da ação. O enunciador chama os agentes da ação de terroristas, apesar de que, até aquele momento, só havia suposições sobre os autores dos ataques. Em um trecho, o enunciador informa sobre as suposições: ``O principal suspeito é o terrorista saudita Osama Bin Laden, refugiado no Afeganistão. O Taleban, grupo extremista islâmico que controla quase todo o país, nega''. Neste caso, há um deslocamento de sentidos, pois, no início, o enunciador afirma que os autores da ação são terroristas e, logo depois, apresenta um suspeito. Propositalmente, o enunciador trabalha numa faixa de sentidos imprecisos.

O enunciador municia o leitor com várias comparações, fato corriqueiro na imprensa mundial:

Não há números oficiais, mas policiais ouvidos pela Folha falam em 10 mil mortos, um sexto de todos os americanos vitimados pela Guerra do Vietnã (1961-1975); O ataque que destruiu dois dos principais símbolos do poderio econômico e militar dos Estados Unidos foi o primeiro ao país desde Pearl Harbor, em1941 (Folha de S. Paulo, 12/09/2001: 1).

A temporalidade é definida pelos horários do início dos ataques e do desabamento das torres.

O enunciador da Folha de S. Paulo é um dos poucos a mencionar que pessoas se jogavam das torres antes delas desabarem. Além disso, é o único a afirmar que em países árabes a população comemorou os atentados: ``Em países árabes, a população saiu às ruas para comemorar''.

Há, ainda, chamadas de matérias dos correspondentes em Washington e Nova York, que trazem uma visão mais próxima do acontecimento. A enunciação não é em primeira pessoa. Continua em terceira, o que constrói o efeito de objetividade. A primeira chamada traz o título ``Um cheiro embrulha o estômago''. O enunciador carrega o texto com frases fortes: ``Enfermeiros carregam uma maca com o corpo de um bombeiro decapitado; Há um cheiro doce de queimado, que embrulha o estômago''. O segundo título, ``Defesa parece um queijo suíço'', vem entre aspas. São apresentadas declarações de políticos e especialistas sobre segurança, que justificariam a facilidade com que os autores da ação atingiram seus objetivos: ``'A defesa dos EUA tem tantos buracos como um queijo suíço', afirma Brian Jenkins, especialista em terrorismo''.

As imagens mostram dois momentos dos ataques ao World Trade Center. A foto principal, com um corte vertical, retrata o momento da explosão do segundo avião contra uma das torres gêmeas. A nuvem de fumaça que sai da torre da direita, no sentido da direita para a esquerda, implicitamente, informa que já houve um primeiro ataque, o que é confirmado pela legenda: ``Choque de Boeing-767 provoca segunda explosão em torre do World Trade Center (esq.) por volta das 10h, em Nova York; pouco antes outro avião havia alvejado a torre norte do prédio de 110 andares; ambas ruíram entre 11h e 11h30''. A segunda foto, que foi registrada, originalmente, em preto e branco, retrata pedestres que foram atingidos pela nuvem de poeira que se formou após as torres desabarem. O preto e branco da foto dramatizam ainda mais a situação dos pedestres. A legenda é estritamente constatativa: ``Pedestres cobertos de fuligem deixam a área em que desabou o World Trade Center''.

Apesar da vinheta colocada acima da manchete ser na cor vermelha, o preto predomina na manchete, toda em caixa alta (maiúscula), e confere o sentido de luto e tristeza pelo acontecimento. A topologia é dinâmica, com o predomínio do vertical, seguindo a linha dos edifícios. Há, ainda, a utilização do horizontal, com a foto em preto e branco.

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Conclusão

O evento de 11 de setembro, realmente, transformou-se num marco histórico. Isto porque afetou as relações internacionais e instalou, principalmente nos Estados Unidos, a sensação da vulnerabilidade. Talvez, como analisa Zizek, ainda não saibamos quais serão as conseqüências para a economia, a ideologia, a política e a guerra,

(...) mas uma coisa é certa: os EUA, que até hoje achavam que eram uma ilha protegida desse tipo de violência, vendo-a apenas da distância segura da tela do televisor, estão agora diretamente envolvidos'' (Zizek, 2003: 65).

Zizek acredita tanto quanto Baudrillard que uma das principais causas desses ataques seja a globalização, que é uma forma de exclusão dos países periféricos. Para Baudrillard:

Não é preciso ser islâmico nem invocar uma verdade superior para considerar essa ordem global inaceitável. Muçulmano ou não, partilhamos essa recusa fundamental e existem muitos sinais de desencanto e de fratura, de fragilidade, no seio da própria potência. Essa é a ``verdade'' do ato terrorista, não há outra... (Baudrillard, 2003:42).

Já Zizek analisa que ``o único meio de conceber o que ocorreu no dia 11 de setembro é localizá-lo no contexto dos antagonismos do capitalismo global'' (Zizek, 2003: 65).

E os muçulmanos fazem parte desses excluídos. Como foi demonstrado no primeiro capítulo deste trabalho, é preciso fazer uma análise profunda do acontecimento para não sermos simplistas ao extremo e caracterizar o acontecimento apenas como um ataque orquestrado por um bando de terroristas suicidas. É preciso buscar raízes históricas que cercam o acontecimento.

A análise das capas, apesar de constituir um espectro pequeno dentro da complexidade do assunto, segue esse percurso: a construção do fato pela maioria dos veículos é pró-ocidente, ou seja, as razões históricas pelas quais um grupo de suicidas praticou as ações de 11 de setembro não foram levadas em conta. No entanto, há os veículos que procuraram observar esse detalhe já a partir da capa, que, na verdade, é a primeira a impactar o leitor. Para o El País e o Al Hayat, por exemplo, o acontecimento foi um castigo aos Estados Unidos. Portanto, o enunciador não compactua com a posição de vítima dos norte-americanos que estariam, para ele (o enunciador), pagando pelos pecados cometidos no Vietnã e em Hiroshima e Nagasaki. E essa posição de vítima, como analisa Zizek, foi conveniente em um primeiro momento, logo após o atentado, pois se tornaria importante na justificativa da retaliação que viria a seguir.

No entanto, esse posicionamento não foi preponderante nas capas analisadas. O que se viu foi um alinhamento pró-Ocidente, onde cabia uma reação. Principalmente para os veículos norte-americanos que não se cansaram de utilizar uma declaração de Bush sacada de um de seus discursos feitos após os ataques, em que ele afirmava que puniria os responsáveis pelos atos cometidos e o país que os abrigassem.

As análises feitas em todas as capas pertencentes ao corpus permitiu derrubar por terra uma das hipóteses de nosso trabalho: a de que o percurso passional seria predominante. O que se viu foi exatamente o contrário. O percurso passional ficou restrito a poucas capas e não foi determinante para o enunciador estabelecer suas estratégias comunicativas e/ou discursivas.

O que fica patente é o estabelecimento de uma série de estratégias que moldaram a construção da catástrofe de 11 de setembro nas capas das edições de 12 de setembro. Algumas manchetes, por exemplo, estão construídas dentro de um contrato de leitura proposto pelo veículo, com ênfase nas referências aos agentes da ação, denominados pelos veículos como ``terroristas'', e nas vítimas, os Estados Unidos. Outras, contudo, destacaram os efeitos que o ato provocou na América, no mundo e na população norte-americana. O posicionamento político esteve representado pelos veículos que declararam ser o acontecimento um ato de guerra.

As comparações com outros conflitos estiveram presentes nas primeiras páginas. A principal referia-se ao ataque aéreo de surpresa executado pelos japoneses, em 1941, em Pearl Harbor, fato que precipitou a entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial. Mais tarde, a retaliação iria cair sobre as cabeças da população de Hiroshima e Nagasaki.

O uso insistente da foto, que retrata o momento da explosão do segundo avião que se chocou contra uma das torres do World Trade Center, não provocou monotonia nas capas, ao contrário, de acordo com cada manchete, o enunciatário fazia a associação com determinado tema.

É importante ressaltar que uma primeira página não permite uma leitura completa da construção de determinado evento. No entanto, por meio da análise do discurso, ancorada na semiótica, é possível determinar que caminho foi segui-do pelo enunciador.

A construção do evento na mídia impressa ainda pode render análises diferenciadas com outros focos. Numa dissertação, não é possível tratar de todos os aspectos. No entanto, nosso trabalho, com o auxílio fundamental da teoria semiótica, trouxe mais luz às análises já existentes desse acontecimento.

Esta pesquisa demonstrou que um acontecimento tem interpretações variadas, o que, conseqüentemente, permite diferentes construções, que são determinadas a partir das estratégias comunicativas e/ou discursivas utilizadas pelos veículos.

Referências bibliográficas