Da responsabilidade social ao jornalismo de mercado: o jornalismo como profissão

Fábio Henrique Pereira1


Índice


O jornalista pertence a uma espécie de casta de párias, que é sempre estimada pela `sociedade' em termos de seu representante eticamente mais baixo. Daí as estranhas noções sobre o jornalista e seu trabalho. Nem todos compreendem que a realização jornalística exige pelo menos tanto `gênio' quanto a realização erudita, especialmente devido à necessidade de produzir imediatamente, e de `encomenda', devido à necessidade de ser eficiente, na verdade, em condições de produção totalmente diferentes

(Max Weber, A política como vocação).

Resumo

Neste atrigo teórico abordamos o jornalista enquanto profissão. O estudo centra-se na transição da identidade profissional do jornalista, de uma concepção romântica (jornalismo como missão) ao agravamento do caráter empresaria da imprensa (`jornalismo de mercado'). Durante a análise dessa transição, foram destacadas aspectos econômicos, deontológicos e relativos às práticas profissionais. O resultado desse estudo foi a capacidade de situar o jornalismo enquanto profissão dentro de um duplo discurso onde se entrecruzam elementos de um discurso humanista e tecnicista. A partir desse painel identitário foi possível estabelecer parâmetros para o estudo do jornalista como uma categoria de intelectuais.

Palavras-chave: jornalista, sociologia profissional, identidade profissional.

Introdução

O jornalismo é uma profissão ambígua e de difícil definição. Sob o seu nome se manifestam uma multiplicidade de funções, meios e formas discursivas distintas. Por isso, ``jamais a categorização do ou da jornalista dirá muita coisa sobre a profissão, suas mudanças e dilemas'' (Marcondes Filho, 2000: 53).

Esta diversidade, para Denis Ruellan (1993) beira ao ofuscamento, a ponto do autor utilizar o termo francês flou2, para caracterizar o profissional jornalista. Essa fluidez é um amálgama fundamental na supressão e redução dos antagonismos inerentes à profissão. ``Fundamentalmente o jornalista não é uma profissão fechada, de fronteiras estabelecidas (...) ele se move dentro de um espaço de limites fluidos, de práticas híbridas, às margens de áreas vizinhas que lhe transferem algumas práticas e concepções, e recebem dele em troca'' (Ruellan, 1997: 124)3.

Isso não significa que o estudo do jornalismo como profissão seja inviável. Na verdade, subjacente à fluidez deste status profissional há um sentimento de funcionalidade social que vai permear a construção identitária do jornalista. Mas que tipo de identidade ele, de fato vem assumindo na sociedade? E como isso vai afetar o cotidiano das redações, o savoir-faire diário dos jornalistas?

O objetivo deste artigo é entender o jornalismo sob a ótica da sociologia das profissões. A idéia é compreender a natureza profissional do jornalismo, suas relações com a sociedade e com os meios de comunicação. Para isso, a análise deve centrar-se na construção da identidade do jornalista por meio de um mapeamento das diversas funções/visões que o jornalista assume na sociedade. Ou seja, trabalhar a questão a partir de um modelo de análise que leve em conta as múltiplas representações da identidade profissional (Hall, 2000: 109). Este `painel identitário' se configura a partir da transição da visão romântica da profissão ao aprofundamento do caráter empresarial da imprensa, expresso na concepção de `jornalismo de mercado'. A forma como essa passagem afeta as representações sobre jornalista será discutida a seguir.

A concepção romântica do jornalista

``Cães de guarda da sociedade'', ``princípio da responsabilidade social'', imprensa como o ``Quarto Poder''. Todas essas expressões estão ligadas ao ideário romântico do jornalismo. De acordo com essas concepções, o jornalista teria um status diferenciado das demais profissões. Ele estaria, por princípio, comprometido com a sociedade - que lhe delega o poder de fiscalizar as instituições em seu nome - e com os valores democráticos. Em seu livro `Elementos do Jornalismo', Bill Kovach e Tom Rosenstiel (2003: 22-23) elaboraram uma lista com nove itens fundamentais para o exercício da profissão e que ilustram bem esse espírito de missão:

A primeira obrigação do jornalismo é a verdade. 2. Sua primeira lealdade é com os cidadãos. 3. Sua essência é a disciplina da verificação. 4. Seus profissionais devem ser independentes dos acontecimentos e das pessoas sobre as que informam. 5. Deve servir como um vigilante independente do poder. 6. Deve outorgar um lugar de respeito às críticas públicas e ao compromisso. 7. Tem de se esforçar para transformar o importante em algo interessante e oportuno. 8. Deve acompanhar as notícias tanto de forma exaustiva como proporcionada. 9. Seus profissionais devem ter direito de exercer o que lhes diz a consciência.

De acordo com os autores, afastar-se desses princípios significaria o mesmo que desertar do jornalismo. Da mesma forma, Cremilda Medina (1982: 24) entende que a rejeição ao caráter especial da profissão representaria um certo complexo de inferioridade do jornalista que ainda ``não se convenceu de seu papel social e rejeita em bloco esse trabalho de estiva, de pequenos grãos de areia perdidos no deserto''.

A concepção da imprensa como um ``Quarto poder'' se vincula inicialmente aos processos de profissionalização do jornalismo no início do século XX. É esse processo que induz os jornalistas à busca por modelos profissionais (Medina, 1982). Na França, ela se consolida logo após a Primeira Guerra Mundial e é, antes de tudo, uma resposta da sociedade à falta de credibilidade da propaganda oficial junto à população. Assim, será outorgado à imprensa o direito e a responsabilidade de fiscalizar as instituições políticas em nome da sociedade francesa (Neveu, 2001).

É preciso destacar que o monopólio profissional do jornalista francês se estabelece de uma forma bastante inconsistente4. Por isso, as fronteiras que demarcam a identidade do jornalista francês são delimitadas a partir de uma cultura e de uma ética profissional, regidas principalmente pelo espírito de missão.

No Brasil, a profissionalização do jornalismo tem início durante o Estado Novo e só será concluída em 1969, com a aprovação da Lei de Imprensa. De certa forma, a forte ingerência estatal na organização profissional atrapalhou o desenvolvimento de um jornalismo romântico. Alguns pesquisadores, como o jornalista e professor Francisco Sant'Anna, chegam a questionar a existência deste tipo de jornalismo no País. Por outro lado, há vários exemplos na história da imprensa brasileira de campanhas jornalísticas marcados pelo comprometimento social. Manuel Carlos Chaparro (1993: 92) cita o caso da cobertura das `Diretas Já' em 1984, pela Folha de São Paulo. Este teria sido um momento em que o jornal ultrapassou sua instância mercadológica, tornando-se ``uma entidade social e cultural, carregada de emoções, alimentando processos complexos de comunicação com informação, análises e opiniões que podem mudar os rumos de povos e nações''.

Mesmo nos Estados Unidos, onde sempre preponderou a dimensão comercial da imprensa5, o jornalismo assume também sua concepção romântica. Os jornalistas, por exemplo, desempenharam, um papel de grande relevância na Era Progressista - período que compreende o final do século XIX e o início do XX, marcada pela reforma das instituições políticas norte-americanas. Mas foi a partir dos anos 50, graças aos esforços da Comissão para a Liberdade de Imprensa, que surgiu naquele país a Teoria da Responsabilidade Social no Jornalismo. A teoria é, antes de tudo, uma resposta à crescente concentração empresarial dos meios de comunicação norte-americanos. Por isso, ela instituiu diretrizes que vão orientar a atividade jornalística de forma a melhorar a qualidade da produção noticiosa e separá-la da necessidade de gerar lucros. ``Se supunha que o jornalismo deveria servir ao público em sua totalidade e não a interesses particulares (habitual no estilo de jornalismo panfletário do século XIX), nem, tampouco, aos estreitos objetivos comerciais de anunciantes e proprietários6'' (Hallin, 1996: 02).

É preciso destacar que os três países vão adotar tradições jornalísticas divergentes. Se, por um lado, os Estados Unidos - e mais tarde, o Brasil - enfatizam a produção de um jornalismo estritamente informativo, a tradição francesa deu preferência ao modelo interpretativo de imprensa. O ideal de responsabilidade social vai representar, contudo, um ponto de intersecção entre a tradição francesa e a tradição anglo-americana. Em comum, os dois modelos buscam uma politização da identidade profissional (Neveu, 2001; Weber, 1985), embora desvinculada dos conflitos partidários. A imprensa, concebida como `Quarto Poder', estaria comprometida apenas com o cidadão, com o interesse público. Por isso, a função do jornalista nas sociedades democráticas se assemelharia em alguns pontos com a do educador, responsável por impor uma certa claridade ao caos dos acontecimentos7 (Neveu, 2001).

A imagem do jornalista como mediador neutro, distante (e superior) aos jogos de interesse da sociedade, estaria subjacente ao ideal de objetividade na profissão. Segundo Moretzsohn (2002), é a partir desse ideal que os jornalistas vão preservar suas práticas profissionais das pressões políticas e econômicas. Sob discurso da objetividade, o jornalista aparenta o que não é (alguém que influencia os próprios acontecimentos) e assegura seu lugar como autoridade independente, capaz de fiscalizar os atos do governo perante a sociedade.

O mito do jornalismo objetivo é essencial para a compreensão da idéia de responsabilidade social do jornalista. É ele quem marca a passagem do jornalismo panfletário do século XIX para o `jornalismo profissional'. Michael Shudson (1995: 107-108) ilustra bem esse momento com um trecho de ``What is reporter?''. No artigo, Shudson analisa a biografia de dois mitos do jornalismo norte-americano, os repórteres Lincoln Steffens (1866-1936) e Harrison Salisbury (1908-1993). Segundo ele:

Steffens está interessado na explicação. Salisbury se contenta em ``conseguir os fatos'' (...) Steffens é uma figura pública, e ele nos conta capítulo após capítulo como os figurões da política e dos negócios nas grandes cidades americanas confiavam nele e usavam-no como um pai confessor. Os amigos de Salirbury são jornalistas ou poetas ou sua própria família, ``outsiders'' das lutas políticas relatadas nas suas crônicas. A imagem que Steffens nos dá é de conversas íntimas com Teddy Roosevelt; a imagem que Salisbury nos deixa é a dele esperando, sozinho ou com outros repórteres, fora do Kremlin, por notícias de Stalin8 .

Ou seja, sob a égide da objetividade, o repórter projeta a imagem de herói solitário, comprometido apenas com o interesse público e a transparência democrática. Salisbury obteve renome pela sua cobertura da Guerra do Vietnã. Acima dos interesses políticos e ideológicos de seu país, o que importava para ele era o relato `fiel' e `imparcial' da guerra.

Segundo Daniel Hallin (1996: 02), acreditou-se, por um bom tempo, que o modelo da responsabilidade social seria estável e permanente. Alguns jornalistas chegaram a considerá-lo uma ``evolução histórica natural'' da profissão. No entanto, sua influência efetiva nas práticas profissionais teria durado pouco mais de uma geração. Mudanças na estrutura das empresas jornalísticas e fatores político-culturais teriam levado à emergência do chamado `jornalismo de mercado'.

O fim da idade de ouro do jornalismo

O período que compreende o final da década de 40 a meados da década de 70 representa o auge da Teoria da Responsabilidade Social nos Estados Unidos. Para alguns autores, esta seria a `idade de ouro' da imprensa9. A partir daí começa a ganhar força a idéia do jornalismo como uma profissão voltada exclusivamente para os interesses do mercado.

O `jornalismo de mercado' colocaria em xeque todo o ideal romântico que perpassa a profissão. De certa forma, há uma radicalização do caráter mercantil da imprensa, intrínseca à própria produção noticiosa. Essa radicalização é resultado de alterações não só no jornalismo, mas em toda estrutura social. A seguir, serão apontados alguns fatores responsáveis por essas mudanças. A análise parte de uma sistematização das discussões feitas por Daniel Hallin (1996); Allain Accardo (1998); Ciro Marcondes Filho (2000); Erik Neveu (2001); Ignacio Ramonet (2001) e Bill Kovach e Tom Rosenstiel (2003):

A partir da década de 70, a maioria dos grandes jornais norte-americanos lançaram suas ações na bolsa de valores. Com isso, aumentou a pressão pela busca de lucros e benefícios a curto prazo, restringindo a qualidade do veículo, ao mesmo tempo que aumentou o poder dos departamentos de marketing. Os processos de concentração e incorporação dos veículos por grandes empresas reduziram o jornalismo a um setor subsidiário dentro das corporações midiáticas. A submissão da imprensa à lógica empresarial alterou a pauta jornalística. As notícias sobre economia e política dão lugar à cobertura de assuntos mais vendáveis (`soft news') e com alto conteúdo emocional. O objetivo é a maximização do público:

A informação se tornou de verdade e antes de tudo uma mercadoria. Não possui valor específico ligado, por exemplo, à verdade ou à eficácia cívica. Enquanto mercadoria, ela está em grande parte sujeita às leis de mercado: da oferta e da demanda em vez de estar sujeita a outras regras, cívicas e éticas, de modo especial, que deveriam, estas sim, ser as sua. (Ramonet, 2001: 60).

É preciso destacar que, no Brasil, o processo de profissionalização das empresas jornalísticas não passou pelo mercado de ações. Segundo Ribeiro (1994: 114), ainda hoje a administração dos jornais é marcada pelo conflito entre o autoritarismo centralizador dos grupos familiares que controlam o jornal e a racionalidade de exigir metas e desempenhos profissionais. ``Enquanto a empresa transita entre dois estilos de gestão, impera um duplo discurso, ora com ênfase na confiança e no favor, ora na competência e na exigência''. Por isso, apesar da descentralização do poder e da contratação de executivos profissionais, ainda é forte o poder do dono do jornal no controle da empresa jornalística.

A influência da lógica comercial nas redações trouxe consigo a redução de custos na fabricação de notícias e um processo de precarização do mercado de trabalho. Na França, o número de pigistes (trabalhadores sem contrato permanente) aumentou de 8,5% em 1975 para 14,7% em 1990. Em 1999, a proporção já passava os 40%. A deterioração do mercado de trabalho traz um sentimento de resignação dos profissionais às condições impostas pelas empresas. Para se manter no emprego ou conseguir um melhor status, o jornalista se vê cada vez mais tentado a desrespeitar algumas regras morais e deontológicas da profissão (como à checagem sistemática das fontes ou o respeito à veracidade da informação).

Com isso, o texto jornalístico adquire um caráter cada vez mais instrumental, identificado com os interesses do mercado. O jornal é produzido como um manual para a vida cotidiana. O jornalista perde a aura de herói e identifica-se, cada vez mais, como simples operário de um sistema de produção taylorizado.

Desde o começo do século XX, o ideal da objetividade vem sendo questionado sistematicamente pela filosofia e pelas ciências naturais. Mais tarde, a possibilidade de um retrato fiel do real pelas ciências sociais entra em choque com as `teorias construcionistas', que concebem uma realidade construída e objetivada socialmente.

A partir da década de 1960 será a vez do jornalismo colocar em xeque esse ideal. A nova era de subjetividade na imprensa, expressa pelo movimento do `novo jornalismo', é uma conseqüência direta à falta de confiança dos profissionais nas autoridades políticas. Segundo Daniel Hallin (1996:09), a insistência no jornalismo objetivo poderia significar uma certa passividade frente às versões oficiais:

Se na prática o jornalismo de informação asséptica significava conceber validade auto-evidente às declarações oficiais, parecia agora que estas podiam se converter em `inoperantes', tal e qual Nixon havia feito durante o Watergate; por isso, os jornalistas se sentiam atraídos a preencher esse vazio10 .

O declínio da objetividade é resultado também da busca por leitores mais jovens por meio da produção de notícias em formatos mais atrativos. É o que acontece, por exemplo, com os `tablóides televisivos' da imprensa norte-americana.

O surgimento do jornalismo representou a profissionalização da atividade de mediação (Correia, 1995). Mas o advento das novas mídias e o aumento de eficácia das assessorias de imprensa permite aos geradores de notícia uma comunicação direta com o público, sem o intermédio do jornalista. Essa nova situação induziria alguns teóricos (Neveu, 2002; Ramonet, 2001) a questionarem o papel do jornalista na sociedade.

Outra conseqüência desse processo é a mudança no status das fontes. Ao se tornarem entidades ativas, oferecendo aos jornalistas um imenso volume de informações, eles perdem a condição de `fontes' para se tornarem `produtores de notícias'. Submerso nesse dilúvio informativo o jornalista perde o espírito de iniciativa, antes intrínseco à sua imagem.

O jornalista como um intelectual

Uma terceira maneira de analisar o papel do jornalista na sociedade é de enquadra-lo como uma categoria de intelectuais. Nesse sentido, mantém-se o caráter mercantil da profissão que assume um novo papel nas sociedades contemporâneas.

Segundo Ortega e Humanes (2001), no atual estágio do capitalismo, o conhecimento se configura como uma categoria central que influencia todas as demais esferas sociais. O problema estaria na decadência das demais categorias intelectuais que deixaria um vácuo na produção e transmissão do saber. A influência da Igreja, por exemplo, se encontra em declínio desde o fim da Idade Média. Da mesma forma, o enfraquecimento da ideologia na sociedade contemporânea atingiu em cheio o ideal de intelectual engajado. Cientistas e acadêmicos produzem conhecimento, mas seriam incapazes de difundi-los fora do contexto midiático (Ortega e Humanes, 2001; Riefell, 1992).

Análise semelhante é feita por Sarro (1997) numa perspectiva ligada aos estudos culturais. Para ela, os intelectuais no sentido `clássico', detentores de um monopólio discursivo, calcado na diferença de saberes, estariam, agora, imersos numa rede, onde se sobressairiam técnicos e intelectuais ligados à comunicação de massa. A autora cita dois fatores que levaram ao fim desse monopólio, que diluiria a produção intelectual num ``pluralismo midiático'':

1º A ascensão dos saberes técnicos em detrimento dos saberes filosóficos-morais;

2º O fim das utopias políticas.

Nesse sentido, mídia ocuparia esse vácuo intelectual, estabelecendo uma relação comunitária de proximidade com o público. ``Ninguém mais próximo que eles de um senso comum coletivo que interpretam e, ao mesmo tempo, constroem, a cujas exigências atendem e a cujas inquietações interpretam sem deixar de doutriná-los'' (Sarro, 1997: 168). Os meios de comunicação assumiriam o papel de estabelecer um horizonte de referências culturais e modificar a estrutura da pauta cotidiana por meio da construção de uma realidade que vai além da representação (Ortega e Humanes, 2001).

Na verdade o jornalista nunca deixou de produzir um trabalho intelectual. Mas foi a partir de um processo de redistribuição da função intelectual na sociedade é que ele atinge este status. Como intelectual, o jornalista desempenha um papel decisivo na construção social da realidade, expresso na função do agenda-setting. Ao mesmo tempo, ele sistematiza a produção e distribuição da cultura a partir de princípios de conduta incontornáveis - as rotinas produtivas - que funcionariam à maneira dos paradigmas científicos (Ortega e Humanes, 2001).

Considerações finais: mas afinal, quem é o jornalista?

Neste artigo foram apresentadas diferentes visões do jornalista a forma como a sua identidade profissional se configura na sociedade. È difícil dizer que concepção mais se aproximaria do real. Por um lado, é inegável o impacto que a mercantilização da imprensa tem sobre o exercício profissional. Com o `jornalismo de mercado' a crença numa missão jornalística entra em conflito com a lógica empresarial. ``A empresa está explicitamente dizendo que uma porção dessa lealdade [dos jornalistas] deve ser dedicada a ela e aos seus acionistas - em vez de aos leitores, ouvintes ou espectadores'' (Kovach e Rosenstiel, 2003: 96). Por outro, o desempenho de um trabalho ditado pela lógica econômica-empresarial não exclui o compromisso com o público nem o exercício de uma função intelectual:

Apesar de desenvolver seu trabalho dentro de empresas, cada vez mais tipicamente representativas do capitalismo tardio, os jornalistas se movem uma direção que nem sempre é a mesma de suas empresas (...). Mesmo empregados em um circuito produtivo tipicamente capitalista, e apesar de que nele se introduziu a organização racional em múltiplos aspectos, os jornalistas continuam percebendo sua atividade como um serviço público destinado a fins extra-econômicos (Ortega e Humanes, 2001: 59-60)11 .

Na verdade, a evolução da identidade do jornalista não é linear, mas se forma a partir de um duplo discurso (ver Tabela 01) ``em que se entrecruzam a fala humanista e a fala tecnológico-metodológica'' (Ribeiro, 1994: 195). As identidades são fruto de condições históricas e institucionais específicas. Elas são formadas por um processo de diferenciação, de exclusão e não da criação de uma unidade idêntica, inteiriça e `sem-costuras' (Hall, 2000).

Portanto, ao traçar um painel das diferentes visões que o jornalista assume na sociedade, este artigo é incapaz de esgotar os estudos sobre este tema. Quem é o profissional jornalista? Uma resposta carece análises complementares que vão integrar outras abordagens de pesquisa.

Tabela 01


  Discurso Humanista: fase tradicional / ideológica Discurso tecnológico-metodológico: fase moderna
Caráter do discurso sobre o produto jornalístico Cultural Industrial
Status do jornalista junto à empresa Liberal Disciplina
Relação com os patrões Confiança Competência
Percepção do jornalismo no imaginário popular Jornalista como herói Jornalista como operário
Status do jornalista frente à sociedade Jornalista como uma figura pública Anonimato


Composição da identidade profissional do jornalista a partir do duplo nível de discurso. O primeiro nível representaria a fase tradicional e ideológica, o segundo, a fase moderna (Ribeiro, 1994).

As investigações realizadas pela tradição interacionista de estudos sobre sociologia profissional, por exemplo, vão abordar a fluidez do status do jornalista a partir da análise dos processos que vão desembocar na conquista de um monopólio profissional. Os estudos desenvolvidos na França por Denis Ruellan (1997) e no Brasil por Francisco Sant'Anna mostram como este processo resulta no estabelecimento de uma fronteira e de um processo de diferenciação social onde parte do grupo que exerce determinada atividade é excluída e marginalizada no processo de profissionalização. A outra parte, que atingiria o status de `profissionais de verdade', buscaria organizar o espaço de trabalho em benefício próprio.

Além disso, é necessário analisar as influência das práticas profissionais na identidade do jornalista12 . Na verdade, todos os conflitos de identidade apontados por este mapeamento refletem-se na forma como o jornalista produz as notícias. Para isso, é essencial integrar as pesquisas sobre as práticas jornalísticas (rotinas produtivas) e análise do conteúdo midiático aos estudos de sociologia profissional. Por fim, é preciso sistematizar conceitos e teorias de forma a compreender melhor quem é o jornalista e papel que ele desempenha na sociedade.

Bibliografia



Notas de rodapé

... Pereira1
Jornalista, Mestre em Comunicação / Jornalismo e Sociedade pela Universidade de Brasília e doutorando em Comunicação pela mesma universidade.
...flou2
Segundo a professora Zélia Adghirni, a palavra flou é bastante utilizada em fotografia e remete à idéia de ausência de nitidez.
... 124)3
Livre tradução de: ``fondamentalment, le journaliste n'est pas une activité fermée, aux frontiers établies (...) il se meut dans un espace aux limites fluids, aux pratiques métissées, aux mages de domaines voisins qui lui transferent des pratiques et des conceptions, et reçoivent de lui en échange''.
... inconsistente4
Na França, o status profissional de jornalista é outorgado pela CCIJP, uma comissão paritária, responsável pela concessão da cartre d'identité professionnelle.
... imprensa5
Praticamente não houve imprensa panfletária naquele país (a reportagem objetiva surge ainda durante a Guerra de Secessão). Foi a lógica empresarial quem contribuiu para a profissionalização forçada dos jornalistas, durante a década de 1820 com o advento da penny press.
...arios6
Livre tradução de: ``Se soponia que el periodismo há de servir al publico en su totalidad, y no a intereses particulares (habitual en el estilo de periodismo de campañas de apoyo del siglo XIX), ni tampoco a los estrechos objetivos comerciales de anunciantes y proprietarios. (Hallin, 1996: 2)
... acontecimentos7
No seu famoso livro Public Opinion, Walter Lippman (1922) critica este papel do jornalista como um construtor de ``pseudo-ambientes'' que funcionariam como ``atalhos'' para facilitar o entendimento da realidade pelo público. Segundo ele, as especificidades dos processos de produção noticiosa produziriam um relato distorcido da realidade.
... Stalin8
Livre tradução de: ``Steffens is intent on explanation. Salisbury is content with `getting the facts'. (...) Steffens is a public figure, and he tells us chapter after chapter how the political and business bosses of the great American cities confided in him and used him as a father confessor. Salisbury friends are journalists or poets or his own family, outsiders to the political struggles Salisbury chronicles. The image Steffens gives us is herat-to-herat talks with Teddy Roosevelt; the image Salisbury leaves us with is his waiting, alone or with other reporters, outside the Kremlin for news of Stalin''.
... imprensa9
Ver, por exemplo, o livro A Saga dos Cães Perdidos de Ciro Marcondes Filho.
... vazio10
Livre tradução de: ``Si en la pratica el periodismo de información acéptica significaba conceder validez autoevidente a las declaraciones oficiales, parecía ahora que estas podían convertirse en `inoperantes', tal y como Nixo había hecho durante el Watergate; por lo que los periodistas so sentian impulsador a llenar esse vacio''.
... 59-60)11
Livre tradução de: ``A pesar de desarrollar su trabajo dentro de empresas, cada vez más tipicamente representativas del capitalismo tardío, los periodistas se mueven en una dirección que no es del todo la misma de sus empresas (...). Aunque entregados en un circuito productivo tipicamente capitalista, y a pesar de que en él se há introducido la organización racional en múltiples aspectos, los periodistas, sin embargo, continúen percibiendo su actividad como un servicio público destinado a fines extraeconómicos'' (59-60).
... jornalista12
Um trabalho interessante sobre o assunto foi feito no livro `Sempre Alerta' de Jorge Cláudio Ribeiro, apontado a seguir na bibliografia deste artigo.