Fábio Henrique Pereira1
Neste atrigo teórico abordamos o jornalista enquanto profissão. O
estudo centra-se na transição da identidade profissional do
jornalista, de uma concepção romântica (jornalismo como
missão) ao agravamento do caráter empresaria da imprensa
(`jornalismo de mercado'). Durante a análise dessa transição,
foram destacadas aspectos econômicos, deontológicos e relativos
às práticas profissionais. O resultado desse estudo foi a capacidade
de situar o jornalismo enquanto profissão dentro de um duplo discurso
onde se entrecruzam elementos de um discurso humanista e tecnicista. A
partir desse painel identitário foi possível estabelecer
parâmetros para o estudo do jornalista como uma categoria de
intelectuais.
Palavras-chave: jornalista, sociologia profissional, identidade profissional.
O jornalismo é uma profissão ambígua e de difícil definição. Sob o seu nome se manifestam uma multiplicidade de funções, meios e formas discursivas distintas. Por isso, ``jamais a categorização do ou da jornalista dirá muita coisa sobre a profissão, suas mudanças e dilemas'' (Marcondes Filho, 2000: 53).
Esta diversidade, para Denis Ruellan (1993) beira ao ofuscamento, a ponto do autor utilizar o termo francês flou2, para caracterizar o profissional jornalista. Essa fluidez é um amálgama fundamental na supressão e redução dos antagonismos inerentes à profissão. ``Fundamentalmente o jornalista não é uma profissão fechada, de fronteiras estabelecidas (...) ele se move dentro de um espaço de limites fluidos, de práticas híbridas, às margens de áreas vizinhas que lhe transferem algumas práticas e concepções, e recebem dele em troca'' (Ruellan, 1997: 124)3.
Isso não significa que o estudo do jornalismo como profissão seja inviável. Na verdade, subjacente à fluidez deste status profissional há um sentimento de funcionalidade social que vai permear a construção identitária do jornalista. Mas que tipo de identidade ele, de fato vem assumindo na sociedade? E como isso vai afetar o cotidiano das redações, o savoir-faire diário dos jornalistas?
O objetivo deste artigo é entender o jornalismo sob a ótica da sociologia das profissões. A idéia é compreender a natureza profissional do jornalismo, suas relações com a sociedade e com os meios de comunicação. Para isso, a análise deve centrar-se na construção da identidade do jornalista por meio de um mapeamento das diversas funções/visões que o jornalista assume na sociedade. Ou seja, trabalhar a questão a partir de um modelo de análise que leve em conta as múltiplas representações da identidade profissional (Hall, 2000: 109). Este `painel identitário' se configura a partir da transição da visão romântica da profissão ao aprofundamento do caráter empresarial da imprensa, expresso na concepção de `jornalismo de mercado'. A forma como essa passagem afeta as representações sobre jornalista será discutida a seguir.
``Cães de guarda da sociedade'', ``princípio da responsabilidade social'', imprensa como o ``Quarto Poder''. Todas essas expressões estão ligadas ao ideário romântico do jornalismo. De acordo com essas concepções, o jornalista teria um status diferenciado das demais profissões. Ele estaria, por princípio, comprometido com a sociedade - que lhe delega o poder de fiscalizar as instituições em seu nome - e com os valores democráticos. Em seu livro `Elementos do Jornalismo', Bill Kovach e Tom Rosenstiel (2003: 22-23) elaboraram uma lista com nove itens fundamentais para o exercício da profissão e que ilustram bem esse espírito de missão:
A primeira obrigação do jornalismo é a verdade. 2. Sua primeira lealdade é com os cidadãos. 3. Sua essência é a disciplina da verificação. 4. Seus profissionais devem ser independentes dos acontecimentos e das pessoas sobre as que informam. 5. Deve servir como um vigilante independente do poder. 6. Deve outorgar um lugar de respeito às críticas públicas e ao compromisso. 7. Tem de se esforçar para transformar o importante em algo interessante e oportuno. 8. Deve acompanhar as notícias tanto de forma exaustiva como proporcionada. 9. Seus profissionais devem ter direito de exercer o que lhes diz a consciência.
De acordo com os autores, afastar-se desses princípios significaria o mesmo que desertar do jornalismo. Da mesma forma, Cremilda Medina (1982: 24) entende que a rejeição ao caráter especial da profissão representaria um certo complexo de inferioridade do jornalista que ainda ``não se convenceu de seu papel social e rejeita em bloco esse trabalho de estiva, de pequenos grãos de areia perdidos no deserto''.
A concepção da imprensa como um ``Quarto poder'' se vincula inicialmente aos processos de profissionalização do jornalismo no início do século XX. É esse processo que induz os jornalistas à busca por modelos profissionais (Medina, 1982). Na França, ela se consolida logo após a Primeira Guerra Mundial e é, antes de tudo, uma resposta da sociedade à falta de credibilidade da propaganda oficial junto à população. Assim, será outorgado à imprensa o direito e a responsabilidade de fiscalizar as instituições políticas em nome da sociedade francesa (Neveu, 2001).
É preciso destacar que o monopólio profissional do jornalista francês se estabelece de uma forma bastante inconsistente4. Por isso, as fronteiras que demarcam a identidade do jornalista francês são delimitadas a partir de uma cultura e de uma ética profissional, regidas principalmente pelo espírito de missão.
No Brasil, a profissionalização do jornalismo tem início durante o Estado Novo e só será concluída em 1969, com a aprovação da Lei de Imprensa. De certa forma, a forte ingerência estatal na organização profissional atrapalhou o desenvolvimento de um jornalismo romântico. Alguns pesquisadores, como o jornalista e professor Francisco Sant'Anna, chegam a questionar a existência deste tipo de jornalismo no País. Por outro lado, há vários exemplos na história da imprensa brasileira de campanhas jornalísticas marcados pelo comprometimento social. Manuel Carlos Chaparro (1993: 92) cita o caso da cobertura das `Diretas Já' em 1984, pela Folha de São Paulo. Este teria sido um momento em que o jornal ultrapassou sua instância mercadológica, tornando-se ``uma entidade social e cultural, carregada de emoções, alimentando processos complexos de comunicação com informação, análises e opiniões que podem mudar os rumos de povos e nações''.
Mesmo nos Estados Unidos, onde sempre preponderou a dimensão comercial da imprensa5, o jornalismo assume também sua concepção romântica. Os jornalistas, por exemplo, desempenharam, um papel de grande relevância na Era Progressista - período que compreende o final do século XIX e o início do XX, marcada pela reforma das instituições políticas norte-americanas. Mas foi a partir dos anos 50, graças aos esforços da Comissão para a Liberdade de Imprensa, que surgiu naquele país a Teoria da Responsabilidade Social no Jornalismo. A teoria é, antes de tudo, uma resposta à crescente concentração empresarial dos meios de comunicação norte-americanos. Por isso, ela instituiu diretrizes que vão orientar a atividade jornalística de forma a melhorar a qualidade da produção noticiosa e separá-la da necessidade de gerar lucros. ``Se supunha que o jornalismo deveria servir ao público em sua totalidade e não a interesses particulares (habitual no estilo de jornalismo panfletário do século XIX), nem, tampouco, aos estreitos objetivos comerciais de anunciantes e proprietários6'' (Hallin, 1996: 02).
É preciso destacar que os três países vão adotar tradições jornalísticas divergentes. Se, por um lado, os Estados Unidos - e mais tarde, o Brasil - enfatizam a produção de um jornalismo estritamente informativo, a tradição francesa deu preferência ao modelo interpretativo de imprensa. O ideal de responsabilidade social vai representar, contudo, um ponto de intersecção entre a tradição francesa e a tradição anglo-americana. Em comum, os dois modelos buscam uma politização da identidade profissional (Neveu, 2001; Weber, 1985), embora desvinculada dos conflitos partidários. A imprensa, concebida como `Quarto Poder', estaria comprometida apenas com o cidadão, com o interesse público. Por isso, a função do jornalista nas sociedades democráticas se assemelharia em alguns pontos com a do educador, responsável por impor uma certa claridade ao caos dos acontecimentos7 (Neveu, 2001).
A imagem do jornalista como mediador neutro, distante (e superior) aos jogos de interesse da sociedade, estaria subjacente ao ideal de objetividade na profissão. Segundo Moretzsohn (2002), é a partir desse ideal que os jornalistas vão preservar suas práticas profissionais das pressões políticas e econômicas. Sob discurso da objetividade, o jornalista aparenta o que não é (alguém que influencia os próprios acontecimentos) e assegura seu lugar como autoridade independente, capaz de fiscalizar os atos do governo perante a sociedade.
O mito do jornalismo objetivo é essencial para a compreensão da idéia de responsabilidade social do jornalista. É ele quem marca a passagem do jornalismo panfletário do século XIX para o `jornalismo profissional'. Michael Shudson (1995: 107-108) ilustra bem esse momento com um trecho de ``What is reporter?''. No artigo, Shudson analisa a biografia de dois mitos do jornalismo norte-americano, os repórteres Lincoln Steffens (1866-1936) e Harrison Salisbury (1908-1993). Segundo ele:
Steffens está interessado na explicação. Salisbury se contenta em ``conseguir os fatos'' (...) Steffens é uma figura pública, e ele nos conta capítulo após capítulo como os figurões da política e dos negócios nas grandes cidades americanas confiavam nele e usavam-no como um pai confessor. Os amigos de Salirbury são jornalistas ou poetas ou sua própria família, ``outsiders'' das lutas políticas relatadas nas suas crônicas. A imagem que Steffens nos dá é de conversas íntimas com Teddy Roosevelt; a imagem que Salisbury nos deixa é a dele esperando, sozinho ou com outros repórteres, fora do Kremlin, por notícias de Stalin8 .
Ou seja, sob a égide da objetividade, o repórter projeta a imagem de herói solitário, comprometido apenas com o interesse público e a transparência democrática. Salisbury obteve renome pela sua cobertura da Guerra do Vietnã. Acima dos interesses políticos e ideológicos de seu país, o que importava para ele era o relato `fiel' e `imparcial' da guerra.
Segundo Daniel Hallin (1996: 02), acreditou-se, por um bom tempo, que o modelo da responsabilidade social seria estável e permanente. Alguns jornalistas chegaram a considerá-lo uma ``evolução histórica natural'' da profissão. No entanto, sua influência efetiva nas práticas profissionais teria durado pouco mais de uma geração. Mudanças na estrutura das empresas jornalísticas e fatores político-culturais teriam levado à emergência do chamado `jornalismo de mercado'.
O período que compreende o final da década de 40 a meados da década de 70 representa o auge da Teoria da Responsabilidade Social nos Estados Unidos. Para alguns autores, esta seria a `idade de ouro' da imprensa9. A partir daí começa a ganhar força a idéia do jornalismo como uma profissão voltada exclusivamente para os interesses do mercado.
O `jornalismo de mercado' colocaria em xeque todo o ideal romântico que perpassa a profissão. De certa forma, há uma radicalização do caráter mercantil da imprensa, intrínseca à própria produção noticiosa. Essa radicalização é resultado de alterações não só no jornalismo, mas em toda estrutura social. A seguir, serão apontados alguns fatores responsáveis por essas mudanças. A análise parte de uma sistematização das discussões feitas por Daniel Hallin (1996); Allain Accardo (1998); Ciro Marcondes Filho (2000); Erik Neveu (2001); Ignacio Ramonet (2001) e Bill Kovach e Tom Rosenstiel (2003):
A partir da década de 70, a maioria dos grandes jornais norte-americanos lançaram suas ações na bolsa de valores. Com isso, aumentou a pressão pela busca de lucros e benefícios a curto prazo, restringindo a qualidade do veículo, ao mesmo tempo que aumentou o poder dos departamentos de marketing. Os processos de concentração e incorporação dos veículos por grandes empresas reduziram o jornalismo a um setor subsidiário dentro das corporações midiáticas. A submissão da imprensa à lógica empresarial alterou a pauta jornalística. As notícias sobre economia e política dão lugar à cobertura de assuntos mais vendáveis (`soft news') e com alto conteúdo emocional. O objetivo é a maximização do público:
A informação se tornou de verdade e antes de tudo uma mercadoria. Não possui valor específico ligado, por exemplo, à verdade ou à eficácia cívica. Enquanto mercadoria, ela está em grande parte sujeita às leis de mercado: da oferta e da demanda em vez de estar sujeita a outras regras, cívicas e éticas, de modo especial, que deveriam, estas sim, ser as sua. (Ramonet, 2001: 60).
É preciso destacar que, no Brasil, o processo de profissionalização das empresas jornalísticas não passou pelo mercado de ações. Segundo Ribeiro (1994: 114), ainda hoje a administração dos jornais é marcada pelo conflito entre o autoritarismo centralizador dos grupos familiares que controlam o jornal e a racionalidade de exigir metas e desempenhos profissionais. ``Enquanto a empresa transita entre dois estilos de gestão, impera um duplo discurso, ora com ênfase na confiança e no favor, ora na competência e na exigência''. Por isso, apesar da descentralização do poder e da contratação de executivos profissionais, ainda é forte o poder do dono do jornal no controle da empresa jornalística.
A influência da lógica comercial nas redações trouxe consigo a redução de custos na fabricação de notícias e um processo de precarização do mercado de trabalho. Na França, o número de pigistes (trabalhadores sem contrato permanente) aumentou de 8,5% em 1975 para 14,7% em 1990. Em 1999, a proporção já passava os 40%. A deterioração do mercado de trabalho traz um sentimento de resignação dos profissionais às condições impostas pelas empresas. Para se manter no emprego ou conseguir um melhor status, o jornalista se vê cada vez mais tentado a desrespeitar algumas regras morais e deontológicas da profissão (como à checagem sistemática das fontes ou o respeito à veracidade da informação).
Com isso, o texto jornalístico adquire um caráter cada vez mais instrumental, identificado com os interesses do mercado. O jornal é produzido como um manual para a vida cotidiana. O jornalista perde a aura de herói e identifica-se, cada vez mais, como simples operário de um sistema de produção taylorizado.
Desde o começo do século XX, o ideal da objetividade vem sendo questionado sistematicamente pela filosofia e pelas ciências naturais. Mais tarde, a possibilidade de um retrato fiel do real pelas ciências sociais entra em choque com as `teorias construcionistas', que concebem uma realidade construída e objetivada socialmente.
A partir da década de 1960 será a vez do jornalismo colocar em xeque esse ideal. A nova era de subjetividade na imprensa, expressa pelo movimento do `novo jornalismo', é uma conseqüência direta à falta de confiança dos profissionais nas autoridades políticas. Segundo Daniel Hallin (1996:09), a insistência no jornalismo objetivo poderia significar uma certa passividade frente às versões oficiais:
Se na prática o jornalismo de informação asséptica significava conceber validade auto-evidente às declarações oficiais, parecia agora que estas podiam se converter em `inoperantes', tal e qual Nixon havia feito durante o Watergate; por isso, os jornalistas se sentiam atraídos a preencher esse vazio10 .
O declínio da objetividade é resultado também da busca por leitores mais jovens por meio da produção de notícias em formatos mais atrativos. É o que acontece, por exemplo, com os `tablóides televisivos' da imprensa norte-americana.
O surgimento do jornalismo representou a profissionalização da atividade de mediação (Correia, 1995). Mas o advento das novas mídias e o aumento de eficácia das assessorias de imprensa permite aos geradores de notícia uma comunicação direta com o público, sem o intermédio do jornalista. Essa nova situação induziria alguns teóricos (Neveu, 2002; Ramonet, 2001) a questionarem o papel do jornalista na sociedade.
Outra conseqüência desse processo é a mudança no status das fontes. Ao se tornarem entidades ativas, oferecendo aos jornalistas um imenso volume de informações, eles perdem a condição de `fontes' para se tornarem `produtores de notícias'. Submerso nesse dilúvio informativo o jornalista perde o espírito de iniciativa, antes intrínseco à sua imagem.
Uma terceira maneira de analisar o papel do jornalista na sociedade é de enquadra-lo como uma categoria de intelectuais. Nesse sentido, mantém-se o caráter mercantil da profissão que assume um novo papel nas sociedades contemporâneas.
Segundo Ortega e Humanes (2001), no atual estágio do capitalismo, o conhecimento se configura como uma categoria central que influencia todas as demais esferas sociais. O problema estaria na decadência das demais categorias intelectuais que deixaria um vácuo na produção e transmissão do saber. A influência da Igreja, por exemplo, se encontra em declínio desde o fim da Idade Média. Da mesma forma, o enfraquecimento da ideologia na sociedade contemporânea atingiu em cheio o ideal de intelectual engajado. Cientistas e acadêmicos produzem conhecimento, mas seriam incapazes de difundi-los fora do contexto midiático (Ortega e Humanes, 2001; Riefell, 1992).
Análise semelhante é feita por Sarro (1997) numa perspectiva ligada aos estudos culturais. Para ela, os intelectuais no sentido `clássico', detentores de um monopólio discursivo, calcado na diferença de saberes, estariam, agora, imersos numa rede, onde se sobressairiam técnicos e intelectuais ligados à comunicação de massa. A autora cita dois fatores que levaram ao fim desse monopólio, que diluiria a produção intelectual num ``pluralismo midiático'':
1º A ascensão dos saberes técnicos em detrimento dos saberes filosóficos-morais;
2º O fim das utopias políticas.
Nesse sentido, mídia ocuparia esse vácuo intelectual, estabelecendo uma relação comunitária de proximidade com o público. ``Ninguém mais próximo que eles de um senso comum coletivo que interpretam e, ao mesmo tempo, constroem, a cujas exigências atendem e a cujas inquietações interpretam sem deixar de doutriná-los'' (Sarro, 1997: 168). Os meios de comunicação assumiriam o papel de estabelecer um horizonte de referências culturais e modificar a estrutura da pauta cotidiana por meio da construção de uma realidade que vai além da representação (Ortega e Humanes, 2001).
Na verdade o jornalista nunca deixou de produzir um trabalho intelectual. Mas foi a partir de um processo de redistribuição da função intelectual na sociedade é que ele atinge este status. Como intelectual, o jornalista desempenha um papel decisivo na construção social da realidade, expresso na função do agenda-setting. Ao mesmo tempo, ele sistematiza a produção e distribuição da cultura a partir de princípios de conduta incontornáveis - as rotinas produtivas - que funcionariam à maneira dos paradigmas científicos (Ortega e Humanes, 2001).
Neste artigo foram apresentadas diferentes visões do jornalista a forma como a sua identidade profissional se configura na sociedade. È difícil dizer que concepção mais se aproximaria do real. Por um lado, é inegável o impacto que a mercantilização da imprensa tem sobre o exercício profissional. Com o `jornalismo de mercado' a crença numa missão jornalística entra em conflito com a lógica empresarial. ``A empresa está explicitamente dizendo que uma porção dessa lealdade [dos jornalistas] deve ser dedicada a ela e aos seus acionistas - em vez de aos leitores, ouvintes ou espectadores'' (Kovach e Rosenstiel, 2003: 96). Por outro, o desempenho de um trabalho ditado pela lógica econômica-empresarial não exclui o compromisso com o público nem o exercício de uma função intelectual:
Apesar de desenvolver seu trabalho dentro de empresas, cada vez mais tipicamente representativas do capitalismo tardio, os jornalistas se movem uma direção que nem sempre é a mesma de suas empresas (...). Mesmo empregados em um circuito produtivo tipicamente capitalista, e apesar de que nele se introduziu a organização racional em múltiplos aspectos, os jornalistas continuam percebendo sua atividade como um serviço público destinado a fins extra-econômicos (Ortega e Humanes, 2001: 59-60)11 .
Na verdade, a evolução da identidade do jornalista não é linear, mas se forma a partir de um duplo discurso (ver Tabela 01) ``em que se entrecruzam a fala humanista e a fala tecnológico-metodológica'' (Ribeiro, 1994: 195). As identidades são fruto de condições históricas e institucionais específicas. Elas são formadas por um processo de diferenciação, de exclusão e não da criação de uma unidade idêntica, inteiriça e `sem-costuras' (Hall, 2000).
Portanto, ao traçar um painel das diferentes visões que o jornalista assume na sociedade, este artigo é incapaz de esgotar os estudos sobre este tema. Quem é o profissional jornalista? Uma resposta carece análises complementares que vão integrar outras abordagens de pesquisa.
Discurso Humanista: fase tradicional / ideológica | Discurso tecnológico-metodológico: fase moderna | |
Caráter do discurso sobre o produto jornalístico | Cultural | Industrial |
Status do jornalista junto à empresa | Liberal | Disciplina |
Relação com os patrões | Confiança | Competência |
Percepção do jornalismo no imaginário popular | Jornalista como herói | Jornalista como operário |
Status do jornalista frente à sociedade | Jornalista como uma figura pública | Anonimato |
As investigações realizadas pela tradição interacionista de estudos sobre sociologia profissional, por exemplo, vão abordar a fluidez do status do jornalista a partir da análise dos processos que vão desembocar na conquista de um monopólio profissional. Os estudos desenvolvidos na França por Denis Ruellan (1997) e no Brasil por Francisco Sant'Anna mostram como este processo resulta no estabelecimento de uma fronteira e de um processo de diferenciação social onde parte do grupo que exerce determinada atividade é excluída e marginalizada no processo de profissionalização. A outra parte, que atingiria o status de `profissionais de verdade', buscaria organizar o espaço de trabalho em benefício próprio.
Além disso, é necessário analisar as influência das práticas profissionais na identidade do jornalista12 . Na verdade, todos os conflitos de identidade apontados por este mapeamento refletem-se na forma como o jornalista produz as notícias. Para isso, é essencial integrar as pesquisas sobre as práticas jornalísticas (rotinas produtivas) e análise do conteúdo midiático aos estudos de sociologia profissional. Por fim, é preciso sistematizar conceitos e teorias de forma a compreender melhor quem é o jornalista e papel que ele desempenha na sociedade.