Marco Schneider




Música e capital midiático
Introdução a uma crítica da economia política do gosto




Universidade Federal do Rio de Janeiro
2003


Índice



Dissertação submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação (ECO) - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre, sob orientação da Professora Heloísa Buarque de Hollanda.



``E vós me dizeis, amigos, que de gostos e sabores não se discute? Mas a vida inteira é uma discussão de gostos e sabores! O gosto: é, ao mesmo tempo, peso, balança e pesador; e ai de todo vivente que quisesse viver sem discutir de peso e balança e pesadores!''

(NIETZSCHE, 1986, p. 129.)



Introdução

``... assi vay alternando o tempo iroso O bem co mal, o gosto co a tristeza''

Camões, Lusíadas, IV, 51


No princípio (1892)1, a companhia fonográfica limitava-se a reproduzir e a pôr em circulação as músicas que as pessoas produziam e gostavam. Hoje (2003), as pessoas parecem se limitar a reproduzir e a gostar das músicas que a companhia fonográfica produz, reproduz e, junto ao rádio e à tv, põe em circulação.2 Ocorre que a companhia fonográfica, o rádio e a tv não baseiam suas operações em juízos de gosto, mas em juízos contábeis. Deu-se, pois, uma inversão, e o gosto tornou-se matéria de juízo contábil. Esta pesquisa consiste em uma análise e em uma crítica desta inversão.

A primeira relação entre a indústria cultural e os gostos musicais converteu-se ao longo de um século na segunda, aparentemente em um espaço social definido: o mercado. O mercado é a superfície idílica do modo de produção capitalista, onde se dá a troca livre de mercadorias - trabalho por dinheiro, dinheiro por coisas produzidas - entre indivíduos livres.

Observando-se esta superfície vibrante, pode-se objetar nosso postulado de que teria havido uma inversão, responsável pela subordinação do gosto das pessoas aos juízos contábeis da indústria cultural. Afinal, ninguém há de negar que, embora a companhia fonográfica, o rádio e a tv produzam e veiculem coisas para serem vendidas, para que o sejam devem satisfazer o gosto do público. Além disso, não é o departamento financeiro das empresas, mas os músicos e cantores, livremente contratados, quem efetivamente produz as músicas, em cooperação com produtores musicais - cujo auxílio, aliás, tem-se tornado cada vez mais inestimável - engenheiros e técnicos de som. Quanto ao público, enfim, no mercado cada um é livre para gostar do que quiser, segundo o seu próprio juízo.

Sob esta superfície, porém, ocultam-se as relações reais de produção, bem menos idílicas. É portanto nos subterrâneos da produção, uma região à qual o público não tem acesso, que a objeção mostra-se falsa. Porque se em um momento inicial a seleção e a estrutura formal do que seria produzido (registrado), reproduzido (serializado) e posto em circulação (publicizado comercialmente) era diretamente orientada pelos imperativos do gosto dos artistas e do público, os quais se formavam em meio a todo um conjunto de práticas intersubjetivas pré-midiáticas, o showbusiness mostrou-se tão lucrativo em um momento seguinte que a seleção e a estrutura formal dos produtos, e conseqüentemente o gosto dos artistas e do público, passaram aos poucos a ser orientados pelos imperativos econômicos da produção, até o paroxismo de hoje.3 Afirmar que estes imperativos coincidem com o ``gosto popular'' é, na melhor das hipóteses, uma tautologia, pois só se pode gostar ou não do que se conhece, e, na esmagadora maioria dos casos, na atualidade, só se conhece as músicas que a indústria cultural produz, reproduz e põe em circulação. Quem, por outro lado, tem acesso a outras fontes de informação e de formação que não os meios de comunicação massivos - sejam as academias, as tradições populares ou as vanguardas -, tende a expressar juízos de gosto consideravelmente distintos do chamado ``gosto popular'', que permeia o discurso populista da indústria cultural, embora ambos os juízos possam pontualmente coincidir.

Mas como se efetuou, na prática, a inversão que postulamos ter ocorrido? Ora, se o gosto não é um dado acabado, mas um processo, uma formação socialmente mediada, e se esta formação reproduz, em cada sociedade, em última instância, ainda que de modo indireto e complexo, isto é, não linear, mecânico, automático, os imperativos econômicos contraditórios que a regem (é a idéia que defenderemos aqui), o aumento da importância econômica da produção musical industrializada relaciona-se antes de mais nada com o crescimento intensivo das concentrações urbanas durante o século XX em todo o mundo,4 que promoveram contatos, afecções, conflitos e miscigenações entre tradições culturais locais pré-urbanas distintas deslocadas espacialmente, o que implicou, por um lado, em notáveis possibilidades de enriquecimento e renovação formais destas tradições, e por outro, contraditoriamente, na configuração de um quadro social passível de aniquilá-las em sua capacidade de desenvolvimento e em sua diversidade criativa, através da formação de novos gostos comuns massivos determinados pelos imperativos ideológicos e, sobretudo, contábeis da indústria cultural.

Para que se compreenda este fenômeno deve-se ter em conta, conforme ensina Martin-Barbero, que

``o que se passa na cultura quando as massas emergem não é pensável a não ser em articulação com as readaptações da hegemonia, que, desde o séc. XIX, fazem da cultura um espaço estratégico para a reconciliação das classes e a reabsorção das diferenças sociais.'' (Martin-Barbero, 1997, p.191)

Se por ``readaptações da hegemonia'' entendemos reconfigurações de relações sociais de poder, e se aceitarmos a hipótese de que este poder é em última instância determinado pela posição econômica que os sujeitos ocupam em meio à luta de classes, isto significa necessariamente ter em foco o sujeito degustante como sujeito econômico, isto é, sujeito que produz e consome, e a forma específica como ele produz (ou seja, a posição que ocupa em meio às relações de trabalho) é a condição que determina antes de mais nada o quê e como consome - em outras palavras, que determina seu papel em meio a estas readaptações.5

Paralelamente ao fato de a cultura ter se tornado ``um espaço estratégico para a reconciliação das classes e a reabsorção das diferenças sociais'', a ``emergência das massas urbanas'' mostrou-se também uma magnífica promessa de ganho de escala para a emergente indústria cultural, em primeiro lugar porque, dispondo-se de vultoso capital para investir em produção e promoção, é mais lucrativo serializar e pôr em circulação em larga escala uma mesma matriz (fonográfica, gráfica, vídeo-digital) do que serializar e promover em escalas mais modestas matrizes diversas, da mesma forma que

``(...) custa menos trabalho construir uma oficina para 20 pessoas do que 10 oficinas, cada uma com capacidade para 2 pessoas (...) Por isso, diminui a porção de valor do capital constante [instalações, maquinaria e matérias-primas] que se transfere a cada produto isolado e na proporção dessa queda cai o valor global da mercadoria.'' (Marx, 1982, p. 373)

Em segundo lugar, tudo indica que, repetindo-se ad infinitum a fórmula de sucesso consagrada, ou variando-a de modo epidérmico, e com o auxílio luxuoso de um imenso aparato de propaganda, minimiza-se os riscos de rejeição por parte do consumidor, o que não representa propriamente uma preocupação fraternal por parte do investidor com a satisfação íntima ou com a formação estética do público, mas uma preocupação exclusiva em minimizar os riscos e maximizar os lucros do investimento. A indústria contemporânea apenas radicalizou o processo em escala global. O mesmo vale para a indústria cultural.

Todavia, pode-se aqui novamente objetar que, pelo contrário, a indústria capitalista caracteriza-se pelo imperativo da novidade, tendência que vem se intensificando ultimamente, com a obsolescência planejada dos produtos.6 Ora, mas isto, ao menos no que tange à música produzida na indústria cultural, raramente é conseqüência de novidades orgânicas (isto é, de renovações formais diretamente devidas a experiências orientadas por imperativos estéticos e/ou ao esgotamento de possibilidades formais existentes), mas, sobretudo hoje, 1) de uma superprodutividade acelerada, expressão da ebulição caótica das forças produtivas e de uma pressão concorrencial titânica, que motiva a corrida enlouquecida entre os monopólios transnacionais, compostos pelas cada vez menos numerosas empresas pantagruélicas sobreviventes e reinantes, para transformar dinheiro (D) em mais dinheiro (D', isto é, capital), e 2) da previsível saturação dos e da busca por novos (e moribundos) mercados, devido à desaceleração da economia mundial. Em outras palavras, assim como a repetição, a novidade permanece em última análise determinada por imperativos econômicos.

Como conseqüência deste processo, ao se privilegiar a veiculação massiva de algumas poucas fórmulas em detrimento de uma imensa variedade de outras, existentes e potenciais, bloqueia-se a socialização de uma infinidade de experiências formais, que permanecem restritas ao âmbito dos músicos e dos circuitos marginais à mídia, sejam espaços de elite, sejam espaços populares, ou simplesmente desaparecem. Seu desaparecimento tem ainda duas outras conseqüências possíveis: leva consigo o conteúdo existencial concreto que veiculavam, ou o emudecem.

Insistimos, portanto, que o crescente valor econômico atingido pela música ao longo do século XX operou, seja de uma perspectiva estética, político-revolucionária ou simplesmente humanista, uma inversão de prioridades, tendo os imperativos do gosto dos artistas e dos públicos sido subordinados aos imperativos econômicos da indústria cultural.7 E a indústria cultural - seu capital, suas máquinas, suas redes de informação, suas equipes de trabalho, seus lobbies políticos, sua razão social, suas concessões ``públicas'', seus jabás,8 enfim, seus meios de produção e seu aparato jurídico formal e informal - não pertence aos artistas ou ao público, mas à classe capitalista.9 Ora, se, como sugerimos, o gosto é uma formação socialmente mediada, podemos desde já concluir que os donos da indústria cultural detém atualmente a hegemonia desta mediação. Não que estes senhores conspirem no sentido de impor a todos o seu gosto pessoal, o qual, aliás, pouco interfere no processo - e este descritério também caracteriza a irracionalidade do modelo: os gostos de todos, inclusive os do próprio capitalista, são subordinados, nas práticas da indústria cultural, aos imperativos da auto-expansão do capital.

Voltemos então ao nosso postulado original e sigamos as etapas através das quais se procedeu esta inversão subterrânea, evidentemente estúpida, entre a primazia dos juízos de gosto e dos juízos contábeis na produção musical do século XX; investiguemos como a música adquiriu, na sociedade de consumo contemporânea, a mesma dupla natureza das demais mercadorias: seu valor de uso e seu valor de troca. Procurarei ainda demonstrar de que forma o valor de troca foi gradualmente, graças ao desenvolvimento da indústria cultural, erigida porta-voz do capital, tornando-se a natureza predominante da música, enquanto seu valor de uso, que pertence à ordem do prazer, como conseqüência desta inversão, gerou um gosto social de contornos nitidamente fetichistas.10

Ouço desta vez nova e aflita objeção dos meus contemporâneos ultra-liberais: ``E daí? Que direito tem alguém de julgar as formas que as pessoas escolhem para obter prazer?''

Dito desta maneira, realmente ninguém deve atribuir-se tal direito, a não ser que se trate de um sectário em estética ou de um moralista empedernido. Afinal, que o fetichista obtém prazer de sua prática, parece não haver dúvidas, e se ainda por cima esta prática for inofensiva a ele mesmo e aos outros, concordamos piamente que ninguém tem nada a ver com isso. Mas a objeção está mal formulada. Porque 1) o fetichista não escolhe as formas com as quais obtém prazer, sendo, antes, por assim dizer, escolhido por elas, e 2) não se trata de criticar alguma idiossincrasia individual, mas um padrão social historicamente determinado.

Em outras palavras, não pretendemos elaborar uma crítica à liberdade subjetiva, mas uma crítica em nome de uma liberdade intersubjetiva possível. Nesse sentido, e lembrando que essa crítica não possui propósitos normativos de ordem moral ou estética, faz-se importante identificar as características desse prazer fetichista socialmente hegemônico.

A relevância da questão, aparentemente irrelevante a não ser para quem vive da música - afinal, o que importa quais são as músicas que as pessoas gostam ou não? -, baseia-se na hipótese de o capitalismo turbinado, após haver colonizado o tempo, o corpo e boa parte das idéias das pessoas, em seu estágio atual tender a exercer, com o mais do que nunca eficiente auxílio da indústria cultural, um controle monopolista da maior parte de suas mais íntimas atividades sensórias e cognitivas, bem como de suas referências intersubjetivas, e isto é grave, pois, como observou Bourdieu,

``uma aderência imediata, no nível mais profundo do habitus, aos gostos e desgostos, às simpatias e aversões, às fantasias e fobias é o que forja, mais do que opiniões declaradas, a unidade inconsciente de uma classe.'' (Bourdieu, 2000, p.77)

A indústria cultural busca reger o concerto caótico dessas ``aderências'' na atualidade - e obtém imenso sucesso na empreitada, embora não um sucesso total -, não só através de uma seleção orientada por imperativos predominantemente contábeis do que é veiculado (disfarçada pelo conceito fetiche de um fantasmático ``gosto popular''), não só através da repetição incessante e da propaganda, mas sobretudo ao confundir, na pseudo-aura midiática, os conflitos intra e entreclassistas, borrando as fronteiras concretas das variadas experiências de vida num jogo simbólico comum sem lastro em experiências comuns. E não se trata de um jogo que estimule o raciocínio e o senso crítico, muito menos de um jogo encantatório, mas de uma edição tendencialmente reacionária da realidade, que atua no sentido de reproduzir e legitimar no imaginário coletivo as relações de poder vigentes.

Se, por outro lado, julgamos fundamental que se leve em conta que são os diferentes lastros na experiência concreta que asseguram leituras distintas dos mesmos produtos simbólicos, e que o que é selecionado para ser reproduzido e posto em circulação, apesar de excludente (o que é inevitável em uma seleção), atende, de alguma forma, a alguma demanda existente (que não é todavia fruto do ``gosto popular'' como expressão ``natural'' da alma popular, mas da formação dos consumidores, determinada por sua posição em meio às relações de trabalho), por outro lado julgamos ainda mais importante identificar a espantosa unidade de aprovação social, ainda que sob leituras transversais, dos mesmos discursos e gostos hegemônicos. Em outras palavras, o fato de haverem leituras distintas de, por exemplo, um conjunto de discursos políticos ou religiosos, de canções ou de telenovelas, não anula um outro fato a nosso ver mais relevante: é somente este conjunto, e não outros existentes, que é posto em circulação. Por quê? Por que é o que o ``povo'' gosta? Mas quem é o ``povo''? E, seja quem for, quem garante que não gostaria de outras coisas? E o que significa ``gostar''?

Julgamos estas questões pertinentes, pois a tendência que identificamos na atualidade é o massacre da diversidade concreta sob o peso da unidade fetichista, é o achatamento das transversalidades significantes e ativas num quiproquó idólatra passivo.

Fundamentos Teóricos

Em linhas gerais, o eixo central da minha aposta teórica consistiu no esforço de interpretar as possíveis relações entre 1) a produção e a reprodução social de gostos e juízos de gosto, 2) a indústria cultural e 3) o capitalismo no século XX, à luz de alguns conceitos-chave da crítica da economia política de Karl Marx (mais-valia absoluta e relativa, luta de classes, valor de uso e valor de troca, trabalho abstrato, produção, reprodução, circulação e consumo, fetichismo, ideologia, determinação em última instância da estrutura sobre a superestrutura), bem como de outros autores de orientação marxista, como Lenin (imperialismo, monopólios, capital financeiro), Gramsci (hegemonia, antecedência dos fatores econômicos sobre os políticos e ideológicos, passagem complexa da estrutura para a superestrutura, materialidade da superestrutura), Benjamin (aura, reprodutibilidade técnica), Althusser (aparelhos ideológicos de estado, sobredeterminação) e Kurz (definição do capitalismo como ``sociedade produtora de mercadorias'', seja qual for a superestrutura política). Não nos limitamos, porém, a estes autores, considerando igualmente a contribuição de alguns estudos fundamentais, de filiação teórica distinta, sobre o capitalismo e/ou sobre a cultura, entre os quais destacamos ``A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo'' (Weber), ``O Futuro de uma Ilusão'' e ``O Mal Estar na Civilização'' (Freud), ``El totemismo en la actualidad'' (Lévi-Strauss), ``Apocalípticos e Integrados'' (Eco), e ``A Economia das Trocas Simbólicas'' e ``As Regras da Arte'' (Bourdieu). Paralelamente, um insight referente ao tema bíblico do ``fruto proibido'', da ``árvore do conhecimento'' e da condenação do homem ao trabalho, originado de uma reflexão sobre o conceito gosto, reorientou a pesquisa para o campo da erudição judaica (Maimônides, Kook, Buber, Scholem, Blank), o que, milagrosamente, não entrou em conflito com a orientação materialista da pesquisa original, enriquecendo-a para além do esperado. Algumas obras referentes à crítica, à história, à sociologia e à psicologia da música e da indústria cultural, como as de Adorno e Horkheimer, Della Volpe, Hobsbawn, Norbert Elias, Attali, Tinhorão, Sérgio Cabral, Márcia Tosta Dias e Jourdain forneceram subsídios indispensáveis para o desenvolvimento da pesquisa. Busquei ainda em enciclopédias de filosofia outras referências ao tema gosto, que demonstraram ser a bibliografia que trata do assunto, senão inesgotável, mais vasta do que eu supunha, de modo que me vi forçado a elencar, entre os autores que trabalharam mais diretamente com a questão, aqueles a que tive acesso e pude estudar em tempo hábil, entre os quais destacam-se Voltaire (Dictionnaire Philosophique), Hume (Of the Standard of Taste e Of the Delicacy of Taste and Passion), Rousseau (Ensaio sobre a origem das línguas), Kant (Crítica da Faculdade do Juízo), Bourdieu (Distinction: a social critique of the judgement of taste), Agamben (Gosto) e Luc Férry (Homo Aestheticus: a invenção do gosto na era democrática). A isto acrescente-se a farta literatura utilizada nos cursos de comunicação social (graduação e mestrado) da ECO, referente às teorias e discussões interdisciplinares dos media e da prática comunicacional em geral, bem como seus desdobramentos críticos, ancorados na filosofia, na sociologia, na antropologia, na psicanálise, na lingüística e na estética, com destaque para a área dos chamados ``estudos culturais'' (Martin-Barbero, Canclini, Hall, Williams, Jameson, Larrain etc.).

O ponto de partida desta pesquisa foi a simples questão: o que se escreveu sobre o gosto em filosofia, sociologia e estética? O artigo Gosto, de Giorgio Agamben,1.1 merece aqui um destaque especial, não só por suas ricas indicações bibliográficas, mas sobretudo por revelar, na etimologia do termo, uma fértil e sedutora aproximação entre as noções saber / sabor, a qual norteou todo este trabalho, conduzindo, esperamos, a uma contribuição para uma alternativa crítica da indústria cultural, entendida como porta-voz do capital e mediadora hegemônica dos gostos (dos saberes e sabores) musicais, entre outros, na contemporaneidade.

Deixamos registrada a sugestão da pertinência de uma comparação posterior dos pressupostos e inferências aqui apresentados com dados históricos concretos mais extensos e minuciosos do que os que pudemos levantar,1.2 por limitação de tempo e de recursos mas, sobretudo, por termos dedicado a maior parte do nosso empenho no esforço de elaboração de um quadro teórico coerente e conceitualmente rigoroso, capaz de permitir uma análise ulterior dos fatos que não se limite a registrá-los.

No que diz respeito a este quadro teórico, e de certo modo tomando partido em meio à velha e acirrada polêmica entre ``apocalípticos e integrados''1.3 que, ainda hoje, permanece na pauta dos estudos em comunicação, nos parece útil explicitar desde já as razões que nos levaram a optar pelo conceito indústria cultural, ou indústria cultural turbinada, em detrimento de cultura de massas ou tecnocultura:

  1. uma cultura de massas só tornou-se historicamente viável e só pôde desenvolver-se em larga escala como resultado de um determinado modo de produção, o modo de produção capitalista, baseado na produção industrial; a expressão ``cultura de massas'' sugere um cultura produzida pelas massas, não para as massas, deslocando-as magicamente da esfera do consumo, onde exercem influência direta, para a da produção, onde exercem influência indireta; ademais, o próprio conceito ``massas'', assim como ``povo'', é excessivamente genérico e problemático, borrando as fronteiras entre as classes em conflito e banalizando a dinâmica complexa deste conflito;

  2. o termo tecnocultura, por sua vez, privilegia o aspecto técnico ou tecnológico do modo de produção capitalista contemporâneo, descolando-o, como o conceito ``cultura de massas'', de seu caráter necessariamente industrial, ou seja, de sua base econômica, na medida em que capitalismo só é possível se houver grande quantidade de capital na posse de poucas pessoas, investida em meios de produção (tecnologia aplicada, capital constante) e em grande quantidade de força de trabalho humana (capital variável) alienada (expropriada) dos meios de produção, trabalhando sob às ordens de um capitalista ou de um grupo de capitalistas (ainda que a indústria pertença a alguma burocracia estatal, estará representando, no caso, o capitalista, como bem demonstrou Kurz em O Colapso da Modernização). A técnica e a tecnologia são parte deste complexo industrial, não o contrário. Sua função - não eterna, supra-histórica, mas no modo de produção capitalista - é aumentar a produtividade das coisas em sua qualidade de suportes da autoreprodução do capital, aumentando a taxa de mais-valia relativa.1.4 A técnica em si não pode ser diretamente responsável pelos sucessivos fracassos (ou pelos sucessos) do modelo, pois, como pondera Kurz, ``por que depois que inventaram as máquinas as pessoas têm que trabalhar mais [ou serem atiradas ao desemprego] do que antes da existência delas?'' O próprio Kurz fornece a resposta: não é por causa das máquinas em si, mas pela tautologia do capital em seu movimento de autoreprodução contínua; em outras palavras, as máquinas - e as pessoas - têm que produzir, sem parar, mercadorias para um mercado, ou sua existência não se justifica. Isso só ocorre no modo de produção capitalista, ou sistema produtor de mercadorias, baseado na produção industrial. O termo tecnocultura tende a sugerir uma autonomia fantasmática da tecnologia e da técnica, descolada de sua base econômica, o que mascara a questão do modo de produção que a criou tal qual nós a conhecemos e no qual é aplicada, e isto seria um grave desvio para uma perspectiva crítica. Afinal, como diz o mesmo Kurz, as máquinas poderiam ser ligadas ou desligadas ao bel prazer da vontade e das necessidades humanas. O que impede que isso ocorra é o modo de produção capitalista, baseado na autoreprodução automática do capital, cujo meio é a exploração de mais-valia na produção industrial privada (conforme definimos acima).

Quanto ao argumento da superação da sociedade industrial, concordamos com a posição de Fiori:

``Existe uma e só uma tese econômica ou histórica em que se baseia todo o edifício ideológico liberal-conservador dos anos 1990. A mesma que depois se transformou na pedra angular da ``terceira-via'' social-democrata. Para ambos ocorreu, no último quartil do século 20, uma revolução tecnológico-informacional que mudou radicalmente a economia e a sociedade capitalistas. Como resultado, a velha economia industrial teria cedido lugar a uma ``nova economia'', baseada nos serviços, e a uma sociedade onde o trabalho teria perdido sua centralidade. No seu lugar estaria nascendo uma sociedade em que as relações de classe seriam substituídas por redes horizontais e comunicativas, cada vez mais extensas, envolventes e democráticas.

Fim do trabalho ou reestruturação conservadora do capital?

Todas as grandes revoluções tecnológicas que mudaram o rumo e a velocidade da expansão do capitalismo passaram invariavelmente por modificações qualitativas no campo das comunicações. E ninguém pode desconhecer a natureza espetacular da mudança ocorrida - depois de 1970 - no campo da microeletrônica, dos computadores e da telecomunicação, assim como seu impacto no funcionamento dos mercados financeiros e das ``auto-estradas'' de informação. Mas não há nenhuma evidência de que estas modificações tenham alterado as relações sociais e as leis básicas e de longo prazo do sistema capitalista. Hoje, um terço da força de trabalho mundial - algo em torno de um bilhão de pessoas - está sem emprego, mas não vive em ``cabanas eletrônicas'', não está no ``setor de serviços'' nem se dedica, aparentemente, ao ócio criativo. Pelo contrário, o que as estatísticas mostram é que esses milhares de desempregados seguem ligados ao mesmo ``paradigma do trabalho'', só que agora como trabalhadores precarizados, terceirizados ou subcontratados, com direitos cada vez mais limitados e cada vez mais alheios ao mundo das organizações sindicais. Uma transformação social gigantesca, mas que não foi o resultado natural, nem muito menos benéfico, das novas tecnologias informacionais. Foi, em grande medida, o resultado de uma reestruturação política e conservadora do capital, em resposta à perda de rentabilidade e governabilidade que enfrentou durante a década de 1970.

Nesse sentido, quando os teóricos do ``pós- industrialismo'' decretam o ``fim do trabalho'', estão olhando apenas para os números que indicam a redução do peso relativo do emprego industrial na estrutura ocupacional. Mas mesmo aí, as evidências são de que a mudança vem se dando de forma extremamente desigual entre os diferentes países. Se é possível dizer que o emprego vem crescendo mais rapidamente no setor de serviços, nos Estados Unidos, Inglaterra e Canadá, o mesmo não se pode dizer com relação ao Japão, Alemanha, França ou mesmo na Itália. Para não falar do caso da periferia latino-americana, onde a destruição dos empregos industriais foi obra de uma política econômica ultraliberal que promoveu de forma explícita e estratégica a desindustrialização e o aumento do desemprego estrutural, independente de qualquer tipo de revolução informacional.1.5

Ademais, as grandes instalações fabris, com seu exército de operários, maquinaria pesada e produção em série, que formaram a imagem dominante do que entendemos por ``produção industrial'' durante os últimos duzentos anos, não constituíam a essência da produção industrial capitalista; na realidade, o que a caracteriza essencialmente não é propriamente este quadro (historicamente datado, talvez), mas o fato de os meios de produção (sejam quais forem) pertencerem ao capital e a força de trabalho (seja qual for) estar a ele subordinada, em um universo produtivo de larga escala. Assim, a pulverização planetária de muitas das antigas ``cidades industriais'', a terceirização, as redes produtivas globais decentralizadas (só em termos espaciais, pois o capital concentra-se cada vez mais em menos mãos, apesar do ``fluxo'') etc. significam antes uma reconfiguração da produção industrial (que, aliás, alimenta o setor de serviços) - baseada na produção serial em larga escala, estando os meios de produção (instalações, homens e máquinas) sob propriedade de pequenos grupos de capitalistas - do que o seu fim. O mesmo vale para a produção de bens simbólicos em escala massiva, que requer um modo de produção industrial, do qual a técnica é apenas uma parte, embora uma parte essencial.

Por estas razões, optamos pelo conceito ``Indústria Cultural'' (turbinada, quando nos referimos ao presente) ao invés de cultura de massas ou tecnocultura mais do que para destacarmos certa filiação política e teórica, para evitar tomar o efeito pela causa e a parte pelo todo. No Brasil, ainda por cima, quanto à tecnocultura, pela gritante disparidade quantitativa entre os consumidores da indústria cultural tradicional (rádio, tv, cds) e os usuários da internet.

Sabemos que diversos autores vêm minimizando, nas últimas décadas, seu suposto poder manipulatório. Afirmam, com razão, que os consumidores, ou cidadãos (dá no mesmo?), são menos submissos, e mais ativos e criativos do que julgava Adorno. Não obstante, defendemos que, justiça seja feita, a teoria crítica de Frankfurt permanece útil para a compreensão das práticas comunicacionais contemporâneas, se deixarmos de lado:

  1. a falta de visão de Adorno para os vetores contra- hegemônicos existentes na cultura popular (``falta de visão'' parcialmente justificável em face da imensa adesão popular ao terror nazista em seu tempo, em grande parte devida ao poder manipulatório do rádio e do cinema sob controle nazista), fora e dentro da indústria cultural, e

  2. seu racionalismo etnocêntrico, que o tornava incapaz de distinguir determinado jazz de música barata,1.6 mas sobretudo se

  3. tomarmos sua crítica à indústria cultural,1.7 como ele mesmo teria sugerido,1.8 como uma crítica prospectiva, como a visão do ovo da serpente. Defendemos que, hoje, diante da convergência tecnológica e da existência inquestionável de gigantescos conglomerados tansnacionais de comunicação, a idéia de manipulação não pode ser posta de lado, antes deve ser retomada em um novo patamar, que leve em conta os importantes estudos de recepção, pois a pesquisa em Comunicação só têm a ganhar se ambas as perspectivas forem trabalhadas de forma complementar, e não mutuamente excludente.

Dito isto, ao abordarmos a questão das mediações sociais dos gostos musicais durante o século XX, somos obrigatoriamente confrontados com o desenvolvimento da indústria cultural e com as transformações ocorridas nas formas pré-industriais de mediação por influência da primeira, e vice-versa. Conseqüentemente somos confrontados com a questão dos valores de uso (de ordem psico-sensória e estética) e dos valores de troca (de ordem econômica) da música neste período. Tornemos antes de mais nada este repertório conceitual o mais preciso e cristalino possível,1.9 começando por ``Indústria Cultural'':

``Com a ampla difusão das relações de troca, áreas antes pertencentes à cultura passam àquela da produção cultural: `(...) a exigência de administração em relação à cultura (...) precisa medir o cultural, seja qual for, segundo normas que não lhe são inerentes, que nada têm a ver com a qualidade do objeto. A cultura é medida conforme padrões abstratamente trazidos do seu exterior, enquanto o administrador é levado pelas suas próprias exigências e conformação a recusar-se, no mais das vezes, à verdade e, finalmente, à racionalidade objetiva do objeto [cultural].

É nesse contexto que surge o conceito de indústria cultural. As manifestações culturais, outrora produzidas socialmente em espaços qualitativamente diferenciados e portadores de subjetividade, perdem sua dimensão de especificidade ao serem submetidos à lógica da economia e da administração. O exercício do lúdico e do descanso é prejudicado e em seu lugar são propostos hábitos de consumo de produtos que, na verdade, são reproduções do processo de trabalho. ''1.10

Cabe aqui esclarecer que, de nossa parte, utilizamos os termos produção, reprodução e circulação de bens simbólicos, ou de música, segundo a seguinte premissa: se produção significa antes de mais nada a transformação de matéria-prima em algo útil, em algo que possua um valor de uso, transformação realizada através do trabalho, poderíamos dizer que a ``matéria-prima'' da produção simbólica (fora o suporte) e dos próprios gostos e juízos de gosto consiste em um conjunto que engloba as experiências de vida dos sujeitos e determinado repertório simbólico socializado, ou seja, nas práticas concretas dos sujeitos e no patrimônio cultural coletivo (desigualmente distribuído), este último fruto de produção realizada no passado. Assim, no caso da música, produção significa a transformação das experiências de vida dos sujeitos e da parte do repertório simbólico comum a qual eles têm acesso em 1) registro mnemônico (composição memorizada) e 2) registro de uma matriz analógica ou digital (disco, cassete, cd, MP3 etc.), ou gráfica (partitura). Por reprodução pretendemos designar a serialização desta matriz, serialização material (do suporte) ou ``imaterial'' (memorização coletiva mediante difusão radiofônica, televisiva etc.).1.11 Por circulação, referimo-nos simplesmente à comercialização do suporte serializado.

Já ``valor de uso'' é a qualidade concreta de um bem ou mercadoria de atender necessidades humanas, sejam elas biológicas ou ``espirituais''. Nos termos de Marx,

``A mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia.''(Marx, 1982, p. 41)

O fato de estas necessidades variarem de época para época, de lugar para lugar, de cultura para cultura e, em certa medida, de indivíduo para indivíduo, bem como a divisão conceitual que pode ser estabelecida entre necessidade e desejo, não impede que uma das qualidades das coisas feitas pelas pessoas, ou melhor, que sua qualidade primária seja satisfazer necessidades (ou desejos) humanas. Marx refere-se a essas necessidades (alimentar-se, habitar, vestir-se etc.), desde as da ordem da natureza (necessidades biológicas, ``do estômago'') às da ordem dos costumes (necessidades ``espirituais'', isto é, culturais ou simbólicas, ``da fantasia''), como determinadas pela interação concreta entre natureza e cultura (pelo ``metabolismo do homem com a natureza''), historicamente constituída pelo conjunto dos fatores biológicos, ambientais e dos meios e modos de produção desenvolvidos pelo homem, que implicam em uma ou outra forma de divisão do trabalho e, a partir daí, estabelecem as estratificações sociais, as relações de poder e as cooperações e conflitos correspondentes (a luta de classes).

Dada a complexidade de sua elaboração crítica do capital e posto que não há, para o homem, natureza sem cultura, nem cultura sem natureza, Marx limitou-se, a este respeito, a falar em necessidades em geral,1.12 atendo-se à seguinte contradição fundamental: as necessidades humanas, sejam quais forem, não são satisfatoriamente supridas pelo modo de produção capitalista, o qual, ao mesmo tempo, cria pela primeira vez na história as condições materiais para que o sejam, em abundância, senão em todas as instâncias, certamente nas elementares (alimentar-se, habitar, vestir-se etc.), e o resultado da maior parte do trabalho humano não se converte em satisfação de necessidades humanas, mas, através do roubo (alienação de mais-valia), em capital, tornado sujeito automático da história, e os homens, suportes objetificados para sua expansão. De certo modo, é a partir desta contradição nuclear que Marx desenvolve sua crítica do capital.1.13

``Valor de troca'' é a qualidade comparativa abstrata de um bem ou mercadoria em relação a outro(a). Diferente do valor de uso, é um valor matematicamente referencial, mensurável pela quantidade de trabalho social médio necessária à feitura da coisa, considerando-se os maiores níveis de produtividade de um universo econômico dado - hoje, o mundo inteiro - como a base do valor.1.14 Este valor é encarnado no dinheiro. O dinheiro também é uma mercadoria. Foi criado em função da troca. Não existiu sempre e muito menos como meta abstrata de todo trabalho humano, alienando-o de qualquer objetivo psico-sensório concreto. Seu valor de uso, antes do advento do capitalismo, consistia em sua qualidade mediadora de mercadoria equivalente universal para facilitar as trocas, tornadas mais complexas com o desenvolvimento dos meios de produção, com a divisão das sociedades em classes, com o aumento da produtividade gerando mais excedentes, com o aumento dos intercâmbios entre grupos humanos politicamente organizados. Seu valor de troca também é a expressão do trabalho social médio necessário para produzi-lo. Não é mera expressão simbólica (embora hoje, sob a hegemonia do capital financeiro, sem lastro, fiquemos tentados - o que seria um equívoco - a pensar assim), posto que sua produção, seja na forma de ouro, seja na de papel, requer matérias-primas e trabalho humano, como todas as outras mercadorias.

O salário é a parcela em dinheiro do capital indispensável à reprodução da força de trabalho. Tornou-se também, nas sociedades capitalistas mais desenvolvidas, amenizador das tensões de classe no estímulo midiático ao consumo de valores de uso, muitas vezes falsos, isto é, fruto não de necessidades existentes, mas de necessidades criadas pela indústria de bens de consumo (incluindo a indústria cultural), as quais, embora lastreadas em necessidades existentes, as remoldam, estimulam ou recalcam segundo os imperativos de auto-expansão do capital em um momento dado.

Originalmente, só o excedente de uma produção social era trocado, pois

``Um objeto útil só pode se tornar valor-de-troca depois de existir como não-valor-de-uso e isto ocorre quando a quantidade do objeto útil ultrapassa as necessidades diretas do seu produtor. (...) Com o tempo, passa-se a fazer para a troca, intencionalmente, pelo menos uma parte dos produtos do trabalho. A partir deste momento, consolida-se a dissociação entre a utilidade das coisas destinadas à satisfação direta das necessidades e a das coisas destinadas à troca. Seu valor-de-uso dissocia-se de seu valor de troca.'' (Marx, 1982, p.98)

Mas só no modo de produção capitalista a troca tornou-se princípio e fim de todas as operações produtivas, e o valor de uso não somente ``dissocia-se do valor de troca'', mas subordina-se a ele, primeiro na esfera da produção, depois na circulação e no consumo (pois só se pode trocar e consumir o que foi produzido). É evidente que a produção só se justifica para o capital se for posta em circulação, e para tanto é necessário que satisfaça de algum modo necessidades humanas. Por outro lado, necessidades humanas só devem ser satisfeitas, do ponto de vista do capital, se lhe proporcionarem maiores possibilidades de crescimento que a satisfação de outras necessidades humanas. Em outras palavras, o capitalista não se pergunta propriamente se há uma demanda, mas quais dentre as demandas existentes é mais lucrativo atender, e de que modo. A partir deste ponto, selecionam-se alguns produtos, como mísseis, cocaína, chikabon e Kelly Key, e começa a guerra comercial, em meio à qual alguns produtos, mas não outros, menos rentáveis em um momento dado, são lançados na esfera da circulação, no mercado, e somente sobre estas mercadorias o sujeito, como consumidor, possui algum arbítrio. Com o tempo, e o fim, ou o aborto, da produção de mercadorias que não aquelas mais rentáveis para o capital em um momento anterior, os valores de uso das mercadorias em circulação se tornam as únicas referências do consumo. Assim, se as coisas só se tornam valores de uso após terem sido produzidas para um mercado pelo melhor valor de troca possível (lucro menos custo), seu valor de uso, sua propriedade de satisfazer necessidades humanas, converte-se em uma propriedade secundária e subordinada no ciclo produtivo. O mesmo vale para a produção de bens simbólicos, quando subordinada aos imperativos da produção industrial capitalista.

Pretendemos aqui contribuir para a crítica desta inversão, através de uma reflexão a respeito do conceito gosto, tomado como medida do valor de uso das coisas,1.15 estando satisfeitas as necessidades biológicas e os imperativos técnicos para satisfazê-las. Neste recorte, deixaremos de lado o termo necessidade, tomado em sua conotação essencialista de indispensável à sobrevivência, e remeteremos a noção de gosto à medida da satisfação dos desejos, que não assegura a sobrevivência mas a torna mais agradável, sem contudo nos esquecermos de que ambos os termos estão geneticamente relacionados.

Sob esse prisma, o gosto, como medida de valor de uso dos objetos do desejo, pertenceria, em termos freudianos, somente à ordem do princípio do prazer. Aparentemente. Porque desejos são socialmente objetivados, o que implica que os gostos também o sejam. Nesse sentido, pertencem também à ordem do princípio de realidade. Assim, ainda num viés psicanalítico, não só a consciência, os sonhos, os lapsos e as neuroses, mas também os gostos seriam o fruto concreto da tensão dialética (material e histórica) entre estes dois ``princípios''.

No modo de produção capitalista global, o princípio de realidade de todos os homens é governado pela tautologia do capital em suas diversas expressões, sendo a indústria cultural turbinada,1.16 hoje, o princípio legitimador destas expressões no imaginário coletivo, e é com este imperativo que o princípio do prazer, amplamente fetichizado em suas formas concretas de objetivação, vê-se forçado a lidar, tenham os sujeitos consciência disto ou não.

Este trabalho pretende por isso investigar as contradições entre valores de uso (cuja medida é o gosto) e valores de troca (cuja medida é o dinheiro) na produção, reprodução, circulação e consumo de música no séc. XX, partindo de uma genealogia geral do conceito gosto para uma discussão das relações mais amplas entre o modo de produção capitalista e a construção das subjetividades e discursos nos dias de hoje, o que (re)põe em cena a problemática da ideologia.

Muito se escreveu sobre o gosto em filosofia, sociologia e estética. Ao enfocar os resultados da minha pesquisa sob a ótica do marxismo, busquei elaborar a hipótese de haver um sentido histórico e biopolítico universalizável para a produção e reprodução social de valores simbólicos, principalmente de juízos de gosto, ciente do risco de incorrer no ``pecado'' epistemológico, do ponto de vista pós-moderno, de uma narrativa totalizante (ainda que tenha me servido de parte do repertório teórico da antropologia e dos estudos culturais, com sua ênfase ``culturalista'', como recursos auxiliares). A justificativa desta opção baseia-se em duas hipóteses:

  1. no caráter totalizante do ``metabolismo do homem com a natureza'' ter por base, em todas as épocas e culturas, a sobrevivência biológica como condição indispensável para qualquer produção cultural, portanto na antecedência determinante da produção material sobre a produção simbólica ser uma lei geral da história (o que varia são os modos de produção e as relações de trabalho correlatas) e

  2. no caráter totalizante do capitalismo, objeto último de nossa crítica, a qual, embora não deva furtar-se de considerar as diversas manifestações e reflexos locais, fragmentadas e pulverizadas do seu objeto, bem como as variadas reações aos seus efeitos, muito menos pode perder de vista este caráter.

Metodologia

``- Meu único objetivo é reunir os elementos da verdade

- Senhor inspetor, sempre se reúne estes elementos

segundo a idéia geral de uma verdade que

acredita-se de antemão pressentir.''

Arsène Lupin2.1

Este trabalho consiste em uma pesquisa teórica, composta de 8 capítulos:

1 - Fundamentos Teóricos.

2 - Metodologia.

3 - Ta'am: Homo-Sapiens, Homem Degustante: Proposta de uma releitura de dois episódios diretamente relacionados do Gênesis (a mordida no fruto proibido do conhecimento do Bem e do Mal e a expulsão do paraíso/condenação ao trabalho), tomados alegoricamente, como recurso explicativo para uma genealogia associativa do prazer, do conhecimento e do trabalho; trata-se de mito fundante, compartilhado pelas três grandes religiões monoteístas, no seio das quais surgiu o capitalismo; problematização do gosto a partir da etimologia grega do termo, apresentada em estudo de Nietzsche, citado por Agamben, que remete a uma reveladora afinidade conceitual entre as noções de sabor e saber; desenvolvimento do tema a partir de alguns textos clássicos da erudição rabínica, de Maimônides ao Rav Abraham Isaac Kook, comentados por eruditos judeus contemporâneos, que discutem o episódio do fruto proibido - o termo hebraico ta'am (gosto) traz em si a mesma afinidade entre sabor e saber que Nietzsche identifica na língua grega.

4 - Hipótese para uma Genealogia Biopolítica do Gosto: Desenvolvimento de hipótese histórico-antropológica que traça um paralelismo entre a etimologia do termo gosto e a noção marxista de determinação em última instância, ou antecedência (Gramsci), dos fatores econômicos, ou estruturais, sobre os fatores superetruturais, ou simbólicos, como uma lei geral da história.

5 - Por uma Crítica da Economia Política do Gosto: Apresentação dos princípios gerais de uma crítica da economia política do gosto e de uma base teórico-metodológica que oriente a realização futura de pesquisa empírica sobre o tema. Se não há um ramo da economia política que tenha por objeto o gosto, há uma série de práticas e discursos relacionados ao gosto que reproduzem as práticas e discursos que constituem os objetos da economia política, a saber, a produção, reprodução, circulação e consumo de bens simbólicos, e de discursos de legitimação, ou juízos de gosto. A estas práticas e discursos dirigimos nossa crítica.

6 - Gosto e Ideologia: Problematização do conceito de ideologia na tradição marxista e da hipótese de juízos de gosto possuírem necessariamente implicações ideológicas.

7 - Capital Midiático e Valor Simbólico: Definição e problematização dos conceitos capital midiático e valor simbólico, conceitos antitéticos que visam auxiliar o esclarecimento da crescente interferência de imperativos econômicos na formulação de juízos de valor em música ao longo do séc. XX, operada a partir do desenvolvimento da indústria cultural; estabelecimento dos elos históricos entre o desenvolvimento do capital midiático, o da produção serializada de música e a formação dos gostos e juízos de gosto coletivos.

8 - Considerações finais: traçam um resumo de todo o trabalho e enfatizam seu objetivo, cuja definição permeia o corpo do texto, e que consiste, em síntese, em investigar até que ponto o conceito gosto, tomado na acepção dilatada que desenvolvemos, pode contribuir para a discussão da produção e da reprodução sociais de identidades e ideologias, de práticas e costumes, de cooperações e conflitos, investigação que pretende servir de base para a abertura de uma nova perspectiva crítica da indústria cultural capitalista e de novas praxis no terreno das políticas culturais.

Tendo isso em conta, se a questão de fundo que orientou esta pesquisa é ``como se produzem os gostos e juízos de gosto de uma dada coletividade em um período histórico determinado?'', a questão auxiliar é ``de que modo estes gostos e juízos de gosto veiculam determinado conteúdo ideacional e quais são estes conteúdos ideacionais?'' Ao utilizarmos a expressão freudiana ``conteúdo ideacional'' referimo-nos aos rudimentos racionais legitimadores de uma determinada escolha de objeto (para nós, a música) de prazer, aos rudimentos racionais de um juízo de gosto, ou seja, aos rudimentos conscientes da razão que o sujeito atribui ao fato de gostar ou não de uma música. Em outras palavras, ao caráter ideológico dos gostos. Baseamos esta idéia na seguinte sentença de Freud:

``Não é fácil lidar cientificamente com sentimentos. Pode-se tentar descrever os seus efeitos fisiológicos. Onde isso não é possível (...), nada resta senão cair no conteúdo ideacional que, de forma mais imediata, está associado ao sentimento.'' (Freud, 1974, p. 20)

Se a produção e a reprodução sociais de gostos e de juízos de gosto se dão, em última instância, através do cruzamento de uma série de determinações econômicas, essas determinações, por sua vez, se reproduzem culturalmente por meio do que Althusser denominava os AIE, ou aparelhos ideológicos do Estado,2.2 e se transformam, mais direta ou indiretamente, como desdobramentos da luta de classes, intensificando-a ou apaziguando-a. Suposto que a indústria cultural se sobrepôs à escola, à igreja e à família como o AIE hegemônico, suas peculiaridades objetivas e seu caráter homogeneizante em larga escala, quantitativa e qualitativa, acarretam numa gradual perda de lastro entre os gostos e juízos de gosto gerais e as práticas e experiências de vida extra-midiáticas locais. Assim, encontramos gostos e juízos similares em grupos humanos que dispõem, extra-midiaticamente, de identidades culturais e sócio-econômicas distintas, de repertório simbólico distinto, de acesso distinto a um repertório simbólico comum e de práticas distintas. Neste sentido, Hobsbawn observa e ilustra, na sua História Social do Jazz, que fora dos grandes centros urbanos

``O público local é totalmente diferente do público de outra cidade. Para o habitante de Nova Orleans, ``Canal Street Blues'' fala de uma rua não identificável, o ``2.19 Blues'' fala de um trem não identificável. Para o menestrel local que cantava `I'm goin' to Houston, Texas, `Lighting Hopkins is the man I want to see' (...) seu blues tinha uma finalidade específica: nesse caso em particular o desafio de um guitarrista (Sam ``Lightning'' Hopkins) por outro (Brownie McGhee). Para um público de fora, trata-se apenas de um blues, cujo título e texto - e portanto cuja música - têm significado tão remoto quanto o dos discos com nomes exotéricos, oriundos da gíria do Harlem. A arte folclórica perde muito de sua concreção assim que sai da comunidade que reconhece suas alusões detalhadas e referências. À medida que o jazz se tornou o idioma musical geral para os imigrantes negros que chegavam às cidades, perdeu inevitavelmente algumas de suas raízes.'' (Hobsbawn, 1997, pp. 88-89)

Aqui Hobsbawn refere-se à descontextualização de significados como resultado de migrações espaciais. A indústria cultural, por sua vez, ao sobrevalorizar discursos e formas cada vez mais genéricos (o que é economicamente indispensável devido à crescente e historicamente inevitável concentração de capital, às pressões da concorrência e à escala em que opera), promove migrações unilaterais de significados, ao descontextualizar a expressão simbólica de seus lastros extra-midiáticos específicos, gerando fetichismo, ou idolatria: culto de falsas imagens, de falsos deuses. Falsos, como veremos, não em oposição a Jeová ou a alguma verdade universal, mas em sua subordinação não-consciente ao automatismo da economia, ao caráter totalizante do capital. Como dizia Marx,

``O trabalho é em cada caso isolado um trabalho específico, mas o capital pode entrar em relação com cada trabalho específico; ele confronta a totalidade de todos os trabalhos, sendo que o trabalho particular que ele confronta num dado tempo é uma questão acidental.''2.3

Desta reflexão, podemos deduzir que:

  1. este caráter ``acidental'', quando falamos na produção de bens simbólicos, aponta para a ausência de quaisquer critérios determinantes, de orientação propriamente estética, na eleição das fórmulas produzidas e veiculadas pela indústria cultural, ou mais precisamente revela a subordinação dos critérios de ordem estética aos imperativos totalizantes do capital; deste modo,

  2. a especificidade de cada produção simbólica particular lançada no circuito midiático tende a converter-se em generalidade, o que necessariamente acarreta em um empobrecimento de suas propriedades expressivas, e

  3. esta tendência é inevitável na medida em que os produtores simbólicos só encontram trabalho menos ou mais diretamente relacionado à indústria cultural, dela dependendo para sobreviverem.

Por outro lado, é precisamente a existência de práticas intersubjetivas extra-midiáticas (começando pelas relações de trabalho) que permite a existência de leituras diferentes dos mesmos discursos, ou de fruições diferentes dos mesmos objetos estéticos, e de produções simbólicas diferenciadas, que fogem à tautologia do circuito da indústria cultural, o que de certa forma contrabalança o vetor homogeneizante do ``aparelho'' hegemônico, inclusive, por assim dizer, ao ``relastreá-lo'' de forma original nas práticas dos sujeitos. Estas práticas extra-midiáticas, portanto, constituem o lastro objetivo que assegura, em termos sociais médios, alguma variedade de gostos e juízos de gostos, apesar da quase onipresença da indústria cultural nas sociedades contemporâneas. O descolamento crescente da produção simbólica socializada destas práticas e o estabelecimento da indústria cultural como AIE hegemônico, porém, é o que tende a nivelar a produção simbólica social em escala gigantesca. Se esse nivelamento possui, por um lado, um caráter que se pode bem chamar de positivo, na medida em que, graças ao seu poder econômico e, conseqüentemente, ideológico, manda alguns fantasmas de volta para os seus túmulos, isto é, destrói preconceitos arcaicos, integra diferenças, erradica particularismos, minimiza antagonismos e efetua a reprodução, de modo relativamente democrático, de um repertório simbólico comum, por outro lado seu caráter de classe, ou seja, de a indústria cultural poder ser denominada aparelho ideológico hegemônico da classe dominante, faz com que esse nivelamento seja alienante, ressuscitando velhos fantasmas e parindo novos segundo os imperativos de auto-expansão do capital, entre outras razões porque as representações comuns não estão lastreadas em práticas comuns, mas em práticas profundamente desiguais, cujos antagonismos são minimizados no imaginário coletivo no interesse da classe hegemônica, inclusive em termos internacionais. Nesse sentido, essas representações são ideológicas,2.4 pois em certa medida apresentam-se para todos como realidades e visões de mundo que não são as de todos como se o fossem. Mas a desigualdade das experiências concretas, no que pese o poder e a extensão das representações alienantes unificadoras, ainda se faz notar nas leituras transversais e ativas dessas representações, e nas diversas práticas de resistência, expressões indiretas da divisão social do trabalho e da luta de classes pela hegemonia, expressões diretas da variedade de experiências concretas e de campos de produção simbólica extra-midiáticos existentes. Somos da opinião, contudo, que não se deve superdimencionar as leituras transversais e as práticas de resistência, nem subdimencionar o poder nivelador da indústria cultural como porta-voz das pretensões totalizantes do capital (que tendem a subordinar todas as áreas da vida à sua própria auto-expansão), sob o risco de se perder de vista a potência de produção simbólica com lastro socialmente recalcada em nome de uma exaltação naif do pouco (em termos relativos e absolutos) de produção simbólica com lastro que escapa ao recalcamento. Assim, concordamos em parte com Marcuse, quando afirma:

``A nossa insistência na profundidade e eficácia desses controles é passível da objeção de que superestimamos grandemente o poder de doutrinação dos ``meios de informação'' e de que as pessoas sentiriam e satisfariam por si as necessidades que lhes são agora impostas. A objeção foge ao âmago da questão. O precondicionamento não começa com a produção em massa de rádio e televisão e com a centralização de seu controle. As criaturas entram nessa fase já sendo de há muito receptáculos precondicionados; a diferença decisiva está no aplainamento do contraste (ou conflito) entre as necessidades dadas e as possíveis, entre as satisfeitas e as insatisfeitas. Aí, a chamada igualação das distinções de classe revela sua função ideológica. Se o trabalhador e seu patrão assistem ao mesmo programa de televisão e visitam os mesmos pontos pitorescos, se a datilógrafa se apresenta tão atraentemente pintada quanto a filha do patrão, se o negro possui um Cadillac, se todos lêem o mesmo jornal, essa assimilação não indica o desaparecimento de classes, mas a extensão com que as necessidades e satisfações que servem à preservação do Estabelecimento é compartilhada pela população subjacente.'' (Marcuse, 1973, p. 29)

Se não partilhamos da crença de Marcuse em considerar as pessoas ``receptáculos precondicionados'', ou em um ``aplainamento dos contrastes'' totalmente eficaz no imaginário comum, julgamos contudo que este aplainamento é a tendência dominante na indústria cultural, e sua eficácia, no que pese não ser absoluta, é suficientemente grande para merecer nossa atenção e justificar novos desdobramentos da perspectiva crítica frankfurtiana, o que envolve inclusive um crítica aos limites teóricos e às inconsistências empíricas desta perspectiva, que consistem, ao nosso ver, em um não reconhecimento, ou em uma subestimação, das forças contra-hegemônicas existentes e potenciais - em outras palavras, na ausência, ou na simplificação, da complexa problemática da luta de classes em suas análises da cultura.

Por fim, a orientação metodológica que norteia nossa pesquisa bem poderia ser resumida no esforço de, à luz da crítica da economia política de Marx, enfrentar o desafio sugerido pelo seguinte raciocínio de Rousseau:

``Enquanto se continuar considerando os sons unicamente pela excitação que despertam em nossos nervos, de modo algum se terá verdadeiros princípios da música, nem noção de seu poder sobre os corações. Os sons, na melodia, não agem em nós apenas como sons, mas como sinais de nossas afeições, de nossos sentimentos (...) Quem desejar filosofar sobre a força das sensações, comece, pois, por afastar, das impressões puramente sensuais, as impressões intelectuais e morais que recebemos por via dos sentidos, mas das quais estes são só causas ocasionais; evite o erro de conferir aos objetos sensíveis um poder que não possuem ou derivado das afeições da alma que nos sugerem.'' (Rousseau, 1999, pp. 315, 316)

Mas como fazê-lo? Sugerimos que possíveis respostas podem ser encontradas se buscarmos desvelar a materialidade do complexo de fatores que, em última instância, determinam 1) quais ``objetos sensíveis'', ou bem simbólicos, são produzidos e postos em circulação, 2) o que justifica esta eleição e 3) por que satisfazem (ou não) desejos e legitimam (ou não) as práticas dos sujeitos (e quem são esses sujeitos).

Isto significa relacionar uma dada produção simbólica com sua respectiva base econômica, não para reduzir a primeira à condição de mero epifenômeno reflexo da última, mas para desvelar o campo de possibilidades e os limites concretos que a base econômica estabelece para o livre desenvolvimento da produção simbólica, em uma escala social e em um período histórico determinados. Para tornar isto mais claro, e ao mesmo tempo nos defendendo antecipadamente de possíveis objeções quanto à nossa ênfase nos fatores econômicos como determinantes ``em última instância'' das práticas e discursos, ou seja, para que não nos xinguem indevidamente de ``2ª Internacional'', para que não nos acusem de postularmos aqui um reducionismo economicista, chamamos em nosso auxílio o ``companheiro'' Gramsci:

``Dado que não pode existir quantidade sem qualidade e qualidade sem quantidade (economia sem cultura, atividade prática sem inteligência, e vice-versa), toda contraposição dos dois termos é, racionalmente, um contra-senso. (...) Afirmar, portanto, que se quer trabalhar sobre a quantidade, que se quer desenvolver o aspecto `corpóreo' do real, não significa que se pretenda esquecer a `qualidade', mas, ao contrário, que se deseja colocar o problema qualitativo de maneira mais concreta e realista, isto é, deseja-se desenvolver a qualidade pelo único modo no qual tal desenvolvimento é controlável e mensurável.'' (Gramsci, 1978, p. 50)

Trata-se, portanto, de uma aposta metodológica não dogmática e, esperamos, teoricamente consistente. Se estivermos corretos, acreditamos que uma problematização do conceito gosto e um estudo do desenvolvimento econômico da indústria cultural, que tenham por base as teorias do valor e da luta de classes, de Marx, podem nos auxiliar a compreender por que tal ou qual objeto sensível afeta a alma de uns e de outros de maneiras similares ou distintas, por que alguns objetos são socialmente eleitos e outros não, qual a base social dos discursos de legitimação, e também o que impede que o repertório simbólico comum, existente e potencial, seja qualitativamente enriquecido e democraticamente distribuído na sociedade global. Acreditamos também que as práticas de resistência ao caráter totalizante do capital só têm a ganhar em termos de eficiência com o auxílio de análises teóricas consistentes que delineiem com clareza a que estas práticas resistem.

Ancorados no velho clichê ``gosto não se discute'' (afirmação peremptória que pretendemos discutir), julgamos nossos próprios gostos e juízos de gosto - quando nos damos ao trabalho de elaborá-los em juízos - espontâneos e individuais, fonte autônoma de prazer, reserva de liberdade de escolha, na esfera do consumo, em face das pressões massacrantes da realidade social. Parece, portanto, perda de tempo e desgaste injustificável discuti-los.

Tal atitude seria razoável, porém, se nossos gostos fossem, na prática, livres e espontâneos. De fato, poderiam sê-lo, ou ao menos bem mais do que são, mas para tanto a produção simbólica teria, na prática, que ser libertada dos imperativos econômicos que atualmente a regem, bem como nossa formação crítica e nosso repertório (simbólico e de experiências) deveriam ser libertados de nossa relativa, embora imensa, ignorância fruitiva, abarcando uma parte muito mais substancial da rica e variada riqueza simbólica e experimental, existente e potencial, o que em geral não ocorre, embora seja materialmente realizável devido ao atual estágio de desenvolvimento dos meios, e isto leva-nos a questionar até que ponto a sobrevivência da velha sentença ``gosto não se discute'' não representa hoje mais um dispositivo ideológico de mascaramento da farsa que é o mito triunfante, na sociedade capitalista, da liberdade individual, cuja existência concreta, para além da vibrante (embora rigorosamente seletiva e, portanto, excludente) superfície do mercado, torna-se cada vez mais duvidosa em qualquer instância, por mínima que seja, por íntima que seja, da vida social contemporânea. Na palavras de Habermas,

``As sociedades industriais desenvolvidas parecem aproximar-se do modelo de um controle de comportamento que, em vez de ser guiado por normas, é antes dirigido por excitantes externos. A direção indireta por estímulos estabelecidos aumentou, principalmente nos setores da liberdade aparentemente subjetiva (comportamento nas eleições, no consumo, no tempo livre).'' (Habermas, 1975, p. 322,323)

Sabemos ser inconcebível que algo como gostos individuais ``livres e espontâneos'' em termos absolutos, e independentes de mediações sociais, tenham algum dia existido (ou possam vir a existir), porque 1) a existência de indivíduos isolados é uma impossibilidade prática e 2) ``liberdade'' e ``espontaneidade'' são noções necessariamente relativas. Ocorre que, antes de o modo de produção capitalista ter começado a conquistar a hegemonia global, o ato de se converter o capital investido por um mediador em mais capital jamais constituiu - em nenhuma época ou local, em meio ao variado rol de objetivos sociais que determinaram a produção musical - a finalidade última desta produção: a mediação social na formação dos gostos se dava, como hoje, através de um complexo de determinantes culturais, religiosos, etários, de gênero etc., inclusive econômicos (classe social), mas jamais foi, até então, determinada em última instância por imperativos contábeis! As conseqüências desta mudança são profundas. Nas palavras de Gramsci,

``(...) uma economia de troca modifica também os hábitos fisiológicos e a escala psicológica dos gostos e dos graus finais de utilidade, que, desta forma, surgem como `superestruturas' e não como dados econômicos primários (...)'' (Gramsci, 1978, p. 308)

Deduzimos desta reflexão de Gramsci que em uma economia não orientada predominantemente para a troca, ``a escala psicológica dos gostos'' seria um dado econômico primário, ou seja, o limite da ``liberdade'' dos gostos na esfera do consumo em um dado universo sócio-econômico restringir-se-ia somente aos limites de um repertório simbólico produzido e socializado neste universo independente de imperativos contábeis alienígenas que recalcassem as potencialidades de produção e socialização de sua esfera produtiva. A liberdade do produtor, por sua vez, só seria limitada pelo gosto do consumidor: ambas, assim, determinam-se mutuamente (a produção antecedendo o consumo), não havendo mediação econômica externa. Se a dedução procede, e ``a escala psicológica dos gostos'' surge como superestrutura de uma estrutura na qual imperativos contábeis - para os quais as potencialidades produtivas das esferas produtivas importam antes em termos quantitativos para a troca que qualitativos para o uso - estabelecem a necessidade de se produzir formas musicais voltadas para um consumo tendencialmente universal como padrão, os gostos superestruturais tornam-se ideológicos, fatores de legitimação da reprodução das relações de produção existentes, e sua liberdade medíocre na esfera do consumo reproduz o recalcamento qualitativo da potência produtiva na esfera da produção. Cumpre pois, se queremos trazer à tona, compreender e desmistificar o conteúdo ideológico latente em certas práticas e discursos que se pretendem neutros e naturais - ``gosto não se discute'', ``produzimos o que o povo gosta'' etc. -, analisar sob uma perspectiva crítica as particularidades concretas das mediações sociais na formação dos gostos em um período histórico determinado, comparando-as com outras formas históricas de mediação e também com formas potenciais, socialmente recalcadas, mas que, em princípio, são concebíveis como desdobramentos possíveis das condições materiais e simbólicas existentes.

Nosso objeto é, portanto, relacional, consistindo nas imbricações entre música, capital e gosto, ou mais precisamente na mediação tecno-capitalista dos gostos musicais. Como o espaço social hegemônico onde estas imbricações vêm se dando no último século é a indústria cultural, instância tanto de acumulação de capital quanto de legitimação simbólica de sua tautologia, cunhamos o conceito capital midiático como expressão dos valores simbólicos por ela alienados, recalcados, desenvolvidos, destruídos, transformados e legitimados, visando desvelar as determinações dos valores de uso dos bens simbólicos pelos seus valores de troca (bem como os efeitos de retorno da primeira natureza dos bens sobre a última). Esta relação complexa de valores tem, por base material, em nosso caso particular, os meios e modos de produção e socialização de música ao longo do séc. XX, entre os quais a indústria cultural capitalista adquire gradualmente uma posição central.

Epistemologicamente, independente da óbvia pertinência de uma abordagem político-econômica do gosto e da música na indústria cultural dentro do campo dos estudos de Comunicação e Cultura, acreditamos que o destaque dado ao tema gosto justifica-se neste contexto também por constituir um problema fundamental, embora pouco estudado e discutido, nos processos de objetificação tecno-capitalista da intersubjetividade humana. Julgamos a materialidade desta intersubjetividade, que reside em toda e qualquer prática comum significante, o objeto por excelência de uma ciência da comunicação.

Ta'am: homo-sapiens, homem degustante

``Quanto mais o processo dos meios (árvore) se fixa nos fins (fruto),

mais sabor e significado (ambos os termos são traduções

da palavra hebraica ta-am [gosto]) ele terá.''

Rav Hillel Rachmani

Seria uma rematada tolice reduzir o rico simbolismo da Torá a uma interpretação materialista vulgar, que pretendesse por si só ``explicá-la''. Nada impede, porém, que elaboremos hipóteses a partir de suas imagens plurissignificantes, tomadas também como indicações alegóricas de relações sociais concretas.

Seguimos, assim, os passos de Marx, para o qual, segundo Jorge Larrain,

``A religião surge como uma inversão porque Deus, sendo uma criatura das mentes dos seres humanos, torna-se o criador, e os seres humanos, que criaram a idéia de Deus, tornam-se as criaturas.'' (Larrain, 1996, p.155)3.1

Dessa forma, se julgamos justo o pressuposto de que os modos de produção estruturados dinamicamente através da história e a divisão de trabalho correspondente não determinam de modo mecânico e linear, mas delineiam o campo de potencialidades humanas a se realizarem concretamente como produção ideológica ou simbólica; 3.2 que a inversão desta sentença só é razoável se considerarmos a antecedência do simbólico em relação ao material em um presente dado como fruto de condições materiais3.3 ainda mais antigas; se levarmos em conta que

``A produção de um indivíduo isolado, fora da sociedade - uma rara exceção que pode bem ocorrer, quando uma pessoa civilizada, na qual as forças sociais já encontram-se dinamicamente presentes, é atirada por acidente em uma região desabitada -, é um absurdo tão grande quanto o desenvolvimento da linguagem sem que haja indivíduos vivendo juntos e falando uns com os outros.''3.4

Se admitirmos ainda que as línguas não produzem a si mesmas a partir do nada - não possuindo, pois, existência autônoma, descolada das línguas de carne - e que são os homens que produzem e reproduzem as línguas em sua interação material com o mundo, isto é, com os outros homens e com a natureza;3.5 se concordarmos, enfim, que a boca, antes de falar ou cantar, berra, suga, grunhe, cospe, vomita, morde, mastiga e come, podemos arriscar algumas surpreendentes suposições a partir da Torá.

Já no Gênesis, a história humana propriamente dita começa com a história do trabalho, após a expulsão do paraíso: comerás teu pão com o suor da tua face. Então os homens dividem-se em lavradores (Caim) e pastores (Abel). Tal divisão do trabalho gestou conseqüências profundas na história ulterior da espécie, entre elas o fratricídio:

``Depois que o homem primevo descobriu que estava literalmente em suas mãos melhorar a sua sorte na Terra através do trabalho, não lhe pode ter sido indiferente que outro homem trabalhasse com ele e contra ele.'' (Freud, 1974, p.57)3.6

Tendo isto em conta, pode-se também enxergar na passagem do assassinato de Abel por Caim a indicação alegórica de um conflito entre classes de produtores, sem com isso reduzi-la a esta leitura particular.3.7 Provavelmente a vasta literatura interpretativa judaica - tanto a talmúdica quanto a cabalista, isto é, tanto a predominantemente racionalista quanta a de tendências místicas - deve fornecer leituras diversas, quem sabe a partir do valor numérico das letras dos nomes dos dois irmãos, talvez em algum simbolismo derivado dos trabalhos lavrar e pastorear... A este propósito, é Gershom Scholem, profundo conhecedor do tema, quem nos informa que

``Segundo Eleazar de Worms [Alemanha, séc. XIII], existiram desde os dias da Criação forças históricas de oposição, ``ervas daninhas'' como as denomina, que contrariam o propósito divino. O versículo de Gênesis 3:18, ``espinhos e cardos a terra te produzirá'', deve ser entendido não apenas no sentido natural mas também histórico, significando a terra, nesse contexto, o palco em que a história do homem é representada. ``Espinhos e cardos'' são interpretados, por um processo de raciocínio baseado no misticismo numerológico, como representações da história profana que em cada geração se opõe ao processo histórico sagrado.3.8 A origem da história profana é procurada na Queda, que também é definida como a causa da força e da desigualdade social nas relações entre os homens. (...) E, mesmo depois da Queda, os homens poderiam ter evitado a divisão entre ricos e pobres, a desgraça da desigualdade social, se houvessem permanecido lavradores da terra.'' (Scholem, 1995, pp. 100, 101)3.9

Ora, mas o lavrador era Caim! Além disso, Deus havia posto, após o assassinato e atendendo à solicitação do próprio assassino, um sinal em Caim, para protegê-lo contra todos os que quisessem matá-lo.3.10 Não dispondo atualmente de recursos que nos permitam levar adiante a investigação das conseqüências destas indicações, podemos ao menos insistir na possibilidade de o fratricídio ser uma alegoria de ordem distinta da leitura usual, que refere-se a um crime de vingança, orientado pelo ciúme etc. Vejamos, por exemplo, como Baudelaire inverte os sinais desta leitura usual da passagem:


I I
I Race d'Abel, dors, bois et mange; Dieu te sourit complaisamment. Raça de Abel, só bebe e come, Deus te sorri tão complacente.
Race de Caïn, dans ta fange. Rampe et meurs misérablement Raça de Caim, sempre some. No lodo miseravelmente.
Race d'Abel, ton sacrifice. Flatte le nez du Séraphin! Raça de Abel, teu sacrifício. Doce é ao nariz do Serafim!
Race de Caïn, ton suplice. Aura-t-il jamais une fin? Raça de Caim, teu suplício. Será que jamais terá fim?
Race d'Abel, vois tes semailles. Et ton bétail venir à bien; Raça de Abel, tuas sementes. E teu gado produzirão;
Race de Caïn, tes entrailles. Hurlent la faim comme un vieux chien. Raça de Caim, sempre sentes. Uivar-te a fome como um cão.
Race d'Abel, chauffe ton ventre. A ton foyer patriarcal; Raça de Abel, não tremas nunca; À lareira patriarcal;
Race de Caïn, dans ton antre. Tremble de froid, pauvre chacal! Raça de Caim, na espelunca, Treme de frio, pobre chacal!
Race d'Abel, aime et pullule! Ton or fait aussi des petits. Raça de Abel, pulula! Ama! Teu oiro é sempre gerador.
Race de Caïn, coeur qui brûle, Prends garde à ces grands appétits. Raça de Caim, alma em flama, Cuidado com o teu amor.
Race d'Abel, tu croîs et broutes. Comme les punaises des bois! Raça de Abel multiplicada. Como a legião dos percevejos!
Race de Caïn, sur les routes, Traîne ta famille aux abois Raça de Caim, pela estrada. Arrasta a família aos arquejos.


II II
Ah! race d'Abel, ta charogne. Engraissera le sol fumant! Raça de Abel apodrecida. Há de adubar o solo ardente!
Race de Caïn, ta besogne. N'est pas faite suffisamment; Raça de Caim, tua lida. Nunca te será suficiente;
Race d'Abel, voici ta honte: Le fer est vaincu par l'épieu! Raça de Abel, eis teu labéu: Do ferro o chuço é vencedor!
Race de Caïn, au ciel monte. Et sur la terre jette Dieu! Raça de Caim, sobe ao céu. E arremessa à terra o Senhor!

Baudelaire, Les Fleurs du Mal, Race de Caïn. O poema pertence ao ``capítulo'' Revolte.

Jamil Hadad, em nota à sua tradução do poema, nos informa que ``no século XIX, Abel era a encarnação do burguês tranqüilo e Caim, sua antítese''.

Ora, quem é a antítese do ``burguês tranqüilo''? Aquele que come o seu pão com o suor da sua face.

Vimos que, no tempo mítico, a expulsão do paraíso e a condenação ao trabalho - o início da história ``profana'' - são as conseqüências da Queda, provocada pelo pecado original, ato de desobediência primordial, determinante do destino humano subseqüente: a degustação do fruto proibido.

``Viu, pois, a mulher que a arvore era boa para comer, que era uma delicia para os olhos, e arvore desejavel para dar entendimento; tomou do fruto della e comeu; deu também a seu marido, e elle comeu.'' (Gênesis, p. 3, capítulo 3, verso 6)

A ``árvore era boa para comer'', ``uma delícia para os olhos e desejável para dar entendimento''. Mas, à primeira vista, era vedado ao homem e à mulher saborear esse saber e, conseqüentemente, conhecer seu sabor. Qual a razão da interdição, posto que o judaísmo tanto valoriza o estudo e o conhecimento? Aliás, qual o significado de o conhecimento proibido encontrar-se em uma fruta? Por quê a metáfora do alimento associado a um conhecimento tão grave? Segundo Rabi Israel Chait,

``Maimônides destacou que este verso evidencia a amplitude dos desejos do homem. A árvore era uma árvore ordinária, todavia o apelo da fantasia era irresistível. A árvore era atraente para os olhos, embora comum, e boa para comer, embora nunca provada. Assim, tomando da árvore, o homem sucumbiu à fascinação da fantasia.''3.11

Analisaremos adiante alguns desdobramentos desta interpretação por assim dizer racionalista de Maimônides. Por enquanto, basta-nos reconhecer que a desobediência à interdição, tenha o significado que tiver, condenou a humanidade ao trabalho.

Neste ponto, tomaremos a liberdade de cometer uma licença poética radical, invertendo a ordem cronológica, ou a relação causal, da condenação ao trabalho como conseqüência da degustação do fruto proibido, ato de desobediência à interdição divina, numa transmutação de tempo mítico em tempo histórico, e chegaremos à seguinte conclusão: não é a desobediência à interdição gustativa que condena ao trabalho, mas a condenação ao trabalho é o que interdita que se saboreie os conhecimentos e que se conheça os sabores em toda a sua potência, na medida em que a divisão da sociedade em classes, erigida sobre a divisão do trabalho, impede que uns degustem conhecimentos e conheçam gostos acessíveis a outros.

A interdição do deus trabalho ao homem de saborear a riqueza dos saberes e de conhecer a riqueza dos sabores, ao invés de ter caducado com o passar dos milênios, atingiu seu grau mais elevado de eficiência aplicada no atual estágio turbinado do capitalismo, sobretudo considerando a potência produtiva (tanto material quanto imaterial) de que o mundo de hoje dispõe, em ato ou recalcada. A interdição revela melhor ainda o seu caráter contraditório ao atingir o paroxismo. Como diz o Manifesto Contra o Trabalho:3.12

``Não é mais a maldição do Velho Testamento - `comerás teu pão com o suor da tua face' - que pesa sobre os que caíram fora [no desemprego], mas uma nova e implacável condenação: `tu não comerás porque o teu suor é supérfluo e invendável'.''

Este paroxismo é também confirmado por uma ``piada'' corrente nos meios de marketing: ``já inventaram produção sem trabalho, mas ainda não inventaram consumo sem renda''.

Ora, o que era o paraíso bíblico, antes da expulsão, senão um tempo de fruição, de não-trabalho3.13 e de fartura? No tempo histórico, esse espaço e esse tempo tão desejados ainda não chegaram para a esmagadora maioria dos homens.

Mas se a inversão que operamos do tempo mítico em tempo histórico pôs de cabeça para baixo a causalidade transgressão degustante / condenação ao trabalho, devemos deduzir que a transgressão à condenação ao trabalho conduziria à degustação do paraíso - é o que nos ensina a arte, tomando-se a beleza como a promesse de bonheur, de Sthendal.

Antes de desenvolver este ponto, voltemos ao tempo mítico e investiguemos melhor a ``maldição do Velho Testamento'', a condenação ao trabalho como castigo pela desobediência à interdição gustativa, cujo objeto era o fruto do conhecimento do Bem e do Mal.

Qual seria a razão da ``maldição''? Qual seria a razão da interdição divina ao conhecimento do Bem e do Mal? Jeová é mau? Desejaria manter seu filhos ignorantes? Ora, como vimos, isso está em gritante contradição com o ideal judaico do estudo e do conhecimento. Teria Jeová, como Lúcifer, ciúmes da criatura feita do barro? Ou desejaria protegê-la do peso do conhecimento? Mais uma vez passamos a palavra a Maimônides, através dos comentários do Rabi Israel Chait:

``Maimônides propôs a famosa questão concernente à interdição ao homem do fruto da Árvore do Conhecimento. Os versos 16 e 17 declaram `E o Senhor Deus lhe deu esta ordem: De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás.' Como observou Maimônides, se considerássemos apenas estes versos, iria nos parecer que Deus estava privando o homem da habilidade de discernir o bem do mal. Isto é bastante embaraçoso (...) Era realmente a intenção de D'us negar o conhecimento ao homem? Isto também está em contraste com a crença judaica tradicional de que o maior dos dons que D'us deu ao homem foi a sua faculdade intelectual. Uma análise de versos relevantes pode nos auxiliar a examinar a verdadeira natureza do homem, e a determinar que o oposto é que constitui a verdade. D'us proibiu que o homem comesse o fruto de modo a assegurar que o homem funcionaria de acordo com as suas habilidades intelectuais. Porém, no momento em que o homem desobedeceu o comando, foi condenado a lutar permanentemente com as paixões instintivas, que estariam sempre em conflito com sua natureza intelectual, com seu yetzer hara. Desobedecendo o comando e tomando do fruto proibido, o homem abandonou seu intelecto ao apelo da fantasia [já que a árvore era ``uma delícia para os olhos'', mas seu fruto ainda não havia sido degustado para que se soubesse se era ou não delicioso]. A partir deste momento, a sina do homem foi encarar a eterna luta do `tov v' ra', entre o bem e o mal.''3.14

Temos então o episódio apresentado sob uma nova luz, que o caracteriza como expressão alegórica do conflito humano entre faculdades intelectuais e desejos, e com isso damos mais um passo, inclusive no sentido de distinguir algum sentido na simbologia do ``fruto'' do conhecimento, já que os desejos alimentares, junto aos sexuais, são os mais elementares.

Daremos outro passo seguindo a seqüência dos acontecimentos míticos, na qual Adão e Eva dão-se conta que estão nus, e cobrem-se com folhas de parreira3.15. Introduz-se, assim, na vergonha da nudez, o elemento sexual. Neste ponto, é necessário que um outro protagonista do episódio entre em cena: a serpente.

No artigo Adam,3.16 o mesmo Rabi Israel Chait, tratando da serpente, destaca a relevante presença do elemento sexual no conflito inerente à ``natureza humana'' após o pecado:

``O pecado era um estímulo exterior. É por isso que a serpente era exterior. (...) Há um argumento sobre até que ponto a serpente é simbólica ou não. De todo modo, o conceito é o mesmo. O ensinamento é o mesmo, originalmente o pecado era um estímulo exterior, posteriormente internalizado. O que aconteceu no instante em que foi internalizado? Foi neste momento que ocorreu o desastre fatal para o homem. Por que um desastre fatal? Porque se o estímulo é internalizado, então o homem está acabado. Expulsá-lo não é mais, de modo algum, uma questão fácil. Todo o propósito de Adão consistia em que fosse feita uma criatura permanentemente envolvida em pensamento, mas agora isto não será o mesmo. Então o que foi acrescentado? A consciência. A consciência sempre opera contra os instintos. O instinto, os desejos de Adão. Segundo a Torá, os instintos principais são aqueles de natureza sexual. (...) O intelecto não é mais livre. As energias são direcionadas para o instinto e os instintos são tão poderosos que corrompem o processo do pensamento. O que é racionalização? Os instintos querem possuir o que desejam e a partir daí eles racionalizam (...)''

Temos aqui a Queda resumida na perda da capacidade, ou melhor, na maior dificuldade do intelecto em controlar os desejos sexuais. Mas o que tem isso a ver com a condenação ao trabalho? Ora, de certo modo foi a serpente que condenou a humanidade ao trabalho. Vejamos de que maneira pôde fazê-lo, agregando à imagem da serpente tentadora uma interpretação cabalista clássica de sua simbologia que talvez ilumine nosso problema, no que pese a obscuridade de certas passagens.

No trecho que segue, somos informados de que, antes da transgressão e da Queda, o ``jugo do domínio e do serviço'' (do trabalho?) encontrava-se sob responsabilidade... da serpente! Conforme nos informa Scholem,

``Gikatila [Espanha, séc. XIII] escreveu um breve tratado (...) sob o título Sod Há-Nahasch U-Mischpató, `O Mistério da Serpente e do Julgamento sobre Ela' (...): `Saiba que a serpente desde o começo de sua criação representou algo importante e necessário para a harmonia, enquanto permaneceu em seu lugar. Ela era um grande servidor que foi criado para carregar o jugo do domínio e do serviço [do trabalho?]. (...) E sem ela [sem o trabalho?] não viveria nenhuma criatura em todo o mundo sublunar [a Terra?] e não haveria nenhuma semeadura, nenhuma vegetação, nenhuma incitação para a propagação de todas as criaturas [simbologia fálica que liga trabalho a fertilidade?]. Esta serpente encontrava-se originalmente fora dos muros das santas regiões e estava por fora ligada com o muro externo, pois seu corpo interno conectava-se com o muro, enquanto seu focinho se voltava para fora. Não lhe competia vir para dentro, mas seu lugar e lei eram produzir de fora a obra da vegetação e da propagação, e este é o mistério da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Por isso advertiu Deus ao primeiro homem para que não tocasse na Árvore do Conhecimento, enquanto o Bem e o Mal estivessem ambos a ela ligados, um por dentro e outro por fora. Ele deveria esperar muito mais a fim de separar mais tarde o prepúcio da Árvore, que o primeiro fruto representava. Adão, porém, não esperou, tomando prematuramente do fruto e introduziu com isso um `ídolo no Santo dos Santos', de modo que o poder da impureza penetrou de fora para dentro...''3.17

O Bem e O Mal então estavam ligados à Árvore ``um por dentro e outro por fora'', ou seja, estavam diferenciados. Vimos ainda que o Bem seria o intelecto não subordinado aos desejos sexuais (e alimentares), e o Mal, sua subordinação, mas não só aos desejos como também ao ``jugo do domínio e do serviço'', ambos representados na simbologia da serpente. Quando a serpente entrou onde não devia, Eva pecou, seguida por Adão. Este pecado, de acordo ainda com uma outra interpretação rabínica, que somente reitera as conclusões a que chegamos, indica que o fruto proibido não seria ``do Bem e do Mal'', ou ``do conhecimento'', mas do conhecimento da indiferenciação entre Bem e Mal.3.18 Ora, se a interdição não era ao conhecimento do bem e do mal, mas à sua indiferenciação, o que representaria este conhecimento senão o da necessidade? Pois só a necessidade, a qual Marx opunha a liberdade, indiferencia bem e mal. E só a libertação da necessidade os distingue. Pois em todas as sociedades divididas em classes, Bem e Mal são construções simbólicas erigidas pelas classes dominantes, que são as classes livres, que vivem do trabalho das classes necessitadas, não livres, necessário à reprodução da liberdade de uns e da necessidade de outros.

Jeová, sob este prisma, revela-se menos cruel (por incrível que pareça, com o auxílio de Freud e de Marx, que provavelmente desconheciam a obra de Gikatila): a interdição referia-se não ao conhecimento, não à sexualidade e à alimentação, mas à subordinação do intelecto a ambas, isto é, à bestialização. Paralelamente, não ao gosto do conhecimento, mas ao desgosto bestializante da necessidade. Contudo, após a Queda, este desgosto acabou consagrado como a condição para o gosto do conhecimento, o que parece paradoxal. Recapitulemos. No tempo mítico, Eva pecou, enganada pela serpente e iludida pela aparência saborosa do fruto, pois contrariou o projeto divino.3.19 Assim, segundo o projeto divino, o homem estaria livre da necessidade, portanto da ignorância, da bestialidade e do desgosto, caso não houvesse pecado.3.20 Porém, segundo a escatologia judaica, o pecado pode ser e será remediado, e o paradoxo será superado, pois o judaísmo entende que a penitência é necessária para a purificação, isto é, a separação do sagrado (o que possui significado superior) do profano (o caótico), conforme veremos mais adiante. Como isto será possível? Através da ação humana (do trabalho?), pois no tempo histórico, talvez o paraíso não esteja na origem, mas no fim, ou melhor, no seu recomeço verdadeiramente humano, isto é, à imagem e semelhança de Deus. É o que podemos deduzir da seguinte reflexão de Paulo Blank, quando se refere ao

``encontro fundador de Deus e Moisés. Quando o último pergunta em nome de quem ordenará ao faraó que liberte os hebreus, a voz que lhe fala de dentro do fogo diz: `Ehiê Asher Ehiê - Serei O Que Serei'. A versão grega do texto bíblico traduzirá a mesma frase como `Sou O Que Sou'. São palavras diferentes (...) O hebraico, que não possui o presente do verbo ser, permite pensar um mundo criado à imagem da mutabilidade e da transformação (...) Diríamos, então, junto com Guikatilla, cabalista espanhol do século 11, que aquele que realiza os preceitos e os atos justos `é como se construísse Hashém - o nome de Deus'. Construir o Nome é, sem dúvida, intrigante. Transforma-nos em possíveis parceiros na construção de um futuro que, chamado de Deus, traz em si um princípio que aponta para o futuro como o lugar da revelação. Como sabemos, o sentido judaico da revelação é também o cenário de um mundo de justiça e paz e não a salvação individual da alma.''3.21

O que isso significa? Tendo a necessidade do trabalho se imposto desde os primórdios, seguiu-se o desejo de um paraíso que nos libertasse da condenação ao trabalho, ``realizado'' na religião (na construção de um projeto divino que prometesse o paraíso e que explicasse as razões de seu adiamento temporal), na utopia política (na construção de um projeto humano do mesmo teor), na sublimação artística, nas drogas, nas atividades lúdicas e no gozo sexual, ou no amor. Conforme ensina Freud,

``A vida comunitária dos seres humanos teve (...) um fundamento duplo: a compulsão para o trabalho (...) e o poder do amor. (...) Eros e Ananke [Amor e Necessidade] se tornaram os pais também da civilização humana.'' (Freud, 1974, p. 59)

Prometeu, de fogo, em outras plagas, abrindo as portas de outra civilização, também pagou um preço por sua desobediência ao deuses, contraindo uma eterna cirrose hepática, enquanto Adão e Eva, na peculiar sincronia do tempo mítico, eram expulsos do paraíso e pegavam o Bonde São Januário, aquele que leva mais um operário para o trabalho, segundo Ataulpho Alves e Wilson Batista, ou mais um otário, segundo as más línguas,3.22 pois a condenação ao trabalho - ou ao desemprego - parece eterna...

Porém, a mesma civilização que se ergue sobre o confronto entre Ananke e Eros produz os conhecimentos necessários para subordinar Ananke a Eros. Pois desta conflituosa e imperativa união entre Eros e Ananke nasce Logos.

E nasce também a divisão da sociedade em classes e a instituição da escravidão. Como conseqüência tardia, no campo simbólico (religioso, neste caso), o paraíso foi escatológica e gloriosamente transferido para a morte, como Nietzsche bem o demonstrou,3.23 de um modo até certo ponto parecido ao de Marx, que afirmou:

``O cristão primitivo, nada possuindo neste mundo, contentava-se com a ilusão de vir a possuir alguma coisa no céu, com os seus títulos de propriedade divina. (...) Na realidade (...) não passava na maior parte das vezes de propriedade do mundo dos proprietários; era um escravo que podia ser vendido.'' (Marx, 1980, pp. 233, 234)

Platão, alguns séculos antes do cristianismo, assinou embaixo: saber de luz, sabor de sombra - e os escravos que sirvam o banquete. Então o sabor dos saberes e o saber dos sabores, isto é, o gosto, cindiu-se de sua acepção original:

``(...) nas lições de 1872 sobre os filósofos pré-platônicos, o jovem filólogo Nietzsche nota a propósito da palavra grega sophos, `sábio': `Etimologicamente, pertence à família de sapio, degustar, sapiens, o degustante, saphes, perceptível ao gosto. Nós falamos de gosto na arte: para os Gregos, a imagem do gosto é ainda mais alargada. Uma forma redobrada, sisyphos, de forte gosto (ativo); também sucus pertence a esta família'[1872-73, pp. 253-254].'' 3.24

A divisão da sociedade em senhores e escravos, entre trabalho intelectual e braçal, cuja refração simbólica hegemônica, ideologicamente legitimadora, cristalizou-se na metafísica platônica e no cristianismo, estabeleceu assim uma cisão radical entre matéria e espírito, entre corpo e intelecto, entre sabor e saber, perpetuada através dos séculos na chamada cultura ocidental: de Platão aos dias de hoje, para melhor subordinar Ananke, Logos tomou o lugar de Eros.3.25

Porém, assim como Ananke, Eros não subordina-se incondicionalmente. Para mitigar sua ação desagregadora, Logos lhes faz concessões pontuais: matrimônio, prostituição, arte, religião etc. Em diferentes períodos históricos e contextos sociais, tais concessões adquirem forma distinta, sendo que algumas tornam-se hegemônicas e outras contra-hegemônicas. A racionalidade tecnocrática do capitalismo radicaliza a cisão e privilegia, na esfera produtiva, o saber sem sabor, e a indústria cultural, sua cria, promove o sabor sem saber, na esfera do consumo e do ``tempo livre'' - sem falar do pouco saber e do imenso dissabor, na esfera do trabalho de baixa qualificação e na exclusão social.

Mas o homo sapiens, ao menos para fazer jus ao nome que ele mesmo se atribuiu, deveria, ao mesmo tempo em que busca o saber, buscar o sabor, isto é, ser um homem degustante; só que não o é na medida de sua potência socialmente recalcada. Quando o é, tende a tornar-se menos sábio. Isto não é fruto do acaso, mas da divisão da sociedade em classes, cuja versão contemporânea é o capitalismo turbinado.

Avancemos agora um pouco mais em nossa investigação com uma belíssima reflexão de autoria do Rav Kook (1865-1935) - segundo Gershom Scholem, o último grande cabalista -, referente ao tema do gosto e do fruto proibido:3.26

``No princípio da criação pretendia-se que a árvore tivesse o mesmo gosto do fruto (Gênesis Rabba 5:9). Todas as ações que auxiliam a sustentação de qualquer meta espiritual de valor deveriam de direito ser experimentadas na alma com o mesmo sentimento de elevação e deleite que a própria meta quando a vislumbramos. Mas a existência terrena, a instabilidade da vida, a fadiga do espírito quando confinado em uma armadura corporal fazem com que somente a fruição do último degrau, que incorpora o ideal primordial, seja experimentada como prazer e esplendor. (...) As árvores que dão o fruto, com toda a necessidade de crescimento que o fruto tem, tornaram-se matéria inferior e perderam seu gosto. Esta é a queda da `Terra', em função da qual esta foi amaldiçoada, quando Adão foi igualmente amaldiçoado por seu pecado. Mas todo defeito é destinado a ser corrigido. Assim, estamos seguros que chegará o dia em que a criação retornará ao seu estado original, quando o gosto da árvore será o mesmo que o do fruto. A `Terra' se arrependerá de seu pecado e os caminhos da vida prática não mais obstruirão o deleite do ideal, que é sustentado pelos degraus intermediários apropriados em seu caminho rumo à realização, e irá estimular sua emergência de potência em ato.

A própria penitência, que ativa o espírito interior submerso nas profundezas do caótico e do antitético à meta ideal, possibilitará que a aspiração do ideal penetre em todas as influências condicionantes, e em todas elas será degustado o esplendor da meta ideal. Ela o fará alargando a extensão da ação para o ideal de justiça. O homem não mais sofrerá a desgraça da indolência no caminho para a vida verdadeira.'' (Kook, 1978, pp. 59-60)3.27

Nesta passagem, Rav Kook lida com o famoso midrash concernente ao pecado da Terra durante os Seis Dias da Criação. No terceiro dia, Deus ordenou à Terra que ``produza ÁRVORES FRUTÍFERAS que dêem frutos''. A Terra desviou-se do comando original e limita-se a produzir ``árvores que dão frutos''. Aos olhos dos Sábios, a Terra pecou por não produzir ``árvores frutíferas'', isto é, árvores cujos troncos e galhos tenham o gosto do fruto. Ao invés disso, temos somente o exterior marrom usado para fogueiras, enquanto somente o fruto possui um gosto bom. (...) Rav Kook explica este midrash como uma parábola:

Fruto = os fins

Gosto [ta'am] = a inspiração

Árvore = os meios para que se atinja os fins

(...) Originalmente os meios para se atingir os fins deveriam estar plenos do mesmo sentimento de prazer e inspiração que resulta dos fins. A satisfação dos fins penetraria o processo dos meios. Porém, o pecado da Terra deixou toda a inspiração nos fins, restando os meios sem gosto.(...) Identifiquemos agora estas idéias ``árvore e fruto'' e ``meios e fins'' com uma nova série de conceitos: Kodesh e Chol (sagrado e profano). O conceito de Rav Kook dos meios e fins serve como base para a sua compreensão da relação entre Kodesh e Chol.

Kodesh é o gosto interior da realidade; é o significado da existência. Chol é aquilo que é destacado de Kodesh, tornando-se insípido, neutro, sem nenhum significado. (...) Quanto mais o processo dos meios (árvore) se fixa nos fins (fruto), mais sabor e significado (ambos os termos são traduções da palavra hebraica ``ta-am'') ele terá.

Por outro lado, quanto mais os meios dão as costas ao que deveria ser seu fim último, mais se tornam sem gosto, superficiais e vazios. O judaísmo visa educar-nos para que santifiquemos nossas vidas, ou em outras palavras, para que coloquemos o gosto do fruto de volta na árvore.

Temos então um dado novo e surpreendente: da leitura do Rav Kook, pode-se deduzir que o pecado de Eva é posterior ao pecado da própria Terra, pois esta fora criada antes do homem e da mulher; Deus havia-lhe ordenado que produzisse árvores que possuíssem o mesmo gosto dos seus frutos. A Terra, pois, pecou (isto é, falhou), já que os troncos e galhos das árvores não possuem o gosto dos frutos. Se os troncos e galhos simbolizam os meios para atingir a meta (o fruto), e deveriam ser da mesma ordem de inspiração (de gosto, sabor/saber) que os fins, não o são porque a Terra falhou. É aqui, pois, um problema ontológico da matéria (da imanência). Por outro lado, a missão do homem seria redimir o pecado da Terra (e o seu próprio, pois a raiz da palavra hebraica que designa o primeiro homem, Adam, é a mesma de Adamá, a Terra) e restaurar a ordem divina (transcendente), tornando os meios de se atingir um fim tão inspiradores (saborosos e plenos de significado) quanto este. Ou seja, através de sua prática, o homem deve transcender o pecado original da Terra, redimindo-a e redimindo-se, e estabelecer aquela ordenada por Deus, segundo a qual os meios têm que ser inspiradores e sagrados, isto é, plenos de sabor e significado.

Em termos materiais, no que consiste o ``pecado da terra'' e a ``Queda''? Na escassez, que gera o desgosto da necessidade! E se todos os meios para que se atinja qualquer fim poderiam ser simplesmente chamados de trabalho, a condenação que pesa sobre o homem é, pois, a ausência de gosto - de inspiração, de sabor e de significado - no trabalho. A Terra pecou e seu pecado conduziu o homem a pecar. Ambos os pecados significam a desobediência ao projeto divino. Ambos os pecados tiveram como conseqüência imediata a subordinação do homem ao império de Ananke, oposto ao da liberdade: a escassez e o trabalho sem inspiração, cuja forma radical encontra-se primeiro na escravidão e, mais tarde, no trabalho ``livre'' alienado, cujos extremos são a miséria alimentar e erótica.

Dissemos que Eros gera Logos de Ananke. Em seguida, Logos subordina Eros e Ananke a si. Em termos sociais concretos, a divisão do trabalho em intelectual e braçal, considerando a subordinação do último ao primeiro, faz com que, nos extremos sociais, as liberdades, os prazeres e os conhecimentos de uns poucos sejam erguidos sobre a necessidade, o desgosto e a ignorância da maioria dos sujeitos (que são sujeitos, dominantes e dominados, por estarem sujeitados às determinações da estrutura produtiva). Pois se para que se desfrute a vida é antes necessário que estejam satisfeitas as necessidades vitais, e que um dado modo de produção hegemônico e suas relações sociais (antes de tudo, de trabalho) correspondentes são os fatores que determinam como estas necessidades deverão ser satisfeitas, indiretamente também determinam de que forma uns e outros desfrutarão a vida. Assim, até os gostos, tanto na acepção usual quanto na original, mais dilatada, são determinados em última instância pela luta de classes.3.28

Porém, como vimos, Rav Kook nos lembra que ``todo defeito é destinado a ser corrigido. Assim, estamos seguros que chegará o dia em que a criação retornará ao seu estado original, quando o gosto da árvore será o mesmo que o do fruto''.

Se trata-se de um princípio universal, deve valer para todos os homens. O problema é que - e é precisamente isto que constitui a contradição capital de nossa época -, de uma perspectiva materialista secular, este ``dia'' já chegou e o ``pecado da Terra'' pode ser redimido pelo homem. Porque se em estágios arcaicos da civilização a escassez, e o domínio e o conhecimento limitados do homem sobre a Terra (portanto, sobre a natureza e sobre si mesmo, Adam) não lhe permitiam realizar a tarefa ``redentora'', os de hoje lhe permitem. A tarefa não é realizada, porém, porque escapa à lógica interna do capital (determinante, automática, independente da vontade humana, mesmo da vontade do capitalista), à qual subordinam-se igualmente Ananke, Eros e Logos.

Se pensarmos, porém, a noção de transcendência como referente ao tempo e não à matéria, isto é, como transcendência histórica,3.29 nos surpreenderemos com a constatação de que a ``missão'' do homem deduzida da reflexão do Rav Kook encaixa-se bastante bem com a meta de uma sociedade livre do trabalho alienado (sem sabor e sem significado).3.30

Há ainda um conceito judaico, Tikun, que refere-se diretamente à esta ``tarefa redentora do homem''. Nas palavras de Scholem,

``Extinção de nódoa, restauração da harmonia - é este o significado da palavra hebraica tikun, que é o termo empregado pelos cabalistas, após o período do Zohar, para designar a tarefa do homem neste mundo. No estado de redenção (...) ``haverá perfeição em cima e embaixo, e todos os mundos serão unidos num vínculo''. (Scholem, 1995, p.259)

Provavelmente os cabalistas se referem à união entre os mundos espiritual e material. Seria obtuso, porém, tomarmos a liberdade de pensar que esta união pode também referir-se ao fim da cisão entre os meios e os fins, entre o trabalho braçal e o intelectual, entre a labuta e a satisfação, entre o dessabor e o saber? Não nos parece, se pensarmos com o Rav Kook, que também escreveu, desta vez em verso: ``Por que desperdiçar sua substância no que não alimenta / e o seu labor no que não satisfaz?''3.31

Há ainda um outro conceito judaico, oshek, que relaciona-se com esta problemática, fazendo parte do receituário das ações corretas que conduzirão à vinda do Messias e à restauração do paraíso. Dentro da kashrut (preceitos alimentares, o termo kosher indicando ``próprio para o consumo''), entre as mais diversas explicações - nutricionais, ecológicas, alegóricas3.32 etc. - para que determinado alimento seja ou não considerado kosher, oshek significa a proibição de oprimir o trabalhador. Conforme nos informa o rabino carioca Nilton Bonder,

``Os rabinos, numa proposta quase revolucionária, criaram um conceito chamado Oshek, que é a proibição de oprimir os trabalhadores ou de explorar os consumidores. A partir desta noção poder-se-ia dizer que uma cadeia alimentar ``para a vida'' pressupõe que sejam considerados não-comestíveis os alimentos produzidos ou comercializados nestas condições. É como se o trabalho humano fosse parte do processo que se desencadeia até o alimento chegar à nossa boca, e a exploração serve como um ``elemento químico'', poluente, nesta cadeia alimentar. Este conceito postula que mais cedo ou mais tarde este alimento vai acabar por lhe causar um mal, que obviamente não diz respeito à qualidade do alimento, mas sim ao que ele representa. (...) Nossa passividade em ingerir produtos que exploram o trabalhador ou o consumidor acaba por digerir-se em nós. De nossa comida herdamos mais passividade.'' (Bonder, 1999, p. 84)

Até onde sabemos, contudo, esta ``proposta revolucionária'' não enxergou as relações de trabalho sob a superfície do mercado, opressão significando apenas trapaça do empregador ou baixos salários. Ora, salários ``justos'' são uma impossibilidade concreta dentro do modo de produção capitalista. Além disso, tanto a noção do tikun a olam quanto a do ``construir o nome de Deus'' através da ação humana, a que se refere Blank, envolvem uma rede tão complexa de ações e interdições - muitas delas incompreensíveis sem o auxílio de um erudito que nos explique e convença de sua razão de ser, simbólica e prática -, virtualmente irrealizáveis em sua totalidade, que a construção do paraíso na terra só pode permanecer uma missão impossível, embora um desafio permanente.

Já a ética protestante, corolário da prática capitalista, há mais de trezentos anos, vêm realizando de certo modo, ironicamente, em sua louvação ao trabalho, a missão de sacralizar os meios, mas de um modo contraditório e perneta, por assim dizer. Como observou Weber, para a ética protestante

``(...) o mais importante é que o trabalho constitui, antes de mais nada, a própria finalidade da vida (...) A diferenciação dos homens em camadas e vocações, estabelecida através do desenvolvimento histórico, como vimos, tornou-se para Lutero um resultado direto da vontade divina, e, conseqüentemente, a permanência de cada um na posição e dentro dos limites que lhe foram assinalados por Deus, um dever religioso.'' (Weber, 1967, pp. 113, 114)

É evidente que não foi levado em consideração pela ética protestante, quanto a esse ``dever religioso'', nem a questão do significado e do sabor particulares de um determinado trabalho, muito menos a discussão dos seus fins, que tornaram-se tautológicos, meros suportes para a transformação de capital em mais capital.

O capitalismo turbinado contemporâneo, por sua vez, com a crescente automação da produção, levou o projeto adiante, refinan- do-o de modo perverso, ao liberar o homem de grande parte do trabalho sem significado e sem inspiração, isto é, sem gosto, mas jogando fora o bebê junto com a água do banho, pois o homem também tornou-se sem significado e sem inspiração para o capital. Não se jogou de todo fora, porém, a perspectiva de uma transcendência histórica materialmente possível, embora há quem se esforce vigorosamente por fazê-lo.

Já a indústria cultural turbinada, porta-voz do capitalismo financeiro globalizado, acentua a separação dos fins, dos meios e da inspiração, isto é, reforça a perpetuação da divisão da sociedade em classes, não somente ao privilegiar a ideologia da divisão trabalho (alienado) / lazer (consumista),3.33 não somente subordinando toda produção simbólica socializada a imperativos econômicos de ganho de escala, não somente no seu conservadorismo estético populista, não somente na retroalimentação reificante de gostos e padrões de comportamento sobredeterminados, mas sobretudo na construção de um imaginário coletivo comum desprovido de lastro em experiências concretas comuns, homogeneizando gostos, práticas e visões de mundo através de um processo de recalcamento de produção simbólica, que existe em potência e em ato nas experiências concretas extra-midiáticas - não-comuns em escala massiva, mas fragmentadas em classes e frações de classes, gêneros, etnias, faixas etárias, nacionalidades etc. -, mascarando assim a luta de classes e seus desdobramentos culturais. Mascarando-a, porém, sem eliminá-la; pois se a indústria cultural contemporânea praticamente conquistou para si alguns dos tradicionais atributos divinos, isto é, a onipresença e a onisciência, não dispõe de onipotência. E é precisamente na potência das práticas concretas extra-midiáticas, nos movimentos de luta e cooperação entre as pessoas, em sua resistência à própria coisificação e obsolescência biopolítica, que reside o detonador da transcendência histórica, da conversão da quantidade em qualidade, do sabor em saber, do saber em sabor, do desgosto em gosto, de necessidade em liberdade, a potência que os judeus antigos denominaram Tikun.

Hipótese para uma genealogia biopolítica do gosto

Ninguém em sã consciência duvida que para haver linguagem, semiótica, pós-modernismo, simulacros, ``customização de massa'', reality shows e chikabon é necessário que antes haja vida:

``(...) devemos lembrar um pressuposto de toda a existência humana e, portanto, de toda a história, a saber, que os homens devem estar em condições de poder viver a fim de `fazer história'. Mas, para viver, é necessário antes de mais beber, comer, ter um tecto onde se abrigar, vestir-se etc. O primeiro fato histórico é pois a produção dos meios que permitem satisfazer essas necessidades, a produção da própria vida material; trata-se de um fato histórico, de uma condição fundamental de toda a história, que é necessário, tanto hoje como há milhares de anos, executar dia a dia, hora a hora, a fim de manter os homens vivos.'' (Marx, 1980, p. 32)

Para que haja vida, deve haver ar, água e comida. O ar é de graça; a água e a comida demandam esforço, trabalho. Se esse esforço e esse trabalho foram uma condenação e não uma inspiração, isso deveu-se, como vimos, primeiro ao ``pecado da Terra'', ou, em outras palavras, à escassez natural e à precariedade dos meios de produção sociais; em seguida, alguns poucos fugiram à condenação, lançando-a em dobro sobre os demais, através da divisão do trabalho, o que ao mesmo tempo favoreceu o desenvolvimento das forças produtivas; hoje, a condenação ao trabalho (e ao desemprego) deve-se somente à irracionalidade automática do capitalismo. Não há mais desculpas materiais ou metafísicas. Pois a divisão da sociedade em classes, que nos conduziu ao capitalismo, já realizou sua potência histórica de desenvolver as forças produtivas em uma escala suficiente para atender a todas as necessidades primárias e a boa parte das secundárias de todos os homens - só que não o faz, reforçando a condenação ao trabalho sem gosto ao limite da exclusão do trabalho, seu paroxismo.

Com o advento do capitalismo, o corpo do trabalhador braçal foi reduzido a auxiliar de máquinas; com a automatização crescente, vem tornando-se, em números alarmantes, desnecessário para o capital.

Vejamos se o conceito gosto, tal qual nós o entendemos, pode nos auxiliar a iluminar alguns aspectos obscuros deste problema.

Agamben propôs em seu ensaio sobre o gosto:

``Uma situação do gosto como lugar privilegiado onde emerge a fratura do objeto do conhecimento em verdade e beleza e do telos ético do homem (...) em conhecimento e prazer, que caracteriza essencialmente a metafísica ocidental. Na formulação platônica, esta fratura é antes tão original que se pode dizer que ela mesma constitui o pensamento ocidental, não como sophia, mas como philo-sophia. Só porque verdade e beleza se acham originalmente cindidas, só porque o pensamento não pode possuir integralmente o seu objeto, este deve tornar-se amor da sabedoria, isto é, filosofia.'' (Agamben, 1992, p. 140)

Partindo deste mesmo ``lugar privilegiado'', esboçaremos, como hipótese, uma genealogia biopolítica da possível razão de ser desta ``fratura'', desta cisão entre verdade e beleza, considerando a relação entre o corpo, o trabalho e a cultura, com o objetivo de identificar a relevância (ou a irrelevância, se estivermos enganados) do gosto neste processo. Antecipamos que a ``fratura do objeto do conhecimento em verdade e beleza'' e ``do telos ético do homem em conhecimento e prazer'' só pode ter sido antecedida pela fratura das relações de trabalho em trabalho intelectual e trabalho braçal. Vejamos se isso procede.

A cultura ocidental tem estabelecido ao longo dos séculos uma hierarquização dos sentidos. É ainda Agamben quem nos informa que

``Em oposição ao estatuto privilegiado atribuído à vista e ao ouvido, na tradição da cultura ocidental, o gosto é classificado como o sentido mais baixo, cujos prazeres o homem partilha com os outros animais [Aristóteles, Ética a Nicómaco, 1118] e a cujas impressões não se mistura ``nada de moral''[Rousseau 1761, cap. XV]. Ainda nas Lições sobre a Estética, de Hegel [1817-1829], o gosto é oposto aos dois sentidos `teoréticos', vista e ouvido, porque `não se pode degustar uma obra de arte como tal, porque o gosto não deixa o objeto livre para si, mas tem que ver com ele de modo realmente prático, dissolve-o e consome-o' (trad. It. P. 696)''4.1

Ou seja, o gosto seria de algum modo um sentido inferior, portanto inadequado como metáfora para o juízo estético e moral, embora, por alguma razão misteriosa, tenha-se consagrado como tal aparentemente em todas as línguas ocidentais.

De onde advém a repulsa de alguns filósofos ao gosto?4.2 Do fato de a satisfação do gosto nos aproximar dos animais, isto é, do nosso próprio corpo? Do fato de a satisfação do gosto do filósofo requerer trabalho braçal de outrem, com o qual ele não pretende se identificar?

Rousseau disse que o gosto não possui ``nada de moral''. Não? Então por que razão ordenava o Senhor: ``Temperarás com sal toda a oblação da tua offerta de cereaes, e não deixarás faltar à tua offerta de cereaes o sal da alliança de teu Deus.'' (Levítico, p. 102, 2:, 4, 13)

Segundo Agamben, Hegel afirma a impossibilidade de se degustar uma obra de arte porque o gosto consome e dissolve seu objeto. Mas não seria precisamente desta relação visceral entre sujeito e objeto, ainda que mediada pela razão, que advém a fruição estética na sua máxima potência?

Voltaire, com sua clareza habitual, definiu o problema nos seguintes termos:

``O gosto, este sentido, este dom de discernir nossos alimentos, produziu em todas as línguas conhecidas a metáfora que exprime, pela palavra gosto, o sentimento das belezas e dos defeitos em todas as artes: é um discernimento rápido, como o da língua e do palato, e que como ele antecede a reflexão; como ele, é sensível e voluptuoso em face do bom; como ele, rejeita o ruim com repulsa; como ele, é freqüentemente incerto e fugidio, ignorando mesmo se o que se lhe apresenta deverá agradá-lo, e tendo às vezes necessidade de hábito para formar-se.(...)

Não basta, para o gosto, ver, conhecer a beleza de uma obra; é necessário senti-la, ser tocado. Não basta sentir, ser tocado de uma maneira confusa; é necessário desvendar as diferentes nuances. Nada deve escapar à prontidão do discernimento, e trata-se ainda de uma semelhança deste gosto intelectual, deste gosto pelas artes, com o gosto sensual: pois o gastrônomo sente e reconhece rapidamente a mistura de dois licores; o homem de gosto, o especialista, verá num lance de vista veloz a mistura de dois estilos; ele verá uma falha ao lado de um acerto.''4.3

Enquanto Voltaire propõe nesta passagem uma espécie de síntese entre sensibilidade e discernimento intelectual encarnada na figura do conaisseur, Kant, na Crítica da Faculdade de Juízo, distingue duas formas de prazer: o desinteressado e o agradável, sendo o primeiro superior ao segundo. Embora afaste-se da estética do classicismo ao rejeitar a possibilidade de uma conceituação do belo, Kant postula a superioridade de uma faculdade de juízo universal e desinteressada, isto é, imune à satisfação imediata dos sentidos pelo objeto estético. A este respeito Bourdieu identifica o caráter ideológico da crítica kantiana:

``O princípio do gosto puro, de Kant, não é nada além de um recusa, de uma aversão - uma aversão por objetos que impõem o gozo e uma aversão pelo gosto bruto, vulgar, que festeja este gozo imposto. (...) Então, em contraste com a inclinação provocada pelo `agradável', que, diferente da beleza, é comum aos homens e animais (p. 49), é capaz de seduzir `aqueles que estão sempre em busca somente do gozo' (p. 45; também 47, 117) e `satisfaz imediatamente os sentidos' (p. 54) - enquanto é `mediatamente desprazeroso' para a razão (p. 47) - o `gosto puro', o gosto pela reflexão (p. 54), oposto ao `gosto sensual' como os `encantos' são opostos à `forma' (pp. 65, 67), tem que excluir o interesse e não pode `estar minimamente predisposto em favor da existência real do objeto' (p. 43).

(...) O objeto que `insiste em ser gozado', como uma imagem e na realidade, em carne e osso, neutraliza tanto a resistência ética quanto a neutralização estética; aniquila o poder de distanciamento da representação, o poder essencialmente humano de suspender o imediato, a conexão animal com o sensível (...) Diante deste duplo desafio à liberdade humana e à cultura (a anti-natureza), a aversão é a experiência ambivalente da horrível sedução do odioso e do gozo, que efetuam uma certa redução à animalidade, à corporeidade, à barriga e ao sexo, isto é, ao que é comum e portanto vulgar, removendo qualquer diferença entre os que resistem com toda a sua força e os que chafurdam no prazer, que gozam o gozo (...) no texto de Kant, a aversão descobre com horror a animalidade comum, na qual e contra a qual a distinção moral é construída: `Enxergamos como baixo e vulgar os hábitos de pensamento dos que não possuem sentimentos para a beleza natural... e que se devotam ao mero gozo sensual comendo e bebendo (p. 162).

Em outra parte, Kant praticamente explicita a base social da oposição entre o `gosto da reflexão' e o `gosto sensual': `No princípio, o noviço só pode ter sido guiado exclusivamente pelo instinto, esta voz de Deus que é obedecida por todos os animais. Isto permitiu que algumas coisas fossem utilizadas para a nutrição enquanto outras eram proibidas. Aqui não é necessário identificar um instinto especial que está hoje perdido. Pode ter sido simplesmente o sentido do olfato, somado à sua afinidade com os órgãos gustativos e a bem conhecida relação entre os últimos e os órgãos digestivos: em resumo, uma habilidade, perceptível ainda hoje, de sentir, antes do consumo de um dado alimento, se ele é ou não adequado para o consumo. Tampouco é necessário reconhecer que esta sensibilidade era mais aguçada no primeiro casal do que é hoje. Pois é suficientemente familiar o fato de que o homem totalmente absorvido em seus sentidos possui maiores poderes perceptivos do que aqueles que, ocupados tanto com o pensamento quanto com os sentidos, em certo grau se afastam destes.'

Reconhecemos aqui o mecanismo ideológico que atua através da descrição dos termos de oposição [que alguém estabelece] entre as classes sociais como estágios de uma evolução (aqui, o progresso da natureza à cultura). (...) A antítese entre cultura e prazer corporal (ou natureza) está ancorada na oposição entre a burguesia cultivada e o povo, o local imaginário da natureza não cultivada, barbaramente chafurdando no puro gozo: `O gosto que demanda um outro elemento de encantamento e emoção para o seu deleite, para não falar na adoção deste como a medida para a sua aprovação, ainda não emergiu do barbarismo' (p. 65).'' (Bourdieu, 2000, pp. 498-490)4.4

Nietzsche, a seu modo, também percebe o caráter classista dos juízos hegemônicos:

``O Bem e o Belo. - Os artistas glorificam sem cessar - não fazem senão isto -: glorificam todas as situações, todos os objetos que têm a reputação de levar o homem a sentir-se bom, ou grande, ou ébrio, ou alegre, ou são e sábio. Estas situações, estes objetos de eleição, que possuem para a felicidade humana um valor estimado como certo e estabelecido, constituem o objeto da obra dos artistas: os artistas estão sempre vigilantes para encontrá-los afim de convertê-los em matéria para a arte.

Eu penso, não que eles próprios definam o que é felicidade ou evento feliz, mas que sempre se apressam em se aproximar dos definidores com a maior curiosidade e com o desejo vivo de desfrutar de suas definições. Assim, possuindo, além de sua impaciência, pulmões de pregadores e pés de corredores, eles aparecem sempre como os primeiros a glorificar os novos valores, passando com freqüência por serem quem os descobriu e definiu. Mas, eu o repito, isto é um erro: eles são somente mais rápidos e barulhentos que o verdadeiros definidores. E quem são estes afinal? Os ricos e os ociosos.'' (Nietzsche, 1950, p. 124)

Nietzsche também se opõe com violência à condenação moral do corpo e dos sentidos, que atravessa toda a história da metafísica ocidental. Nas palavras de Luc Ferry,

``Na verdade, por temor da sensualidade (sempre `imoral') é que se chega a depreciar a sensibilidade (sempre `falaciosa'). Aos olhos do `genealogista' (como mais tarde aos olhos do psicanalista), as teses filosóficas são sempre `racionalizações', `sintomas', como já diz Nietzsche, são a expressão fetichizada de certo pathos, ou até de uma patologia.'' (Ferry, 1994, p.214)4.5

Coerente com sua aversão à recusa da sensibilidade, Nietzsche chega ao ponto de afirmar: ``Antes se deixar roubar que utilizar espantalhos; esse é o meu gosto. E é sempre uma questão de gosto, nada além que de gosto.'' (1950, p. 198)

Agamben deduz a aplicação metafórica do termo gosto do fato de tratar-se ``do mais opaco dos sentidos'', identificando-o como um ``saber, onde viria a suturar-se a cisão metafísica entre sensível e inteligível'', ``um saber que o sujeito propriamente não sabe, porque não o pode explicar, um sentido falho ou excessivo, que se situa na interferência de conhecimento e prazer''.

Sem nos opormos propriamente a este raciocínio, propomos uma outra alternativa, de certo modo buscando responder, ainda que parcialmente, à seguinte questão formulada por Nietzsche:

``Vosso juízo `isto está bem' tem uma gênese nos vossos instintos, inclinações e repugnâncias, nas vossas experiências e inexperiências; `como este juízo nasceu?' é uma questão que vós deveis vos propor (...)'' (1950, p. 271)

Buscaremos respondê-la com o auxílio metodológico de Marx, que é quem, a nosso ver, levou a questão mais longe, identificando uma origem concreta para essas ``experiências e inexperiências'' na divisão do trabalho e na luta de classes. Vejamos.

Aprendemos que o corpo humano dispõe de cinco sentidos. Todos os órgãos nos quais atuam os sentidos possuem tanto funções indispensáveis à sobrevivência (as quais denominaremos funções primárias) como funções relacionadas ao prazer (as quais denominaremos funções secundárias). As funções primárias do nariz e da boca (respiração e alimentação) são diretamente indispensáveis à sobrevivência individual (portanto podem ser denominadas funções primárias diretas, ou fpd). A função primária dos órgãos sexuais, onde o sentido do tato atinge sua máxima potência de prazer, é diretamente indispensável à sobrevivência da espécie. Por sua vez, as funções primárias da visão, da audição - os sentidos ``teoréticos'' de Hegel - e do tato (como um todo, desconsiderando os órgãos sexuais) somente são indispensáveis à sobrevivência de modo indireto (funções primárias indiretas, ou fpi), como sentidos de orientação e comunicação.

Todos os órgãos e sentidos possuem ainda funções primárias indiretas e secundárias (fs), conforme o diagrama:


Órgão Sentido(s) fpd fpi fs
Nariz Olfato e paladar Respiração Orientação Prazer
Boca Paladar Alimentação e respiração Comunicação Prazer
Genitais Tato Reprodução Comunicação Prazer
Olhos Visão - Orientação e comunicação Prazer
Ouvidos Audição - Orientação e comunicação Prazer

Porém, uma das fpd da boca (alimentação) possui uma peculiaridade muito especial, que a distingue da do nariz (respiração, automática, involuntária), que é exigir esforço prévio de todos os outros órgãos e sentidos, para a caça, a pesca, a coleta e toda e qualquer forma de trabalho (do dono do órgão ou de outras pessoas) que recolha, produza, conserve ou distribua alimentos. Será que começa aí, no trabalho indispensável para que se possa comer, a relação vital entre o gosto e os juízos de valor?4.6

Suposto que isto esteja correto, é possível sugerir a hipótese de que o desdobramento (ato) do termo gosto do paladar para os juízos de valor em geral deriva de organizações primevas de valores - superestruturais -, constituídas a partir do campo de possibilidades (potência) que os meios e modos de produção - estruturais - necessários à alimentação estabeleciam no esforço humano de controlar as forças da natureza.4.7 Em outras palavras, viria o sentido originalmente dilatado do termo gosto da relação entre os saberes necessários à alimentação (sugar,4.8 engolir, morder, mastigar, coletar, fabricar instrumentos, caçar, pescar, depenar, esfolar, cortar, cozinhar, assar, conservar etc.) e o sabor dos alimentos, tendo desdobrado-se em preceitos alimentares e em seguida nos demais códigos e articulações simbólicas que organizam as sociedades humanas e buscam dar sentido às suas práticas? Seriam os preceitos alimentares a base de todos os demais códigos de valor?

Recorreremos agora à antropologia, a qual, embora não responda diretamente à questão, nos fornece subsídios para o desenvolvimento de nossa hipótese. Não é nosso propósito tomar partido na polêmica a respeito da pertinência ou da impertinência do conceito de ``totemismo'' na antropologia. Porém, algumas discussões referentes ao tema estão carregadas de observações que se aproximam da concepção do materialismo histórico quanto à antecedência determinante das relações de produção material em relação à produção simbólica nas sociedades humanas. Por exemplo, Lévi-Strauss menciona a seguinte reflexão sobre a noção ``interés económico'', elaborada por Firth, em estudo antropológico de determinadas sociedades polinésias:

``Podemos assim classificar as plantas alimentares em ordem hierárquica decrescente, levando-se em conta: a posição que ocupam na alimentação (I), o trabalho necessário para o seu cultivo (II), a complexidade do ritual destinado a assegurar seu crescimento (III), a complexidade dos ritos de colheita (IV), enfim, a importância religiosa dos clãs que regulam as espécies principais (V)(...)''4.9

Lévi-Strauss nos informa também que, para Malinowski, o totemismo recorre aos animais e às plantas ``porque estes fornecem ao homem seu alimento, e a necessidade de alimentar-se ocupa o primeiro lugar na consciência do primitivo''4.10

Nas palavras do próprio Malinowski,

``É curto o caminho que conduz da selva virgem ao estômago, e daí à mente do selvagem: o mundo se apresenta a ele como um quadro confuso no qual se destacam as espécies animais e vegetais úteis, e em primeiro lugar as que são comestíveis.''4.11

Deste modo,

``Segundo a primeira teoria de Radcliffe-Brown, assim como para Malinowski, um animal só se torna totêmico se for `bom para comer'.'' (Lévi-Strauss, 1965, p.94)

Na seqüência, Lévi-Strauss descarta esta interpretação quanto à problemática do totemismo por considerá-la teoricamente reducionista e empiricamente insuficiente, por haverem mais exceções do que comprovações da suposta regra. Contudo, fora do terreno desta problemática, e já que ninguém em sã consciência há de negar a satisfação da necessidade alimentar - diariamente renovada - como a base de toda a vida, nossa hipótese permanece no mínimo verossímil, senão no que toca ao totemismo, certamente no que toca à relação mais geral de antecedência determinante entre a produção de alimentos (envolvendo trabalho social, na caça, pesca, coleta etc.) e todas as demais produções humanas, incluindo as simbólicas, de onde pode-se deduzir as possíveis causas do antiquíssimo desdobramento do termo gosto do paladar para os juízos de valor.

Seria evidentemente estúpido pretender reduzir todo o sentido de todos os juízos de valor a imperativos utilitários alimentares. Contudo, sendo a alimentação (e o trabalho necessário para satisfazê-la) não um, mas o imperativo utilitário inalienável para a sobrevivência humana em todas as épocas, entre todas as culturas, é inverossímil que não esteja de alguma forma presente, em uma relação de antecedência, ainda que de modo indireto, nas produções simbólicas de qualquer cultura. Por exemplo, como o próprio Lévi-Strauss demonstra em diversas ocasiões, é comum observar-se o costume de certas partes de um animal serem destinadas a determinadas pessoas e outras partes a outras pessoas de acordo com a hierarquia social dos grupos humanos estudados. Estas distribuições desiguais se devem a complexas analogias simbólicas entre o corpo do animal, ou de diferentes animais, e as posições sociais ocupadas pelo sujeito, que não cabe aqui detalhar.4.12 No Êxodo e no Levítico, do mesmo modo, há uma complexa rede de relações entre tipos de alimentos, modos de preparo e posição social dos destinatários e dos ``cozinheiros'', inclusive em relação aos sacrifícios e oferendas ao Senhor. Aliás, todo o episódio capital do Êxodo e do Levítico que narra o encontro espetacular entre Deus e Moisés, onde se estratifica em Leis um dos pilares da cultura ocidental, está carregado dessas relações, ao mesmo tempo de princípios morais (políticos, jurídicos, econômicos, comportamentais), alimentares (alimentos proibidos e permitidos, jejum, sacrifícios etc.) e da divisão do trabalho, entre sacerdotes, desenhistas, fiadores, bordadores, gravadores, entalhadores, ourives, perfumistas etc. Como dado que integra moral, alimentação e trabalho, temos os preceitos da agricultura e, sobretudo, a extensa relação entre os tipos de pecado, a posição social dos pecadores (príncipes, sacerdotes, plebe), as oferendas em sacrifício de animais e vegetais necessárias à obtenção do perdão, e o que deve ou não ser comido em função do tipo de pecado. A própria construção do santuário divino baseia-se na competência de cada um em lidar com materiais específicos (divisão do trabalho), e na qualidade e na quantidade das oferendas para os sacrifícios. Destaque-se ainda o elemento estético das determinações divinas, nas quais arte, trabalho, verdade, comida, aromas, materiais, medidas, formas e cores compõem um quadro orgânico. Além disso, cada vegetal ou cada parte de cada animal adquire uma função e um sentido sagrado ou profano. O próprio pecado maior, a idolatria, que quase pôs a aliança a perder, foi o culto ao bezerro de ouro! Na Índia, a vaca é sagrada; na Argentina, o é o churrasco etc.

É possível afirmar que não há em todas as culturas uma relação profunda e de antecedência entre a alimentação e a moral ou as virtudes? Junto ao oxigênio, a água e a comida são a base da existência orgânica, imperativo indispensável para a emergência de um ser cultural. A passagem da natureza à cultura se dá, no homo sapiens, através do trabalho racional, isto é, que transcende dialeticamente as conflituosas determinações primárias de Eros e Ananke. O primeiro de todos os trabalhos é aquele orientado para a alimentação (``comerás teu pão com o suor da tua face''). Daí a utilização do termo gosto ter-se desdobrado da alimentação para o resto: porque é no gosto que se dá a síntese dialética entre necessidade e liberdade, cuja expressão são os juízos de gosto. Assim, insistimos que deve-se buscar o desdobramento do termo gosto, do paladar para os juízos de valor, no fato de o trabalho necessário à alimentação anteceder todas as demais produções humanas, materiais e simbólicas.

Lévi-Strauss conclui sua polêmica sobre a questão do totemismo com a célebre sentença: ``compreende-se que as espécies naturais não sejam eleitas por serem `boas para comer', mas por serem `boas para pensar'.'' (Lévi-Strauss, 1965, p. 131)4.13

Lembrando mais uma vez que nossa discussão não se refere ao totemismo, tampouco ao fato de a ``eleição'' de uma ou outra espécie para significar uma ou outra coisa dever-se direta e exclusivamente a razões alimentares, insistimos que as espécies só podem ter sido, para todos os povos, boas ou ruins para pensar após terem sido boas ou ruins para comer (e para não ser comido), pelo simples fato de que para se pensar é necessário antes que se esteja vivo e, portanto, alimentado. Se tomarmos ainda a liberdade de desdobrar o termo comer no termo degustar (no sentido mais amplo de sentir e conhecer o que se consome, o que envolve conhecer como se produz o que se consome), podemos também afirmar que o que é bom para comer é necessariamente e ao mesmo tempo bom para pensar, pois não nos é dado pensar sem sentir, nem sentir sem pensar, ainda que em graus variáveis de intensidade e elaboração.

Mesmo admitindo que o que é definido como bom ou ruim para se comer se deva ao status que o alimento ocupa dentro de uma determinada ordem simbólica, esta, por sua vez, necessariamente é derivada de um determinado modo de produção:

``Fome é fome, mas a fome satisfeita pela carne cozida, comida com garfo e faca, é uma fome diferente daquela que mastiga às pressas carne crua com o auxílio das mãos, unhas e dentes. A produção então produz não só o objeto mas também o modo do consumo, não apenas objetivamente, mas também subjetivamente. Assim a produção cria o consumidor. (3) A produção não somente fornece um material para a necessidade, mas também uma necessidade pelo material. Assim que o consumo emerge de seu estágio inicial de crueza e imediaticidade - e, caso permaneça neste estágio, isto dever-se-ia à própria produção ter aí se detido - torna-se mediado pelo objeto como um impulso. A necessidade que o consumo sente pelo objeto é criada por sua percepção dele. O objeto de arte - como qualquer outro produto - cria um público que é sensível à arte e aprecia a beleza. A produção então não somente cria um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto. Então a produção produz o consumo (1) criando o material para o consumo; (2) determinando os modos de consumo; e (3) criando os produtos, inicialmente apresentados pela produção como objetos, na forma de uma necessidade sentida pelo consumidor. Produz assim o objeto de consumo, o modo de consumo e o motivo do consumo. (...)'' 4.14

É possível que o fato de algumas espécies serem boas ou não para comer não determine em todos os casos, nem mesmo em sua maioria, as construções simbólicas que as utilizam como significantes; ou ainda, quando determina, tudo indica que isso não se dá de modo linear e mecânico, envolvendo no processo de significação diversas camadas de elaboração, desdobramentos de outros fatores além da questão da produção alimentar (a começar pelas relações de parentesco, constituídas dialeticamente na relação sexualidade [princípio de prazer-eros-sabor] x necessidades gregárias [princípio de realidade-logos-saber], antecedida pelas relações [econômicas] de poder). Seja como for, insistimos na possibilidade de as relações alimentares entre os homens e as espécies animais e vegetais, relações estas mediadas pelo trabalho, estarem na origem da dupla acepção do termo gosto (sabor/saber). Pois a preservação da espécie, que começa pelo trabalho necessário à obtenção de alimentos, é o imperativo sobre a qual se erguem todas as culturas.

Se nossa linha de raciocínio é correta, pode-se afirmar que os juízos de gosto de um grupo social dado derivam indiretamente dos saberes e sabores necessários à existência material de cada classe social desse grupo. Mas até que ponto parte dos gostos em um presente dado permanecem como resíduos fadados ao desaparecimento, conjunto de sabores e saberes socialmente inadequados aos imperativos de novas relações de produção? Mais importante, como se configuraria essa passagem complexa da estrutura à superestrutura num dado contexto sócio-histórico, e como se explicariam os efeitos de retorno?

``Uma dada produção determina então um dado consumo, uma dada distribuição e uma dada troca, bem como relações dadas entre estes diferentes momentos. Compreendida, todavia, desta forma unilateral, a produção é ela mesma determinada pelos outros momentos. Por exemplo, se o mercado, isto é, a esfera da troca, se expandir, então a produção cresce em quantidade e as divisões entre seus diferentes ramos se aprofundam. Uma mudança na distribuição muda a produção, por exemplo, a concentração de capital, uma distribuição diferente da população entre campo e cidade etc. Finalmente, as necessidades do consumo determinam a produção. Uma interação mútua ocorre entre os diferentes momentos. É o caso de qualquer totalidade orgânica.''4.15

Como pretendemos que a acepção mais dilatada que temos tentado desenvolver do conceito gosto possa contribuir para o esclarecimento desta problemática crucial para o marxismo, devemos nunca perder de vista que este efeito de retorno da circulação ou do consumo sobre a produção só é possível graças à antecedência de uma produção anterior: só se pode trocar e consumir o que foi produzido. Deste modo, metodologicamente falando, se uma crítica marxista da economia política do gosto é obrigada a considerar os efeitos do consumo sobre a produção, não pode jamais desconsiderar a antecedência desta sobre aquela.

Certo é que, após a condenação divina, o primeiro trabalho social necessário para a sobrevivência humana utilizou todos os outros sentidos e teve sua consagração no ato de comer - donde, metaforicamente, sob o prisma dos sentidos, o paladar é originalmente o fim e os outros sentidos os meios. O trabalho de todo o corpo (dos nervos, dos músculos e do cérebro) seria portanto o meio para que se atinja a satisfação do gosto, a princípio como satisfação das necessidades indispensáveis à sobrevivência, em seguida como satisfação dos desejos, que torne a vida mais agradável. A divisão das sociedades em classes fez com que os escravos assegurassem a sobrevivência e a gratificação da existência dos proprietários de terras, dos políticos, dos sacerdotes e dos filósofos: a cisão e a hierarquia platônicas entre verdade e beleza, entre saber e sabor, entre Logos e Eros, entre intelecto e corpo, reflete em última instância a cisão entre trabalho intelectual e trabalho braçal.

Apesar disso, acreditamos que, no fundo, como sugeriu outrora um extravagante gastrônomo francês, ``todas as ciências foram dispostas para contribuir no sentido de destacar e moldar convenientemente os prazeres do gosto''. (Brillat Savarin, 1864, p. 34) Mas do gosto de quem?

Por uma crítica da economia política do gosto

``O concreto é concreto por ser a concentração de muitas determinações, portanto unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como o processo da concentração, como resultado, não como ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida e, conseqüentemente, também o ponto de partida da intuição e da representação.''

Marx

A história do gosto começa e termina na boca, passando por todos os poros e nervos. Vai da sucção à mordida, da alimentação à fala e ao canto, do paladar ao juízo e, de volta, do juízo ao paladar. Mais do que o polegar opositor, o que diferencia o homem do bicho é o mesmo que os aproxima: sua língua. É, porém, a qualidade polivalente desta língua humana, alma da boca, expressa no sentido dilatado do termo gosto, a medida que a distingue da língua do bicho - os dedos vêm depois. O gosto é, portanto, a primeira e a última instância canônica da língua, tanto em sua acepção física quanto simbólica.

``O cozinhado está para o cru como a cultura para a natureza. Acima de tudo pensa-se com a boca, com os dentes. A alimentação é um dos fundamentos do humano, na medida em que é a partir dela que o homem penetra sucessivamente na palavra e, de seguida, no pensamento. O pensamento não emerge senão através do aparecimento da negação, isto é, a partir do momento em que, no continuum do mundo, certos objetos são afirmados, introjetados, outros rejeitados e excluídos.''5.1

Bourdieu, em outros termos, diz algo similar:

``É provavelmente nos gostos alimentares que pode-se encontrar a marca mais forte e indelével do aprendizado infantil, as lições que por mais tempo resistem à distância ou ao colapso do mundo nativo e mais duradouramente conservam nostalgia por ele. O mundo nativo é, sobretudo, o mundo materno, o mundo dos gostos primordiais e alimentos básicos, da relação arquetípica com o bem cultural arquetípico (...)'' (Bourdieu, 2000, p.79)

Não é à toa que Robert Jourdain, embora centrando sua investigação sobre a percepção musical na neurologia e na psicologia, propõe a seguinte questão:

``Como podem sons que são um banquete para alguns ouvidos serem uma refeição enjoativa para outros?'' (Jourdain, 1998, p.13)

É o que buscaremos em parte responder através do recurso à uma crítica da econômica política de orientação marxista. Pois sendo o processo de produção, reprodução, circulação e consumo5.2 dos objetos degustáveis, e dos próprios gostos e juízos de gosto, individuais ou coletivos, um processo sócio-histórico concreto, o recurso à economia política - entendida como a ciência cujo objeto é a produção e a distribuição de riqueza, material ou simbólica, dentro de uma ordem social determinada (seja a tribo, a polis, a favela ou o mundo globalizado) - é fundamental para a sua compreensão.5.3 Como pré-condições para este estudo realizar-se, sugerimos que se efetue:5.4

  1. um levantamento dos meios e modos de produção, reprodução, circulação e consumo dos objetos degustáveis (antes de mais nada, não se pode gostar do que não existe, ainda que em imaginação, ou do que não se conhece); no campo da produção de riqueza simbólica, que é o que nos interessa em particular e no qual a música se inclui, isso implica nos últimos cem anos em um estudo crítico da indústria cultural - modo de produção simbólica que conquistou a hegemonia social - em seu desenvolvimento histórico e de sua relação com os meios e modos de produção simbólica extra midiáticos;

  2. uma crítica da alienação (expropriação) historicamente realizada dos meios de produção, reprodução e circulação dos produtores de bens simbólicos pelo capital dentro do modo de produção hegemônico; em outras palavras, as relações capital / trabalho na indústria cultural e seus desdobramentos externos;

  3. um levantamento dos gostos e juízos de gosto socialmente produzidos em determinados períodos históricos e em determinados espaços sociais, bem como suas afecções recíprocas;

  4. uma investigação da relação entre produtores, mediadores e consumidores de bens simbólicos, e do seu acesso desigual a um patrimônio simbólico coletivo socialmente produzido, que requer maior ou menor conhecimento do código e maior ou menor repertório de referências: não se pode emitir um juízo de gosto a respeito de um poema escrito em javanês sem que se conheça pela menos o idioma javanês, para não falar da história e dos costumes de Java etc.

Dadas essas pré-condições de caráter metodológico, partimos do princípio de que o prazer é o principal - mas não o único, como veremos a seguir - elemento estruturante do gosto, enquanto o gosto é a estruturação dos prazeres em escalas valorativas, inconscientes ou pré-conscientes, menos ou mais intercambiantes, menos ou mais dinâmicas: conforme aumenta o domínio de um código ou a quantidade de referências (ou seja, o conhecimento), varia a quantidade (intensidade) e a qualidade (tipo) da afecção do sujeito pelo objeto gustativo, e conseqüentemente variam as hierarquias das escalas valorativas.

Considerando-se o prazer, de grau positivo ou negativo (o desprazer), o resultado de uma afecção qualquer (trate-se de afecções nervosas ou simbólicas, estas da ordem do conhecimento),5.5 a estrutura das escalas valorativas representadas pelo gosto, salvo obstáculos externos (e sempre os há, a começar pela ignorância relativa, ou ausência relativa de afecção), tende a orientar a atividade humana desejante, tanto na esfera individual quanto na coletiva, no sentido de reproduzir as experiências de prazer, ou formas que lhe pareçam semelhantes, e de rejeitar experiências de desprazer, ou formas que lhe pareçam semelhantes; pouco importa se a atividade é masoquista ou de abstinência, pois no primeiro caso há somente inversão entre os sinais positivo e negativo, e, no segundo, se não a mesma inversão, mera substituição da experiência de prazer por outra compensatória na economia libidinal do sujeito, não importa aqui se perversa ou não, embora a questão do fetichismo e a da sublimação nos interessem em particular.

Suposto que o gosto representa a estruturação dos prazeres em escalas valorativas, o gosto que não se discute, que não se elabora em um juízo, pertence à ordem da pulsão, pré-representativa, anterior e esquiva à elaboração simbólica, portanto à crítica, assim como constitui a mais íntima e fugidia expressão das atividades humanas por ele orientadas - ainda que de modo não necessariamente linear -, sobredeterminadas pelas disposições de classe, isto é, pelas práticas gustativas proibidas e recalcadas, ou disponibilizadas e incentivadas, em cada extrato social. Uma discussão do gosto pretende, por outro lado, promover um esforço de representação, de elaboração simbólica desses sabores e saberes, e dessas escalas valorativas, que conduza a um estudo crítico das atividades humanas relacionadas, e das formas de estímulo e repressão com as quais se defrontam essas atividades.

Desse modo, não discutir os gostos e os juízos de gosto significa não discutir a reprodução social reificada de práticas gustativas (da ordem dos sabores e saberes), nem as escalas de valores representadas pelo gosto e pelos juízos de gosto em sua concretude de legitimação, predominantemente inconsciente ou pré-consciente, dessas práticas. Uma crítica da economia política dos gostos e juízos de gosto socializados contribuiria para uma desreificação dessas escalas valorativas e práticas correlatas, possibilitando um estudo orientado no sentido da transformação de práticas gustativas inconscientes, não em meras escalas valorativas conscientes canônicas, embora canonizáveis, mas em praxis gustativas mais autônomas, dinâmicas e criativas, ou menos autômatas - em outra palavras, propomos uma crítica que problematize o que há de fetichista e o que há de sublimatório nas práticas, discursos e silêncios referentes ao gosto. Pois a reificação, processo fetichista, é o mais poderoso instrumento ideológico de controle social, ideologia entendida aqui na acepção negativa de Marx, de distorção ou mascaramento das relações sociais concretas pelo discurso, no interesse das classes dominantes. Reificação, coisificação ou naturalização, hoje mais do que nunca, é o mesmo que de acordo com o mercado, ``the invisible hand''. O gosto, desse modo, ao invés de constituir uma potência de liberdade, de conhecimento e de prazer para as subjetividades individuais e para sua intersubjetividade, em sua diversidade concreta e dinâmica, cujo ato é a sublimação, tende cada vez mais a limitar-se a reproduzir os gostos midiáticos hegemônicos, reflexos do automatismo da economia, homogeneizando esta mesma diversidade em uma fixação fetichista:

``Nós, homens modernos, somos os herdeiros da vivissecção de consciência e auto-sevícia de milênios: nisso temos nosso mais longo exercício, nossa aptidão artística talvez, em todo caso nosso refinamento, nossa perversão do gosto.'' (Nietzsche, 1996, p.355)

O fato de os gostos midiáticos hegemônicos apresentarem-se eventualmente como plurais e multifacetados não invalida a discussão do valor (de uso) simbólico dos bens em questão, isto é, de sua qualidade, e, mesmo quantitativamente, não passa de ilusão de ótica em relação à pluralidade concreta e potencial abortada na produção e, conseqüentemente, na reprodução, na circulação e no consumo de bens simbólicos, e não altera em nada o caráter automático do processo. Como observou Marcuse,

``Sob o jugo de um todo repressivo, a liberdade pode ser transformada em poderoso instrumento de dominação. O alcance da escolha aberta ao indivíduo não é o fator decisivo para a determinação do grau de liberdade humana, mas o que pode ser escolhido e o que é escolhido pelo indivíduo. O critério para a livre escolha jamais pode ser absoluto, mas tampouco é inteiramente relativo. A eleição livre dos senhores não abole os senhores ou os escravos. A livre escolha entre ampla variedade de mercadorias e serviços não significa liberdade se esses serviços e mercadorias sustém os controles sociais sobre uma vida de labuta e temor - isto é, se sustém alienação. A reprodução espontânea, pelo indivíduo, de necessidades superimpostas não estabelece autonomia; apenas testemunha a eficácia dos controles.'' (Marcuse, 1973, p.28)

Quase quarenta anos depois de Marcuse ter escrito essas palavras, pode-se dizer que a coisa ficou ainda pior e, de certo modo, ridícula. Por exemplo, conforme noticiou O Globo, a ``própria potência econômica que é a multinacional Fnac'', ``maior loja de discos e livros do país [França]'', lançou na internet um ``Manifesto pela diversidade musical'', onde se lê:

``Constatamos que a concentração da indústria do disco vai contra a diversidade musical [descobriram a pólvora!]. (...) Hoje, cinco grandes grupos de comunicação controlam mais de 80% das vendas de discos do mundo. (...) a predominância do marketing reduz o pluralismo musical. A espetacular concentração dos investimentos de marketing em alguns títulos conduz a favorecer de forma sistemática um pequeno denominador comum cultural e a promover exclusivamente os produtos de massa, na mídia ou na grande distribuição. Sem meios de exposição adequada, a criação musical se arrisca a uma asfixia.''5.6

Seria ingenuidade acreditar que a Fnac esteja defendendo a ``diversidade'' musical por ``bom-mocismo'': está na verdade é preocupada com a concorrência dos hipermercados, dado que, conforme a mesma matéria,

``A esse nível de investimento é o mercado de massas, o dos hipermercados, que é visado'', revelou (...) o responsável pelo setor de publicidade da gravadora BMG francesa, Gregoy Guyot.5.7

Seja como for, essa ``briga de cachorro grande'' reflete o redirecionamento dos fluxos de capital e a reacomodação de terrenos e posições dos grandes monopólios no atual estágio do capitalismo turbinado, ao ponto de o (relativamente) mais fraco deles, a Fnac, como sempre ocorre com a fração da classe dominante que vê sua hegemonia arriscada, tentar salvaguardá-la com argumentos de cunho moral (em nome da diversidade musical, do pluralismo etc.). O fato de a argumentação não ser propriamente desinteressada, porém, não lhe tira a veracidade.

A matéria segue informando sobre os discos mais vendidos na França no fim de 2001, todos de participantes de reality shows de grande sucesso televisivo:

``O motivo do sucesso das vendas é conhecido: os discos foram martelados na televisão, onde praticamente acabaram os programas que não os de `grandes sucessos', e execução massiva no rádio, a uma razão de 70 execuções semanais em cada emissora FM de grande audiência. Se a tradução do termo jabá não é usada no mercado francês, as técnicas de, digamos, `promoção' dos discos consistem em parcerias entre as grandes gravadoras e os programas de TV (...) e em cada disco de sucesso há na capa o selinho de uma rádio FM que, em troca, vai executá-lo até o ouvido fazer bico.''5.8

A situação brasileira não é muito diferente.

Uma discussão dos gostos sociais pode também favorecer o desenvolvimento de uma hermenêutica referente a eventuais contradições entre as duas instâncias constitutivas do gosto, a saber, as duas formas de prazer mencionadas, a nervosa (ou sensual, que, em Hume e no senso comum é a determinante) e a simbólica (ou racionalista, privilegiada, ainda que de diversas formas, desde Platão, passando pela estética clássica, chegando a Kant e a Adorno), entre o sabor e o saber das coisas - cuja separação e hierarquização, onde Logos/saber é superior a Eros/sabor, têm origem, como vimos, na divisão do trabalho e na escravidão, culminando na metafísica platônica e no cristianismo - e, quem sabe, essa hermenêutica poderia provocar fissuras pelas quais se pudesse vislumbrar a superação dessas contradições em formas superiores de praxis gustativas.

Minha aposta teórica é que o materialismo histórico talvez possa abrir um caminho para uma discussão não só política, mas também científica do gosto e dos juízos de gosto.

Considerando-se o gosto como sintoma e os juízos de gosto como articulações de significados que expressam (e mascaram) a seu modo tanto uma dada ideologia ou ``filosofia de vida'' - conjunto de representações e valores morais, mais ou menos submetidos à reflexão crítica -, individual ou coletiva, quanto a normatização social da sensibilidade em padrões determinados (ou, ao menos, determináveis), seu estudo não só pode como deve discuti-los, isto é, submetê-los a uma reflexão crítica radical. Como? Para começar, através de uma genealogia associativa de sua produção, reprodução, circulação e consumo sociais, que pode ser desenvolvida, em linhas gerais, a partir das respostas para algumas perguntas bem simples, por exemplo:

  1. O que se conhece que se gosta ou não?

  2. Com que idéias ou sentimentos se associa o que se gosta ou não?

  3. Qual o grau de influência nos gostos e juízos de gosto,5.9 em um momento histórico dado, das tradições locais e dos deslocamentos entre tradições (deslocamentos espaciais, de classe, de religião etc.) em relação aos vetores hegemônicos da indústria cultural no momento de produção ou transformação dos gostos?

  4. Quem é, do ponto de vista sociológico (faixa etária, classe social, gênero etc.), a pessoa que emite o juízo?

Não se trata apenas de saber do que se gosta, mas como se formou esse gosto e, sobretudo, quais as conseqüências práticas em termos de produção de sabor (prazer) e de saber (conhecimento) relacionadas a esse gosto.

Tampouco interessa descobrir, ou melhor, inventar, o que seria o ``bom gosto'', quimera que só existe do ponto de vista idealista, etnocêntrico ou narcísico, mas investigar a dinâmica histórica concreta de produção, reprodução, circulação, consumo, transformação, oposição e síntese dos gostos.

Bom gosto é somente o gosto de quem postula o bom gosto. Quem postula? Por quê?

Gosto e ideologia

``gosto não se discute, se lamenta''

dito popular

Diferente dos juízos de gosto, isto é, dos gostos elaborados em discursos que se pretendem legitimadores, o gosto individual é mais que ideologia na medida em que expressa uma verdade subjetiva absolutamente insubordinável a qualquer crítica. Pouco importa o que se diga a respeito: o que proporciona prazer proporciona prazer e pronto, e, salvo coações externas de ordem moral, ou a hipótese de conflitos neuróticos, qualquer sujeito em sã consciência julga-se no pleno e justo direito de considerar que ninguém tem nada a ver com isso. Ou seja, o gosto é mais que ideologia na medida em que não precisa ser discurso, isto é, na medida em que não precisa ``ter razão''.

A este propósito, já dizia o abade Dubos em 1719, nas suas ``Reflexões Críticas Sobre a Poesia e a Pintura'':

''Será que, depois de termos assentado os princípios geométricos do sabor e de termos definido as qualidades de cada ingrediente que entra na composição do prato, resolveríamos discutir a proporção usada na mistura deles para concluirmos se a comida está boa? Não fazemos nada disso /.../ provamos a comida e mesmo sem conhecermos essas regras saberemos se está boa. O mesmo acontece, de algum modo, com as obras de espírito e com as pinturas, feitas para nos agradarem e nos comoverem.'' 6.1

É verdade. Por outro lado, se gostarmos de um prato sem sabermos o que contém e descobrirmos, após tê-lo comido, que tratava-se, por exemplo, de baratas flambadas, haverá uma repulsa violenta resultante do conflito entre o nosso paladar e o nojo coletivo que sentimos pelas baratas, mesmo na hipótese - improvável - de serem saborosas e inofensivas à saúde. Pior que isso: se soubermos que alguém aprecia tal iguaria, provavelmente iremos julgar esta pessoa, no mínimo, extravagante.

No caso dos Ojibwa, que dispõem de um sistema de relações com o mundo sobrenatural que encerra proibições alimentícias referentes a certas espécies animais, ``as enguias, lacustres e marinhas, (...) são objeto de uma proibição alimentar tão estrita que sua simples visão provoca às vezes o vômito.'' (Lévi-Strauss, 1965, p.50)

Os japoneses, por sua vez, apreciam as enguias. Mas por que esses paladares variam de cultura para cultura? A resposta não pode estar no próprio paladar. Ele torna-se, por assim dizer, graças ao efeito de retorno da superestrutura simbólica sobre a estrutura fisiológica, sobredeterminado pela primeira.

Há, pois, uma transcendência do gosto para além da sensibilidade individual; tal caráter transcendente, que de certo modo compõe e às vezes se opõe à sensibilidade, merece ser investigado. Isso porém não justifica que se pretenda discutir o valor de certos produtos da criatividade humana, cuja própria razão de ser consiste em nos emocionar de alguma forma, sem considerá-la, ao contrário do que acreditava Adorno:

``O próprio conceito de gosto está ultrapassado. A arte responsável orienta-se por critérios que se aproximam muito dos do conhecimento: o lógico e o ilógico, o verdadeiro e o falso.'' (ADORNO, 1975, p.173)6.2

É aceitável reduzir o julgamento estético a esse racionalismo extremo? Se é certo que nem a própria gastronomia reduz seus juízos à sensação de prazer que um prato proporciona ao paladar, considerando também sua aparência, o contexto no qual é servido, a convivialidade, eventuais parâmetros nutricionais etc., por outro lado eliminar a sensação de prazer ou desprazer de sua posição privilegiada no rol destes elementos constituintes do juízo de gosto seria, para o gastrônomo, uma heresia. Julgo que o mesmo vale para o juízo estético. Não posso crer que Adorno, ao apreciar a estrutura arquitetônica de uma obra de Haydn, por exemplo, o fizesse sofrendo. A oposição entre gosto e conhecimento postulada por Adorno denota uma interpretação limitada do primeiro e uma fetichização idealista do último, de certa forma reproduzindo o idealismo kantiano. Como bem observou Bourdieu,

``Não há dúvida de que, uma vez que abandone o reino da pura técnica, a crítica musical raramente é articulada senão através de adjetivos e exclamações. Assim como os místicos falam do amor divino na linguagem do amor humano, as evocações menos inadequadas do prazer musical são aquelas capazes de reproduzir as formas peculiares de uma experiência tão profundamente enraizada no corpo e nas experiências corpóreas primitivas como os gostos dos alimentos.'' (Bourdieu, 2000, p. 80).

É razoável excluir o prazer do juízo estético, como parecem pretender as diversas escolas estéticas que postulam uma cientificidade qualquer (pretensamente universal) para a crítica musical, que conduzem inevitavelmente à conclusão de que trata-se mais (quando não exclusivamente) de uma questão de significação do que de sensibilidade, ou, em outras palavras, mais de uma questão de verdade do que de prazer? Nos termos de Della Volpe,

``(a). Não deveríamos ficar surpresos se a idéia musical consiste em uma indizível Gedankenfülle, ou plenitude de pensamento: não tomando o termo ``indizível'' no sentido místico no qual poderia ser entendido por um esteticismo romântico, mas no sentido de que uma idéia-tema (...) só pode ser indizível. Ou seja, idéias cujos meios de expressão consistem em uma gramática particular de intervalos e notas, não em uma gramática de fonemas e significantes (...) que é a gramática da idéia literária ou poética.(...)

Tampouco deveria nos surpreender se o `sentido' ou significado da música deve ser identificado com esta Gedankenfülle, a idéia musical produzida ou expressa por uma ordem de imagens auditivas pessoais cujo instrumento é um sistema gramatical de intervalos, escalas etc. Precisamente por consistir em uma tal plenitude de pensamento indizível, a música (...) é cultivo, ou cultura e humanidade, antes e bem mais do que gozo.'' (Della Volpe, 1991, pp. 218, 219)

O que nos interessa aqui é destacar essa presença renitente da idéia do cultivo em oposição (e em posição de superioridade) ao ``agradável'', ao gozo, em pensadores marxistas. A oposição é falsa e esnobe, assim como a do discurso da indústria cultural (``tocamos o que o povo gosta''), avesso à crítica, é falsa e populista. Se é verdade que ninguém pode emitir um juízo aceitável sobre o que não conhece ou conhece mal, por outro lado como pode alguém apreciar com justiça o que não lhe apraz? O reconhecimento de fatores como maestria na execução, inventividade na composição, desenvolvimento de novas possibilidades estruturais etc. pode, de fato, se dar junto a uma ausência de prazer, assim como uma peça musical evidentemente ordinária do ponto de vista destes critérios, ou de outros, pode despertar prazer. Mas a sensação de prazer ou desprazer que uma música desperta no crítico deve ser excluída da crítica? Ou, pelo contrário, esta exclusão reflete um dispositivo ideológico, de contornos nitidamente classistas, em toda e qualquer formulação estética? A exclusão do prazer desta problemática não indica uma forma de idealismo pequeno-burguês, conforme sugeriu Bourdieu em relação a Kant, orientada por uma racionalidade positivista e capenga, que exclui da fruição estética a própria praxis fruitiva, subordinando-a a uma pseudo cientificidade supra-classista denominada teoria X ou Y? A tentativa de excluir o gosto da crítica da ``arte responsável'', como propôs Adorno, não seria uma forma de escamotear o difícil problema do desacordo subjetivo entre sensibilidade e discursos de legitimação? No fundo, não seria toda e qualquer teoria estética uma racionalização mal ou bem elaborada do gosto do crítico?

Não pretendemos responder essas questões, mas apresentá-las como matéria para reflexão. Nosso objetivo é discutir a insistência que encontramos por toda parte - seja no classicismo, seja no empirismo, seja na crítica romântica, seja na ``marxista'', seja na ideologia neoliberal disfarçada de porta-voz da ``natureza humana'' - nesta cisão entre razão e sensibilidade, privilegiando ou uma verdade última do objeto à luz de uma teoria que se pretende universal (racionalismo), ou a verdade última do sujeito à luz da pura percepção particular (irracionalismo).

Ao que parece, Marx não foi aprisionado por esta dicotomia, tendo enxergado que, sendo a prática do sujeito que atribui ao objeto uma dimensão humana, é a sua verdade, tanto sensível quanto intelectual, que lhe atribui um, não o sentido; ou seja, a não ser que aceitemos a hipótese de que uma teoria estética, que necessariamente conduz a juízos de valor, se pretenda científica, e não aceitamos esta hipótese, é na interação entre um objeto específico e um sujeito específico - sujeito histórico, munido de sensibilidade e razão, ocupando um determinado locus social em um dado espaço geopolítico e em um dado momento histórico - que se estabelece não a, mas uma verdade. Bourdieu bem demonstrou em seu Distinction o caráter classista dos gostos e juízos de gosto. Em Marx lemos que, do ponto de vista subjetivo,

``o sentido musical do homem só é despertado pela música; a mais bela canção não possui nenhum sentido para uma orelha não musical, não é um objeto, porque meu objeto só pode ser a manifestação de uma das forças do meu ser; a força do meu ser é em si uma disposição subjetiva, porque o sentido de um objeto para mim só possui um sentido para um sentido correspondente e vai tão longe quanto meu sentido; é por isto que os sentidos do homem social são diferentes dos do homem que não vive em sociedade; é somente através do desdobramento objetivo da riqueza do ser humano que a riqueza dos sentidos humanos subjetivos, que um ouvido musical, um olho sensível à beleza das formas, em uma palavra, os sentidos capazes de gozos humanos tornam-se os sentidos que se manifestam como força do ser humano e são ou desenvolvidos ou produzidos. Pois não se trata apenas dos cinco sentidos, mas também daqueles ditos espirituais (vontade, amor etc...), em uma palavra, os sentidos humanos, o caráter humano dos sentidos, que só se formam graças à existência de um objeto, através da natureza tornada humana. A formação dos cinco sentidos é o trabalho de toda a história do mundo até o dia de hoje. (...) então, é necessária a objetivação do ser humano, ao mesmo tempo do ponto de vista teórico e prático, para tornar humanos os sentidos do homem e também para criar um sentido humano correspondente a toda a riqueza do ser humano e natural.'' (Marx, 1954, pp. 171, 172)6.3

Ao invés de reencontrarmos em Marx a insistente cisão entre razão e sensibilidade, ou entre objetividade teorética e subjetividade sensível, deparamo-nos com a objetividade sócio-histórica da formação das subjetividades humanas e da faculdade humana de ajuizar sobre objetos sensíveis para os sentidos humanos. O que isso nos diz a respeito dos juízos de gosto? Revela-nos o absurdo tanto de se pretender a verdade particular de um juízo universal, ainda que ``científico'', quanto a verdade universal de um juízo particular, ainda que ``autêntico''.

Portanto, por mais que a sensibilidade não esgote a questão da ``verdade'' de um objeto estético, e já vimos que não esgota, desconsiderá-la, desconsiderar a questão da quantidade (intensidade) e da qualidade (tipo) de prazer ou desprazer provocados pela afecção de um objeto que possua ainda que seja a mínima pretensão estética, é desconsiderar sua especificidade e sua própria teleologia em relação aos demais produtos simbólicos - ciência, religião, filosofia, informações em geral -, cujos objetivos pertencem a ordens distintas. É igualmente desconsiderar os determinantes sociais de sua conformação distintiva e das variadas formas de fruição e crítica a que o objeto estético, ou o bem simbólico em questão, está sujeito. O que põe tudo no mesmo saco é seu valor de troca no modo de produção capitalista, junto com sabonetes, geladeiras, mísseis e cocaína.

Por outro lado, considerar a sensação de prazer ou desprazer de um modo meramente quantitativo - isto é, apenas quanto à intensidade, não ao tipo, da sensação - como o único critério determinante do gosto seria comparar música, pornografia, exorcismo e chikabon, por exemplo, o que seria igualmente inútil.

Já investigamos a natureza bidimensional do termo gosto e sua posterior utilização metafórica no grego e no hebraico. Williams aponta para sua gênese no inglês [1985, verbete Taste]. Agamben, além do grego, menciona o latim [op. cit., p.39] e ainda conclui seu ensaio sobre o gosto com a menção a um tratado indiano de poética no qual sabor e saber encontram-se conjugados em uma síntese superior:

``Saber de amor, filosofia, significa: a beleza deve salvar a verdade e a verdade deve salvar a beleza. Nesta dupla salvação se realiza o conhecimento. Só um tal prazer, onde prazer e conhecimento se unem, estaria verdadeiramente à altura daquele ideal sapiencial, isto é, gustativo, que um tratado indiano de poética, o Espelho da Composição (Sãhitya-darpana), fixou no conceito de ``sabor'' (rasa): `Surgido com o princípio luminoso, sem partes, brilhante da sua própria evidência, feito de alegria e conhecimento unidos, livre de todo o contato de percepção outra, irmão gêmeo da degustação do brahman, vivendo do sopro da sobrenatural maravilha, tal é o Sabor que aqueles que têm a medida do juízo degustam como a própria forma de si, inseparavelmente'.'' (Agamben, 1992, p.156)

Hume, em que pese sua ênfase sensorialista, tentou, embora com êxito duvidoso, superar a dicotomia sensorialismo/ racionalismo afirmando que embora o belo não esteja nas coisas, mas em nossa percepção, isso não significa que todos os juízos de gosto sejam igualmente válidos, porque assim como há pessoas que enxergam melhor que outras, há pessoas que possuem uma sensibilidade (ou aparelho perceptivo) mais refinada; esta sensibilidade mais refinada é não só inata mas também adquirida através do cultivo; tal cultivo capacitaria o sujeito a diferenciar, não só sensivelmente mas intelectualmente, o que é de bom ou de mau gosto; potencialmente, tais dispositivos inatos e adquiridos emergem em todas as partes do mundo e em todos os tempos da história.

Ora, se agregarmos aos fatores adquiridos, que refinam ou embrutecem a sensibilidade, as condições de vida, o estado de saúde, o massacre do trabalho, o tédio do ócio, a formação, os costumes, o repertório simbólico disponível, os estados alterados de consciência etc., veremos que a idéia de uma hierarquia dos gostos baseada no refinamento da percepção não é de todo absurda, desde que não conduza à armadilha de um elitismo fisiologístico reducionista, que seria o contraponto lógico do elitismo intelectualista. Para evitar estes riscos, essa hierarquia teria que levar em consideração antes de mais nada as contradições entre os valores de uso e os valores de troca - ou seja, entre os imperativos do desejo e os imperativos econômicos, o que inclui as trocas simbólicas (pertencimento ou rejeição, status etc.) - dos bens simbólicos produzidos e/ou consumidos pelos diversos extratos sociais em um período histórico dado, e julgar cada juízo somente segundo as prerrogativas que são próprias a cada um destes extratos. Em outras palavras, não se pode postular a superioridade de uma sinfonia sobre um samba-canção a partir de critérios arquitetônicos; ou melhor, só se pode postular esta superioridade se for claramente estabelecido que os critérios de valor empregados no julgamento são os arquitetônicos, assim como se pode postular a superioridade de uma canção sobre outra sob os mais diversos critérios, desde que sejam claramente estabelecidos. Deste modo, como dizia acertadamente Hume, na discussão entre dois juízos de gosto,

``o julgamento de um homem havia sido mais bem aceito que o de outro; mas não teria sido tão fácil silenciar o mau crítico, que pode sempre insistir em seu sentimento particular e recusar-se a se submeter ao seu antagonista. Mas quando lhe mostramos um princípio de arte avalizado; quando ilustramos este princípio através de exemplos, cuja operação, segundo seu próprio gosto particular, ele reconhece estar de acordo com o princípio; quando provamos que o mesmo princípio pode ser aplicado ao caso presente, onde ele não percebeu ou sentiu sua influência: Ele tem que concluir, por fim, que a falha reside nele mesmo (...)''6.4

Em estética, esta dicotomia entre racionalismo e empirismo ou sensualismo poderia ser resumida, para o racionalista, na necessidade de a sensibilidade justificar-se perante a razão; para o empirista, na necessidade de a razão justificar-se perante a sensibilidade. O fato é que homens do porte de Platão, Descartes, Diderot, Montesquieu, Voltaire, Hume, Kant, Hegel, Nietzsche e Adorno, entre outros, se dedicaram mais ou menos detidamente à questão, o que atesta no mínimo a sua relevância filosófica. Até onde pude pesquisar, porém, nenhuma de suas análises adquiriu um estatuto que merecesse, ainda que por aproximação, o título de conclusivo ou paradigmático sobre o problema do gosto, o que atesta a sua dificuldade. Entretanto, pode-se facilmente verificar que o que sempre atravessa todas essas análises é um conflito entre razão (pretensamente universal) e sensibilidade (pretensamente particular). Se não se desse este conflito, não haveria necessidade de justificação de espécie alguma. E é neste sentido, na ausência deste conflito, que o gosto é mais que ideologia.

Entretanto, só há uma única condição para que não haja conflito: que o gosto individual esteja de acordo com determinado padrão coletivo e que nenhum dos dois seja confrontado com outro padrão. Quando o conflito, por sua vez, se dá, o que não é nada raro, a atitude mais comum tem sido - certamente desde Voltaire (mas não em Voltaire) e provavelmente desde muito antes - o recurso ao lugar comum ``gosto não se discute'', ao qual acrescentou-se o ``se lamenta''. Mas a questão posta desta maneira não é resolvida, somente recalcada. Por outro lado, quando, enfim, o gosto é discutido por não especialistas, abunda a mera adjetivação, a qual, sem uma análise ulterior, permanece estéril; quando é discutido por especialistas - artistas, críticos de arte e, sobretudo, pelos filósofos -, o é em termos exaustivamente retóricos e abusivamente etnocêntricos, na busca da definição de um bom gosto universal idealizado e de um juízo universal que o legitime, com a forte tendência a desprezar ou a minimizar a racionalidade própria de outros cânones e as determinações da história, da divisão da sociedade em classes, dos sentimentos particulares de prazer ou desprazer; ou, ao contrário, a sobrevalorizar estas últimas em detrimento das demais.

O fato é que quando surge o conflito - ao descobrirmos que o que comemos sem saber do que se tratava consistia em algo cuja idéia (dado sócio-cultural que transcende uma inexistente fisiologia ``pura'' do paladar particular) nos provoca repulsa, ou quando nos comunicamos com alguém a respeito de nossa aprovação ou desaprovação por uma música, por exemplo, e a pessoa discorda do nosso gosto -, surge também a necessidade de o gosto justificar-se através de um discurso. Não perante a ``razão universal'', mas perante a razão do outro, seja o funkeiro, seja o vizinho do asfalto com sua coleção do Roberto Carlos, seja o musicólogo alemão. O apelo exclusivo à razão representa, neste caso, nada mais que um artifício retórico de cunho nitidamente etnocêntrico, idealista e classista. O que não significa que seja um apelo que mereça a priori menos crédito que os demais (apelo à tradição, à moral, à sensibilidade etc.); muito pelo contrário, mas desde que livre-se da miopia de pretender-se ``universal'', não identificando sua própria historicidade e posição classista.

Nesse ponto do problema, veremos que o gosto também pode ser menos que ideologia quando, embora o deseje, não consegue elaborar nenhuma espécie de discurso ou juízo referente a si, permanecendo na ordem pulsional, não representativa, e recalcando o desejo do difícil acordo, seja na esfera subjetiva (individual), seja na intersubjetiva (coletiva). Esse desejo de acordo e de elaboração discursiva torna-se, em face ao conflito, imperativo, e advém tanto da eventual discrepância entre a experiência sensível e os juízos de valor consagrados (seja entre os funkeiros, seja na mídia, seja na academia) quanto da simples constatação de que os gostos variam e do eventual desconforto provocado por ela. Em termos lacanianos, este desconforto resultaria da frustração do desejo de ser reconhecido pelo outro:

``(...) o desejo do homem encontra seu sentido no desejo do outro, não tanto porque o outro detém as chaves do objeto desejado, quanto porque seu primeiro objeto é de ser reconhecido pelo outro.'' (Lacan, 1978, p.132)

Talvez esta reflexão nos auxilie a compreender o incômodo provocado pela sentença ``gosto não se discute'', que sugere a impossibilidade da comunicação sobre juízos de valor. Ora, no terreno da intersubjetividade, ou campo comunicacional, se meu gosto é uma expressão de um sentimento indiscutivelmente verdadeiro para mim em relação a alguma coisa, inevitavelmente há algo de desagradável na idéia de que há quem não goste do que eu gosto, pelo simples fato de que a minha verdade é automaticamente posta em questão pela verdade do outro. Se a minha solução para esse desconforto não for simplesmente desprezar ou desconsiderar o outro, para que haja acordo e/ou convencimento é necessária a elaboração discursiva. Se ela não é possível, o desconforto e o desacordo persistem de modo recalcado. Mas todos sabemos o quanto é difícil traduzir sentimentos em palavras. Por isso, como dizia Freud, admiramos certos pensadores e poetas:

``E bem podemos suspirar aliviados ante o pensamento de que, apesar de tudo, a alguns é concedido salvar, sem esforço, do torvelinho de seus próprios sentimentos as mais profundas verdades, em cuja direção o resto de nós tem de encontrar o caminho por meio de uma incerteza atormentadora e com um intranqüilo tatear.'' (Freud, 1974, p.95)

Se não é fácil descrever sentimentos e sensações, e muito menos justificá-los, isso só aumenta o desconforto e o embaraço que nos provoca o fato de alguém não gostar de algo que gostamos, e vice-versa, incômodo que talvez provenha também da impressão, despertada por esta discordância, de uma relatividade excessivamente radical do que é ou não real, como se uma pessoa chamasse de amarelo uma cor, por exemplo, que eu chamo de vermelho; no caso, ou a pessoa mente ou nossas percepções óticas são distintas, suposto que dominemos a língua e estejamos observando a cor sob as mesmas condições de apreensão (a mesma luz, o mesmo ponto de vista).

No que se refere à variedade dos gostos, excetuando-se a hipótese da mentira, a solução empirista sugere que os fatores que a determinam possam ser identificados nas percepções superiores ou inferiores. De Hume podemos deduzir que o gosto para a música varia segundo varie a capacidade auditiva, fisiologicamente falando, acrescida do cultivo dos sujeitos. Isso é verdade e não é. No extremo, diante da surdez e da ignorância crassa, o postulado se justifica. Mas é perfeitamente razoável imaginarmos dois sujeitos cultivados, que dispõem de um aparelho auditivo igualmente bem formado, divergirem em seu gosto musical. A solução de Hume para este dilema poderia ser traduzida na expressão ``a nata da nata'', isto é, no fundo, apesar de tudo o que tenha sido dito ou que se possa dizer, há algumas obras artísticas inquestionavelmente superiores às outras, o que pode ser atestado por sua longevidade histórica e pelo consenso de todos os povos (europeus!) a respeito; e há raríssimos indivíduos que, estejam onde estiverem, seja em que época for, possuem um aparelho perceptivo e um grau de cultivo (mas por quê uma forma de cultivo, dentro de determinado cânone, é superior a outra?) inatingível aos demais mortais. Porém, tais postulados, provavelmente, são empiricamente inverificáveis e, mesmo que o fossem, só diriam respeito à teratologia.

Assim, voltemos a questão de como algo que desperta prazer em uma pessoa menos agraciada pelos deuses desperta desprazer ou indiferença em outra igualmente cultivada e capacitada fisiologicamente. Mais do que nas percepções em si, a resposta talvez se encontre na rede valorativa que cada um estabelece através delas, rede tecida com dois materiais:

  1. maior ou menor acesso do sujeito a um repertório simbólico comum e aos cânones da classe e/ou da fração de classe à qual ele pertence, bem como aos das classes ou frações de classe às quais ele não pertence, ambos os graus de acesso determinados pela sua posição de classe;

  2. as condições objetivas de apreensão (contexto da afecção) e reapreensão (novos contextos de apreensão que têm como referência de afecção prazerosa - ou desprazerosa - o primeiro, apreensão esta que busca reproduzir-se - ou negar-se -, no esforço de carregar os novos contextos de significação reflexa do primeiro - o habitus, de Bourdieu, e não o ``hábito'', na medida em que esta trajetória está sujeita a transformações). Assim, o sujeito pode reproduzir o cânone - se o prazer que legitima lhe satisfizer e se não houver conflito entre sensibilidade e razão -, abandoná-lo ou combatê-lo.

Cumpre portanto, para um estudo e para uma crítica da produção, da reprodução e da circulação social dos gostos, isto é, de sua economia política, partir de uma investigação destas redes valorativas individuais, destes repertórios simbólicos comuns, destes cânones e destas condições de apreensão e reapreensão, determinados pela luta de classes. Para tanto, é importante levar também em conta as sobredeterminações sociais que complexificam a divisão desigual de um repertório simbólico coletivo disponível e das condições objetivas de apreensão: formação, etnia, gênero, idade etc.

Um dos fatores que dificultam a tarefa é que esses ``cânones'', sobretudo nas grandes concentrações urbanas modernas, e ainda mais no mundo globalizado, nem sempre possuem contornos nítidos e muitas vezes não existem de modo verbalizado, o que impõe o esforço teórico de recortá-los e decifrá-los semiologicamente. Para que isto seja possível, há que se identificar sua gramática e semântica distintivas, o que requer uma observação atenta e minuciosa, e/ou o recurso à tradução verbal pelos próprios sujeitos. Pois somente redes valorativas conscientes - isto é, passíveis de elaboração discursiva que traduza o cânone, as experiências sensíveis concretas e a posição destas em meio àquele -, que emergem nos discursos de legitimação, ou juízos de gosto, podem indicar as pistas desta investigação. Meras estatísticas de consumo afastam-se muito pouco da tautologia: gosta-se do que se conhece porque se conhece o que se gosta, isto é, porque sim. Por outro lado, identificar o que não se gosta do que se conhece, e por quê, contribuiria para a composição de nosso quadro ``sócio-semântico''.

Nesse sentido, os gostos individuais mais ou menos que ideológicos, isto é, aqueles que respectivamente não precisam ou não conseguem ser formulados em juízos, podem ser objeto da psicanálise ou da psicologia, mas não de uma economia política ou de uma crítica. Uma crítica da economia política dos gostos e juízos de gosto sociais só adquire algum direito e alguma viabilidade metodológica se não tomá-los em si mesmos, mas como significantes ideológicos. Fora do espectro da psicanálise e da psicologia, e este trabalho encontra-se fora deste espectro, não pode haver uma crítica científica da subjetividade (a não ser se tomada como mero produto do sistema nervoso, e de seu funcionamento materialmente correto ou defeituoso, o que tampouco é o nosso caso), mas pode e deve haver uma da intersubjetividade. Aliás, como já dissemos, a mediação tecno-capitalista da intersubjetividade me parece constituir o objeto por excelência dos estudos de comunicação. Assim, o que é possível neste recorte é investigar os gostos concretos manifestos nos juízos de valor - não importando tanto seu grau de elaboração, mas a capacidade do investigador de identificar tanto as classes e frações de classe a que pertencem os agentes dos juízos, quanto uma gramática distintiva mais ou menos coerente através da qual operam os conteúdos ideacionais destes juízos - e desenvolver uma análise crítica das condições econômicas de sua produção, reprodução, circulação e consumo sociais.

Em nosso esforço em elaborar os fundamentos desta crítica, dissemos que os gostos são, por um lado, mais que ideologias, e por outro lado são menos. Há ainda uma terceira possibilidade, e é esta que nos diz respeito em especial: a de os gostos serem também ideológicos. E, na realidade, ao serem elaborados em juízos, necessariamente o são. É verdade que dificilmente são experimentados como tais pelo sujeito degustante. O são, porém, na medida em que pode-se identificar em uma dada coletividade padrões valorativos comuns aos quais estes juízos remontam, ainda que inconscientemente. Esta coletividade pode ser recortada em termos etários, étnicos, classistas, nacionais etc. Estes fatores podem ainda combinar-se das mais diversas formas.

Para desenvolvermos melhor este ponto, faz-se necessário agora um esclarecimento quanto ao que entendemos por ideologia. Na verdade, estamos utilizando alternadamente as acepções neutra e negativa propostas por Jorge Larrain em seu ensaio ``Stuart Hall and the marxist concept of ideology''.6.5

Em linhas gerais, podemos deduzir do ensaio de Larrain que:

  1. Não há consenso quanto ao que seria uma concepção marxista unívoca de ideologia. Contudo, correntemente se acusa o marxismo de um certo reducionismo economicista, em face do qual toda produção intelectual ou simbólica não-científica seria um mero reflexo mecânico, automático e linear da estrutura econômica. Parece que não poucos marxistas incorreram neste equívoco, a qual se opunham veementemente não somente o próprio Marx, mas também importantes pensadores da tradição marxista, como Gramsci e Althusser, entre outros, incluindo Stuart Hall. Creio que a raiz desta confusão, e também da polêmica entre os marxistas que se esforçam por superá-la, se encontra na ênfase de Marx em considerar, entre outros fatores, o econômico como determinante em última instância das relações sociais, incluindo aí toda produção intelectual ou simbólica - ou ainda ``do espírito'', nos termos de Marx. Esta ênfase teria sido distorcida em um mecanicismo determinista por teóricos ligados à 2ª Internacional.

  2. Outra noção marxista controversa, que se encontra no cerne da forma como Marx utiliza o termo ideologia, é a idéia de uma falsa consciência, que seria resultante de uma representação distorcida das relações sociais como de fato se dão. Larrain afirma, porém, que Marx jamais utilizou a expressão falsa consciência, e que Engels o fez somente em uma ocasião. Não obstante, independente da terminologia que empregavam, a noção de ideologia como uma representação invertida da realidade lhes era cara e permanece até hoje um elemento polêmico no pensamento marxista.

  3. Larrain postula ainda que pode-se enxergar na obra de Marx como um todo uma acepção negativa, marcada e coerente, do conceito de ideologia:

``Quando Marx fala em ideologia ele sempre se refere a um tipo de distorção ou inversão da realidade. Ele nunca se refere à sua própria teoria como uma ideologia ou uma ideologia proletária, nem jamais considera a possibilidade de uma ideologia servir aos interesses do proletariado.'' (Larrain, 1996, p.54)

Uma das características desta acepção negativa, a qual Larrain distingue de uma acepção neutra, que identifica na obra de alguns autores marxistas, é a utilização do termo ideologia sempre no singular, referindo-se a produções intelectuais específicas. Em suas palavras,

``Marx e Engels sempre falam em ideologia no singular e jamais se referiram a ideologias de classe no plural, como fazem Laclau e Hall, seguindo a tradição leninista e gramsciana. Marx e Engels estão sempre em oposição à ideologia. Nisto eles são absolutamente consistentes, dos seus primeiros escritos aos escritos maduros, independente de estarem lidando com religião, filosofia alemã ou com as formas de consciência política e econômica espontâneas promovidas pelo mercado capitalista.'' (idem)

Assim, Marx não fala em ideologias em geral, como representações possíveis da realidade por um grupo, que dão sentido às suas práticas, mas como uma forma específica de distorção da realidade através de uma representação dada, que mascara as contradições destas práticas, resolvendo na subjetividade e no discurso as frustrações que não encontram solução objetiva, legitimando e mascarando por esta via, na prática e no discurso, as contradições desta realidade ``invertida''. Outra característica desta acepção negativa está na oposição postulada por Marx entre ciência e ideologia. Contudo, Larrain defende que nem todas as idéias, discursos ou representações não-científicos são ideológicos, neste sentido, para Marx, mas somente aqueles que distorcem a realidade no interesse das classes dominantes:

``Não há dúvida de que Marx propõe uma forma de oposição entre ciência e ideologia. Se a ideologia é uma forma de pensamento distorcida que permanece enredada nas aparências, a ciência, ao contrário, é uma atividade intelectual capaz de penetrar o véu das aparências para alcançar as relações internas da realidade. Conforme a colocação de Marx, `toda ciência seria supérflua se a aparência externa e a essência das coisas coincidissem diretamente' (...) Mas esta oposição não é concebida ao modo positivista, que postula que a ciência pode suplantar a ideologia assim como a verdade suplanta o erro. Para Marx, a ciência não pode suplantar a ideologia porque esta não é simplesmente um erro intelectual, mas está enraizada em uma realidade contraditória. Somente a transformação prática desta realidade, a resolução prática de suas contradições, pode suplantar a ideologia.

Assim, a ênfase é posta por Marx não na ideologia como uma visão de mundo, ou um discurso que consiste em conceitos e imagens articulados através dos quais tentamos dar sentido à existência social; a ênfase é posta na ideologia como sendo uma forma de distorção específica, não apenas falsa consciência em geral. A especificidade desta distorção consiste em sua função de sustentar a dominação e de reproduzir o sistema capitalista, mascarando contradições. Assim, nem todas as formas de distorção são necessariamente ideológicas. E precisamente por causa desta característica restrita e negativa, a ideologia não pode ser confundida com as idéias dominantes. A confusão implicaria em que todas as idéias dominantes são distorcidas. Marx jamais condenou a totalidade do pensamento burguês como ideológica.'' (ibidem, pp. 56, 57)

Por outro lado, a acepção neutra do termo ideologia, que Larrain atribui à tradição de Lenin e Gramsci, e identifica em alguns ensaios de Stuart Hall (atendo-se em especial a ``The Toad in the Garden: Thatcherism among the Theorists''), diferiria da negativa sobretudo em sua crítica à noção de falsa consciência. Lenin, de fato, em diversas passagens, referiu-se a ideologias de classe no plural, como elaborações intelectuais mais ou menos contraditórias em relação aos interesses de cada classe, mas não necessariamente como distorções da realidade opostas à ciência. Por exemplo, em sua ``Carta à Federação do Norte'', encontramos a seguinte passagem:

``O socialismo, até onde consiste na ideologia da luta da classe operária, está subordinado às condições gerais de nascimento, desenvolvimento e consolidação de uma ideologia, ou seja, está fundado em todo o material do conhecimento humano, pressupõe um alto nível da ciência, demanda trabalhos científicos etc... Na luta de classes do proletariado que se desenvolve espontaneamente, como uma força elementar, na base das relações capitalistas, o socialismo é introduzido pelos ideólogos.'' (Lenin, apud Williams, 1985, p. 157)

Antes desta citação, Williams comenta: ``Claramente não há nenhum sentido de ilusão ou falsa consciência em uma passagem como esta de Lenin...''

Gramsci, por sua vez, problematizou a questão nos seguintes termos:

``Um elemento de erro na consideração sobre o valor das ideologias, ao que me parece, é devido ao fato (fato que, ademais, não é casual) de que se dê o nome de ideologia tanto à superestrutura necessária de uma determinada estrutura, como às elucubrações arbitrárias de determinados indivíduos. O sentido pejorativo da palavra tornou-se exclusivo, o que modificou e desnaturou a análise teórica do conceito de ideologia. (...) É necessário, por conseguinte, distinguir entre ideologias historicamente orgânicas, isto é, que são necessárias à uma determinada estrutura, e ideologias arbitrárias, racionalistas, `desejadas'.'' (Gramsci, 1978, p. 62)

Vemos, assim, já em Gramsci, o esboço de uma distinção entre o que posteriormente Larrain definiria como uma acepção neutra e uma negativa do conceito, embora a sugestão gramsciana de uma acepção negativa não refira-se a discursos que atendem aos interesses da classe dominante, mas a ``ideologias arbitrárias, racionalistas, desejadas''.

Mais adiante, de certo modo antecipando alguns postulados de Marcuse e Habermas, e dando um novo enfoque à oposição de Marx entre ciência e ideologia - sem, contudo, descartá-la -, Gramsci define a própria ciência como ideologia historicamente orgânica, posto que necessária (em oposição às ideologias ``arbitrárias'') e que as verdades científicas não são definitivas. Neste sentido, o termo ideologia é tomado no que seria a sua acepção neutra, a mesma que Larrain atribui a Hall, quando este nos diz que ideologias consistem nestas

``imagens, conceitos e premissas que fornecem o arcabouço através do qual nós representamos, interpretamos, entendemos e `atribuímos significado' a alguns aspectos da existência social.''6.6

Essa definição é ainda dividida em três pontos principais:

``Primeiro, ideologias não consistem em conceitos isolados e separados, mas em articulações de diferentes elementos em uma série ou cadeia distintiva de significados. Segundo, declarações ideológicas são feitas por indivíduos; mas ideologias não são o produto da consciência ou intenção individual. Antes, formulamos nossas intenções no interior da ideologia. Terceiro, ideologias `operam' construindo para os seus sujeitos (individuais e coletivos) posições de identificação e conhecimento que lhes possibilitam expressar verdades ideológicas como se fossem seus autênticos autores.''6.7

Enquanto Gramsci ainda distingue no conceito ``ideologia'' um aspecto puramente negativo (seu caráter ``arbitrário'', ``racionalista'', ``desejado'') - a ``falsa consciência''? - e outro neutro (seu caráter ``necessário'', ``orgânico''), Larrain sugere que a concepção de Hall parece privilegiar a trilha do que seria a acepção neutra de Gramsci. De fato, Hall afirmou que:

``a primeira coisa a se perguntar sobre uma ideologia `orgânica' que, embora inesperadamente, é bem sucedida em organizar setores substanciais das massas e em mobilizá-las para ações políticas, não é o que há de falso nela, mas o que há de verdadeiro. Por verdadeiro eu não quero dizer universalmente correto como uma lei do universo, mas que `faz sentido'(...)'' (Hall, 1988, p.46)

A ``ideologia orgânica'' a qual Hall se refere nesta passagem é o fenômeno do conservadorismo thatcherista na Inglaterra dos anos 80, em face ao qual não bastaria dizer que as classes subalternas são meramente enganadas ao fazer seu o discurso de uma classe hegemônica que somente as explora (embora Hall reconheça que isto é em parte verdadeiro), reproduzindo ideologicamente este discurso como expressão de sua ``falsa consciência'', o que seria a conclusão lógica da acepção negativa. Mais importante seria investigar

  1. os ecos por assim dizer positivos que este discurso encontra nas pessoas, ou seja, em que medida elas de alguma forma são, sim, conscientes das relações sociais como de fato se dão, bem como de suas necessidades e das práticas adequadas para satisfazê-las, e

  2. porquê de um discurso conservador em particular, em uma dada conjuntura sócio-histórica, atender em parte a essas expectativas, apesar das objeções que uma outra tendência do pensamento marxista faria à alienação das pessoas quanto às suas verdadeiras necessidades.

Vimos que para Marx, um discurso não é ideológico nem como uma representação necessária, nem arbitrária, mas simplesmente como uma forma específica de distorção da realidade. Vimos também que nem todas as idéias ``não científicas'' eram consideradas por ele como ideológicas. As que o eram, o eram como distorções que atendiam aos interesses das classes dominantes, fazendo sentido ou não. Assim, podemos deduzir que as ``ideologias'' (orgânicas) que Gramsci chama de ``necessárias [como superestruturas] à uma determinada estrutura'' seriam ideológicas para Marx apenas se atendessem aos interesses de dominação da classe dominante, do mesmo modo que as que Gramsci define como ``arbitrárias, racionalistas, desejadas''. Como o próprio Gramsci identificou, ``o próprio significado que o termo `ideologia' assumiu na filosofia da praxis contém implicitamente um juízo de desvalor (...)'' (op. cit., p.63)

Raymond Williams, por sua vez, destaca uma exceção na obra de Marx, onde este teria utilizado o termo no que seria a sua acepção neutra, contrariando a afirmação de Larrain de que Marx teria utilizado o termo sempre e exclusivamente em sua acepção negativa:

``Ainda há um outro sentido aparentemente mais neutro de ideologia, em algumas partes dos escritos de Marx, notadamente na bem conhecida passagem da Contribuição à Crítica da Filosofia Política (1859): `A distinção deveria sempre ser feita entre a transformação material das condições econômicas de produção... e as formas legal, política, religiosa, estética ou filosófica - em suma, ideológicas - nas quais o homem se torna consciente deste conflito e entra fundo na luta''' (Williams, op. cit., p. 156.)

Não obstante, trata-se de uma exceção. Na vrdade, Willians corrobora a visão de Larrain, principalmente ao referir-se ao ``sentido pejorativo popularizado por Marx e Engels''6.8 do termo ideologia e ao afirmar que

``Marx e Engels, em sua crítica do pensamento dos seus contemporâneos alemães radicais, concentraram-se em sua abstração do processo real da história. Idéias, como eles diziam especificamente das idéias dominantes de uma época, `não são nada além da expressão ideal das relações materiais dominantes tomadas como idéias'. O malogro de perceber isto produziu a ideologia: uma visão da realidade de cabeça para baixo.''6.9

Nosso objetivo até aqui tem sido discutir o postulado de Larrain, de que pode-se encontrar na literatura marxista duas linhas gerais de utilização do termo ideologia: uma que define como neutra e outra como negativa. Iremos agora precisar com clareza o que seria, no nosso entender, uma e outra, bem como qual a contribuição teórica que essa distinção pode fornecer para a compreensão da problemática do caráter ideológico dos gostos e juízos de gosto.

Em síntese, entendemos, por acepção neutra de ideologia, uma forma analítica de abordar determinado conjunto de articulações discursivas que expressam uma ``visão de mundo'', que dá sentido às práticas de uma dada coletividade em um dado contexto sócio-histórico; por acepção negativa de ideologia, uma forma crítica de abordar determinado conjunto de articulações discursivas, que expressam uma ``visão de mundo distorcida'' de uma dada coletividade etc., a qual, fazendo sentido ou não, atende aos interesses das classes dominantes. A abordagem neutra privilegia o que faz sentido em uma articulação discursiva, ainda que como base para a elaboração de uma crítica; a negativa, o que não faz sentido, ou melhor, o que há de distorcido neste sentido e, sobretudo, de que forma ele legitima as relações de poder vigentes.

Ora, toda e qualquer articulação discursiva minimamente orgânica (isto é, aceita por determinado grupo social como verdadeira) faz algum tipo de sentido e, ao mesmo tempo, este sentido é sempre uma tomada de posição, menos ou mais indireta, em meio à luta de classes. Como dizia Althusser,

``Se os aparelhos ideológicos de Estado têm a função de inculcar a ideologia dominante, isso quer dizer que existe resistência, se há resistência, é que há luta e essa luta é, em definitivo, o eco direto ou indireto, próximo ou, em geral, longínquo, da luta de classes.'' (Althusser, 1985, P. 112)

Partindo deste princípio, concordamos com Larrain quando este defende a complementaridade de ambas as abordagens no estudo de um dado fenômeno político ou cultural, pois julgamos que tal atitude torna o estudo dialeticamente mais rico do que se a opção se centrasse em uma só das abordagens, fosse ela qual fosse. Assim, polemizando com a abordagem de Hall no ensaio ``The toad in the garden...'', e buscando, creio, reintroduzir na discussão a noção de falsa consciência, Larrain questiona o porquê de não se perguntar também sobre o que é falso em uma ideologia, isto é, sobre de que modo um discurso pode ser entendido como ideológico não só na medida em que faz sentido para amplas camadas das massas, mobilizando-as, mas também por mascarar contradições reais, ``fazendo sentido'' ou não, sendo a ideologia orgânica ou não:

``(...) mesmo aceitando como útil a definição gramsciana de ideologia de Hall, como eu aceito, (...) por que deveríamos nos restringir a descobrir o que faz sentido em uma ideologia? Não é também completamente necessário descobrir o que está errado e expô-lo? Considerando que o nazismo e o fascismo eram ideologias na acepção gramsciana, as quais, embora inesperadamente, foram bem sucedidas em organizar setores importantes das massas alemãs e italianas, não seria importante descobrir não somente o que tinham de verdadeiro, o que nelas fazia sentido e seduziu o povo a aceitá-las, mas também descobrir e expor o que tinham de falso e que não fazia sentido?'' (Larrain, 1996, p. 61)

Em outras palavras, nos parece que se a acepção neutra é útil como ferramenta teórica para identificar a razão de ser da organicidade de uma ``ideologia'' que consegue mobilizar amplos setores das massas, deixando de lado a idéia de falsa consciência e centrando-se na ``positividade'' das articulações discursivas que dão sentido às práticas dos sujeitos, por outro lado corre o risco de perder de vista o aspecto contraditório entre os sentidos dessas articulações e as práticas que pretendem explicar, ao desconsiderar a possibilidade de os sujeitos estarem sendo literalmente enganados. Uma ideologia, por ser orgânica, não deixa de estar sujeita a contradições, distorções e mascaramentos. Nesse ponto, a acepção negativa de ideologia permitiria identificar essas distorções, reintroduzindo a idéia de falsa consciência, e assim desmascarar o que eventualmente possa haver de contraditório nos discursos em pauta. Creio, porém, que a acepção negativa sozinha corre o risco de pré-julgar uma dada articulação discursiva a partir da teoria geral (o materialismo histórico ou dialético), caso se mostre incapaz de identificar em um discurso ``reacionário'', por exemplo, que mobilize as classes subordinadas, ``what about it is true'', ``make good sense'', identificando-o como mero embuste. É nesse sentido que, a meu ver, justifica-se tanto a visão anti-reducionista de Hall, que recusa-se a entender os discursos em geral como reflexos mecânicos das relações materiais,6.10 e ideologia como uma falsa consciência oposta a uma consciência verdadeira, científica, quanto o postulado de Larrain sobre a pertinência de uma análise que utilize-se das duas acepções como complementares e não excludentes: de uma análise que rejeite a noção de falsa consciência seguida de uma crítica que a reintroduza, ainda que somente como possibilidade.

Esta complementaridade aponta no sentido de que não se trata 1) de estigmatizar a priori os discursos não científicos em geral como falsos, como meros reflexos mecânicos e distorcidos de uma realidade distorcida, nem 2) de abandonar a possibilidade de representarem distorções da realidade que atendem aos interesses das classes dominantes, mas 3) que se deve abordar dialeticamente qualquer articulação discursiva buscando identificar, ao mesmo tempo, tanto os seus aspectos razoáveis quanto os contraditórios, sob a perspectiva da luta de classes. É, de certo modo, o que Gramsci faz ao analisar a Igreja Católica: ao mesmo tempo em que aprecia sua organicidade, sua capacidade de compor um ``bloco histórico'' - através de seu esforço em manter a união entre a elite intelectual da igreja e as massas de fiéis, reprimindo os primeiros quando se afastam da fé popular -, condena seu empenho em impedir que as massas ascendam a um outro patamar intelectual, conservando-as na ignorância, por interesses de dominação. O discurso da unidade dos fiéis e da universalidade da igreja possui, neste exemplo, a dupla dimensão ideológica que defendemos que se deve buscar em toda articulação discursiva:6.11 nos termos de Gramsci, seu caráter orgânico e seu caráter arbitrário, em meio aos quais, porém, o intelectual marxista é convocado a tomar partido:

``A posição da filosofia da praxis [leia-se marxismo] é antitética a esta posição católica: a filosofia da praxis não busca manter os ``simplórios'' na sua filosofia primitiva do senso comum, mas busca, ao contrário, conduzi-los a uma concepção de vida superior. Se ela afirma a exigência do contato entre os intelectuais e os simplórios não é para limitar a atividade científica e para manter uma unidade no nível inferior das massas, mas justamente para forjar um bloco intelectual-moral, que torne politicamente possível um progresso intelectual de massa e não apenas de pequenos grupos intelectuais.'' (Gramsci, p. 20)

Vemos que, apesar do ``bloco intelectual-moral'' que defende não ser idêntico ao da igreja, que impede a ascensão das massas ao mesmo tempo que proíbe aos seus intelectuais que delas se afastem, é da Igreja que Gramsci toma emprestado seu modelo de bloco-histórico, exigindo a aproximação dos intelectuais das massas. Assim, a identificação do que há de razoável no discurso da unidade dos fiéis e no próprio modelo político organizacional da Igreja, acrescida da crítica, mostrou-se fértil também como base para uma nova concepção de organização política. Uma atitude sem a outra seria necessariamente mais pobre. Se Gramsci pode ter privilegiado em algum momento a acepção neutra, como sugere Larrain, o fez em um contexto no qual a negativa prevalecia de um modo freqüentemente marcado por um reducionismo economicista - o qual perdia de foco a própria dialética que torna a noção de determinação em última instância, ou antecedência, dos fatores econômicos sobre os demais, realista e fecunda, empobrecendo-a.6.12 Contudo, nem por isso abandonou a noção de falsa consciência, em sua crítica aos discursos ``arbitrários'', ``desejados''.

Em suma, defendemos que a operacionalidade da acepção neutra reside em sua capacidade tática de fornecer uma compreensão das razões pelas quais certos discursos conservadores fazem sentido, mobilizam as massas, tornam-se orgânicos, no que pese poderem estar aparentemente em contradição com o que uma visão de mundo marxista chamaria de os ``interesses reais'' dos emissores ou reprodutores dos discursos, de modo a se poder identificar os equívocos das políticas desenvolvidas pelos setores progressistas (ou revolucionários) da sociedade e reorientá-las pontualmente. Por exemplo, no Brasil, uma abordagem neutra do discurso direitista em nome da ordem e do anticomunismo, sobretudo durante os anos 60 e 70, talvez tivesse contribuído para que fossem evitados alguns equívocos, como o distanciamento entre boa parte dos intelectuais de esquerda, que se julgavam a vanguarda revolucionária, e as massas (incluindo amplos setores das classes médias), cujo resultado, sabemos, foi trágico. Outro exemplo: na Alemanha, nos anos 20 e 30, a beligerância mútua entre comunistas e sociais democratas pavimentou o terreno - aberto, não obstante, pelas crises econômicas que marcaram o período - para a ascensão nazista, a qual pegou as esquerdas de surpresa, entre outros fatores por terem se mostrado incapazes de identificar o que fazia sentido na pregação nazi, atendo-se somente aos seus aspectos negativos óbvios.6.13

Já a acepção negativa permitiria identificar as distorções dos discursos hegemônicos conservadores de modo que fossem elaboradas políticas estratégicas de fôlego, cuja meta seria não apenas compreendê-los e opor-lhes resistência, mas superá-los - sem, contudo, perder de vista que erros táticos necessariamente comprometem a estratégia.

Tentaremos agora investigar se é possível aplicar ambas as acepções, que buscamos conceitualizar, segundo o nosso entendimento, como instrumentos teóricos de análise e crítica social, à questão dos gostos musicais, partindo das seguintes conclusões:

  1. A acepção neutra de ideologia seria sobretudo analítica e tática: ao rejeitar a noção de distorção ou falsa consciência, poderia ser útil para identificar a razão de ser (para seus emissores e reprodutores) e a concretude histórica de um dado juízo de gosto (isto é, a rede ou o complexo de determinações que o produz), bem como sua oposição a outros juízos. Ou seja, pode explicar como e por quê esta articulação discursiva faz sentido para os que dela se utilizam e de que modo legitima práticas que são de seu interesse. Sob esta perspectiva, uma tal compreensão favoreceria o desenvolvimento de políticas conjunturais, de curto prazo, ou, em outros termos, na utilização pontual da ``verdade'' que subjaz em uma eventual ``distorção'' hegemônica de modo a rearticulá-la sob uma perspectiva contra-hegemônica de resistência.

  2. A acepção negativa seria sobretudo crítica e estratégica: conservando, ou reintroduzindo, a noção de distorção ou falsa consciência, serviria para identificar até que ponto esses juízos - no que pese a ``verdade'' que seus articuladores lhe atribuem - falseiam as relações sociais em sua concretude histórica, legitimando e reproduzindo relações de subordinação de um determinado grupo por outro dentro do conjunto mais amplo da luta de classes, e para identificar se e até que ponto o juízo em questão mascara as relações e interesses de classe (e somente neste sentido seriam ideológicos na acepção negativa). Esta compreensão favoreceria o desenvolvimento de políticas estruturais, de longo prazo, ou seja, que apontassem para uma nova hegemonia:6.14 seu ``ponto de fuga'' é a própria escatologia marxista da superação do capitalismo.

  3. Ambas as acepções levam em consideração a especial relevância dos fatores econômicos e da luta de classes para a compreensão da produção e reprodução sociais de articulações discursivas; em suas formas mais sofisticadas, ambas rejeitam, ao mesmo tempo, todo reducionismo economicista. Diferem, contudo, na aplicação do adjetivo ``ideológico'' às articulações discursivas, ou melhor, no próprio entendimento do conceito ``ideologia''. Esta distinção é relevante, na medida em que buscamos uma definição conceitual rigorosa.

Dito isto, nosso postulado de que há uma dimensão propriamente ideológica nos juízos de gosto, tanto na acepção neutra quanto na negativa, baseia-se nos seguintes pressupostos:

  1. o gosto, como escolha, ou hierarquização valorativa das coisas (materiais ou simbólicas), isto é, como medida do seu valor de uso, estando as necessidades básicas de sobrevivência satisfeitas, é uma síntese (inconsciente) da expressão distintiva de cada coisa (de sua materialidade) e das experiências concretas da percepção individual, mediada pelo conjunto de valores simbólicos coletivos (cânones); esta mediação é o que lhe atribui necessariamente uma dimensão ideológica;

  2. valores simbólicos não são absolutos ou eternos, mas construtos históricos, determinados em última instância por fatores econômicos, dado que o campo de potencialidades de produção simbólica num período histórico dado é delimitado, primeiro, pelo modo de produção hegemônico e, na esmagadora maioria dos casos, pela estratificação da sociedade em classes - que estabelece uma distribuição desigual não só dos recursos materiais mas também de um repertório simbólico comum e de formas possíveis de fruição, no que conseqüentemente surgem variadas formas de cooperação e conflito entre os detentores desses repertórios desigualmente distribuídos - em meio à tensão dialética entre este modo de produção e as necessidades e desejos que de um lado promove e de outro recalca; assim, valores simbólicos representam interesses convergentes ou conflitantes em meio à luta de classes, o que lhes atribui necessariamente uma dimensão ideológica, ainda que não obrigatoriamente na acepção negativa;

  3. os juízos de gosto são a elaboração discursiva dos gostos, portanto a expressão consciente da medida do valor de uso das coisas; porém, embora a potência de formulação de juízos de valor - religiosos, estéticos, científicos etc. - seja delimitada pelas práticas determinadas pelo modo hegemônico de produção (relações de trabalho, formação etc.), os valores simbólicos elencados e hierarquizados nos discursos não constituem um mero espelhamento mecânico e linear deste modo de produção e das práticas correlatas (seja de produção material ou simbólica), mas um esforço complexo de dar sentido a estas práticas, a partir da confrontação destas com um repertório de discursos herdado, em meio ao qual indivíduos e grupos os reproduzirão, transformarão ou abandonarão. O material simbólico para a elaboração destes discursos de legitimação é desigualmente distribuído na sociedade, não só a partir de imperativos de classe, como também de ordem lingüística, etária, de gênero etc.;

  4. o fato de um discurso pretender dar sentido às práticas não significa que este sentido não seja passível de crítica, e

  5. os gostos e juízos de gosto, assim como as ideologias e crenças em geral, tornam-se dados materiais ao orientarem a prática dos sujeitos.

Assim entendidos, os juízos de gosto são ideológicos tanto como articulações discursivas que buscam dar sentido às práticas gustativas dos sujeitos e grupos (acepção neutra de ideologia) quanto como articulações discursivas que mascaram e distorcem as relações de subordinação e exploração concretas entre alguns sujeitos e outros, refletidas nestas mesmas práticas gustativas (acepção negativa de ideologia). Esses sentidos e distorções cristalizam-se nos gostos, estabelecendo padrões de percepção e juízo coletivos historicamente dinâmicos, que legitimarão ou não as práticas dos sujeitos para eles próprios e para os demais.

Ambas as qualidades podem estar presentes, em diferentes graus, em um mesmo juízo. O que nos interessa é distinguir em que medida os juízos de gosto fazem sentido, isto é, legitimam as práticas nos discursos, tornando-os orgânicos, e em que medida este sentido mascara contradições sociais. Assim, por exemplo, os juízos de gosto referentes ao carnaval podem ilustrar esta dupla natureza ideológica do gosto. Chamemos então de ideológicos alguns discursos que podem ser identificados como pertencentes ao senso comum, como a) ``o carnaval é a expressão da alegria de um povo oprimido'', b) ``o carnaval une todas as classes'', c) ``o carnaval é a maior expressão da cultura brasileira'' e d) ``o carnaval não é mais o mesmo''. De cara identificamos aí:

acepção neutra - vislumbre através da prática de uma realidade de gozo que se opõe e supera, em caráter excepcional, os imperativos sociais existentes, da tristeza, da labuta e da repressão sexual;6.15 acepção negativa - fixação em e supervalorização de uma satisfação substitutiva que mascara as contradições reais que produzem a tristeza, a labuta e a banalização sexual, que o carnaval, como ``válvula de escape'' permitida, ajuda a legitimar, precisamente por seu caráter excepcional;

neutra - vislumbre através da prática de uma situação excepcional que transcende como modelo ideal a subordinação classista e racial; negativa - ocultamento ou minimização do caráter excepcional da situação transcendente;

neutra - reconhecimento da hegemonia cultural no campo da música, da festa e da dança conquistada pelas classes subordinadas, sobretudo os negros, através de sua luta pela afirmação social de seu repertório cultural; negativa - mascaramento da posição subordinada dos negros e das classes populares em geral em praticamente todos os outros espaços e tempos da vida social;

neutra - consciência da subordinação de certas características estilísticas do desfile a imperativos comerciais, como a crescente presença, como destaques nos desfiles, de modelos, atrizes etc. brancas, sem nenhuma relação com a comunidade que realiza o evento; negativa - apego a um certo purismo tradicionalista, incapaz de reconhecer que até certo ponto a comercialização do espetáculo representa uma possibilidade de compensação econômica mais expressiva para as comunidades etc.

Outras inferências e exemplos poderiam ser citados. O gosto pelo rock, em certa medida, costuma estar associado a uma rebeldia - salutar - diante da disciplina do trabalho (a palavra de ordem é diversão), da estética elitista e da moral sexual conservadora; o ideário da ``cultura jovem'' representa, ou representou, uma valorização da ludicidade em detrimento dos imperativos econômicos da labuta; o amante do rock busca uma fruição estética imediata e intensa da qual participem todos os sentidos, o que é uma opção legítima; através do rock, a música negra norte-americana saiu definitivamente dos guetos e conquistou o mundo; nos anos sessenta, o rock esteve em boa parte associado à conscientização política das massas e a um repúdio do imperialismo (oposição à guerra do Vietnã) e da ordem tecnocrática; nesta mesma época, operou experiências formais desbravadoras de novas rotas de expressão e percepção; representou ainda um desejo de liberdade individual e coletiva, de novas experiências sensórias (drogas) e de euforia; por outro lado, o ``sonho'' foi ``pasteurizado''; no Brasil, reflete, geralmente, uma opção estética colonizada, um desprezo esnobe pelos gêneros brasileiros e por tudo que não é inglês ou norte-americano, e um orgulho ignorante na recusa de conhecer outras formas mais elaboradas de fruição musical, atestando um certo infantilismo do gosto, fortemente carregado de idolatria ou fetichismo; muitos músicos negros sentiram-se ``roubados'' pelos brancos; toda a rebeldia torna-se fake, restrita ao instante do show ou da audição musical, a penteados e indumentária, não se desdobrando em outras práticas concretas de transformação das condições sociais de opressão; a crise do petróleo do início dos anos 70 acabou com o sonho, altamente lastreado em um alto padrão de consumo que prolongava a infância e o tempo livre etc.

Buscamos ilustrar com esses exemplos que o caminho (método) que propomos para uma crítica do gosto passa pela identificação e pela análise desta dupla natureza ideológica que nele subjaz e que emerge em sua formulação em juízos. Esta análise tem por objetivo servir de base para uma crítica que aponte no sentido de uma luta política por formas superiores de práticas gustativas, que conservem e desenvolvam seu caráter sublimatório e transcendam seu caráter fetichista.

Capital Midiático e Valor Simbólico

Temos tentado compor um quadro conceitual que nos permitisse compreender como se dá a mediação tecno-capitalista dos gostos musicais. Para tanto, partindo da etimologia grega e hebraica do termo gosto, discutimos alguns postulados filosóficos sobre o tema e propusemos o recurso à crítica da economia política, de Marx, como orientação metodológica para uma melhor compreensão de nosso objeto relacional. Dentro do paradigma materialista, na acepção marxista do termo (matéria investida de sentido histórico-econômico), privilegiamos a teoria da determinação em última instância, ou antecedência, da estrutura produtiva de uma sociedade dada sobre sua produção simbólica. Estrutura produtiva significa o conjunto dos meios dentro de um modo de produção dado, bem como as relações de trabalho que este estabelece. A crítica da economia política desenvolvida por Marx em O Capital parte de sua teoria do valor e da luta de classes: se só o trabalho produz valor, nas relações de trabalho capitalistas o valor excedente do trabalho produtivo constitui o lucro do capitalista, sendo o trabalhador, literalmente, roubado, o que os coloca em posições necessariamente antagônicas. Sendo a produção industrial a principal fonte de riquezas na sociedade capitalista, sua forma específica de produzir riquezas e os conflitos daí resultantes determinam o conjunto das relações sociais. Tal determinação, contudo, não se dá de modo automático, mas complexo. Para compreendermos melhor esta complexidade, que envolve os efeitos de retorno da superestrutura sobre a estrutura, recorremos à noção gramsciana de hegemonia, que entende a luta de classes como um processo lento e gradual de construção de posições de poder em todas as instâncias sociais (econômica, política, cultural), aliada à noção althusseriana de sobredeterminação: a estrutura de uma formação social dada divide-se em diversas instâncias ou níveis, tendo por base o nível econômico e por superestrutura o político e o ideológico. Embora o nível econômico seja a instância determinante, sua reprodução se dá nos níveis políticos e ideológicos, os quais, portanto, o sobredeterminam. Buscamos demonstrar que a problemática dos gostos pertence, neste enfoque, ao nível ideológico. Para melhor entendermos sua produção e reprodução sociais, nos pareceu fundamental discutir o conceito ideologia dentro da tradição marxista, o que nos permitiu, assim espero, formular uma definição precisa de suas acepções neutra e negativa, a partir da qual postulamos a pertinência da complementaridade operacional de ambas para o estudo de nosso objeto.

Chegou o momento de voltarmos nossa atenção mais detidamente para a posição que atribuímos à produção musical dentro deste recorte teórico, retomando a hipótese apresentada na introdução deste trabalho, a saber, de que o desenvolvimento da indústria cultural ao longo do século XX inverteu a relação que se dava em seus primórdios entre a produção musical e a formação dos gostos. Recapitulando, sugerimos que, no princípio, a indústria fonográfica reproduzia produções locais; hoje, os músicos e os públicos tendem a reproduzir, localmente, a produção global da indústria cultural. Se estamos certos ao postular que esta inversão deve-se sobretudo a imperativos econômicos, para entendermos como ela se verificou na prática cumpre enfim definir o que entendemos por capital midiático, conceito ao qual opomos valor simbólico.

Por capital midiático referimo-nos antes de mais nada a um valor econômico, na medida em que sua produção e reprodução estão direta e predominantemente condicionadas - embora não exclusivamente - pelos imperativos econômicos de auto-expansão do capital. Valor simbólico, por seu turno, opõe-se à categoria valor econômico, na medida em que sua produção é, do ponto de vista do capital, trabalho improdutivo, ou seja, não diretamente capitalizável, pois não requer a transformação de força de trabalho e de capital em mais capital para realizar-se. Valor simbólico, portanto, é o mesmo que prestígio social de um produto ou de um produtor simbólico, nas mais diversas escalas, adquirido independentemente (ou apesar) de vultosos investimentos de capital dinheiro. Seu lastro é o gosto hegemônico de um grupo humano em um dado contexto sócio-histórico, seja racionalizado em considerações estéticas, seja expresso somente na maior ou menor intensidade da aprovação ou da rejeição quantitativas em relação ao produto ou ao produtor simbólico. Essas expressões irão variar com as gerações conforme os desdobramentos da luta entre as classes ou frações de classe pela hegemonia.

Até o advento do comércio em larga escala de edições musicais,7.1 na esfera popular (popular, aqui, em oposição a erudito), o valor simbólico de um produto e o prestígio de seu produtor independiam de qualquer mediação monetária mais relevante;7.2 na esfera erudita, dependiam de mediações monetárias relevantes (das cortes ou da Igreja e, posteriormente, da burguesia ascendente), mas tampouco havia aí trabalho produtivo, capitalizável, pois o dinheiro investido na produção musical não se transformava em capital (dinheiro + trabalho roubado) e a música produzida não era suporte para o processo capitalista de auto-expansão do capital, não se submetendo, portanto, à sua lógica interna; o que se dava era uma troca de prestígio entre os compositores e as cortes, embora os primeiros permanecessem economicamente subordinados às últimas, bem como seu prestígio era menor. Tratava-se, como dissemos, de trabalho improdutivo do ponto de vista do capital.

Gradualmente, principalmente no campo popular, a socialização da música em maior escala passou a depender dos meios de comunicação e da indústria cultural como um todo, cuja teleologia, como todo empreendimento capitalista, é transformar capital em mais capital, sendo o trabalho envolvido na produção de coisas (materiais ou simbólicas) reduzido a uma mera etapa neste processo, segundo a célebre fórmula de Marx, D-M-D', sendo M a mercadoria força de trabalho, única capaz de transformar dinheiro (D) em capital (D'). A força de trabalho e a produção musical tornam-se, a partir daí, trabalho produtivo do ponto de vista do capital. Com isso, subordinam-se ao seu movimento de auto-expansão, tornando-se o gosto de um público local desprezível na determinação do que será produzido, na medida em que não constitui fator de demanda relevante para um investimento lucrativo. Evidentemente, como demanda, o gosto do consumidor é considerado na seleção do que é produzido. Contudo, os imperativos crescentes de ganho de escala, devido à própria lógica interna do capital de expandir-se continuamente e às pressões da concorrência, tendem a selecionar, em meio a um repertório simbólico disponível em um momento dado, aquelas formas que melhor atendam a estes imperativos, e o mais rápido possível. Até então, a música havia se desenvolvido regionalmente, e jamais existiu um padrão de gosto global que contemplasse bilhões de ouvintes. Hoje, há.

Será que o predomínio internacional do pop anglo-saxão deve-se a uma superioridade qualitativa intrínseca deste tipo de música sobre todas as demais formas existentes no planeta? Ou, antes, ao poderio econômico de sua indústria cultural, a qual, tomando a matéria-prima (seu repertório simbólico nacional) e a força de trabalho (seus músicos) locais, universalizou-a na busca por novos mercados, economicamente incapazes de competir a altura (os japoneses e alemães do pós-guerra, para variar, seguiram-lhe os passos, com o prestimoso auxílio do Plano Marshall)? Se a segunda resposta é a correta, isto significa que a produtividade superior de uma indústria sobre as demais, que lhe possibilita produzir mais mercadorias musicais por menos capital investido, acaba por determinar inclusive os usos e costumes na esfera do consumo (em meio aos quais movem-se os gostos), ou seja, os limites da experiência fruitiva da maioria das pessoas, conseqüentemente a qualidade musical, o que é bom ou ruim em música - já que as produções simbólicas de uma indústria inferior, para não falar daquelas extra-midiáticas, tornam-se economicamente inviáveis e, portanto, são atiradas às margens do repertório comum, ou desaparecem.

Até o momento em que o valor de troca monetária, base de legitimação posterior do capital midiático, ainda não entrou em cena, a objetividade sócio-histórica dos valores simbólicos da música popular, isto é, seu valor de uso, permanece atrelada exclusivamente à faculdade de um determinado músico de atender a demandas simbólicas qualitativamente estratificadas (seja através da força da tradição, seja através da força da ruptura) em um momento dado; em outras palavras, à sua capacidade de agradar alguém, independente de qualquer mediação econômica externa ao seu trabalho. Demandas simbólicas correspondem aos valores de uso identificados em tais ou quais produtos simbólicos por um grupo dado, e estes variam com as gerações, os estratos sociais e as diversas mudanças coletivas que a história promove. Portanto, não são nem podem ser estanques. Porém, se até um século atrás essas demandas gustativas eram canonizadas, confrontadas, esquecidas, retomadas ou transformadas pelos costumes, pelos produtores, pelos especialistas e pelos fruidores em contato direto com os produtores (os músicos), na virada do século XIX para o XX surgiu um novo juiz: o capital, posteriormente disfarçado com a fantasia de ``povo'', a quem supostamente cabe a última palavra a respeito do que satisfaz, em maior ou menor grau, sua própria demanda simbólica.

Mas quem é este sujeito histórico, o povo? Os pobres em geral? Os trabalhadores braçais? Os contínuos? Os falantes de uma língua? Os seguidores de uma religião? Os membros de uma nação? Ou um conceito curinga que mascara uma rede mais complexa de conflitos e construções identitárias?

Em cada contexto discursivo ou ideológico, uma ou mais das alternativas acima será correta. Martin-Barbero, a este respeito, compara as noções distintas de ``povo'' entre ingleses (folk), alemães (volk) e franceses (peuple), demonstrando que para os ingleses a noção de folk refere-se à população rural em oposição à urbana; para os alemães, à oposição nacional / estrangeiro, e para os franceses, à ``outra face da sociedade constituída (campesinato e massas operárias)''.7.3 Marx, por sua vez, afirmou que

``A população é uma abstração se deixo de lado as classes que a compõe. Estas classes são, por sua vez, uma palavra vazia se ignoro os elementos sobre os quais repousam, por exemplo: o trabalho assalariado, o capital etc. Estes supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços etc.'' (Marx, in Marx-Engels, p.409)

Tinhorão já havia sugerido a hipótese de uma interconexão entre 1) o advento da televisão no Brasil, em meados dos anos 50, 2) o incremento da circulação de bens de consumo voltados para as classes médias em ascensão e 3) o crescimento da veiculação midiática de gêneros musicais estrangeiros, imitadores (jovem guarda) ou híbridos (bossa nova) com os quais as novas classes médias urbanas brasileiras, em sua rejeição ao ``atraso'' nacional (ou seja, a suas tradições de fundo rural), se identificavam. Assim, segundo este autor, os artistas oriundos das camadas populares (o ``povo'') e suas criações musicais teriam sido substituídos na mídia pelos artistas e pelas canções da e ao gosto da classe média emergente.

Mesmo não dispondo de dados precisos que permitam confirmar ou rejeitar esta hipótese, ela nos leva a refletir, quanto aos ``índices de popularidade'' de certos gêneros musicais, a que extratos da população (consumidora) os índices se referem.

Seja como for, a transferência da maioria da população do planeta do campo para a cidade no decorrer do século XX possibilitou o surgimento de uma ``cultura de massas'' mediada pela indústria cultural, em primeiro plano, mas também pelas demais instituições, ou aparelhos ideológicos de Estado, sob o controle das classes dominantes. Essa cultura de massas tem por função primordial camuflar a luta de classes, aparar no imaginário suas arestas, pacificá-la. A realocação das populações fragmentadas em grandes concentrações urbanas é a matéria sobre a qual molda-se um imaginário próprio, reforçado na atualidade pelo mito de aldeia global.

Porém, na realidade, quando se fala em ``povo'' no contexto apologético da indústria cultural, fala-se simplesmente em quantidade de consumidores, estando todas as diferenças (econômicas, culturais, etárias, étnicas etc.) entre estes borradas no imaginário midiático. Se são diversos e esta diversidade atrapalha os lucros, que sejam, na medida do possível, assimilados a um imaginário comum. Se não for possível alfabetizar o analfabeto ou ``analfabetizar'' o alfabetizado, fazer do velho criança e da criança velho etc., que sejam segmentados em grandes nichos de consumo e aí permaneçam. Se há mudanças centrípetas (da fora para dentro da indústria cultural), isso deve-se a mudanças sociais. Se há mudanças centrífugas, deve-se às pressões da concorrência, minimizada, hoje, pela estupenda concentração de capital sob o controle de gigantescos monopólios transnacionais ``de entretenimento''. E o capital, no decorrer do século XX, ascende de tribunal em tribunal, até tornar-se o juiz7.4 da Suprema Corte dos valores simbólicos, os quais, socializados em grande escala dentro de sua lógica, começam a converter-se em capital midiático - capital dinheiro + prestígio social, adquiridos graças a vultosos investimentos de capital dinheiro - , convertendo-se o produtor simbólico e seu produto em meros suportes para a auto-clonagem do capital dinheiro. O capital dinheiro resultante do capital midiático produzido é ainda desigualmente distribuído entre o produtor simbólico e a indústria cultural, que fica com a parte do leão, ainda que a parte do produtor simbólico nem sempre seja desprezível. O prestígio também é dividido, ficando o produtor simbólico com a parte do leão, e a empresa com o que se chama de valor agregado na marca.

Como, evidentemente, não existe valor simbólico zero (só pode haver valor simbólico positivo ou negativo, nunca nulo) em nenhum produto simbólico a respeito do qual alguém se dê ao menos o trabalho de comentar, ainda que no mais modesto círculo (ou no mais amplo), o fato de um produto simbólico dispor de alto capital midiático não significa necessariamente que não possua algum valor simbólico. Com freqüência moderada, o oposto é que corresponde à verdade, ou seja, quando os altos índices de ``popularidade'' (isto é, de consumo) de uma música correspondem aos juízos dos ``especialistas'' (músicos, críticos, pesquisadores, melômanos, conaisseurs). O problema é que, dada a radical e crescente mercantilização da música ao longo do séc. XX, e dada a onipresença da indústria cultural, torna-se cada vez menos possível que um produto simbólico adquira valor simbólico socializado - em uma escala que transponha alguns passos além dos limites do círculo pessoal imediato do produtor simbólico - independente de vultosos investimentos de capital dinheiro, assim como um artesão não pode competir, com um produto similar e no mesmo setor do mercado, com uma transnacional onipresente. Deste modo, hoje, um produto simbólico só pode ter algum valor simbólico socializado se obtiver algum capital midiático, e isso significa que possa tornar-se suporte da reprodução de capital dinheiro. Para tanto, tem de adequar-se aos imperativos formais hegemônicos em um momento dado do mercado (simbólico e financeiro). No turbocapitalismo monopolista financeiro contemporâneo, tais imperativos operam em escalas gigantescas, o que naturalmente conduz a socialização da produção simbólica a uma homogeneização nunca dantes vislumbrada nos piores pesadelos de Adorno.

Porque cessam de existir (ou perdem sua força) os espaços extra-midiáticos de formação e produção musical, e os que resistem (academias, espaços de vanguarda, festas populares, rodas de samba etc.), na crescente impossibilidade de socializarem sua produção diante de tão poderosa competição, se vêem forçados ou a fechar-se em si mesmos ou a ceder aos imperativos da concorrência midiática. Afinal, o que pode uma idéia criativa realizada em um guardanapo ou em um violão contra a Sony ou a Globo? Quem vai ouvir a música? O violão e o guardanapo, quase sem querer, acabam colonizados e, para poderem existir, se vêem constrangidos a reproduzir o padrão hegemônico. Assim, são os imperativos desta reprodução de capital em prestígio socializado e de prestígio socializado em mais capital que regem o mercado das trocas simbólicas contemporâneo, sendo todos os demais determinantes culturais (etnia, gênero, idade, escolaridade, nacionalidade, classe social etc.), inclusive o valor simbólico de um produto legitimado em alguma instância - pela academia, pelo bairro, por uma quantidade razoável de apreciadores em escala municipal, pela competência dos especialistas etc. -, subordinados a imperativos econômicos de escala pantagruélica, alienados (expropriados, utilizados mercadologicamente) ou recalcados.

Mas como determinar, dentro deste recorte teórico, o valor simbólico, a qualidade de uma peça musical, isto é, como identificá-la como um valor de uso menos ou mais necessário à satisfação humana em relação a outro? Respondo a esta pergunta com uma outra: satisfação humana de quem? De que homem? Do musicólogo alemão, do diretor de bateria da Mocidade Independente de Padre Miguel ou do punk inglês? Identifiquemos primeiro de que ``homem'' falamos.

Levando em consideração a necessidade desta identificação preliminar, não tenho pudores de reconhecer a competência dos especialistas como os ajuizadores mais confiáveis. Se isto parece paradoxal em relação ao que afirmamos anteriormente, o paradoxo é só aparente: se, em qualquer área, quem se dedica com afinco ao estudo e à prática produtiva e/ou fruitiva (na música, na culinária, no esporte, na ciência etc.) conhece melhor seu objeto do que aqueles que têm com ele uma relação mais casual, estando assim mais apto a emitir juízos, a competência do especialista deve ser sempre entendida em seu contexto social, considerando sua posição de classe, sua nacionalidade, a tradição que representa etc., não havendo, pois, uma competência universal, mas competências parciais. Por exemplo, nosso diretor de bateria da Mocidade Independente é provavelmente mais capaz de julgar os méritos de uma bateria de escola de samba do que o musicólogo alemão. E este, os de uma obra de Haydn (a não ser que tomemos por válidos juízos oriundos de leituras aberrantes). A partir desta premissa, deduz-se que, ao mesmo tempo em que pode haver objetividade nos juízos de gosto, esta deve ser relativizada nos limites do campo de produção simbólica do qual se discute, e de seus subcampos. Cada qual produz seu próprios cânones, parâmetros perceptivos, modos de produção e de consumo, que se transformam com o tempo, e é somente dentro destes campos ou subcampos que o juízo de gosto pode pretender objetividade: pelo acordo dos pares. Não se pode nem mais falar aí em ``música'', mas em gêneros e subgêneros musicais, cada qual perpetuando-se, transformando-se ou desaparecendo no espaço e no tempo, processo em meio ao qual adquirem significações distintas para especialistas e fruidores distintos. Este ``acordo dos pares'' consiste, portanto, em um processo dinâmico, marcado por divergências e convergências entre conhecimentos, práticas, interesses e disposições, afetivos e culturais. Mas esses campos e subcampos, como superestruturas, permanecem, agora e sempre, subordinados aos imperativos estruturais. No caso da música, porém, até o advento da indústria cultural, a subordinação se dava de modo bem menos direto. Tornada mercadoria, sua autonomia relativa tende a se extinguir.

Nada assegura, porém, que este quadro seja definitivo, sendo passível de alteração em face de novas reivindicações coletivas (de cunho étnico, etário, nacional etc.), mas sobretudo, nos momentos de recrudescimento da luta de classes, em face dos quais o automatismo dos imperativos econômicos e de suas disputas internas (intraclassistas) e externas (entre as classes) se vê forçado a ceder algum espaço à mediação política e estética. Isso já ocorreu diversas vezes7.5 e nada indica que não possa ocorrer novamente.

Gostaríamos agora de propor um modelo segundo o qual a indústria cultural, que dava seus primeiros passos na virada do séc. XIX para o XX (nos EUA, na Europa e no Brasil), momento da passagem do capitalismo liberal para o capitalismo monopolista (caracterizado pelo imperialismo e pelo princípio da hegemonia do capital financeiro sobre o capital industrial e comercial), transformou-se, ao longo do séc. XX, de setor periférico do grande capital em setor privilegiado, reproduzindo aproximadamente, de modo sintético, as quatro grandes fases do capitalismo: mercantilismo ou acumulação primitiva (sécs. XIV-XVII), estágio industrial liberal (sécs. XVIII-XIX), estágio industrial monopolista (séc. XX até a década de 70), estágio financeiro (década de 70 do séc. XX em diante).

Em uma perspectiva histórica, a indústria cultural é relativamente recente;7.6 só pôde surgir a partir de um determinado grau de desenvolvimento do capitalismo, das técnicas de registro e reprodução e dos meios de comunicação, tendo suas origens na imprensa manufaturada, e seu desenvolvimento máximo - até agora - nas tecnologias da informação contemporânea, passando pelo telégrafo, pelo telefone, pelo gramofone etc. Sugerimos que de meados do século XIX (incrementação do comércio de edições musicais) às primeiras décadas do século XX (surgimento da indústria fonográfica) a indústria cultural caracterizou-se economicamente pela acumulação primitiva de capital midiático, a qual seguiram-se três estágios subseqüentes, conforme o modelo a seguir:7.7

Acumulação primitiva e capital midiático (1892-1929, aproximadamente; comércio de edições impressas e, sobretudo, dos primeiros registros sonoros), período no qual a produção musical desenvolveu-se com maior independência em relação aos meios de comunicação;

Período liberal do capital midiático (1930-69; rádio e cinema), marcado pela livre concorrência entre os diversos setores da indústria cultural: com o desenvolvimento dos meios de comunicação e a emergência de uma indústria cultural, esta passa a ser, por assim dizer, a instância intermediária, entre o campo de produção musical e o campo de poder (econômico e político), gradualmente preparando o terreno para a etapa seguinte;

Período monopolista do capital midiIático (1970-2000; tv): a indústria cultural turbinada - fruto de mega-fusões, de incrível acumulação de capital, de valor simbólico e de capital midiático -, seu porta-voz, deixa de ser uma instância intermediária para transformar-se em instância disciplinar das práticas culturais, estabelecendo os modos e espaços hegemônicos de produção, reprodução, circulação e consumo simbólico, elegendo ou recalcando os bens simbólicos existentes;

Período fictício do capital midiático (2001-...); convergência tecnológica, mega-fusões corporativas, império absoluto do capital financeiro ou fictício): controle total do campo de produção simbólica (seleção contábil de todos os conteúdos a partir de noções preestabelecidas de seu valor de troca; radicalização do gerenciamento das subjetividades através da propaganda e do jornalismo); tendo praticamente alienado a autonomia relativa do campo de produção musical, ocupando praticamente todos os espaços de produção, reprodução, circulação e consumo de música, a indústria cultural turbinada passa a tornar-se auto-referente e o campo, exército de reserva.

No processo de acumulação de capital midiático, que se desenrolou durante todo o século XX, profundas camadas de valor simbólico historicamente acumulado e alta potência de produção de valor simbólico (dada a proximidade cultural dos produtores e consumidores simbólicos, no espaço e no tempo, com estas camadas), constituíam o combustível, a matéria-prima a ser acumulada pela indústria cultural em seu primeiro estágio de desenvolvimento, e alienada ou recalcada nos seguintes. É por isso que as mais diversas hierarquias gustativas, ancoradas em valorações (ou cânones estéticos) historicamente construídas fora da indústria cultural, foram por ela reproduzidas com menor grau relativo de alienação durante os estágios mercantil e liberal do capital midiático (sobretudo no primeiro); e foi graças aos contatos e afecções originais proporcionados pela aproximação de produtores simbólicos e gêneros os mais diversos, das mais variadas origens no espaço e no tempo, dentro da indústria cultural, que podemos identificar no mesmo período produção de alta potência gustativa desenvolvendo-se paralelamente à alienação e ao recalcamento. Porém, com o esgotamento tendencial dessas reservas de valor simbólico acumulado (graças à destruição ou à alienação dos meios e modos de produção correlatos) durante os três primeiros estágios do desenvolvimento da indústria cultural (acumulação primitiva, estágio liberal e estágio monopolista, que está, penso, cedendo vez ao período fictício do capital midiático), e com o passar dos anos e a renovação das gerações, se nada mudar, a tautologia da indústria cultural turbinada onipresente aponta para uma imbecilização monocórdica e fascista da espécie. Creio que vivemos os primórdios desta nova fase e já podemos identificar seus primeiros sinais, nos reality shows, por exemplo. É lógico que, no frigir dos ovos, morto o sapo, afunda o escorpião. Mas quanto tempo vai demorar para que afundem, e o que restará além dos uivos cacofônicos de baratas kafkianas e de um silêncio pesado entre um uivo e outro? Folclore.

Por outro lado, hoje, as rádios piratas e comunitárias, a tv a cabo, os selos e festivais independentes, algumas iniciativas de incentivo à música da esfera pública e a internet talvez representem uma retomada desta etapa de desenvolvimento por assim dizer positiva, embora em escala mais modesta, já superada na indústria cultural em geral. Podem ser lidos, por isso, como focos de defesa (ou resistência), mas, até segunda ordem, não de contra-ataque cultural, nada que justifique certas euforias ``integradas''. Que o diga o destino final do Napster:7.8

``(...)Em julho do ano passado [2001], o Napster foi obrigado a interromper a troca [gratuita] de músicas em seu site, depois que a Justiça americana deu sentença favorável à ação movida por AOL Time Warner, Sony, Bertelsmann, EMI Group e Vivendi Universal. (...)''7.9

Pois a partir do instante em que os interesses econômicos das mega transnacionais da indústria cultural7.10 e/ou de seus respectivos governos e dependentes econômicos são atingidos com maior intensidade por esses focos de defesa, o ataque tende a ser fatal. Ainda sobre o Napster,

``O site de intercâmbio de músicas online Napster foi vendido para o grupo alemão Bertelsmann por US$ 8 milhões. Com o negócio, a página vai ganhar fôlego para pagar suas dívidas e entrar novamente no ar. O Bertelsmann já havia injetado dinheiro no Napster durante os processos judiciais que o levaram a encerrar suas atividades. As maiores gravadoras mundiais exigiram do site o pagamento de direitos autorais por utilização de arquivos - conhecidos como MP3 - pela internet.''7.11

Ou seja, trata-se de uma união entre as maiores transnacionais da indústria cultural e a ``Justiça Americana''. Outro exemplo:

``(...) No último dia 20 de junho, depois de uma batalha que durou quase quatro anos, o U.S. Librarian of Congress, órgão responsável pela emissão de decisões relativas a padrões de cobrança e arrecadação de direitos autorais nos EUA, proferiu sua sentença definitiva referente à obrigatoriedade de pagamento de royalties pelas rádios online, o chamado webcasting. (...) Pressionados pela poderosa RIAA (Recording Industry Association of America), a entidade que reúne as grandes gravadoras mundiais, as estações de rádio virtuais, que já operam há vários anos, alegam que a grande maioria de suas congêneres deixará de existir com o início da cobrança.''7.12

Contudo, há resistência, conforme demonstra a mesma matéria:

``Na Inglaterra, um game designer criou um software para emissoras virtuais (...) que não se utiliza de servidores centrais para veicular sua programação. O criador desafia a RIAA, alegando que `não vai ficar de cadeira do outro lado do Atlântico assistindo à tentativa de controle do espaço aéreo virtual pela indústria fonográfica''.

Apesar disto, a disparidade de forças é óbvia. E o capital é por excelência insaciável, no que pesem suas contradições internas, como expresso no caso de uma das gigantes transnacionais que é ao mesmo tempo gravadora e fabricante de equipamentos: enquanto seu braço fonográfico se ressente da queda nas vendagens de cds, devida aos novos aparelhos que gravam cds virgens, fabricados por outro braço da mesma empresa, os chefões só têm que calcular: o que vale mais a pena? No caso, sendo os lucros da venda dos aparelhos de gravação e dos cds virgens superiores aos do braço fonográfico, este que se vire. E ele, de fato, se vira, como mostra matéria recente do Jornal do Brasil:

``A indústria fonográfica começou a comercializar Cds de áudio fabricados com uma nova tecnologia que impede que as pessoas copiem as músicas para seus computadores, as troquem pela internet ou as transfiram para MP3 players portáteis.''7.13

A crença entusiástica que muitos depositam nas novas alternativas comunicacionais parece não se dar conta que, de certa forma, reproduz e legitima o discurso neoliberal quanto a um retorno impossível ao princípio empreendedor individualista da livre iniciativa que ornava o capitalismo liberal do séc. XIX, como se o século XX não tivesse jamais existido.7.14

Enfim, em face do aplainamento das tensões entre, de um lado, os gostos e cânones pré-midiáticos e, de outro, os imperativos econômicos da mídia, graças ao estabelecimento da indústria cultural como mediadora social hegemônica de gostos e cânones por quase toda parte, estamos diante de um movimento de completa marginalização e exclusão dos espaços de produção, reprodução, circulação e consumo musical extra-midiáticos, o que representaria o princípio da tautologia do capital midiático. Innvestiguemos agora a base econômica deste processo.

Na Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer destacavam a relativa desimportância econômica da indústria cultural na época de sua análise em relação às grandes indústrias capitalistas:

``Se, em nossa época, a tendência social objetiva se encarna nas obscuras intenções subjetivas dos diretores gerais, estas são basicamente as dos setores mais poderosos da indústria: aço, petróleo, eletricidade, química. Comparado a esses, os monopólios culturais são fracos e dependentes.''(Adorno e Horkheimer, 1985, p.115)''

Ora, hoje a indústria cultural é tão ou mais poderosa economicamente do que a indústria do aço, do petróleo etc.! Em matéria publicada no Jornal do Brasil, referente à falência de algumas empresas gigantes do setor de telecomunicações, lemos que trata-se de um ``setor que responde por um em cada cinco dólares captados por empresas privadas no planeta''.7.15

Pode-se aqui objetar que ``indústria cultural'' e ``setor de telecomunicações'' são coisas distintas. Porém, hoje, devido às mega-fusões de transnacionais, à fagocitose das empresas locais e à convergência tecnológica, é uma distinção no mínimo difícil. Uma maneira possível de efetuá-la seria relacionar a primeira aos meios de produção de conteúdos simbólicos e seus respectivos suportes materiais, e a segunda aos meios que possibilitam sua circulação. Sabe-se, porém, que a maioria das grandes empresas de um ou outro setor encontram-se fundidas, muitas vezes com empresas do setor eletro-eletrônico. Segundo Márcia Tosta Dias,

``As empresas que detêm, atualmente, mais de dois terços do mercado mundial de discos são a Sony Music, empresa transnacional de origem japonesa da área de produtos eletro-eletrônicos, a Sony Corporation, que há alguns anos comprou o setor fonográfico da rede CBS (uma das pioneiras do setor); a Polygram, antigas Phonogram e Polydor, que por sua vez sucederam à Gramophone francesa e alemã, hoje braço fonográfico da Philips, igualmente uma empresa do setor eletro-eletrônico, administrada basicamente por capital holandês e alemão; a Warner Music, cujo filão fonográfico integra, juntamente com o cinema, a televisão e a mídia impressa, um dos maiores conglomerados americanos produtores de mercadorias culturais, o Time-Warner; a EMI, de origem inglesa, que desde 1969 está reunida com a não menos tradicional Odeon, e a BMG-Ariola, que por seu turno é o braço fonográfico do grupo alemão Bertelsmann, que atua na área de televisão, edição e comercialização de livros (Círculo do Livro assim como no de fabricação de compact-discs).

Esse cenário é acrescido de duas companhias de menor porte, mas fortemente atuantes em escala mundial: a americana MCA-Geffen que, juntamente com o selo Motown, em 1990 foi adquirida pelo grupo Matsushita, e a inglesa Virgin. Todas as cinco primeiras estão produtivamente instaladas no Brasil. A MCA acaba de fazê-lo e a Virgin é representada no país pela EMI. O movimento de concentração tragou para dentro do grupo das transnacionais a única grande empresa brasileira produtora de discos: em 1993 a Warner comprou a Continental. Vejamos o (...) quadro de fusões na indústria fonográfica, entre 1969-1993 (Dias, 2000, pp. 41-43):


Ano Fusões Empresas originais
1969 Odeon + EMI EMI
1978 Polydor + Phonogram Polygram
1987 Bertelsmann + Ariola + RCA BMG-Ariola
1987 CBS Discos + Sony Corp. Sony Music
1991/93 Time Warner/WEA + Toshiba + Continental Warner Music

Houve recentemente novas fusões, incluindo empresas ligadas à internet. O que isso representa? A crescente importância econômica da indústria cultural é causa e expressão do desenvolvimento do capital midiático do seu estágio mercantil (acumulação primitiva) ao do império do capital fictício, do cassino global, sem lastro material. Ou seja, assim como os valores econômicos fictícios circulantes no planeta descolam-se das riquezas produzidas pelo trabalho, os valores simbólicos em circulação expressam a gradual perda de lastro na riqueza de experiências extra-midiáticas dos produtores simbólicos, acarretando um imaginário global fictício.

Parte das críticas de Adorno e Horkheimer à indústria cultural adquirem assim uma vitalidade prospectiva impressionante.

Contudo, repetimos que um aspecto desta crítica - em outros pontos fundamental - que nos parece falho é a sua pouca atenção à tensão dialética entre os vetores hegemônicos e homogeneizantes da indústria cultural (os quais eles definiram tão bem) e as tradições culturais extra-midiáticas sobreviventes, sobretudo as populares. Em outras palavras, à luta de classes. Já dizia Hobsbawn que

``A matéria-prima do entretenimento de massas é, em grande medida, uma formação adaptada de entretenimento anterior, e até hoje a indústria continua a se reciclar de tempos em tempos, recorrendo à fonte, e encontrando algumas de suas atividades mais frutíferas nas formas mas antigas, perenes e menos `industrializadas' de criação popular.'' (Hobsbawn, 1990, p. 35)

A indústria cultural, para firmar-se, não faz tabula rasa destas tradições, antes apropria-se delas, as recalca, as aliena, as banaliza, as homogeiniza, num grau maior ou menor, mas eventualmente as fortifica e promove. Desconsiderar essas variáveis é uma demonstração clara de miopia teórica, e de um reducionismo economicista associado a uma atitude estética aristocrática.

É óbvio e ululante que, nesta tensão, o terreno chato que os críticos de Frankfurt mapeam nunca existiu, pois, apesar de niveladora, a indústria cultural não atingiu, até hoje, 100% seus objetivos, caso contrário mataria a própria força da qual se apropria e não teria mais do que se apropriar.7.16 Isso significa que há, sim, táticas de resistência e reinvenções criativas do campo de produção simbólica subordinado - que não devem, por outro lado, ser superdimensionadas, sob o risco de se perder de vista a tendência hegemônica da indústria cultural.

Hoje, contudo, talvez Adorno e Horkheimer estivessem mais próximos da verdade, posto que, tendo praticamente eliminado os espaços sociais de autonomia sobreviventes de tradições populares pré-midiáticas, a indústria cultural está cada vez mais tautológica, auto-referente. E isso se dá precisamente em um momento no qual, como vimos acima, ela parece ocupar na economia uma posição equivalente a das tradicionais indústrias de ``aço, petróleo, eletricidade, química'', trazendo à baila a discussão do novo locus destacado que o chamado capital intelectual ou simbólico passa a ocupar na economia em relação ao capital fixo, ao variável e ao fictício ou financeiro.

Por outro lado, embora saibamos que a indústria cultural consiste no conjunto dos meios de produção, reprodução e de circulação de bens simbólicos ser propriedade do capital, não dos produtores diretos, em seu atual estágio de desenvolvimento parte dos meios de produção (estúdios) pulverizam-se em pequenas unidades capitalistas (eventualmente propriedade dos produtores diretos), o que favorece certos discursos otimistas, embora ingênuos, pois a outra parte permanece inalterada: as fábricas de prensagem, ou meios de reprodução, e principalmente os meios de circulação em escala massiva concentram-se cada vez mais sob um mesmo capital (megafusões, transnacionais); ora, no caso específico da música (mas também no do cinema e do vídeo), o consumo do produto simbólico, que é conteúdo imaterial, só se realiza socialmente, isto é, em escala massiva, através da circulação do suporte (produzido em escala industrial) ou da reprodução social ou circulação (emissão e comércio em escala massiva); cinema, só se assiste nas salas de cinema; o vídeo e a música podem, de fato, ser reproduzidos na esfera privada, fora da circulação, mas a seleção da reprodução privada em larga escala só é possível após a circulação e a reprodução massivas, pelo simples fato de que só se compra e só se consome o que se conhece. Desse modo, um cd gravado independentemente da indústria cultural continua dependendo desta para tornar-se economicamente viável, salvo exceções pontuais. Assim, a pulverização de parte dos meios de produção - hardwares, softwares, estúdios de gravação, mixagem e masterização -, ao contrário de representar uma libertação dos produtores diretos da indústria cultural, não passa de um repasse de parte dos custos de produção (capital fixo e capital variável) desta para aqueles. Esse processo faz parte da tandência geral, em curso, de racionalização empresarial do capitalismo turbinado, em escala global, que envolve terceirização, geração de subempregos e de desemprego, processo paralelo à cartelização das megatransnacionais. Economicamente, de nada adianta o produtor direto custear a produção do bem simbólico (conteúdo e suporte) se não tem acesso aos meios de reprodução e circulação. Continua, assim, subordinado ao grande capital e o que se dá, na melhor das hipóteses, é uma nova fase de acumulação de valor simbólico, a ser alienada no processo de reprodução e circulação, ou a não ter função nenhuma, ou somente marginal, em escala social.

Se aumentou o acesso relativo do produtor simbólico aos estúdios (o que não elimina, por isso, a necessidade de um investimento relativamente alto para um cidadão brasileiro comum) e mesmo às fábricas de prensagem (em menor escala, pois tiragens gigantescas não dispensam uma aplicação considerável de capital), o seu acesso aos sistemas de emissão massivos permanece subordinado às exigências do grande capital (sem falar no jabá), o que, no geral, inviabiliza economicamente a reprodução social das produções independentes do produtor direto que se pretendam mais autônomas. Assim, o produtor independente continua tendo que lidar com a indústria cultural, seja diretamente com o centro (as mega-empresas), seja com a periferia (as pequenas e médias gravadoras e os selos, que representam parte da pulverização do capital e dos meios de produção, não sua distribuição entre os produtores simbólicos). Mesmo que pequenas gravadoras tendam a alienar menos valor simbólico que as grandes, assegurando maior autonomia relativa ao campo de produção simbólica, por estarem menos diretamente determinadas pelos imperativos econômicos reinantes, já que não possuem capacidade de reproduzir e pôr em circulação o produto simbólico em larga escala, o que permite até certo ponto a influência de fatores extra-econômicos (o gosto musical do dono ou dos donos da gravadora, por exemplo), e isso não deixe de representar um espaço social concreto para uma nova fase de acumulação de valor simbólico e de elaboração de táticas de defesa, é importante ter-se em conta que no estágio atual de desenvolvimento da indústria cultural, após um século de acumulação de capital midiático, após ter ocupado quase todos os espaços sociais de produção, reprodução, circulação e consumo de bens simbólicos, a existência da produção independente, do ponto de vista do capital e do capital midiático, representa somente contenção de despesas e formação de um exército de reserva simbólica. Se isso pode eventualmente representar, para alguns produtores individuais, um tempo de sobrevivência na periferia (em geral elitista) da esfera da reprodução, da circulação e do consumo simbólico, ou mesmo a ambicionada absorção pela grande indústria cultural turbinada, que lhes aliena valor simbólico (alienando-lhes autonomia) mas lhes paga bem por isso, no geral, para o conjunto dos produtores simbólicos, o fosso entre sua produção e a reprodução, circulação e o consumo social desta produção, ao contrário, só aumentou e tende a continuar aumentando; na melhor das hipóteses, pouco mudou. Pode ter mudado a configuração da divisão de trabalho, mas não a sua alienação pelo capital.

Produção musical independente, do ponto de vista econômico, é, assim, na prática, apenas a transferência da responsabilidade de investir capital constante (adquirir - compra ou aluguel - os meios de produção: estúdios e equipamentos) e variável (recursos humanos) do capitalista para o produtor simbólico; por imperativos econômicos relacionados a ciclos imprevistos de expansão ou retração do mercado, o capitalista paga o trabalhador particular, que produz em escala ``doméstica'', por peças produzidas, sem fornecer-lhe os meios de produção. Excetuando-se as hipóteses de o Estado ou de empresas privadas não ligadas ao ramo, via leis de incentivo, festivais e prêmios, ou de um empresário associado ao produtor simbólico fazerem o papel de capitalista (o que poderíamos chamar de pré-produção), na produção de um cd, por exemplo, se o produtor simbólico puder arcar com os custos fixos (hardwares, softwares ou estúdio para ensaio, gravação, mixagem e masterização) e variáveis (músicos, técnicos de som etc.) iniciais, resta ainda o projeto gráfico, a impressão e a prensagem; se puder arcar com estes custos, resta a divulgação, a distribuição e a venda do cd; depois, a produção e a promoção de shows. Nesse ponto, se ainda não tiver falido, é possível que torne-se medianamente conhecido a ponto de ser requisitado por algum segmento relevante da indústria cultural (gravadora, programas de televisão, emissoras de rádio; até então, salvo rádios comunitárias ou piratas e alguns programas de tv de menor audiência, a única coisa grátis, e que em geral depende de uma boa rede de relações, é uma discreta divulgação via mídia impressa). Então, quem sabe, é possível que uma gravadora se associe, como sócio majoritário, ao produtor simbólico, sem ter feito nada e sem ter desembolsado um centavo até então. Caso não receba esta graça, o produtor simbólico independente, para sobreviver como tal, ainda que às margens do mercado, terá que concorrer com as mega transnacionais do entretenimento. Em suma, só lhe restam três caminhos, além do extermínio social ou mesmo físico: mudar de atividade, sobreviver à margem ou ser absorvido pela indústria cultural. Em todos os casos, deve-se investigar não só o grau de autonomia e força de trabalho alienada (ou jogadas no lixo), mas também de dinheiro alienado na absorção (ou jogado no lixo).

Necessitando de ganhos de escala cada vez maiores para prosseguir em sua expansão, o capital investido na indústria cultural desdobra-se de capital midiático primitivo (de alto valor simbólico) em capital midiático liberal (de alto valor simbólico), deste em capital midiático monopolista (de valor simbólico médio) e, por fim, em capital midiático fictício (de baixo valor simbólico), resultado de um processo secular de alienação e recalcamento dos meios e modos de produção simbólicos. Em suma, em sua trajetória, o capital midiático foi passo a passo caminhando para a tautologia, diante da qual a operação ``toca-se o que povo gosta de ouvir'' inverte-se em ``o povo gosta de ouvir o que se toca''. Para isso as pessoas foram por assim dizer treinadas durante um século, no qual muito dinheiro foi investido e faturado. E o que toca não deixa de ser, em linhas gerais, sempre o mesmo, mas não o mesmo que o ``povo'' produz segundo uma tradição ou modos pré-industriais, nem segundo desenvolvimentos formais possíveis, mas o mesmo seguindo a indústria cultural. A isso denominamos tautologia do capital midiático fictício, sem lastro em práticas e experiências extra-midiáticas, gerador do gosto social midiático fetichista.

``numa época em que os outros media triunfam, dotados de uma velocidade espantosa e de um raio de ação extremamente extenso, arriscando reduzir toda comunicação a uma crosta uniforme e homogênea, a função da literatura é a comunicação entre o que é diverso pelo fato de ser diverso, não embotando mas antes exaltando a diferença, segundo a vocação própria da linguagem escrita.'' (Calvino, 1994, p. 58)

Quando Calvino fala em literatura e na ``vocação própria da linguagem escrita'', creio que se poderia estender o raciocínio a todas as formas de produção simbólica sobreviventes (ou resistentes) baseadas em modos de produção anteriores ao estágio turbinado da indústria cultural, como parte da literatura, da música, da produção acadêmica etc. (digo parte, pois, por exemplo, livros de auto-ajuda, jingles e determinada produção acadêmica estão completamente subordinados a ela), que conservam maior grau de autonomia relativa, ainda que nas periferias ou nos subterrâneos de sua esfera de ação. Tentamos demonstrar que o que caracteriza esse estágio turbinado da indústria cultural é o momento histórico atual, passagem do estágio monopolista do capital midiático para o de autoreprodução de capital midiático fictício - correspondendo com certo atraso ao estágio de domínio global do capital financeiro, ou fictício.

Esta passagem deve-se ao fato de que a indústria cultural tor- nou-se, ou está se tornando, cada vez mais tautológica, conduzindo, com o tempo, com o esquecimento, com o esgotamento e a destruição de todos os outros modos de produção simbólica, ao risco apontado por Calvino de ``reduzir toda comunicação a uma crosta uniforme e homogênea'', ou seja, à autoreprodução do capital midiático fictício. E a produção musical do século XX, seja samba, choro, jazz, rock, tango ou música dodecafônica, começa a ganhar o duvidoso status de folclore.

É, portanto, somente da periferia do sistema, ou nos subterrâneos - menos diretamente subordinados ao automatismo da economia, portanto menos autômatos -, onde subsistem, quero crer, esforços de produção e acumulação de valor simbólico relativamente autônomos, sejam ligados a tradições transformadoras ou a tradições de raiz, que se pode esperar ações de contra-ataque, no momento em que o underground tornar-se maduro para transfor- mar-se em avant-garde e partir para a luta pela democratização radical dos meios de produção, circulação, distribuição e consumo, apropriados pela indústria cultural turbinada, se é que isso um dia será possível. Essa emergência do underground tenderia a ser magmática, vulcânica. O que, longe de representar um inviável retorno aos modos de produção anteriores, sugere sua metamorfose em novos modos de produção imprevisíveis (não necessariamente descartando os que subsistem), cujo único limite à autonomia do campo de produção simbólica estaria no valor de uso dos seus produtos ser mediado pelo valor de troca da afecção erótica entre a produção e o consumo não alienados, isto é, não mediados pelo capital, restando os meios, meios, não mais princípio e fim.

``Às vezes me parece que uma epidemia pestilenta tenha atingido a humanidade inteira em sua faculdade mais característica, ou seja, no uso da palavra, consistindo essa peste da linguagem numa perda de força cognoscitiva e de imediaticidade, como um automatismo que tendesse a nivelar a expressão em fórmulas mais genéricas, anônimas, abstratas, a diluir os significados, a embotar os pontos expressivos, a extinguir toda centelha que crepite no encontro das palavras com novas circunstâncias.'' (Calvino, 1994, p. 72)

Porém, se toda hegemonia é uma construção histórica, articulada sobre a luta de classes, isto implica necessariamente em articulações contra-hegemônicas. No extremo do conflito entre duas forças antagônicas, considerando-se que o conflito não se encerre pacificamente, há somente três soluções possíveis: a vitória, a derrota ou a síntese - na qual umas das duas forças originais tende a estar representada, menos ou mais transformada, num grau de potência superior à outra, em proporção igual ou maior que em sua relação anterior.

Durante o conflito, ou seja, antes da consumação de uma das três soluções possíveis, também só podem haver três movimentos: ataque (dominação), defesa (resistência) e contra-ataque (revolução); como no futebol. De acordo com a composição geral do conflito e com o grau de potência de cada uma das forças num momento dado, um dos três movimentos possíveis será o mais adequado para cada uma delas.

Tomando-se a indústria cultural turbinada contemporânea (ICT), porta-voz do capitalismo turbinado, como uma das forças historicamente acionadas e, como a outra força - para facilitar a representação -, um hipotético subcampo autônomo (em relação ao campo econômico, ou de poder) de produção, reprodução, circulação e consumo musical independente (SCA), parte do campo maior de produção simbólica, verificamos logo de cara que:

  1. a ICT possui um grau de potência socializante muito mais elevado que o SCA, graças ao seu imenso poder econômico, ao fato de ser o modo de produção socialmente dominante e ao de constituir-se do conjunto dos próprios meios de produção (registro), reprodução (serialização em escala industrial) e circulação (meios de distribuição, venda e difusão em escala massiva) de bens simbólicos, com exceção do domínio do código (o saber musical), do corpo humano e de um ou outro instrumento de trabalho (parcela dos meios de produção: instrumentos musicais, microfones, computadores etc.), dos quais o subcampo eventualmente dispõe; a sua capacidade de penetração e reprodução social é quase onipresente. É a força hegemônica, em suma;

  2. O SCA dispõe somente do seu próprio corpo (fora um ou outro instrumento etc.), do domínio do código e de valor simbólico acumulado (acesso privilegiado a determinado patrimônio simbólico coletivo, formação, habilidade artística, reconhecimento por parte do campo), mas não possui nem poder econômico nem os meios de produção, reprodução e circulação de bens simbólicos em larga escala. É a força contra-hegemônica.

Considerando-se que o objeto da disputa é a produção de gosto social, condição de sobrevivência e crescimento para ambas as forças, e a disparidade de potência das forças em conflito, o ataque é o movimento óbvio da força mais potente - ataque representando aqui o movimento de alienar (expropriar) sistematicamente valor simbólico historicamente acumulado pelo campo de produção simbólica, e de recalcar sua potência de produção de valor simbólico, transformando o valor simbólico existente e potencial, através desta dupla operação, em capital midiático. Na prática, este processo se dá através da gradual ocupação pelo capital de quase todos os meios e espaços sociais de produção, reprodução, circulação e consumo de bens simbólicos -, enquanto as possibilidades de defesa ou contra-ataque da força menos potente, ou seja, os músicos e compositores, só podem se realizar em uma prática relativamente autônoma na esfera da produção, da reprodução, da circulação e do consumo não massivos.7.17 Mas a defesa, quando é possível, só tem sentido como preparação para o contra-ataque; em outras palavras, a diminuição relativa de autonomia do campo de produção simbólica7.18 (recurso reativo) que, no conflito, é necessária para a própria sobrevivência do campo no momento de defesa, deve ter como munição de reserva uma acumulação subterrânea de valor simbólico autônomo (recurso ativo), a ser utilizada no momento do contra-ataque, que é quando o underground se torna vanguarda, graças ao acréscimo das conquistas marginais, periféricas da defesa, ou graças à sua impossibilidade de sobrevivência, ainda que o contra-ataque seja meio kamikaze nesse caso. Essa estratégia deve-se não somente à disparidade das forças em conflito, mas também ao fato de que há um outro agente vital no processo: os consumidores de bens simbólicos que não são ao mesmo tempo produtores, ou o ``povo''.

Os produtores que também são consumidores são alienados (expropriados) de valor simbólico acumulado e recalcados em sua potência de produção de valor simbólico, transformado em capital midiático, desde a esfera da produção até a do consumo; os consumidores que não são produtores conseqüentemente também o são, mas apenas na esfera do consumo. Potência de produção e acumulação de valor simbólico equivalem a potência de produção de gosto (sabor/saber) de acordo com nada além da relativa autonomia do campo de produção simbólica em relação ao campo de poder, e dependem da propriedade dos meios de produção, reprodução e circulação pertencerem ao produtor direto, ou com ele se relacionarem num equilíbrio de forças; produção e acumulação de capital midiático, ao contrário, é alienação de valor simbólico acumulado e recalcamento de potência de produção de valor simbólico, é gosto não produzido (ou produzido pelo seu valor de troca, de baixa autonomia gustativa, independentemente de seu valor de uso potencial,) e, portanto, não consumido, seja pela exclusão dos produtores diretos do acesso aos meios de produção, reprodução e circulação de bens simbólicos, seja pela imposição aos produtores de só reproduzirem gosto social midiático, de baixo grau relativo de valor simbólico, de baixa potência gustativa. Gosto social midiático é o mesmo que idolatria, fetichismo das mercadorias simbólicas.7.19

Mas seria concebível, em música, uma clonagem ad infinitum de algumas fórmulas de sucesso desprovida do lastro de novas (ou velhas) experiências formais extra-midiáticas mais autônomas? Talvez. E pode-se ainda pensar em novas miscigenações, não moldadas pelo pop, das várias formas populares mundiais ainda existentes? Talvez.

Num primeiro estágio do seu desenvolvimento, correspondendo à lógica inerente ao sistema produtor de mercadorias, alternava-se, com relativa delicadeza, um movimento de preservação dos valores tradicionais7.20 com o princípio da novidade, este devido à necessidade imperativa do mercado capitalista de estar sempre lançando na esfera da circulação um novo produto, uma nova mercadoria, suporte de um dos estágios do movimento do capital de autoreprodução e expansão; nesse sentido, indústria cultural e vanguardas possuíam ainda afinidades.7.21 Enquanto os agentes dos diversos campos de produção simbólica, descontando-se o fato de preservarem parte das tradições, deslocavam-se no espaço e no tempo, promovendo afecção recíproca nas grandes cidades e provocando fissuras e fusões formais, do ponto de vista do capital forneciam rico material simbólico7.22 para ser expropriado (alienado) pela indústria cultural em seu processo de acumulação primitiva de capital midiático. Neste estágio, a indústria cultural podia dar-se ao luxo de, efetivamente, renovar-se ciclicamente e, em sua expansão, favorecer uma fecunda renovação nos campos.7.23

Chega-se a um momento, porém, em que, tendo se expandido de uma tal forma, tendo penetrado em todos os poros da sociedade, tendo ocupado e disciplinado praticamente todos os campos de produção, reprodução, circulação e consumo simbólicos de acordo com seus próprios imperativos, a indústria cultural, em sua fase pré-turbinada (anos 70) e turbinada (anos 90), se torna autoreferente. Depois da emergência da música eletrônica, dos samplers, do rap e da world music (que representa a apropriação, às vezes bem feita, do que resta no mundo de tradições musicais pré-capitalistas), não havendo mais muito valor simbólico para expropriar (dado o definhamento da autonomia dos campos de produção simbólica extra-midiáticos), a música é reduzida a mero suporte do movimento de autoreprodução do capital e do capital midiático, acumulado por quase um século. Não é à toa que, cada vez mais, cada produto simbólico pretensamente novo requer, ao ser lançado na circulação, estratégias de marketing e investimento em propaganda cada vez mais sofisticados e caros, incluindo o jabá, não tão sofisticado assim, mas bastante caro.7.24 E o que se opera é um estranho retorno, em forma de farsa, ao modus operandi das antigas tradições: o prestígio de um compositor ou intérprete torna a medir-se não por sua originalidade autoral ou inventividade formal, mas pela sua fidelidade à tradição, mas desta vez a uma nova forma de tradição, produzida pela própria indústria cultural no decorrer do século XX: a tradição midiática.

Isso representa, obviamente, uma contradição interna do modo de produção capitalista. É como se a indústria automobilística passasse a prescindir de engenheiros, projetistas e operários, e os carros produzidos no ano passado emprenhassem e parissem (pelo capô, suponho) clones plenamente desenvolvidos, com uma nova demão de tinta para parecerem novos. Ou melhor, não clones, mas colagens de modelos anteriores, como acontece entre os humanos, esses produtos tornados de segunda categoria, na medida em que se tornam cada vez menos necessários no modo de produção capitalista turbinado, tanto para a produção material quanto para a produção simbólica. Embora pareça impossível, é quase isso que se dá. Na brecha aberta por este quase é que ainda sobrevive o campo de produção simbólica, o qual, caso pretenda disputar a hegemonia da formação do gosto social, encontra-se com a mais baixa taxa de autonomia criativa que se tem notícias desde a invenção do rádio e do fonógrafo. Nesse sentido, a crítica que Adorno lançava (precipitadamente, em parte) contra o jazz atualiza-se, rejuvenescida, se o objeto for o pop contemporâneo globalizado. Como já vimos, a terceirização de parte dos meios de produção musical (estúdios, computadores etc.) pouco altera o fenômeno: além de esses equipamentos e do aluguel de estúdios não serem tão baratos quanto se apregoa, as fábricas de prensagem e as antenas e satélites que promovem a reprodução e a circulação dos bens simbólicos têm dono. Quanto à rota alternativa da internet, por enquanto não passa disso: rota alternativa.

O dinheiro só se transforma em capital, e este em mais capital, a partir da alienação de mais-valia. A mais-valia relativa só é possível com o aumento da produtividade viabilizado pela aplicação de novas tecnologias na produção. Ora, com a revolução microeletrônica, o mercado global e um aumento sem precedentes das taxas de produtividade, a taxa de mais-valia relativa é a mais alta da história humana, ao mesmo tempo que a exclusão do processo de produção e de consumo - não por escassez natural - de amplas camadas da população mundial. O capital concentra-se em cada vez menos mãos e, não tendo mais para onde expandir-se, transforma-se em mercadoria futurista: segundo Kurz, o volume de dinheiro, títulos de dívidas públicas e privadas, títulos futuros e toda essa papelada (o capital fictício de Marx) em circulação atualmente corresponde a um adiantamento de tudo o que poderia, e provavelmente não será, efetivamente produzido pelo mundo nos próximos cem anos, como se o futuro estivesse sendo consumido antes de existir. A existência de um gigantesco exército de reserva de trabalho, ou de produção, global, força cada vez mais a competitividade entre os produtores empregados, o que significa, entre estes, sua desvalorização como mercadoria força de trabalho, ou, em termos cotidianos, salários mais baixos, perda de conquistas trabalhistas, subemprego etc. O mesmo se dá com o mercado de bens simbólicos e seus produtores. À transformação de valor simbólico em capital midiático corresponde a transformação do produtor simbólico em trabalhador assalariado, sujeito às mesmas intempéries que os demais.

No história do capitalismo, as primeiras vítimas foram os camponeses e os artesãos, ou seja, os produtores de bens de primeira necessidade; em seu estágio turbinado, o processo atinge os produtores de bens simbólicos, os produtores de gosto.

Assim como trabalhadores lançados no desemprego migram atrás do capital para outros campos produtivos (quando não são impedidos de fazê-lo, seja pelo custo do deslocamento, seja pela exigência de vistos; hoje, o capital é transnacional, mas o trabalho não é), quanto menor a autonomia relativa dos produtores simbólicos, em atividade produtiva ou não - iniciantes desconhecidos ou veteranos no ostracismo -, mais se vêem forçados a migrar atrás dos gêneros de sucesso mais ou menos fugazes; mesmo quando bem sucedidos no movimento migratório, tendem a perder em valor simbólico (a parte que representa o prestígio junto ao gosto do campo) o que ganham em capital midiático (a parte que representa o prestígio junto ao gosto social midiático).

Táticas de defesa e contra-ataque cultural, portanto, devem ser desenvolvidas não só na esfera simbólica mas, sobretudo, numa discussão do próprio modo de produção capitalista turbinado e do mercado global. O Estado, a internet e os selos independentes podem, pontualmente, ser bons aliados nessa batalha, mas não bastam. A discussão deve centrar-se em uma política que tenha como objetivo último a democratização dos meios de produção, reprodução e circulação dos bens simbólicos; paralelamente, no arejamento e maior transparência das instituições corporativas (sindicato dos músicos, sindicato dos compositores, associações de autores etc.) e de arrecadação (ECAD), e, finalmente, na hipótese de desenvolvimento de cooperativas de produtores simbólicos.

Enquanto isso não ocorre, a crise atinge o setor:

``Londres - A prima pobre (!) da indústria fonográfica decidiu apertar o cinto outra vez. A britânica EMI, terceira maior gravadora do planeta, vai demitir 1,8 mil funcionários e mais 400 artistas do segundo escalão da música pop, numa tentativa de recuperar rentabilidade e enfrentar a queda nas vendas. (...) A última grande gravadora que não faz parte de um conglomerado de comunicação ou entretenimento (...) Sua participação no mercado mundial vem caindo e as tentativas de fusão com a rival alemã BMG esbarraram nas exigências das autoridades antitruste européias. Para sair do buraco, a gigante britânica chamou o guru da indústria fonográfica Alain Levy, que assumiu há seis meses com carta branca. (...) `Tínhamos 49 artistas na Finlândia e eu não creio que existam 49 finlandeses que cantem', ironizou Levy.''7.25

Não creio que os finlandeses, sobretudo os cantores, tenham apreciado a ironia.

Diferente do cinema, que surge graças à produção industrial e, portanto, dela depende para ser produzido, a música a antecede. Ocorre que com o advento da serialização do suporte musical (material / disco e ``imaterial'' / rádio, cinema, tv), a música passa também a depender da técnica (por sua vez subordinada ao automatismo do capital em seu movimento de auto expansão) para ser produzida, mas sobretudo reproduzida - aqui, não só no sentido de Benjamin, mas sobretudo no de Marx, de reprodução das condições de produção, e, ao mesmo tempo, no de Althusser, como reprodução ideológica, por duas razões, sendo a segunda um desdobramento inevitável da primeira:

  1. aqui, a determinação econômica se dá não somente em última instância, mas também em primeira instância, na medida em que os músicos, para sobreviverem material e estilisticamente, são coagidos (quando não o fazem consensualmente) a orientarem sua produção criativa no sentido de reprodução das estruturas formais hegemônicas, e

  2. cada vez mais, sobretudo no caso da música popular, a formação dos ouvintes e, conseqüentemente, a legitimação social de certas estruturas formais (esteticamente falando) - e não outras - passa a ser determinada pela música serializada em escalas gigantescas.

Antes do advento da customização da música, a autonomia relativa dos músicos populares era limitada pelo gosto das classes populares regionais (em oposição às massas modernas), das quais ele próprio fazia parte, e a dos músicos eruditos pelo gosto da corte, com a qual ele convivia (as imposições do bispo fulano a Bach, ou do imperador sicrano a Mozart, davam-se ainda na esfera dos juízos de gosto, não dos juízos contábeis, e isto, creio eu, assegurava-lhes uma maior autonomia em relação ao músico subordinado aos imperativos da indústria cultural), em ambos os casos sem influências alienígenas, isto é, cujas redes significantes são impostas como reprodução ideológica de relações de produção externas, alheias à experiência extra-midiática dos músicos e dos públicos locais.

Por outro lado a hegemonia burguesa permitiu uma maior autonomia ao músico no período do capitalismo liberal - conforme ilustra Norbert Elias com o exemplo de Beethoven em relação a Mozart. Segundo Elias, o incremento do comércio de partituras em meados do séc. XIX assegurou ao músico europeu (erudito) o estatuto de autônomo, após ter sido um ``criado de libré'' das cortes e palácios principescos, nos quais

``Os músicos eram tão indispensáveis (...) quanto os pasteleiros, os cozinheiros e os criados, e normalmente tinham o mesmo status na hierarquia da corte. Eles eram o que se chamava, um tanto pejorativamente, de criados de libré. A maior parte dos músicos, sem dúvida, ficava satisfeita quando tinha garantida a subsistência, como as outras pessoas de classe média na corte. Entre os que não se satisfaziam estava o pai de Mozart. Mas ele também se curvou, sem querer, às circunstâncias a que não podia escapar.'' (Elias, 1995, pp. 17, 18)

Com a ascensão da burguesia, o músico viu-se livre desses constrangimentos, mas, ao mesmo tempo, da segurança relativa que lhe proporcionavam:

``Beethoven nasceu em 1770, quase 15 anos depois de Mozart. Conseguiu, não com facilidade, mas com muito menos problemas, aquilo pelo que Mozart inutilmente lutou: liberou-se, em grande parte, da dependência do patronato da corte. Foi, assim, capaz de seguir a própria voz em suas composições - ou, mais exatamente, a ordem seqüencial de suas vozes interiores, e não o gosto convencional de seus fregueses. Beethoven teve muito mais oportunidades de impor seu gosto ao público musical. Diferentemente de Mozart, foi capaz de escapar à coerção de ter de produzir música na situação de subordinado a um empregador ou patrono muito mais poderoso; ao invés disso, pôde compor música, se não exclusivamente, mas pelo menos até certo ponto, como artista autônomo (como chamaríamos hoje em dia) para um público relativamente desconhecido.'' (idem, p.43).7.26

Como Marx bem o disse, o capitalismo liberou forças produtivas e criou condições para a satisfação das necessidades humanas como nenhum outro período histórico. Contraditoriamente, o fez às custas de gradual alienação da autonomia dos produtores, em nosso caso dos músicos, apesar da autonomia que possa ter propiciado a alguns deles em seus primeiros estágios de desenvolvimento em relação aos constrangimentos anteriores - assim como o servo feudal e o artesão transformaram-se em trabalhadores assalariados ``livres'', o músico ``criado de libré'' libertou-se da corte, mas somente para submeter-se gradualmente ao capital.

A música só se torna valor de troca capitalizável através do surgimento das editoras e do comércio das edições de partituras e, posteriormente, através da produção, reprodução e circulação em escala industrial dos registros sonoros. É a partir daí que o processo de libertação, da corte ou da escassez, começa a adquirir o seu caráter contraditório, na expropriação ou alienação do gosto (medida do valor de uso expressa nos juízos que atribuem valor simbólico ao bem simbólico) do produtor pelo capital (encarnado nos valores de troca), na acumulação primitiva de capital midiático, que se dá através da operação de transformação de valor simbólico (expressão de gosto do campo, ou do valor de uso gustativo) em capital + capital midiático. A música erudita, por oferecer menos ganho de escala para a indústria cultural - devido à maior concentração de capital simbólico (na acepção de Bourdieu) entre as classes mais cultivadas, que representam em todo o mundo uma minoria da população -, conservou talvez maior autonomia do que a popular.

Postulamos que este período liberal da indústria cultural chegou ao fim há cerca de três décadas, embora seus efeitos ainda estejam presentes entre nós: é por isso que Duke Elington, Tom Jobim, Chico Buarque, Bob Dylan, Jaques Brel etc. possuem ainda alto valor simbólico e alto capital midiático - surgiram durante uma fase de intensa concorrência entre diversas companhias fonográficas relativamente modestas (em comparação às atuais), antes das mega fusões das transnacionais do entretenimento, e sobrevivem graças ao prestígio social adquirido nesta época; mas essa autonomia tende gradualmente a anular-se em face da passagem (contemporânea) do capitalismo monopolista para o financeiro. Hoje, tais nomes provavelmente não surgiriam. Em um futuro próximo, quem sabe? Isto vai depender de um novo acirramento da luta de classes (aparentemente já em curso) em escala global e, no caso da música, de uma maior autonomia dos músicos em face ao capital; concretamente, uma autonomia radical do campo de produção de música popular no atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas demanda uma democratização igualmente radical dos meios de produção, reprodução e circulação, e igualmente uma democratização radical da formação, ou melhor, das várias formas existentes e potenciais de cultivo do público (escolas, festas populares, workshops etc.).

Fazendo mais uma alusão à gastronomia, eu diria que, no período imediatamente anterior ao capitalismo liberal, o músico era um cozinheiro que discutia as receitas com o dono do restaurante (em posição de relativa desvantagem), ou com os fregueses (em uma relação de relativo equilíbrio de forças); no período liberal, tornou-se um cozinheiro que podia, com certa liberdade, sugerir suas receitas aos donos dos restaurantes e aos públicos; por último, converteu-se em assistente de cozinha e garçom, e hoje as receitas passaram a ser feitas pelas transnacionais que produzem o cardápio.

Não sendo possível, nem desejável, um retorno ao passado, a desfetichização do gosto socializado deve reproduzir de certa forma o que ocorreu no período liberal, mas de uma forma mais avançada: maior autonomia para os músicos (conforme sugerido acima), mais e melhores instâncias de cultivo para o público.

Considerações Finais

``O gosto é a qualidade fundamental que resume todas as outras qualidades.

É o nec plus ultra da inteligência.

É somente através dele que o gênio é a saúde suprema

E o equilíbrio de todas as faculdades.''

Lautréamont

Buscamos elaborar aqui uma introdução a uma crítica da economia política do gosto, tomando este conceito em sua origem etimológica (aproximação, familiaridade entre sabor e saber, tendo o corte, a ruptura entre ambas as instâncias, sido originado na divisão entre trabalho braçal e intelectual, divisão representada pela metafísica platônica) e em sua genealogia (no sentido que Foucault, em A Microfísica do Poder, atribui à genealogia de Nietzsche: não a busca de uma origem última, mas o rastreamento dos percalços históricos do objeto) nos campos da filosofia, da estética e da sociologia.

Segundo pudemos aferir, o momento histórico em que o termo gosto volta a desdobrar-se, como metáfora, do paladar para o juízo estético e moral, corresponde ao período que vai da Renascença ao Iluminismo, onde ao mercantilismo, à acumulação primitiva do capital, à ascensão social da burguesia e ao antropocentrismo corresponde igualmente uma gradual desreificação dos objetos degustáveis - cujo valor simbólico estava atrelado a rígidos cânones morais, predominantemente religiosos - e a um relativo aumento do privilégio do sujeito degustante como criador de valores. Inicia-se então uma fértil problematização dos gostos, entendidos ainda como expressão da imanência das coisas, ou de cânones estéticos e morais capazes de hieraquizá-las qualitativamente, restando o sujeito mais ou menos apto, ou cultivado, seja do ponto de vista racional (estética clássica) ou perceptivo (empirismo) para adequar-se aos gostos superiores e rejeitar os inferiores.

Mais recentemente, Nietzsche diria, em outros termos, que não há experiência perceptiva de espécie alguma que não seja subordinada à mediação cultural, mesmo que imponha-se apesar dela, ou contra ela:

``Limites do Domínio Moral. - Nós batizamos imediatamente a nova imagem que vemos com o auxílio de nossas velhas experiências, segundo o grau de nossa lealdade e de nosso espírito de justiça. Só há eventos morais, mesmo no domínio da percepção dos sentidos.''(Nietzsche, 1965, p.161)

Insistimos, do mesmo modo, que embora mediados pela ``moral'', não pode haver juízos de gosto que não sejam simultaneamente mediados pela experiência perceptiva, mesmo que impo- nham-se apesar dela, ou contra ela. Defendemos igualmente a atualidade da discussão dos gostos e juízos de gosto a partir do seu significado radical, e do fundo ideológico da ruptura capital entre as noções de saber e sabor reificada através dos séculos. Trata-se - essa ruptura e sua reificação - de ocorrência capital, que destacamos no princípio deste trabalho por julgá-la o ponto de partida para uma nova abordagem do conceito gosto.

Um equilíbrio superior, ainda que entenda-se por equilíbrio uma justaposição tensa, dinâmica e intercambiante entre estas forças aparentemente antagônicas - o corpo e o espírito, a beleza e a verdade, o desejo individual e as necessidades gregárias, a sensibilidade particular e a razão coletiva, Eros e Logos, o trabalho braçal e o intelectual - no gosto, é contudo teoricamente concebível e materialmente desejável como devir histórico. Este devir histórico, por sua vez, só é viável através da superação do poder do capital de moldar tanto as necessidades gregárias quanto os desejos individuais.

Até hoje, mesmo quanto ao gosto da comida, imposições e restrições gustativas fundamentadas em imperativos culturais, sejam classistas, religiosos ou científicos, cuja origem remonta à divisão do trabalho e da sociedade em classes, têm-se sobreposto ao paladar e, por extensão, aos demais sentidos, da kashrut judaica - e, provavelmente, antes dela - e das hierarquizações racionalizadas de Platão entre modos musicais mais ou menos aceitáveis, às papas diet industrializadas nos dias de hoje e às polêmicas sobre a arte pós-moderna, passando pelo diabolus in musica8.1 e pelo bon goût aristocrático. A potência subversiva do prazer (assim como a do conhecimento) tem sido domada através dos tempos em nome da manutenção da ordem social. Por sua vez, o capitalismo contemporâneo, no que Marcuse denominou dessublimação repressiva, ao invés de reprimir o prazer, solta-lhe as rédeas, desde que dentro das raias do consumo. Como disse Kurz, ``O mandamento da sensibilidade, por parte do consumo, já é a priori desmentido pela obrigação à insensibilidade da produção do trabalho abstrato.'' (Kurz, 1993, p. 144)

Se defendemos uma compreensão mais dilatada e uma maior autonomia do gosto, isto implica necessariamente em uma oposição radical aos imperativos de uma sociedade produtora de um desgosto dilatado e de gostos automatizados. Para esta crítica, pouco importa o que seria um quimérico bom gosto ideal e supra (ou infra) sensível - mais do que uma crítica dos juízos, buscamos situar os juizes: quem ou o quê determina o que é o bom gosto, quando determina, onde determina, como determina e por que razão. Mais importante: o que representam historicamente este ou aquele juízo como instâncias de reprodução ideológica ou de transmutação de valores?

Ao termo deste percurso, arriscamos que o gosto é a encruzilhada onde se encontram e se debatem, em cada homem, a expressão distintiva de cada coisa, a cultura e os nervos. Os juízos de gosto, por sua vez, representam a necessidade de se estabelecer critérios para os conflitos intersubjetivos dos gostos, sobredeterminados pela posição de classe ocupada pelo ajuizador.

Tomando o que se gosta ou não como significante de padrões de sensibilidade, juízos de valor e patrimônio cultural coletivo, temo (e esse temor é o que justifica o esforço da pesquisa) que hoje estejamos enredados em um fetichismo (ou idolatria) mais radical do que jamais houve entre os povos ditos fetichistas: quem define o bom e o belo, hoje, não são as coisas, não são as pessoas, nem mesmo Deus ou os deuses, mas o capital.Shakespeare já identificava em sua época a gestação deste processo:

``Ouro, amarelo, fulgurante, ouro precioso!

Uma porção dele basta para fazer do preto, branco; do louco, sensato;

Do errado, certo; do vilão, nobre; do velho, jovem; do covarde, valente;

... Ó deuses, não estais vendo? Por que

Afasta ele vossos sacerdotes e os servos de vossos altares?

E arranca o travesseiro do justo que nele repousa a cabeça.

Esse escravo amarelo

Ata e desata vínculos sagrados; abençoa o amaldiçoado;

Doura a lepra; honra ladrões,

Dá-lhes títulos, genuflexões e homenagens,

Colocando-os no conselho dos senadores;

Faz a viúva anciã casar de novo.

... Metal execrável,

És da humanidade a vil prostituta.'' (Shakespeare, Timon de Atenas, apud Marx, 1982, p. 146.)

Acreditamos que a velha dificuldade de definição do bom gosto reside no simples fato de tratar-se de uma falsa questão. Fiz, assim, uma aposta na crítica da economia política, de Marx, como instrumento teórico para uma novo caminho de discussão do gosto, sobretudo metodologicamente, partindo do pressuposto de que a melhor maneira para estudar a qualidade de alguma coisa é através da sua quantidade, ou seja, de sua materialidade. ``Trabalhar sobre a quantidade'', aqui, significou a elaboração de um recorte teórico que privilegiasse a economia política da indústria cultural, porta-voz do capital, como instância mediadora tentacular entre o capital, os gostos socialmente produzidos e os modos contra-hegemônicos de produção, reprodução, circulação e consumo (ou degustação) de bens simbólicos, buscando uma base concreta para a velha cisão sabor / saber.

A propósito desta cisão, Barthes conclui sua Aula com uma bela definição de ``Sapientia'':

``nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria e o máximo de sabor possível.''

Bela, porém problemática. Pois ``nenhum poder'' é uma idéia totalmente absurda, significando pura e simplesmente a morte - aliás, a sentença está em franca contradição com o poder libertário que o próprio autor atribui, nesse mesmo texto, à literatura.

Quando fala em ``um pouco de saber, um pouco de sabedoria e o máximo de sabor possível'', Barthes reproduz, sem querer, o ethos midiático, o discurso-chave da indústria cultural turbinada, pseudo-aura do capital turbinado. Por que não, junto ao ``máximo de sabor possível'', o máximo de saber e de sabedoria, isto é, o máximo de gosto, e a dose necessária de poder, para além do capital e de sua pseudo-aura?

Referências Bibliográficas

Anexos

I

Entrevistamos, no ano de 2002, em caráter exploratório, nos mais diversos bairros da cidade do Rio de Janeiro, 45 músicos - homens e mulheres, dos mais variados estilos, formações, etnias, faixas etárias e de renda -, 6 críticos musicais da grande imprensa, 7 produtores musicais e um diretor de A&R (arte e repertório, responsável pela contratação de artistas) de uma pequena gravadora voltada para as tradições musicais e experiências de vanguarda na música popular brasileira. O resultado das entrevistas demonstrou que suas preferências em música compõem um quadro extremamente variado, bem mais que suas aversões, as quais, aliás, formam um quadro quase que diametralmente oposto do que indicam as listas de cds mais vendidos e artistas mais executados nas rádios cariocas nos últimos anos.9.1 Nossa hipótese é que esta diferença nos gostos deve-se ao fato de todos os entrevistados também terem acesso a um repertório simbólico distinto daquele veiculado massivamente pela indústria cultural, devido ao estudo, à pesquisa e/ou ao contato participante com tradições musicais pré-midiáticas, ou às margens da indústria cultural, sobreviventes - rodas de samba de fundo de quintal, festas populares, espaços ``underground'' etc. Se a divergência que identificamos entre este universo e o ``gosto popular'' não é uma prova empírica conclusiva de nossa hipótese, e não pretende sê-lo, ao menos aponta para sua verossimilhança (e sugere a pertinência de pesquisas suplementares empiricamente orientadas).

Assim, de 150 nomes escolhidos pelos entrevistados em uma questão aberta, não induzida,9.2 os 6 mais apreciados9.3 são, nesta ordem, Tom Jobim, Djavan, Chico Buarque, Noel Rosa, Jimi Hendrix e Bach (destes, somente Djavan tem freqüentado as paradas de sucesso cariocas nos últimos anos); os 6 mais detestados, entre nomes e gêneros, são, nesta ordem, Xuxa, duplas sertanejas, Sandy e Júnior, funk carioca, É o Tcham e Belo, todos campeões de execução e venda nos últimos anos. O total dos 150 nomes citados segue esta tendência.

II 9.4

A) Diga o nome de 5 músicos (compositores(as), cantores(as), bandas etc.) entre os que você mais gosta, vivos ou mortos, de qualquer época, estilo ou nacionalidade, e, ao lado, descreva idéias, sensações e/ou adjetivos que você associa a suas músicas.

B) Diga o nome de 5 músicos (compositores(as), cantores(as), bandas etc.) entre os que você menos gosta, ou detesta, vivos ou mortos, de qualquer época, estilo ou nacionalidade, e, ao lado, descreva idéias, sensações e/ou adjetivos que você associa a suas músicas.



Notas de rodapé

... (1892)1
Esta data refere-se aos primórdios da comercialização de fonogramas, mais precisamente à primeira exibição pública de um fonógrafo no Rio de Janeiro - praticamente em sincronia com os EUA e a Europa. Tinhorão menciona também uma exibição do aparelho em Porto Alegre, em 1879. Cf. Tinhorão, J.R., Música Popular: Do gramofone ao rádio e TV., p. 10 da introdução e p. 4.
...ao.2
Aqui, o termo reprodução é empregado tanto no sentido usual de repetição de um modelo quanto na acepção benjaminiana de serialização de um suporte que veicula um produto simbólico - em nosso caso, a música.
... hoje.3
Conforme demonstra Attali (ver Noise: the political economy of music), se um trabalho só é considerado ``produtivo'' do ponto de vista do capital na medida em que é capitalizável, ou seja, em que o capital investido no ``aluguel'' da força de trabalho se converte em mais capital, a produção musical só entra neste circuito a partir do início do comércio de edições musicais, e este processo só adquire importância econômica mais relevante com o desenvolvimento da indústria cultural. E é a partir daí que os imperativos econômicos da produção passam a determinar a produção, a reprodução e a circulação - conseqüentemente, o consumo de música.
... mundo,4
A este respeito, Hobsbawn, em A Era dos Extremos, destaca o processo que culminou, na segunda metade do século XX, em uma configuração demográfica inédita na história da humanidade: a maioria da população do planeta passou a viver nas cidades.
...oes.5
É razoável supor que antes dessas transformações sociais, condicionadas pela ascensão do modo de produção capitalista, dificilmente se poderia falar em um ``gosto popular'' mais ou menos homogêneo em larga escala, mas somente em gostos populares localizados e variados.
... produtos.6
O cúmulo do desperdício irracional.
... cultural.7
Por ``perspectiva político-revolucionária'', não nos referimos aqui a uma ou outra estratégia para a tomada do poder político através de métodos pacíficos ou violentos, mas ao objetivo último da crítica da economia política de Marx, que é, no nosso entender, contribuir para a compreensão e para a superação da sujeição objetificante dos sujeitos aos imperativos irracionais da economia capitalista.
...jabás,8
Termo que indica a prática ``extra-oficial'' corrente de pagamento às rádios por parte das gravadoras para a veiculação de seus produtos.
... capitalista.9
A este respeito, Renato Ortiz pondera: ``Com as novas conquistas tecnológicas houve ainda uma diversificação da produção. Um pequeno estúdio, com um mínimo de recursos técnicos, é capaz de produzir um CD. Entretanto, não se pode esquecer que a política de difusão, que implica em acesso à televisão, ao rádio, revistas e jornais, assim como um investimento importante em propaganda e marketing, é definida fora do âmbito desses estúdios. Dito de outra forma, a concentração desses oligopólios prescinde da propriedade dos `meios de produção': o que importa é o controle dos canais de distribuição e o acesso público ao mundo da mídia.'' Cf. prefácio de Os Donos da Voz, de Márcia Tosta Dias, p. 13. De fato, visto sob o prisma da terceirização dos estúdios de gravação, pode-se dizer que a indústria fonográfica, tomada isoladamente, pode ter chegado ao ponto de prescindir ``da propriedade dos meios de produção''; ocorre que, na prática, ela não existe nem pode existir isoladamente, mas somente como setor da indústria cultural como um todo. Deste modo, ``o controle dos canais de distribuição'' - que envolvem, entre outras coisas, sofisticadíssimos equipamentos de geração, captação e irradiação de mensagens (transmissores, antenas, satélites, cabos etc.) - pela indústria cultural tomada em conjunto, para não falar nos recursos humanos, redes de influência etc., é o mesmo que propriedade dos meios de produção, ou de sua parte mais substantiva como instância de poder na sociedade atual.
... fetichistas.10
Em linhas gerais, entendemos por fetichismo uma experiência de fixação necessariamente regressiva e alienante, e por sublimação uma experiência de fluxo de prazer potencialmente progressiva e libertadora. O que há em comum entre a acepção psicanalítica e a marxista de fetiche, que utilizaremos sinteticamente, é o fato de tratar-se, no fetichismo, de transferência de energia (libidinal ou força de trabalho) do sujeito para o objeto, carregando o último de valor (erótico, simbólico ou econômico) alienado do primeiro, na medida em que o sujeito é sujeitado ao objeto. Baudrillard (1972, p. 97 em diante) questiona a validade do conceito ``fetichismo'', sugerindo, entre outros argumentos, o exemplo do ``pensamento mágico'' das tribos bantous, para quem a ``força difusa'' do mana é na verdade desviada para o ``proveito'' do ``indivíduo ou do grupo''; neste caso, concordamos, não há fetichismo, que só ocorre, como nas sociedades contemporâneas, quando a força concreta do indivíduo ou do grupo é desviada para o proveito do mana, isto é, do capital e de suas crias.
... Agamben,1.1
Enciclopédia Einaudi. 25. Criatividade - Visão. Fica aqui registrado o meu agradecimento à professora Maria Helena Junqueira, que forneceu-me esta preciosa indicação.
... levantar,1.2
Nesse sentido, sugerimos as seguintes obras: Os Donos da Voz: Indústria Fonográfica Brasileira e Mundialização da Cultura, de Márcia Tosta Dias; Música Popular: do gramofone ao rádio e tv e História Social da Música Popular Brasileira, de Tinhorão; e Canção de Massa. As Condições da Produção, Othon Jambeiro.
... integrados''1.3
Sabemos, e Eco deixou isto bem claro, que trata-se de uma generalização um tanto imprecisa e até certo ponto caricatural. Não obstante, a julgamos expressiva e suficientemente adequada para caracterizar em linhas gerais certa oposição entre abordagens mais propriamente críticas e outras mais funcionalistas dos meios.
... relativa.1.4
Mais-valia é a fonte do lucro do capitalista. Se o trabalhador produz o valor correspondente ao necessário para a reprodução de sua força de trabalho em 2h/dia, e trabalha 8h/dia, as 6 horas excedentes geram a mais-valia. Há duas formas de mais-valia, a absoluta e a relativa. Mais-valia absoluta é fruto da extensão do tempo de trabalho não remunerado, ou do aumento do tempo de produção para além do necessário à reprodução da força de trabalho; mais-valia relativa, da diminuição do tempo de trabalho remunerado, ou do aumento da produtividade: se o trabalhador continua produzindo o suficiente para a reprodução de sua força de trabalho em 2h/dia, mas passa a trabalhar 9h/dia, a mais-valia absoluta é de 7h/dia; se ele continua trabalhando 8h/dia, mas, devido ao incremento da produtividade, produz o necessário para si em 1h/dia, não mais em 2h/dia, a mais-valia relativa é de 7h/dia. Quanto ao custo original do capitalista na aquisição de matéria-prima, e de aquisição, manutenção e renovação dos meios de produção, o trabalhador nada tem a ver com isso, pois tal custo é embutido no valor final da mercadoria, não no salário.
... informacional.1.5
Cf. Fiori, LIÇÕES DA DÉCADA DE 1990 (II), Fórum Social Mundial 2001, Biblioteca das Alternativas. Publicado originalmente no site Carta Maior [www.cartamaior.com.br]. Todos os sites citados neste trabalho foram consultados em 2001 e 2002.
... barata,1.6
Como explica Hobsbawn: ``Na música européia, a bateria é um dispositivo para produzir efeitos ocasionais; no jazz ela é a base e o meio de organização de toda a música, o motor que impulsiona o trem do jazz em seus trilhos (...) é, talvez, o instrumento mais difícil de ser analisado e apreciado por um ouvinte de formação européia.'' (História Social do Jazz, p. 142). Mais adiante (pp. 152-153) Hobsbawn acrescenta, citando Hodeir: `` (...) em jazz, os interesses sensoriais ultrapassam de longe a paixão intelectual (...) uma sensualidade aguçada toma o lugar da elevação, e a fusão das personalidades individuais toma o lugar da arquitetura'', arquitetura tão cara à crítica de Adorno.
... cultural,1.7
O termo ``indústria cultural'' foi cunhado ainda nos esboços para a Dialética do Esclarecimento, pois seus autores, Adorno e Horkheimer, consideravam o termo ``cultura de massas'' falacioso.
... sugerido,1.8
``Se se resgata o ponto de vista de Gabriel Cohn sobre Adorno (...), segundo o qual o filósofo e musicólogo alemão não considerava em sua reflexão o real tal como este se manifestava no tempo histórico em que vivia, mas sim que suas idéias tinham um caráter metodologicamente prospectivo, apontando para tendências sociais e para `(...) potencialidades de sua realização mais acabada', podemos pensar que este é o tempo em que se realizam vários dos prognósticos lançados por Adorno.'' Cf. Tosta Dias, M., op. cit., p. 20.
...ivel,1.9
Tal ``esclarecimento'', bem como algumas explicações anteriores, correm o risco de carregar este trabalho de um ``didatismo'' talvez excessivo. Justifico esta opção remetendo-me a uma discussão - amigável - que tive com a professora Liv Sovik (a quem agradeço por suas críticas), da pós-graduação da ECO, a qual convenceu-me que o leitor não tem obrigação de ter lido os mesmos livros que eu, portanto de conhecer a fundo os conceitos que emprego. De fato, considerando que boa parte da bibliografia a que recorri não consta entre as indicadas nos programas das disciplinas que cursei na pós-graduação da ECO, admiti que ela tinha razão, embora ciente do ônus possível de tornar o texto mais maçante para quem estiver familiarizado com os temas em pauta.
... ''1.10
Cf. Márcia Tosta Dias, Os Donos da Voz, pp. 25, 26. A autora cita Cohn, Gabriel, Sociologia da Comunicação (São Paulo: Pioneira, 1973), o qual, por sua vez, refere-se a Cultura y Administración, de Adorno e Horkheimer, in: Sociológica, Madri, Taurus, 1971. Utilizamos estas fontes indiretas por julgarmos a definição aqui apresentada a mais precisa e didática entre as que dispomos.
... etc.).1.11
Quando utilizamos o termo ``reprodução'' no sentido de reprodução ideológica legitimadora de determinadas práticas (sobretudo das relações de produção), a palavra reprodução vem sempre acompanhada dos termos ideológica e dos gostos ou dos juízos de gosto. Quando nos referimos à reprodução das relações de produção, o fazemos com todas as letras.
... geral,1.12
Que variam historicamente e segundo costumes geográfica e economicamente estratificados. A este propósito, diz Althusser: ``Lembremos que esta quantidade de valor (o salário) necessário para a reprodução da força de trabalho não está apenas determinado pelas necessidades [biológicas] (...), mas também por um mínimo histórico (Marx assinalava: os operários ingleses precisam de cerveja e os operários franceses de vinho) e, portanto, historicamente variável. Lembremos também que esse mínimo é duplamente histórico enquanto não está definido pelas necessidades históricas da classe operária reconhecidas pela classe capitalista, mas por necessidades históricas impostas pela luta da classe operária (dupla luta de classes: contra o aumento da jornada de trabalho e contra a diminuição dos salários).'' Cf. Althussr, AIE, pp. 56, 57.
... capital.1.13
A necessidade de gosto - no sentido do verso de Camões citado na epígrafe da Introdução desta pesquisa, como oposto a tristeza -, por sua vez, é mote e meta de uma crítica radical ao desgosto da necessidade. E o que é O Capital senão um libelo contra o disparate gerador das necessidades humanas desnecessariamente insatisfeitas, de desgosto burro e perverso reificado, de gosto alienado e recalcado pelo trabalho abstrato (roubado) e pela miséria?
... valor.1.14
Já discutimos a possibilidade de a sociedade da informação, ou sociedade pós-industrial, consistir em uma superação deste paradigma, graças à automatização e aos avanços da informática e da tecnocultura em geral. Tentamos deixar claro que nos opomos a esta visão, compreendendo a automação não como superação do valor força de trabalho, mas como radicalização da exploração de mais-valia relativa.
... coisas,1.15
Montesquieu, conforme citação de Agamben, definiu o gosto como mesure du plaisir, de ``um prazer que conhece e julga''. Cf. Agamben, G., op. cit., p. 140. Ora, ``um prazer que conhece e julga'' não é um luxo, antes o melhor juiz para determinar o que é ou não menos ou mais necessário, isto é, para medir o valor de uso das coisas.
... turbinada,1.16
Por indústria cultural ``turbinada'' entendemos seu estágio atual, monopolista e de convergência tecnológica. A indústria cultural, outrora secundária diante da indústria siderúrgica, petroquímica, elétrica etc., conforme destacaram Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento, adquiriu ao longo do século XX uma crescente importância econômica, tendo, hoje, atingido o estágio monopolista a que se refere Lenin em relação aos empreendimentos capitalistas em geral: ``ao chegar a um determinado grau de seu desenvolvimento, a concentração [de capital] (...) conduz diretamente ao monopólio, visto que, para umas quantas dezenas de empresas gigantescas, é muito fácil chegarem a acordo entre si e, por outro lado, as dificuldades da concorrência e a tendência para o monopólio nascem precisamente das grandes proporções das empresas.'' Cf. Lenin, V.I., Imperialismo, estágio final do capitalismo, in V.I. Lenine, Obras Escolhidas, 1, p. 588.
... Lupin2.1
Leblanc, Maurice. Arsène Lupin. La Cagliostro se venge, p. 63.
... Estado,2.2
Quanto à distinção entre de Estado ou da esfera privada, Althusser é taxativo: trata-se de uma falsa distinção, posto que o Estado capitalista é compreendido, na perspectiva marxista da luta de classes, como a instância privilegiada de poder da classe dominante, a burguesia. Assim, mais do que a distinção público/privado, importaria entender a que interesses de classe atendem os aparelhos. Hall, Lumley e McLennan, no artigo Política e Ideologia: Gramsci (ver Da Ideologia), põe em questão a propriedade desta indistinção, remetendo à problemática do conceito ``sociedade civil'' em Gramsci e em Marx. Esta polêmica, porém, escapa aos objetivos deste trabalho, para os quais o conceito dos AIE permanece útil.
... acidental.''2.3
Cf. Marx, Grundrisse, apud Molina, Victor, Notas sobre Marx e o problema da individualidade, in Da Ideologia, p. 307.
...ogicas,2.4
Aqui, usamos o termo ideologia de acordo com a seguinte definição de Althusser: ``(...) é representado na ideologia não o sistema das relações reais que governam a existência dos homens, mas a relação imaginária desses indivíduos com as relações reais sob as quais eles vivem.'' Cf. Althusser, AIE, p. 88. Sobre uma discussão mais aprofundada do conceito ``ideologia'', ver capítulo 6 deste trabalho.
... p.155)3.1
Larrain refere-se a uma passagem de Marx em A contribution to the critique of Hegel's philosophy of Right.
...olica; 3.2
Gramsci entende a noção marxista de determinação em última instância dos fatores econômicos sobre a produção intelectual como a necessária antecedência das relações materiais de produção e das condições sociais por elas estabelecidas às ``produções do espírito'', no sentido de que estabelecem um campo - finito - de potencialidades que podem, ou não, converter-se em ato de produção intelectual ou simbólica, a partir da divisão da sociedade em classes e frações de classes hegemônicas ou contra-hegemônicas e dos conflitos daí resultantes. Neste sentido, idéias não são reflexos automáticos da estrutura, mas o resultado de uma lenta e complexa passagem, mediada por diversos fatores extra-econômicos ou imateriais - crenças, costumes, religião etc. -, das condições de realização (potência) que a estrutura estabelece - e exclui - à superestrutura de realizar (ato), na dialética histórica da luta de classes. Contudo, ao orientarem as práticas dos sujeitos, idéias adquirem materialidade, numa espécie de efeito de retorno da superestrutura sobre a estrutura. De certo modo, é dentro deste circuito complexo, desta estrutura dinâmica que entendemos o que Althusser denomina ``sobredeterminação''. Do ponto de vista epistemológico, ainda quanto à noção de determinação em última instância, tenho a impressão de que devido à disputa - acadêmica - com a tradição stalinista (o ``marxismo vulgar'' da 2ª Internacional) em curso nos anos 60 - e ainda nos 70 -, cuja compreensão das idéias era marcada por um forte reducionismo economicista, diversos pensadores tenham, com razão, se oposto à ênfase dos epígonos nos fatores econômicos, e privilegiado - às vezes em demasia - uma certa autonomia da cultura, da linguagem, da ordem simbólica, descolada das relações materiais concretas entre os homens. Somos da opinião que, hoje, diante desta ênfase inversa nos fatores culturalistas (discursos, identidades etc.) no pensamento social, seria oportuno retomar a ênfase de Marx nos fatores econômicos. Não obstante, utilizamos neste trabalho, ao defendermos a idéia de determinação ``em última instância'' dos fatores econômicos, a leitura gramsciana exposta acima. Cf. Gramsci, A., Concepção Dialética da História.
... materiais3.3
Atemo-nos aqui novamente a uma distinção proposta por Gramsci entre o materialismo de Marx e as formas de materialismo que o antecederam (metafísico, das ciências naturais, do idealismo) - ou seja, referimo-nos à matéria investida de sentido histórico-econômico, portanto humano, e não à matéria em si, como natureza pura. Cf. Gramsci, op. cit., p. 190.
... outros.''3.4
Esta passagem dos Grundrisse, (1) PRODUCTION , foi traduzida de uma cópia eletrônica do texto de Marx, do site [http://www.marxists.org/archive/marx/works/1857-gru/index.htm.] Torna-se, assim, impossível uma referência convencional a número de página, editora, ano de publicação etc. O mesmo vale para as demais traduções de textos retirados da internet.
... natureza;3.5
``Da terra formou Deus Jeovah todos os animais do campo e todas as aves do céu, e os trouxe ao homem para ver que nome lhes daria: o nome, que o homem deu a todo o ser vivente, este foi o seu nome.'' (Gênesis, p. 2, capítulo 2, verso 19.) Até na Torá, que não pode ser corretamente acusada de materialista, as coisas antecedem seus nomes.
... p.57)3.6
Recorremos aqui a Freud - e não a Marx - para ilustrar a inquestionável relevância do trabalho na história humana (tanto no plano material quanto no simbólico) mesmo em um campo de estudos no qual o tema trabalho não ocupa uma posição privilegiada, como é o caso da psicanálise. O que nos interessa destacar, com o auxílio de Freud mas seguindo a linha de raciocínio de Marx, é que o trabalho necessariamente envolve cooperação e conflito, e que estes imperativos, que atravessam toda a história da humanidade, antecedem e delineiam o campo de possibilidades sobre o qual se desenvolve todo e qualquer sistema simbólico: língua, religião, ideologia, arte, ciência etc.
... particular.3.7
Aliás, já que nosso assunto engloba a música: Jubal, ``o pae de todos os que tocam harpa e flauta'' [Gênesis, p. 4, capítulo 4, verso 21], pertencia à sétima geração a partir de... Caim! Infelizmente, um aprofundamento no significado desta indicaçãos transcende nossa competência atual.
... sagrado.3.8
Vale aqui esclarecer que a oposição profano x sagrado pode ser entendida como caótico x o que possui significado, como veremos adiante.
... 101)3.9
A este trecho segue a nota: ``Sefer Hochmat Há-Nefesch, f. 24d. Eleazar de Worms faz uso do valor numérico igual da palavra hebraica para ``gerações'' (i.e., história) e das palavras `espinhos e cardos''. Cf. Sefer Hassidim, §1049. O que nos interessa é destacar que lavrar a terra e pastorear são atividades concretas, são trabalho, e é a partir deste dado material que as alegorias, sejam quais forem, são elaboradas, não importa o quão indiretamente o sejam.
...a-lo.3.10
O que contradiz o caráter maniqueísta da leitura usual e sugere mais uma vez a possibilidade de tratar-se de uma alegoria de outra natureza.
... fantasia.''3.11
Rabbi Israel Chait, Adam's Sin and Punishment: [http://www.mesora.org/private/mesora.html].
... Trabalho:3.12
Redação coletiva do Grupo Krisis. Ver site [http://planeta.clix.pt/obeco/].
...ao-trabalho3.13
É desnecessário lembrar que o desemprego é coisa distinta.
... mal.''3.14
Ver artigo citado, Adam's Sin and Punishment, do Rabbi Israel Chait.
... parreira3.15
De onde é possível deduzir que o fruto não era nem uma maçã nem um figo, mas uvas, o que nos faz pensar no vinho. Este pensamento é ainda reforçado pelo costume judaico de se encher uma taça maior de vinho na cerimônia do pesach (páscoa) para o profeta Elias, anunciador da era messiânica, isto é, do paraíso sobre a terra. Abandonaremos, porém, ao menos neste trabalho, a tentação de desenvolver esta hipótese saborosa, pois representaria um desvio excessivamente brusco em nossa trajetória.
...Adam,3.16
Disponível em [http://www.mesora.org/_private/mesora.html].
... dentro...''3.17
Cf. Scholem, G., op. cit., nota 113, p . 266.
... Mal.3.18
Agradeço esta informação à ilustração e solicitude do rabino Abraam Berkes, da sinagoga Beit Aharon, no Rio de Janeiro.
... divino.3.19
Aprofundaremos este tema adiante, vendo que o pecado de Eva é posterior ao ``pecado da Terra''.
... pecado.3.20
E também estaria livre do conflito entre instinto sexual e faculdade intelectual, originado pelo pecado, excesso de energia libidinal não sublimada, voltada para a satisfação primária. Aparentemente, na Torá, a origem da consciência e da culpa é o oposto simétrico do processo psicanalítico: na Torá, primeiro o instinto estava em harmonia com a inteligência; após o pecado da transgressão, fixou-se nas satisfações primárias, o que gerou a consciência e a culpa. Na psicanálise, após a repressão da obediência, fixou-se nas satisfações secundárias, o que gerou a consciência e a culpa. Em ambos os casos, é deste conflito entre desejo e intelecto, mediado pelo trabalho, que surge a civilização e a história humanas. Não julgo exagero enxergar ainda no episódio da Queda a imagem alegórica de condenação a alguma forma de decadência de padrões civilizatórios, não necessariamente referente a um fato histórico em particular, mas a um risco histórico permanente.
... alma.''3.21
Cf. Blank, Paulo, O princípio de Ehiê, in Impresso ASA, ano xiii, no. 76, maio/junho de 2002, p. 3.
...inguas,3.22
Sou vizinho, na Lapa, de Adeílton Alves, 67, filho do Ataulpho. Num papo de bar, perguntei-lhe sobre a versão ``apócrifa'' da música, onde cantava-se que o bonde, ao invés de ``leva mais um operário'', ``leva mais um cara um otário''. Adeílton contou-me que esta versão teria sido proposta pelo próprio co-autor da canção, Wilson Batista, o apologista da malandragem, e vetada por Ataulpho - ``o velho não gostava dessas coisas'' - na versão oficial com o argumento lacônico e cabal: ``Pega mal''. Era o Estado Novo. Não obstante, como informa Sérgio Cabral, foi Getúlio Vargas, ainda deputado, ``o autor do Decreto Legislativo 5492, de 16 de julho de 1928, estabelecendo o pagamento de direitos autorais por todas as empresas que lidassem com músicas.'' Cf. Cabral, Sérgio, ABC do Sérgio Cabral, p. 55.
... demonstrou,3.23
Ver Nietzsche, O Anticristo.
... 253-254].''3.24
Agamben, G., Enciclopédia Einaudi, 25. Criatividade - Visão, Gosto, p. 139. Como vimos, a palavra hebraica ta'am, traduzida por gosto, remete igualmente às noções de sabor e de significado. Agamben ainda nos informa que, além do grego, ``em latim e nas línguas modernas que deles derivam, há um vocábulo etimológica e semanticamente ligado à esfera do gosto que designa o ato do conhecimento'' (p. 139).
... Eros.3.25
Não há aqui nenhuma alusão à relação cristianismo / judaísmo, nem oposição de espécie alguma entre as abordagens destas religiões sobre ``Eros'' e ``Logos''. O judaísmo também ``metaficiza'' Eros, embora de um modo menos radical, e igualmente estabelece uma divisão clara entre trabalho intelectual e braçal.
... proibido:3.26
Os comentários sobre o Rav Kook que seguem foram conseguidos através da internet junto à Yeshivat Har Etzion - Virtual Beit Midrash - e-mail: yhe@jer1.co.il ou office@etzion.org.il, por intermédio de Ezra Bick - ebick@etzion.org.il. Os comentários sem aspas são de Rav Hillel Rachmani. As passagens entre aspas são do Rav Kook, que traduzi da coletânea de sua obra ``The Lights of Penitence, The Moral Principles, Lights of Holiness, Essays, Letters and Poems''. Rav Hillel Rachmani informa que ``Analisaremos Rav Kook do ponto de vista de Rav Zvi Yehuda e do ``Nazir'', considerando que os escritos de Rav Kook compreendem um detalhado sistema de pensamento, que faz referências específicas aos conceitos da Cabala.''
... 59-60)3.27
Na p. 121 da mesma obra, o tema é retomado: ``A própria Terra tinha medo e não fez crescer a árvore em sua perfeição, de modo que seu gosto fosse o mesmo que o do seu fruto (...) A humanidade tem medo dos luminosos e exaltados valores da liberdade; este mundo teme a emergência do mundo que virá...''
... classes.3.28
A este respeito, ver Bourdieu, Pierre, Distinction.
...histórica,3.29
Cf. Marcuse, A Ideologia da Sociedade Industrial - O Homem Unidimensional.
... significado).3.30
Não tenho a pretensão de obter a aprovação das autoridades rabínicas a este respeito, embora não busque deliberadamente sua reprovação. Tampouco sou pioneiro. Autores como Martin Buber (Socialismo Utópico), entre outros (Castoriadis, por exemplo), já apontaram essa familiaridade entre a escatologia marxista e o messianismo judaico: trazer à terra o reino dos céus pela ação humana. Não se deve esquecer, porém, que os fundamentos teóricos e a forma específica de ambas as ações variam imensamente nas duas perspectivas.
... satisfaz?''3.31
Cf. Kook, op. cit., p. 376, ``Radiante is the world sol''. A frase anterior do verso é: ``Prove e veja que Deus é bom''.
...oricas3.32
``Certa vez um discípulo inquiriu um rabino dizendo: `Por que a chassida (cegonha) é chamada de chassida (que também é a palavra hebraica para `devota', `piedosa')?' (...) `Porque está sempre alimentando e se preocupando com os seus.' `Então, por que' (...) `sua carne não é considerada Kosher (própria para o consumo)?' (...) `Porque ela se preocupa apenas com os seus!'' Cf. Martin Buber, Ten Rungs: Hassidic Sayings, Nova Iorque: Schocken Books, 1947, apud Bonder, op. cit., p. 83.
... (consumista),3.33
No que pese as importantes contribuições teóricas de pensadores como Michel de Certeau, Canclini etc., que identificam no consumo um processo criativo de construção de identidades e identificações não passivamente determinadas pelo sistema produtivo, isso em nada altera a divisão trabalho (alienado) / lazer (consumista).
... 696)''4.1
Idem, p. 139.
... gosto?4.2
Mais adiante, citaremos uma passagem de Bourdieu em que o sociólogo responde esta questão, tratando de Kant. Foge aos objetivos deste trabalho estender essa problemática a todos os filósofos que lidaram com o tema.
... acerto.''4.3
Cf. Voltaire, Dictionnaire philosophique, verbete goût, em [http://www.voltaire-integral.com/19/goût.htm]
... 498-490)4.4
As citações de Kant e os números de página entre parênteses referem-se a uma edição inglesa da obra de Kant Critique of Judgement, London, Oxford University Press, 1952.
... p.214)4.5
A reflexão refere-se ao Nietzsche de A Vontade de Potência.
... valor?4.6
A relação entre os sentidos relacionados às funções diretamente indispensáveis à sobrevivência explicita-se sinteticamente no português chulo falado no Brasil, onde uma pessoa sexualmente atraente é designada ``gostosa'' e o ato sexual pode ser descrito como ``comer alguém'', expressão que carrega, ao lado do seu caráter agressivo, o de necessário à vida. A este propósito, diz Moshe Ben-Chaim: ``Qual a razão para que preceitos sexuais e alimentares estejam agrupados por Maimônides em sua obra Yad Hachazaka, também conhecida como Mishneh Torah? Um rabi explicou certa vez que ele agiu desta maneira porque os impulsos sexuais e do apetite são os instintos mais elementares, que necessitam de têmpera de modo que não lhes permitamos correrem soltos.'' Ver artigo ``Kosher and Niddah'', em [http://www.mesora.org/private/mesora.html].
... natureza.4.7
Isto é, a Terra.
... (sugar,4.8
Quanto à sucção, o primeiro ``trabalho'' necessário à alimentação, lembramos que Freud demonstrou de modo conclusivo a indiferenciação entre satisfação alimentar e erótica na amamentação. Por isso ``gosta-se'' das pessoas como de certos pratos? Por isso o ato sexual é designado em linguagem chula ``comer'' alguém? Por isso tem-se ``fome'' de conhecimento, ou de aventura etc.?
... (V)(...)''4.9
Firth, Primitive Polynesian Economy, Londres, 1939, p. 65, apud Lévi-Strauss, El totemismo en la actualidad, p. 99. Note-se que, de um ponto de vista materialista, ``materialismo'' entendido conforme definimos acima, esta hierarquia decrescente promove uma inversão de prioridades radical no valor atribuído às plantas, estando a religião em primeiro lugar e a alimentação em último.
... primitivo''4.10
Malinowski, apud Lévi-Strauss, op. cit., pp. 86, 87. Nós perguntamos: e na consciência de Malinowski?
...iveis.''4.11
idem, p. 87. Lévi-Strauss refere-se à obra de Malinowski, Magic, Science and Religion, Boston, 1948, p. 27.
... detalhar.4.12
Nas sociedades contemporâneas, igualmente, a divisão da distribuição social do caviar e da sardinha, do filé mignon e do bofe, ou da alcachofra e do jiló, é determinada, antes de mais nada, pelo quesito poder aquisitivo, ou melhor, pela classe social, no que pesem idiossincrasias individuais ou culturais e sua carga simbólica (distinção, tradição etc.) ou científica (fatores nutricionais).
... 131)4.13
Pode-se também aqui perguntar se o fato de tanto a alimentação quanto a fala - filha da língua de carne, mãe da língua simbólica, e primeira atividade responsável pelo ato de tornar público (comunicação) todo e qualquer juízo de valor - serem atividades da boca contribuiu para o desenvolvimento do termo ``gosto''.
... (...)''4.14
Marx, K., Grundrisse, documento eletrônico.
...anica.''4.15
Idem.
...idos.''5.1
Cf. ``A Bíblia do Humor Judaico'', de Marc-Alain Ouakinin e Dory Rotnemer.
... consumo5.2
Raymond Williams nota, a propósito, ``que a idéia do gosto não pode hoje ser separada da idéia do CONSUMIDOR.'' (Cf. Key Words, pp. 314, 315.) Hoje, gosta-se de e consome-se mercadorias; nos primórdios, gostava-se de e consumia-se comida, processo mediado pelo trabalho; hoje, pelo trabalho e pelo capital. Em ambos os casos, a natureza deste trabalho estará necessariamente refletida, ainda que de modo indireto, no gosto.
...ao.5.3
A este respeito, Agamben aponta para uma ``inesperada afinidade'' entre a crítica da economia política de Marx e a estética, ``Porque, assim como a estética tem por objeto o saber que não se sabe, a economia política tem por objeto o prazer que não se goza''. Destaca ainda a aproximação da psicanálise com o tema, através da ``idéia de `uma estética guiada pelo ponto de vista econômico', que Freud formula no capítulo II de Para Além do Princípio de Prazer''. Cf. Agamben, op. cit. pp. 153, 154.
... efetue:5.4
As indicações que seguem consistem em orientações metodológicas para o desenvolvimento de pesquisas futuras.
... conhecimento),5.5
Mais do que em outros casos, no da música instrumental parece não haver um corte nítido entre essas duas instâncias.
... asfixia.''5.6
Diversidade versus o império do marketing, por Hugo Sukman, in O Globo, Segundo Caderno, p. 2, 11 de março de 2002.
... Guyot.5.7
Idem.
... bico.''5.8
Ibidem.
... gosto,5.9
Gosto aqui refere-se à simples discriminação entre objetos degustáveis; juízo de gosto, à justificativa desta discriminação, não importa o grau de elaboração do discurso.
... comoverem.''6.1
Apud Luc Ferry, Homo Aestheticus, p. 68. A propósito, a obra era tida por Voltaire, segundo Ferry, como a mais importante existente sobre a matéria.
... p.173)6.2
A este propósito, é ilustrativo mencionar aqui a explicação dada por Freud para a sua indiferença em relação à música: ``Uma disposição racionalista ou talvez analítica se rebela em mim contra a possibilidade de emocionar-me sem saber porquê e o que é que me emociona''. Cf. Freud, El ``Moisés'' de Miguel Angel, in Psicoanalisis del Arte, p. 75.
... 172)6.3
Trecho dos Manuscrits économiques et philosophiques, Oeuvres, t. III, pp. 120-121, Mega.
... (...)''6.4
Hume, Of the Standard of Taste, [http://www.utm.edu/research/hume/wri/essays/standard.htm].
... ideology''.6.5
Cf. Larrain, Stuart Hall and the Marxist Concept of Ideology, in Marxism and the Interpretation of Culture.
... social.''6.6
Cf. Hall, The Whites of their eyes: racist ideologies and the media, apud Larrain, op. cit., p.49.
... autores.''6.7
Idem.
... Engels''6.8
Williams, 1985, p. 154.
... baixo.''6.9
Idem, p. 155
... materiais,6.10
Esse mecanicismo economicista ao qual Hall com razão se opõe é uma conclusão equivocada a qual uma má leitura de Marx corre o risco de conduzir (o que não é o caso em Hall). A este respeito, diz Larrain: ``Para Marx nem as idéias ideologicamente distorcidas nem as idéias corretas podem ser explicadas como emergindo de uma relação empírica na qual o mundo real imprime de modo indelével os seus significados, sejam distorcidos ou sãos, diretamente em nossa consciência. Isto implica que o mundo real é simples e transparente e que os sujeitos são antes recipientes passivos. Para Marx, ao contrário, o mundo real do capitalismo não era transparente; as formas fenomenais criadas pelo mercado mascaravam as relações reais no nível da produção. Mas os sujeitos tampouco eram passivos, constrangidos ou a ser iludidos ou a compreender cientificamente a realidade; eles estavam ativamente engajados em práticas que, enquanto limitadas e meramente reprodutivas, acentuavam as aparências do mercado, e enquanto transformadoras ou revolucionárias, facilitavam a apreensão das relações reais.'' Cf. Larrain, op. cit., p. 60.
... discursiva:6.11
O próprio marxismo não é exceção, não está livre de contradições, não se encontra acima da crítica e, com mais freqüência do que gostaríamos de admitir, pretendendo-se orgânico, mostrou-se arbitrário.
... empobrecendo-a.6.12
A este propósito, ver a crítica de Gramsci a Bukharin. Concepção Dialética da História, pp. 141-200.
...obvios.6.13
Cf. Reich, W., Psicologia de Massa do fascismo, cuja ênfase centra-se nos aspectos patológicos inconscientes do nazismo; ver também Michael Schneider, Neurose e classes sociais.
... hegemonia:6.14
Não pretendo com essas sugestões quanto ao caráter mais propriamente tático ou estratégico de uma das duas acepções cometer o disparate de afirmar que Lenin, Gramsci ou Hall desconsideraram a questão da luta de classes ou a perspectiva política estrutural, ou que Marx não se interessava pela conjuntural, mas levantar a hipótese da maior ou menor adequação de cada uma das duas acepções a uma perspectiva política tática ou a uma estratégica, ou seja, mais voltada para o ``jogo'' ou para o ``campeonato''. A meu ver, sob este prisma, torna-se evidente a necessidade de complementaridade entre ambas as perspectivas e acepções.
... sexual;6.15
Hoje menor do que antes, dada a ``dessublimação repressiva'', como dizia Marcuse, ou a reificação, sob as regras do livre mercado, dos corpos hiper-sexualizados.
... musicais,7.1
Elias (1995) destaca no início do séc. XIX uma mudança de paradigma nas relações trabalhistas dos músicos eruditos, graças ao crescimento econômico do comércio de edições impressas (segundo Jourdain, existente desde 1501 - op. cit., p. 124). Sendo este crescimento econômico e esta mudança de paradigma o que nos interessa discutir, o séc. XIX permanece o nosso marco.
... relevante;7.2
No Brasil, nesta mesma época, segundo Tinhorão, a maioria dos músicos populares era composta de amadores, sendo a maioria barbeiros; os profissionais pertenciam a bandas militares, da polícia e dos bombeiros. Cf. Tinhorão, História Social da Música Popular Brasileira. Attali, em Noise, descreve o que se dava na Europa a este respeito.
...arias)''.7.3
Ver Dos Meios às Mediações, pp. 28 e 29.
... juiz7.4
O capital, não o ``povo''. Se qualquer escolha ou juízo é pré-determinado pela formação e pelos objetos de escolha disponíveis, ninguém é capaz de ajuizar sobre um objeto que desconhece. E conhecer um objeto simbólico é mais do que ter acesso à sua simples presença, pois implica no acesso e na familiaridade ou no domínio de uma complexa rede de significantes (ou códigos) que legitimam ou não seu significado, ou significados. Por rede de significantes, em música, entendemos não só a linguagem musical (ritmo, melodia, harmonia e timbre) mas principalmente as formas possíveis de fruição (baile funk, concertos, walkman, missa, pagode de fundo de quintal etc.), cada qual carregada de uma objetividade que lhe é peculiar e que envolve a mais variada gama de práticas subjetivas e intersubjetivas (eróticas - na acepção mais dilatada do termo - e reflexivas). A ausência de acesso, para não falar em domínio ou familiaridade, a esta rede de significantes nos parece o pior conselheiro para um ajuizamento justo, apenas suplantado pela ausência de acesso ao próprio objeto simbólico. Em outras palavras, só se pode afirmar com justiça que o ``povo'' gosta ou não disto ou daquilo a partir do momento em que se saiba que o ``povo'' tem acesso (e familiaridade ou domínio) a isto ou àquilo, bem como aos códigos que legitimam isto ou aquilo. Até então, o juízo do ``povo'', afastado do produtor simbólico e íntimo do mediador (a indústria cultural), reflete o juízo do capital. Pode-se objetar que através dos meios o ``povo'' aproxima-se do produtor simbólico; é verdade, mas somente do produtor simbólico já subordinado aos imperativos econômicos dos meios. E esta produção não reflete, nem de longe, a totalidade e a variedade da produção simbólica existente (em um bairro, cidade, nação ou no planeta) ou potencial.
... vezes7.5
Por exemplo, com a crescente hegemonia do samba, outrora marginalizado, na Rádio Nacional durante o Estado Novo, em detrimento de gêneros mais ao gosto das classes ``cultas'' da época; com o surgimento da bossa nova, durante a euforia democrática desenvolvimentista do período JK e a ascensão das classes médias urbanas; com o advento do tropicalismo, durante a ditadura; com as canções de protesto, nos EUA, durante a Guerra do Vietnã etc.
... recente;7.6
Com exceção da crítica nos jornais, a música, até a edição e, principalmente, o registro, nada tinha a ver com os meios de comunicação.
... seguir:7.7
As datas referem-se sobretudo ao Brasil; com pequenas alterações, ao mundo.
... Napster:7.8
Site de intercâmbio de músicas online, originalmente gratuito.
... (...)''7.9
``Napster pede concordata nos Estados Unidos. Medida faz parte do acordo de aquisição da empresa de troca de música na internet pela alemã Bertelsmann.'' O Globo, terça-feira, 4 de junho de 2002, Economia, p. 31. Da Bloomberg News com agências internacionais.
... cultural7.10
Que não se esqueça que os provedores são seus apêndices, e a Microsoft, os satélites, os foguetes que lançam satélites, as fábricas de cabos de fibras óticas, a instalação dos cabos e todo o resto da parafernália constituem meios atualmente nas mãos do capital, nada disso pertence aos internautas ``livres''.
... internet.''7.11
Jornal do Brasil, Caderno Economia, p. 12, 18 de maio de 2002.
...ca.''7.12
Nehemias Gueiros Jr. Jornal do Brasil, 15 de julho de 2002, Caderno Internet, p. 2.
...ateis.''7.13
Harmon, New York Times, no Jornal do Brasil, Caderno Internet, 7 de março de 2002, p. 4.
... existido.7.14
As ``comunidades virtuais'' só podem converter-se em agentes efetivamente transformadores do real quando tomarem consciência de que suas ações precisam ser coordenadas em larga e escala e, sobretudo, quando se derem conta do fato óbvio de que o universo virtual não possui existência independente da realidade concreta, detalhe que muitos parecem desconsiderar.
... planeta''.7.15
Cf. Jornal do Brasil, Marcelo Kischinhevsky, Dona da Embratel perde US$ 4,7 bi, caderno de economia, p. 12, 30.01.2002.
... apropriar.7.16
É somente nesse sentido que se pode, com cautela, antever o risco de um novo paradigma: assim como a robotização computacional implementa a mais radical exploração de mais-valia relativa na indústria em geral, gerando uma exclusão de postos de trabalho sem precedentes, talvez o mesmo se dê, até certo ponto, na indústria cultural; no caso da música, o exemplo emblemático é o sampler: músicos humanos podem, enfim, ser substituídos por técnicos de bricolagem de sons. A quantidade de sons - musicais ou não - já registrados nos mais diversos suportes no decorrer do século XX permitiria, em tese, uma infinita combinação de colagens eletrônicas, no que o elemento humano criador e executor de música, como até hoje se conheceu, se tornaria totalmente supérfluo. Seria a passagem completa do capital midiático monopolista ao capital midiático fictício. Resta saber se esse pesadelo (ao menos para os músicos) tem potência suficiente para tornar-se hegemônico.
... massivos.7.17
Se considerarmos a internet - e programas como o napster, antes de sua absorção pelo campo de poder -, alguns selos independentes e as rádios comunitárias e piratas meios massivos, à disposição do campo de produção simbólica, sua potência socializante aumenta, embora permaneça ainda bastante inferior à do campo de poder.
...olica7.18
Sob a pseudo-aura midiática, toda autonomia se dá em relação à mídia. Portanto, campos de produção autônomos podem ser tanto as vanguardas (classes média e alta) quanto o folclore (classe popular).
...olicas.7.19
Gosto social midiático não se refere a um suposto ``gosto popular'', posto que predomina em todas as classes, embora não de modo integral. Nunca é demais insistir em que se deve evitar o equívoco corrente de confundir o termo popular como referente à produção e ao gosto do povo - categoria que, por sua vez, tem se tornado cada vez mais problemática, conforme já discutimos - e popular como correlato à popularidade, isto é, de alta taxa de consumo. Esta confusão reflete antes de mais nada o discurso legitimador dos agentes da indústria cultural para justificarem a escolha dos produtos que veiculam, por serem ``o que o povo quer''. Vimos que a questão não é tão simples. Já cantava Gilberto Gil: ``o povo sabe o que gosta, mas também gosta do que não sabe''.
... tradicionais7.20
Devido à sobrevivência dos hábitos e costumes de produção e de consumo gustativos sociais anteriores à indústria cultural, bem como aos deslocamentos de massa no espaço e no tempo, isto é, do campo para a cidade
... afinidades.7.21
Afinidades que atingiram seu auge nas décadas de 20 e 30, e, posteriormente, 60 e 70, tendo seu desenvolvimento sido interrompido pela 2ª Guerra Mundial (os anos 50 representaram um período intermediário, de recuperação, de preparação para uma nova fase de desenvolvimento); seu declínio começou nos anos 80.
...olico7.22
Tanto aquele historicamente acumulado nas formas tradicionais quanto, fato moderno, este produzido pela novidade da mobilidade formal, possibilitada pela miscigenação cultural.
... campos.7.23
Veja-se o caso, no Rio de Janeiro, da transformação do jongo em samba amaxixado e, deste, no bairro do Estácio, no formato propriamente carioca do samba; também a entrada de instrumentos de sopro, no modelo das orquestras de jazz norte americanas, nos arranjos dos sambas; outro ponto importante é o contato morro-asfalto, cujo exemplo mais radical talvez possa ser representado pelo encontro de Cartola e Villa-Lobos e, posteriormente, pela bossa nova. Nos EUA, a entrada da guitarra elétrica no blues, ao migrar de Nova Orleans e do Mississipi para Chicago e Nova Iorque, e as mais diversas formas de experimentalismo e miscigenação de gêneros no jazz (por exemplo, o disco Blues on Bach, do Modern Jazz Quartet, ou a Rapsody in Blues, de Gershwin). Esses processos davam-se paralelamente ao desenvolvimento e maior penetração social do rádio, do disco e do cinema.
... caro.7.24
Segundo um produtor musical conhecido meu, no ano 2000 o jabá pago por uma gravadora para que uma música de um artista seu fosse exaustivamente executada durante um mês inteiro em uma grande rádio do Rio ou de São Paulo girava em torno de R$ 300.000; ele também mencionou que, além do dinheiro, há outras formas de jabá, como o oferecimento de viagens e presentes aos programadores das rádios, convites para festas orgiásticas e outros intercâmbios mais sutis.
... Levy.''7.25
Jornal do Brasil, Caderno Economia, p. 14, 21 de março de 2002.
... p.43).7.26
Nas mais diversas tradições musicais populares anteriores ao estágio liberal do capitalismo, o que possuía valor simbólico, o que dava prestígio ao compositor ou ao intérprete, não era propriamente a originalidade autoral - cujo dispositivo jurídico correlato do ``direito autoral'', ao menos no Brasil, vale mais para garantir à gravadora o direito de propriedade sobre o fonograma gravado do que para uma remuneração adequada dos artistas - ou a inovação formal, mas à fidelidade à tradição. Mesmo o repente ou o samba de partido-alto, cujas características centrais são a improvisação poética, não fogem a esta regra, já que improvisa-se dentro de uma estrutura formal relativamente fechada. As migrações, o crescimento das cidades e a miscigenação cultural resultantes foram os primeiros agentes transformadores dessas tradições; a indústria cultural, na seqüência, o agente decisivo.
... musica8.1
``É assim que os teóricos da idade média denominavam o intervalo FA-SI, esta quarta aumentada que se acomodava mal aos seus ouvidos, e a qual era absolutamente necessário evitar na polifonia!'' Ver site [http://www.diabolus-in-musica.net/index-frame.html]. Este intervalo de quarta aumentada é amplamente utilizado no blues, sendo umas de suas principais características distintivas.
... anos.9.1
Fonte: Revista do NOPEM e SUCESSO CD.
... induzida,9.2
Ver modelo do questionário no Anexo II.
... apreciados9.3
Este número não é arbitrário, antes deveu-se aos nomes insistentemente citados pelos entrevistados.
... SIZE="+2">II9.4
Os dados coletados na coluna direita das tabelas não foram utilizados nesta pesquisa.